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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.33 Lisboa jan. 2017

https://doi.org/10.4000/cea.2194 

DOSSIÊ

 

“Ajustar à Forma do Viver Cristão”. Missão Católica e Resistências em Terras Africanas

 

“Fit to the form of Christian living”. Catholic mission and resistance in African lands

 

 

Carlos Almeida

Centro de História da Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal, endereço de correio eletrónico: almeida.carlos@campus.ul.pt

 

 


RESUMO

O cristianismo constitui uma das principais marcas da presença europeia no espaço cultural da África Central. Desde o batismo do soberano de Mbanza Kongo, ocorrido em 1491, símbolos, rituais, práticas cerimoniais foram incorporadas em algumas sociedades, ao ponto de alguns autores falarem de um “cristianismo africano”. O presente texto debruça-se sobre três guias para a ação missionária elaborados por religiosos capuchinhos que passaram pela região entre o último quartel do século XVII e meados do século XVIII. A sua análise permite reconstituir o programa de evangelização em terras africanas e o pensamento antropológico que lhe subjaz, mas, sobretudo, fazer luz sobre o dinamismo das sociedades africanas e os problemas e resistências levantados à proposta católica.

Palavras-chave: Angola, Kongo, missões católicas, capuchinhos, história de África, discurso etnográfico


ABSTRACT

Christianity is one of the hallmarks of European presence in the cultural space of Central Africa. Since the baptism of the ruler of Mbanza Kongo, in 1491, symbols, rituals, ceremonial practices were incorporated in some societies, to the point that some authors speak of an “African Christianity.” This paper focuses on three guides for missionary action prepared by Capuchins friars who have gone through the region between the last quarter of 17th century and the 18th mid-century. Its analysis allows us to reconstruct the evangelization program in African lands and the anthropological thought that underlies it, but above all to shed light on the dynamism of African societies and the problems and resistance raised to the Catholic proposal.

Keywords: Angola, Kongo, Catholic missions, Capuchins, African history, ethnographic discourse


 

 

Sabe-se pouco sobre o padre Fortunato Alamandini da Bologna e não deixa de ser uma curiosa ironia que naquela que é a sua obra mais notável, o seu nome seja tantas vezes ignorado. O padre Alamandini foi o último revisor da obra do padre Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo, Istorica descrizione de’ tre’ Regni Congo, Matamba, et Angola situati nell’ Etiopia Inferiore Occidentale e delle Missioni Apostoliche esercitatevi da Religiosi Capuccini. A ele se deve a encomenda de uma parte das gravuras que ilustram a obra e, sobretudo, a julgar pelo plano geral que o padre Cavazzi deixou feito e apresentou aos cardeais da Propaganda Fide, em 1671, será da sua autoria também a arrumação final do texto em sete livros, organizados em parágrafos numerados (Faria, 1965). O facto de não ter sido encontrado, até hoje, o manuscrito original da Istorica Descrizione... alimenta o debate sobre a profundidade da revisão feita por Alamandini no texto de Cavazzi, mais ainda quando se confronta a obra impressa com os três volumes de notas manuscritas pelo missionário, localizados, em 1969, por Giuseppe Pistoni (1969)[1]. Para além disto, os escritos existentes do padre Alamandini são em geral ignorados.

Ora, a verdade é que se conhecem pelo menos dois outros textos daquele religioso, relacionados entre si, e dedicados à missão dos capuchinhos no Kongo. Não é claro o que terá levado o religioso a produzir o que parecem ser dois pareceres sobre a organização da missão, incluindo o perfil dos religiosos para ela escolhidos e as exigências e particularidades da pastoral naqueles lugares[2]. O padre Alamandini seria certamente um religioso com prestígio na regra. Di-lo não apenas a sua ascendência nobre – já que era da família do conde Isolani, a quem Cavazzi dedicou o seu livro e que custeou as despesas com a sua impressão – e o estatuto de pregador que alcançara, o mais alto da regra, mas sobretudo o facto de ter recebido das mãos do próprio Geral da Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, à época, Stefano da Cesena, o encargo de fazer a derradeira revisão da obra de Cavazzi. Seja como for, esse trabalho, que durou cerca de quatro anos, entre 1678 e 1682, habilitou Alamandini com um conhecimento muito profundo sobre aquela missão africana, e sobre os debates que se travavam entre os cardeais e, dentro da própria ordem, sobre as dificuldades que ela enfrentava. Como ele próprio afirma, Alamandini consultou um rol extenso de documentação, correspondência, relações produzidas por religiosos capuchinhos além do padre da província de Bologna, e decretos papais[3]. Será talvez isso que o terá animado a passar a escrito um conjunto de reflexões e propostas sobre alguns dos problemas que identificara naquela missão e que terá encaminhado, provavelmente para o Geral da regra. Parece certo, tanto pela redação dos textos como pelo inexistente eco da sua receção, que eles terão sido escritos por iniciativa própria, não decorrendo de qualquer pedido ou encomenda, seja da ordem, seja da congregação cardinalícia[4].

 

Apuram o engenho com malícia

As observações de Alamandini abarcam toda a complexidade da empresa missionária, desde a seleção e envio dos religiosos, à qualidade do seu trabalho pastoral. Mas, se verdadeiramente o que preocupa Alamandini é a qualidade do missionário indicado para aquela vinha, o seu perfil e formação, as suas qualidades e os critérios pastorais requeridos, isso decorre de uma convicção sobre a especificidade particular da missão africana que parece fortemente enraizada no seu pensamento. De tudo o que leu e estudou, Alamandini tem uma visão crítica sobre a Acão dos frades menores capuchinhos na missão do Kongo. Desconfia, em especial, da abordagem sensível e afetuosa, praticada e teorizada por inúmeros missionários, dirigida para as verdades simples e elementares do cristianismo. Como diz, quando se trata de induzir as almas a abraçarem o caminho da fé, o caminho seguro, mais do que a afabilidade, é a apresentação da “eficacia delle ragioni”: “si tratta di risolvere la volontà e non di muovere solo l’affetto”[5]. Na pregação, no batismo ou pelo casamento, era necessário que os missionários não cedessem no rigor necessário à compreensão dos mistérios profundos, fossem exigentes na administração dos sacramentos, mesmo no caso do batismo das crianças que era concedido de maneira assaz liberal, dispensando-se o exame atento das circunstâncias em que os neófitos viviam, para se atender, simplesmente, à emulação dos exemplos europeus ou à aparência majestosa do cerimonial como argumentos catequéticos.

O padre Alamandini, capuchinho, defendia a elevação do nível de exigência no recrutamento de missionários, indo ao ponto de sugerir que a formação para a missão fosse, neste particular, tão sólida quanto as dos jesuítas e dos carmelitas descalços, mas especialmente dos primeiros, por inteiro dedicados ao estudo, à pregação e contínuo exercício da Doutrina Cristã[6]. Subjacente à avaliação sobre a atividade da missão estava, em boa verdade, uma diferente apreciação sobre a natureza do africano e é nesse particular que o seu texto merece ser analisado para a construção do objeto de estudo deste artigo. Com efeito, a generalidade dos padres que passavam pela missão identificavam na contumaz inconstância do africano o principal obstáculo ao enraizamento da doutrina e dos preceitos da fé entre aquelas gentes[7]. Essa inconstância era o que fazia com que, mesmo batizados, os africanos continuassem aprisionados no mundo de medo e superstição semeados pelo demónio, que invocariam, amiúde, de forma explícita, observando uma multitude de crenças vãs que dominavam o seu quotidiano, protegendo os que oficiavam essas cerimónias diabólicas, e vivendo, sem freio, sob o imperativo da satisfação irreprimível da paixão e dos desejos.

Contudo, onde os seus companheiros viam uma alma que, pelas suas próprias limitações, se mostrava inábil para manejar a complexidade das verdades espirituais, o padre Alamandini descortinava, pelo contrário, uma vontade própria, atenta a tudo o que a rodeava e competente o suficiente para manipular os ensinamentos que lhe eram ministrados nas doutrinas e pregações: “i popoli più rozzi con la lunga conversazione non solamente s’addomesticano, ma eziandio assottigliano l’ingegno alla malizia e fanno argomenti che pongono a partito chi non è fondato nelle dottrine”[8]. Embora nunca chegue a formular o problema nestes termos, nas suas palavras, Alamandini parece entrever que a propalada inconstância do africano recobria, afinal, uma resposta voluntária e dinâmica à evangelização, e que isso exigia dos religiosos uma aproximação mais vigilante e cuidadosa pois que, “se depongono la rozzezza, chi sa che la malizia non dia più che fare a’ missionari”[9].

Como foi já dito, não há registo de terem, as recomendações de Fortunato Alamandini, suscitado alguma resposta da parte da Congregação da Propaganda Fide ou sequer da ordem dos frades menores. A singularidade do seu discurso, entretanto, tem a virtude de abrir uma linha diferente de questionamento sobre a problemática dos encontros e confrontos culturais na região central do continente africano desde que, em 1491, o principal soberano da região, o Mwene Kongo Nzinga Nkuwu, aceitou o batismo com o nome de João. Nesse inesgotável e sempre renovado debate, tem vindo a sedimentar-se a ideia de que nesta região, e muito em particular no caso do Kongo, o cristianismo foi aceite e incorporado sem conflito pelas sociedades africanas. Na ausência de uma força colonizadora e coerciva, reservando a sua soberania e projetando a sua ação política até à Europa, o Kongo teria elaborado um “cristianismo africano”, uma síntese que se constituiria, de acordo com algumas formulações mais radicais, mas ainda assim frequentes, em “religião de estado”[10]. Um tal processo teria resultado de um trabalho de assimilação entre as categorias do cristianismo e da religião africana levado a cabo de forma consciente pela elite próxima do Mwene Kongo e gerações de padres e religiosos que ali desenvolveram atividade. Tal teria sido possível, em parte, porque os missionários, atuando sob o patrocínio e, em alguns momentos, o controle direto da aristocracia kongo, teriam usado uma abordagem inclusiva da religião, capaz de conciliar o cristianismo com aspetos da cultura africana considerados não conflituantes com aquele. Esse modelo, também chamado de aberto, opor-se-ia a uma conceção definida como exclusiva ou fechada, associada ao exercício de uma presença colonial coerciva, com capacidade para impor uma leitura mais estrita dos preceitos da fé. Ao mesmo tempo, a elaboração deste cristianismo africano teria sido facilitada por uma homologia entre as formas religiosas africanas e conceitos do cristianismo[11].

Não cabe aqui analisar todos os detalhes e implicações destas diferentes ideias e seus desenvolvimentos que nas últimas décadas têm vindo a ser laboriosamente construídos, sobretudo por John K. Thornton, por via de um estudo extensivo da documentação disponível para este período e que, como é sabido, no contexto da vertente ocidental do continente africano, é verdadeiramente singular (Thornton, 1992, pp. 235-262). Mais recentemente, elas foram objeto de crítica, em particular por James Sweet que, além de contrariar a tese da homologia das estruturas conceptuais do cristianismo e das religiões africanas em causa, chamou a atenção para a continuidade profunda dos ritos africanos para lá do espaço atlântico, na linha do que outros historiadores e antropólogos tinham chamado a atenção em relação à estabilidade da cosmologia kongo (Sweet, 2003; MacGaffey, 1994). Vale a pena aliás notar como a utilização da noção de cristianismo africano é, desde logo equívoca, já que, construída sobre uma aparente valorização da componente africana – que Thornton aliás não deixa de sublinhar – na verdade acaba por submetê-la ao princípio ordenador do cristianismo, de certa forma reproduzindo uma ideia muito enraizada entre os missionários sobre a inexistência entre os africanos de um sistema religioso coerente capaz de ordenar a relação do homem com o mundo e de dar sentido às novidades do tempo.

Mais recentemente, aquelas teses foram reforçadas pelo estudo de Cécile Fromont (2014) que, entre outros, tem o mérito de trazer para o debate um arquivo visual importante, conferindo unidade a um conjunto vasto, mas heterogéneo e disperso, de representações iconográficas, objetos artísticos e artefactos arqueológicos. Para esta autora, esses documentos, produzidos no encontro entre o pensamento religioso, as formas visuais e os sistemas políticos europeu e africano, criaram o que designa como “espaço de correlação”, colocando em diálogo mútuo ideias e formas com origem em mundos diferentes, mas que se ajustaram entre si como componentes interconectadas de um “new system of thought and expression”. Recusando explicitamente o vocabulário da coerção e do conflito que classifica como “pós-colonial”, Fromont privilegia o que define como processos de “interação” e “convergência” que marcariam a constituição histórica e geográfica do cristianismo kongo enquanto espaço de correlação.

Para o que aqui importa, convém sublinhar como esta visão parece concentrar-se no resultado final – a evidência da incorporação e da apropriação africanas de expressões rituais, símbolos e cerimónias do cristianismo – para iludir a natureza profundamente conflitual do processo, subestimando as tensões que nele se confrontam e as dinâmicas sociais, necessariamente contraditórias, que nele se libertam. As considerações do padre Fortunato Alamandini evidenciam, justamente, a complexidade desse encontro, e as dúvidas que ele suscitava nos círculos missionários. Elas põem a claro como, mesmo em contextos em que o projeto de evangelização não é suportado pela presença política e militar europeia, nem por isso essa empresa perde a sua feição totalizante, e por isso necessariamente conflitual, tanto mais acentuada em função do modelo antropológico que medeia a relação com o outro.

Em todo este debate, sempre é subestimada a dimensão etnográfica, o discurso que os missionários europeus constroem sobre a realidade africana e o modo como ele influencia e condiciona a abordagem pastoral dos missionários (Almeida, 2009). Ao mesmo tempo, a própria ação missionária em África é, em geral, desconectada do contexto que na Europa a produzia e desenvolvia e que associava à reforma confessional uma dimensão de disciplinamento social portador de um movimento profundo de reconfiguração identitária[12]. Vista a partir destas duas perspetivas, a atividade missionária em terras africanas e a realidade que através dela se revela toma outros contornos, revelando o jogo de forças e tensões que lhe subjaz. Entre os religiosos que ali desenvolviam atividade, jesuítas, capuchinhos ou de outra qualquer regra, era largamente consensual a ideia de que os africanos não possuíam verdadeiramente uma religião, um sistema teológico coerente, capaz de enfrentar-se com as verdades do cristianismo. A sua impenitente inconstância reclamava dos padres um esforço de vigilância persistente orientado para a repressão dos cultos africanos e a vigilância do que os missionários consideravam ser uma apropriação não conforme do cristianismo. Esse esforço, sempre presente no quotidiano da missão, poderia ser tão forte e violento quanto mais forte e próximo estivesse um braço secular disponível para o exercer, mas nunca perdia a sua feição coerciva. Ora, falar de coação ou de vigilância é uma outra forma de enunciar a resistência de um sistema cosmológico e social que respondia à novidade, tanto pela recusa simples do cristianismo como pela sua incorporação e ressignificação de alguns dos seus elementos rituais e simbólicos numa visão do mundo que nos seus alicerces essenciais se mantinha estável.

Na massa volumosa da documentação produzida pelas diferentes ordens religiosas que atuaram na região central do continente africano a sul do rio Zaire, há três textos onde, pela sua natureza, tais resistências são objeto de atenção particular. Escritos por três padres capuchinhos, em momentos distintos, sensivelmente entre o último quartel do século XVII e a primeira metade de Setecentos, eles sistematizam décadas da atividade da missão em terras africanas. São eles, os Auuertimenti Saluteuoli..., escritos cerca de 1680 por Giovanni Belotti da Romano, os Auuertimenti Necessarissimi... da autoria de Giuseppe Monari da Modena e escrito entre a segunda e o início da terceira década do século XVIII, e a Missione in Pratica..., texto não datado ou assinado, mas em geral atribuído a Bernardino Ignazio d’Asti, de meados do século XVIII. Trata-se, como é percetível, de guias de orientação do trabalho missionário elaborados por religiosos no final ou durante os últimos anos da sua passagem pela missão. Com diferenças, eles cobrem todos os momentos da vida do missionário. Nenhum destes textos foi impresso, mas há boas razões para pensar que eles terão sido amplamente usados, sistematizando práticas estabelecidas de forma duradoura na missão. A circunstância de Giuseppe Monari da Modena reproduzir quase na íntegra o texto de Belotti da Romano, cerca de quarenta anos depois da sua redação, confirma a longevidade das suas orientações. Por outro lado, a existência de várias cópias do texto atribuído a Bernardino Ignazio d’Asti, sendo que uma delas pertenceria, com probabilidade, ao hospício dos capuchinhos em Lisboa, ponto de passagem obrigatório para os religiosos que demandavam o porto de Luanda, atesta igualmente a ampla utilização do texto[13].

Estes não são os únicos textos conhecidos para orientação do trabalho missionário nesta região do continente africano. Se excetuarmos as obras de carácter linguístico – cartilhas, catecismos ou vocabulários em kikongo ou kimbundu – no caso dos jesuítas conhece-se apenas um documento de cariz comparável. Trata-se do relatório sobre a visitação da missão de Luanda, elaborado pelo padre Pero Rodrigues em 1594[14]. Depois do período conturbado que a ordem atravessou na década de 1550 com várias queixas sobre o comportamento impróprio dos religiosos, em particular quanto ao afrouxamento da disciplina, o relatório do visitador Pero Rodrigues é, contudo, um programa de disciplina interna da missão mais do que um guia de orientação pastoral. Prescrevia-se, nele, a realização anual de uma missão pela “ilha de Loanda e terra firme”, por um padre e um irmão, que teria a duração que o superior de Luanda estabelecesse, proibia-se a concessão do batismo a qualquer soba que o pedisse enquanto a terra não estivesse de todo sujeita, sob pena de, rebelando-se, “tornarẽ atrás cõ tudo” como antes já sucedera, sublinhava-se a exigência de uma instrução suficiente para os demais gentios que fossem batizados, e a pouco mais que isto se resumiam as orientações pastorais do visitador. Ao longo dos trinta e quatro parágrafos do seu relatório, sobressai a preocupação com a observância estrita da regra nas condições exigentes de uma missão tão excêntrica, tanto no atinente à saúde espiritual e à coesão da comunidade religiosa ali estabelecida, como no tocante ao rigor, desprendimento e austeridade que deviam pautar a relação com o poder secular, designadamente o governador de Luanda.

Já no que se refere aos capuchinhos, além daqueles já citados, são vários os textos orientadores produzidos no âmbito da missão. Na verdade, toda a escrita missionária e muito especialmente os relatos elaborados pelos padres capuchinhos tem um propósito propedêutico expresso, oferecendo modelos de edificação que deviam servir de referência para os religiosos que de novo eram encomendados para aqueles lugares. Logo em 1649, Bonaventura de Alessano, o Prefeito da primeira missão, elabora um sumário dos principais “abusi, e riti piu communi y pernitiose” praticados no Kongo – vários outros se seguiram produzidos por outros religiosos – instrumento que devia orientar o olhar inspetivo dos religiosos sobre a vida social das comunidades que deviam evangelizar[15]. E logo no ano seguinte, Prospero Fagnani, um insigne especialista em direito canónico e figura muito respeitada na Cúria Romana, foi encarregue pelo Colégio da Propaganda Fide de responder a um rol de dúvidas e preocupações dos padres da missão do Kongo, em particular sobre a administração dos sacramentos no ambiente social africano, tão diverso do que antes conheciam[16].

Construídos como textos de regulação, sente-se neles – e também nas dúvidas apresentadas por Bonaventura da Sorrento – o pulsar de uma voz silenciada, nomeada apenas por quem em seu nome fala, mas viva ainda assim, e que teima em rebelar-se contra o modelo antropológico, o paradigma de alteridade em que o discurso missionário procurava encerrá-lo. Nas dúvidas condensadas por Bonaventura da Sorrento, ou nas instruções e orientações metodológicas sistematizadas por Belotti, Monari e Ignazio, é percetível a iniciativa, a recusa ou a apreensão seletiva, a leitura criativa que os africanos faziam da proposta doutrinária cristã, dos rituais e símbolos associados, das instituições, dos modelos de conduta com que os missionários procuravam reformar as suas sociedades. Deles transparece igualmente a inquietação que essa atitude gerava entre os religiosos, as suas dúvidas e ansiedades, as crispações também; em bom rigor, esses textos nascem justamente do imperativo quanto à necessidade de responder a essas dúvidas e perplexidades, oferecendo fórmulas de comportamento que, acreditava-se, seriam eficazes. Sem a ambição de esgotar a riqueza historiográfica destes documentos, a análise que se apresenta de seguida procura evidenciar como estes guias de orientação para a atividade missionária se estruturam justamente sobre a dimensão de conflito, como um diálogo tenso entre o africano, tal como o missionário o entende, e aquele outro que Fortunato Alamandini parecia entrever na leitura dos relatos dos seus companheiros de regra e que, a partir da sua própria representação do mundo e na sua circunstância histórica precisa, interpretava a novidade, e desafiava o missionário no modo como se relacionava com ela.

 

À força de ameaças, graves repreensões e bastonadas

A estrutura daqueles três textos é semelhante, mas do texto de Belotti até ao de Ignazio parece notar-se um esforço de integração de tópicos dispersos em capítulos mais sólidos e densos. Tal é visível no número de parágrafos, cinquenta e nove em Belotti, quarenta e um em Monari, e apenas doze em Ignazio, embora neste último caso, deva acrescentar-se no final um conjunto sumário de regras para a aprendizagem do português e um compêndio breve de Doutrina Cristã em português e italiano. Apesar das diferenças na sua estrutura formal, os textos seguem o mesmo modelo discursivo. Num primeiro momento, trata-se da preparação do missionário para uma vinha tão árdua e complexa como a missão na região a sul do rio Zaire e das condições espirituais de que devia munir-se para tal obra. A viagem requeria cuidados particulares que, além da travessia marítima, incluíam também a forma como o missionário devia orientar os seus passos durante a sua estadia em Lisboa. Na chegada à missão, são tratados os tópicos do estabelecimento do missionário em Luanda e da sua relação com a sociedade e as autoridades da colónia, as atividades pastorais a desenvolver e os requisitos particulares a considerar na administração dos sacramentos nesse meio social, o modelo de conduta a adotar na relação com os escravos da missão e a exigência que deveria ser colocada na escolha dos intérpretes que o acompanhariam[17]. Há um quarto grupo de temas relacionados já com o trabalho apostólico propriamente dito nas terras de missão, o modelo de relacionamento com o poder político africano, a forma de orientar as atividades quando em viagem pelo interior, os cuidados a ter com a celebração eucarística e bem assim com a administração dos sacramentos, em particular o batismo e o casamento. Um outro grupo de questões visava habilitar o missionário com o conhecimento necessário sobre o ambiente cultural onde desenvolvia a sua atividade e, muito em particular, sobre as crenças e os rituais africanos. O tratamento destes aspetos é feito sempre com a preocupação de permitir ao religioso recém-chegado uma identificação rápida e precisa das práticas que deveriam ser alvo de censura e repressão, assim como dos indivíduos com conhecimento e responsabilidade particular na sua celebração, da doença à caça, do parto às festas, dos tabus alimentares aos rituais de morte. A parte final, visível em particular nos textos de Belotti e Monari, prende-se com o cuidado meticuloso que era exigido no exame de consciência sobre cada um dos mandamentos. Com o conhecimento adquirido na exposição das crenças, rituais e hábitos do quotidiano africano, o missionário era orientado para conduzir o interrogatório de uma forma que submetia todas as esferas da vida social à estrutura normativa do decálogo.

Todas estas recomendações eram indissociáveis de um discurso geral sobre o africano e o seu universo espiritual que perpassa pelos vários tópicos, umas vezes de forma mais clara, outras menos evidente. Os três padres, Belotti, Monari e Ignazio, ainda que com matizes entre eles, subscrevem o modelo de abordagem à realidade que o padre Alamandini criticava. Nas palavras de Belotti, os missionários deviam conduzir a pregação e o ensino da doutrina com palavras simples, conformando-se com a sua ignorância e simplicidade, e usando a proximidade com as coisas materiais e palpáveis, porque pretender tratar com eles de assuntos especulativos era o mesmo que falar com pedras, ou servir “margaritas ante porcos” (Belotti, p. 139). Mais radical que os seus companheiros, Belotti ia ao ponto de relativizar a utilidade do conhecimento das línguas locais. Sugeria, em alternativa, o estudo do português e o recurso aos intérpretes que deviam ser escolhidos de maneira criteriosa, mas entendia que, para tocar o coração dos africanos, gente “Capotoste, e di dura ceruice”, mais importante que o conteúdo do discurso era o calor e a energia que o missionário punha em cada palavra proferida (Belotti, p. 141). Por sua vez, o padre Bernardino Ignazio, mesmo se tinha uma opinião diversa quanto ao uso das línguas locais – sobretudo na medida em que permitisse ao padre controlar os enganos que, em muitos casos, os intérpretes maliciosamente semeavam – não deixava de criticar o envio, para aqueles lugares, de alguns religiosos de muitas ciências que cuidavam ser aquela missão uma “Cattedra di Filosofia, e di Teologia”, e a quem repugnava “insegnar l’A. B. C.” dos mistérios e rudimentos primeiros da fé (Ignazio, pp. 38 e 97).

Todos concordavam, ainda assim, que o missionário devia conduzir os seus passos com discrição e severidade, recusando qualquer gesto de familiaridade. O padre Bernardino Ignazio d’Asti prescrevia uma atitude autoritária, sem sinal de retraimento, nem mesmo quando era necessário pedir algum serviço ou assistência. Na pregação, em nenhuma circunstância podiam ser usados “termini humili, che abbassino il concetto di se medesimo, o del suo Ministero”, escondendo até a sua tradicional humildade seráfica, pois de contrário, habituados como estavam a viver “quasi seluaticamente”, não seria possível almejar, entre eles, o progresso da missão (Ignazio, pp. 27 e 25). O padre Monari era ainda mais explícito sobre a necessidade de uma atitude ríspida no trato com os africanos, pois aquela gente “non operano per amore, mà solo per forza di minacie, e graui riprenscioni, e di bastonate” (Monari, f. 282). E Belotti postulava que:

quanto il Ferro è più duro con colpi anco più forti batter si deue: e quelle genti, essendo quasi di duro ferro, s’ hanno dà domare, edaggiustare alla forme del uiuere Christiano, ao principio almeno, non cò leggieri colpi de mansuete parole, má bensi sono necessari forti colpi, e di graui materie, e di feruoroso zelo (Belotti, p. 141).

Sem no fundamental contrariar aquela ideia, Ignazio mostra-se um pouco mais prudente no raciocínio. Em sua opinião, causavam tanto prejuízo à missão os que cediam no rigor com que tratavam os africanos, fossem os escravos da missão ou os príncipes, como aqueles que armados de grande zelo apostólico usavam de excessivo rigor, multiplicando-se em censuras e correções. Sobre todas as qualidades e virtudes exigidas, Bernardino Ignazio valorizava, em particular, o que designava como “discrezion de spirito”, que habilitava os religiosos a conduzirem-se com discernimento nas coisas do serviço de Deus, equilibrando o rigor e a tolerância, a abnegação e a prudência. A título de exemplo, sublinhava que o missionário não devia coibir-se de aplicar castigos corporais aos africanos no caso de faltas e erros graves, e não apenas aos escravos da missão, mas em caso algum deveria chamar a si a aplicação direta do castigo, tanto porque o esforço poderia provocar um alteração grave na corrente sanguínea, arriscada naqueles ares excessivos, mas sobretudo porque ao fazê-lo poderia “lasciarsi trasportar á castigar indiscreta et eccessiuamente dal che ne risulti qualche altro graue sconcerto” (Ignazio, p. 94). Diga-se, a este propósito, que já o jesuíta Pero Rodrigues, no final do século XVI, antevira os riscos para o equilíbrio das emoções do religioso, sempre tão delicado, e proibira expressamente que algum padre castigasse diretamente um escravo, recomendando que a aplicação da pena devida fosse entregue ao encarregado da administração da escravaria[18].

Na formulação do padre Bernardino Ignazio d’Asti, recuperada do livro de Jeremias, o trabalho missionário era “sradicare, e distruggere; disperdere e dissipare; edificare, e piantare” (Ignazio, p. 57). A dimensão corretiva e coerciva era indissociável da doutrina e da catequese, mesmo se circunstâncias várias, como já se observou, recomendassem prudência na aplicação de uma medida repressiva extrema. Quando elabora sobre os costumes que os missionários deviam abster-se de procurar corrigir, Ignazio não tem nenhuma dúvida quanto à sua natureza “improprie, incivili, ridicole, o spropositate”, nem sequer quanto à necessidade de os disciplinar. A discrição de espírito, que tanto apreciava, recomendava apenas que a sua conduta acautelasse o risco de “qualche notabile disturbo in pregiudiccio del suo ministero, tanto più che quella gente non è capace d’investirsi di tali rifforme, se non esce dal suo paese” (Ignazio, p. 80). Deve dizer-se que este princípio de prudência aplicava-se mesmo no caso das práticas consideradas malévolas e viciosas perante as quais o missionário devia mostrar-se cauteloso, escolhendo cuidadosamente o momento, as circunstâncias e o modo apropriado para a sua destruição (Ignazio, p. 75). Deste modo, a tolerância era apenas tática, sem abdicar do juízo de fundo sobre a natureza do africano e da exigência de uma alteração profunda do seu modo de vida para o tornar compatível com os preceitos da fé.

Como transparece do que fica dito, ajustar ao modo do viver cristão, para usar a formulação de Belotti, implicava todo um programa de reforma que visava reordenar o tempo e o quotidiano dos indivíduos e das comunidades, não apenas em torno de uma rigorosa pedagogia dos sacramentos, mas de igual modo na veiculação de um conjunto de normas de vida, padrões de conduta, formas de pensar o mundo, que deviam impor-se sobre a forma incivil e desregrada que pautava a vida das sociedades africanas (Belotti, p. 108). E não havia ilusões quando à necessidade de coação e até mesmo de violência para vencer a resistência que o africano levantava a esse processo em resultado da condição silvestre em que vivia mergulhado. Os três textos aplicam-se em informar o missionário em detalhe sobre os rituais considerados supersticiosos ou de invocação diabólica, sobre os sinais que indicavam a sua ocorrência e bem assim sobre os elementos da indumentária ou da aparência física ou comportamental que denunciavam os que eram reconhecidos como oficiantes de tais cerimónias. Nestes casos, e sempre que possível, os responsáveis deviam ser capturados e compelidos a entregar os objetos rituais às chamas, numa exibição ostensiva e exemplar do poder do novo credo e da humilhação dos que desafiavam essa nova ordem. Mas deviam, além disso, ser severamente castigados, pois de outra forma:

non lasciaranno simili offitij Diabolici, e col flagello si potrà sperare alcuna emenda, e se queste punitioni saranno publiche, seruiranno di profito maggiore specialmente frustati per publiche strade poiche essi restariano confusi, e suergognati, e gli altri spauentati di seguire quelli errori, che tanto danno fano alle anime, e à corpi humani (Monari, ff. 321-322).

O facto de estes castigos serem executados pelo braço secular, que tanto podiam ser as autoridades coloniais de Luanda, como o “meirinho” que os capuchinhos contratavam para administrar os seus escravos, ou os poderes africanos, seja o soba da aldeia, ou o Mani Nsoyo, por exemplo, não reduz o lugar que a violência ocupava no método missionário, nem sobretudo, o facto de ela significar, a contrario sensu, a importância da resistência africana à reconfiguração profunda do seu universo cosmológico e social tal como era esboçado nos textos missionários.

 

Querem estar com Deus e com o Demónio

Todavia, essas formas de resistência podiam ser mais subtis, ao ponto de criar dificuldades adicionais aos missionários que com elas tinham que se confrontar. Essa é a razão que justifica a atenção com que se instruía os religiosos no exame do sacramento da confissão. O que aí se tratava era de, precisamente, detetar interpretações consideradas erróneas ou deturpadas dos preceitos da fé, ou simplesmente o seu convívio, para o penitente não conflitual, das normas do “viver cristão” com práticas tidas por supersticiosas ou rituais diabólicos. Com esse objetivo, o quotidiano dos africanos era seccionado e olhado em detalhe sob a lupa do decálogo. Instruía-se os missionários sobre as interrogações úteis capazes de perscrutar a intimidade do penitente, as suas rotinas diárias, e delas fazer emergir os erros, deturpações e falsidades “non tanto al uso de Christiani bianchi, mà latresi in quelle materie già dette, e proprie de negri, ciouè delle Idolatrie, fatuchierie, superstitioni, giuramenti, fornicationi tanto multiplicate” (Monari, f. 323; Belotti, p. 231). Assim, por exemplo, a propósito do primeiro preceito, indagava-se sobre a posse ou veneração do que os padres designavam por “ídolos”, a celebração eventual de rituais de adivinhação ou de sacrifícios com pedido concreto de alguma graça, um sortilégio de proteção contra roubos ou a ameaça dos animais ferozes que povoavam os caminhos, questionava-se sobre a realização de rituais em períodos de lua nova, ou o recurso a artes diabólicas como antídoto para enfermidades, ou se em algum momento se dera crédito supersticioso a sinais ou acontecimentos. O exame estendia-se aos tabus alimentares que acompanhavam a mulher parturiente até aos primeiros meses de vida do recém-nascido. Investigava-se, por fim, a observância do espaço delicado das crenças relacionadas com os antepassados, procurando uma vez mais a observância supersticiosa de prescrições dietéticas ditadas em rituais onde diabolicamente os mortos eram invocados (Monari, ff. 327-328; Belotti, pp. 247-249). O questionário era acompanhado por um rol vasto de admoestações e ameaças lançadas sobre os pecadores, incluindo a morte, “di che li negri hanno gran pauura”, considerando-se que “meritauano d’essere abbruciati uiui nella presente uita” (Monari, f. 325).

A orientação do interrogatório guiada por matérias consideradas próprias dos africanos reflete na verdade a perceção de que aquela era uma vinha particular, em pouco semelhante a outros territórios de missão. Não por acaso, a paciência era a virtude mais invocada, pois só armado em suficiência com ela o missionário podia enfrentar aqueles espíritos rudes, ignorantes e duros. Como diz Monari, “à negri basta il dire, siamo batezati, e per conseguenza siamo Christiani”, e por isso descuidavam a observância quotidiana dos divinos preceitos. O padre Belotti reconhecia aliás que a dificuldade não estava na aceitação do batismo, mas antes na sua adequada administração assim como na compreensão do seu verdadeiro significado, já que, dizia, referindo-se aos sobas, segundo ele imersos na torpeza e impudicícia, “vorriano stare con Dio, e col Demonio al’ istesso tempo, il ch’ è impossibile” (Belotti, p. 100). Na verdade, para os africanos, o ritual do batismo, em si mesmo, adquirira um significado que transcendia o contexto do cristianismo, já que a cosmologia na qual aquelas sociedades se reconheciam atribuíra-lhe um novo sentido relacionado com a proteção contra a bruxaria. Não por acaso, logo em 1548, um dos religiosos da primeira missão jesuíta no Kongo escrevia que, do batismo, “nã sabiaõ mais que dizer que comeraõ sal” e muitos outros missionários notaram esse facto, justamente porque o sal era já um ingrediente importante nos rituais de proteção antes mesmo da chegada do cristianismo[19]. E exatamente dois séculos depois, Bernardino Ignazio d’Asti alertava os padres capuchinhos destinados àquelas paragens para o facto de muitos dos que eram presentes ao batismo se aprestarem a abandonar a cerimónia logo depois de tomarem o sal, por entenderem que “la sostanza del Sacramento del Battesimo consista nel prender il sale”. Recomendava, a esse propósito, o recurso a um ajudante que garantisse a integridade e solenidade da cerimónia e mantivesse tudo na devida ordem (Ignazio, p. 41).

Por essa razão, tanto Belotti como Monari, sem deixarem de sublinhar a dificuldade da empresa dada a natureza rude e ignara do africano, multiplicam as advertências para que o missionário examine, de forma rigorosa e repetida, até mesmo aos instantes anteriores ao próprio ritual, a qualidade dos que se apresentavam para o batismo, mais ainda no caso dos sobas ou mwenes, instando-os a abandonarem as suas crenças e as relações concupiscentes em que se envolviam com várias mulheres, não se compadecendo com promessas vãs de emenda, antes conservando a reserva e a vigilância que convinha ante gente de espírito tão mutável e exigindo públicas demonstrações de acatamento como, por exemplo, a queima dos objetos rituais considerados diabólicos e supersticiosos (Belotti, p. 98; Monari, ff. 282-284). A determinação que se aconselhava ia ao ponto de sugerir aos missionários que, manipulando o interesse que os africanos mostravam pela celebração do batismo, particular em função da sua própria cosmologia, o missionário pudesse recusar-se a conceder esse sacramento nos casos em que entendesse não estar o candidato preparado, ou não serem seguras as condições para que, de forma resoluta, ele se afastasse de superstições e relações licenciosas com várias mulheres. Neste ponto, é interessante notar que uma tal orientação contrariava as respostas que monsenhor Fagnani oferecera ao questionário que Bonaventura da Sorrento trouxera, em 1650, do Kongo. Já então, os padres da missão sugeriam, na questão formulada a propósito, a possibilidade de recusar a administração do batismo aos que assim viviam e aos próprios filhos como forma de “raffrenare molti peccatori publici, e di scandalo”, mas a resposta do canonista foi clara no sentido da recusa. No mesmo sentido, Fagnani admitia que, em caso de necessidade, pudessem ser aceites, no batismo, padrinhos que desconhecessem até o sinal da cruz e as orações centrais do catolicismo, o Pai Nosso e a Ave Maria, algo que Belotti e Monari expressamente recusavam, propondo aliás que os padrinhos fossem interrogados sobre aqueles mesmos requisitos e que, revelando-se impreparados, fossem censurados em público na expectativa que dessa humilhação proviesse a sua futura correção (Belotti, pp. 104-105; Monari, ff. 244-245)[20].

Esta divergência entre o que haviam sido as orientações expressas pela Propaganda Fide, através do canónico Prospero Fagnani, e o que parecia ser uma leitura mais rigorosa da realidade por parte dos missionários no terreno já se notara no tratamento do sacramento da penitência. Mesmo exigindo uma confissão ajustada à qualidade do penitente e recusando a vulgarização do recurso à absolvição condicionada – sugerida no questionário dos padres pela dificuldade de fazer os penitentes compreender, em razão da sua natureza “molto rozza & inetta”, a condição em que se encontravam – monsenhor Fagnani recomendava que sempre se concedesse a absolvição, mesmo quando alguém reiteradamente incumpria promessas antigas de abandonar os maus costumes[21]. Também no caso da eucaristia, parece entrever-se um desencontro entre as perspetivas dos missionários e as orientações da Propaganda Fide. Em 1650, os religiosos da missão manifestavam incomodidade com o facto de alguns solicitarem a comunhão com frequência excessiva, como “cosa ordinaria” e sem exemplaridade de vida, mas Fagnani rejeitava que se aplicasse como regra a recusa da comunhão e sugeria que o sacramento não fosse negado ante o desconhecimento ou incompreensão dos mistérios e nem mesmo a quem enganava o seu confessor, prometendo a correção que na verdade nunca acatava. O padre Belotti, sem abordar o problema sob esta perspetiva, aconselhava os padres, quando em missão pelos campos, a não vulgarizarem a celebração da eucaristia, acedendo a qualquer pedido, antes reservando-a apenas para ocasiões de “qualche urgente caso di Pietà”, em particular a iminente ocorrência de um acidente grave (Belotti, p. 90). Já o padre Ignazio d’Asti, em meados do século XVIII, era claro quando advertia que não devia ser aceite na comunhão quem, comprovadamente, não estivesse disposto e capaz para recebê-la, recomendando toda a “cautela e circonspesione” no exame do problema, dada “la grande ignoranza di quella gente no rudimenti di nostra Samta Fede” (Ignazio, p. 47).

Na verdade, no caso do batismo como no da eucaristia, os missionários estavam confrontados com a resistência africana à sua proposta e os seus textos não deixam dúvidas de que esse era o sentimento que experimentavam perante as dificuldades que enfrentavam. O seu discurso deixa perceber que os africanos conferiam um sentido próprio aos rituais e símbolos do cristianismo, apropriando-os de forma seletiva e conferindo-lhes novos significados, mas o peso da alteridade africana, desenhada como espaço incivil e rude, sensível e inconstante, sufocava essa voz que assim se fazia ouvir. Num certo sentido, era também isso que acontecia com o casamento. A esse propósito, o padre Belotti sublinhava a similitude entre o estado da humanidade pré-diluviana, pervertida pelo “abomineuole uitio della dishonestà” e o modo de vida dos africanos, onde “non u’ hà chi non imperuersi deplorabilmente nelle peccaminose sodisfattioni della petulante carne”, e como o matrimónio era um instituto da maior importância como instância de disciplinamento de uma vida dominada pela exaltação das paixões e dos prazeres sensíveis (Belotti, pp. 107-108). No mesmo sentido, o padre Monari considerava-o “il maggior bene, che frà li negri si possa conseguire”. Se é verdade que, no contexto da reforma tridentina, o casamento instituído em sacramento buscava conformar as uniões familiares dentro de limites normativos fundados na razão, que as protegiam do impulso imoderado das paixões, para as orientar para a garantia das condições necessárias para assegurar a reprodução física e moral da sociedade cristã, considerada como sua finalidade primordial, no contexto africano, a imposição desse instituto assume uma importância acrescida (Hespanha, 1993; Braga, 2003; Ranum, 1990). Mais do que na Europa, ou em qualquer outro lugar, aquele era um espaço de excesso, onde homens e mulheres se relacionavam entre si, de forma irrestrita, buscando tão só a satisfação volúvel e sensual das suas paixões, e onde valores como a amizade – o sentimento que devia pautar a união das almas e que mais do que o amor, era o cimento do matrimónio cristão – estava por completo ausente. E por isso, entre aquelas gentes, o casamento, para além da sua dimensão sacramental, era verdadeiramente o instrumento capaz de fundar o comportamento civil enquanto exercício de contenção e domínio dos afetos e das paixões. No dizer de Belotti, a sua conveniência estendia-se até mesmo à harmonia do edifício político, já que “i maritati si rendono assai più quieti in se stessi, e maggiormente obedienti à suoi Signori, se sono per auuentura schiaui” (Belotti, p. 110).

O tema dos graus proibidos para o matrimónio era central nas preocupações dos missionários, tratado como era no quadro da inclinação dos africanos para o comportamento licencioso e sensual. O padre Belotti censurava o facto de aquela gente não ter escrúpulo “in hauere commercio con parente d’affinità anco maggiore” assim como os vínculos que autorizavam a que, por exemplo, “quando un fratello muore lascia all’altro la sua Concubina, per cohabitare carnalmente con essa” fazendo com que a descendência daquela mulher fosse tomada e acolhida como filha e herdeira daquele (Belotti, p. 116). A dificuldade evidente em compreender a natureza das relações de parentesco levava os padres Belotti e Monari a aconselharem o maior rigor na utilização do recurso ao privilégio de dispensa de grau proibido como forma de impedir o mau exemplo que assim se exibia. O padre Ignazio ia mais longe no fundamento para a aplicação rigorosa do mecanismo da dispensa, considerando que, ao contrário da Europa, onde esse privilégio se tornara necessário, em especial entre os príncipes, pela dificuldade em contratar matrimónios entre nubentes de igual nobreza e prerrogativa de grandeza, naqueles lugares tal não se justificava já que as diferenças de estatuto social se resumiam à condição de livre ou escravo, rico ou pobre, algo que reforçava a perceção quanto à desregulação do edifício social (Ignazio, pp. 55-56). Todavia a aplicação parcimoniosa daquela medida decorria, além do primado da sensualidade como eixo explicativo das formas de sociabilidade, do facto de as relações entre os missionários e os africanos serem dominadas por uma tensão latente entre o esforço inspetivo dos primeiros em busca da falsidade supersticiosa ou da suspeita invocação demoníaca e a atitude capciosa, dissimulada e furtiva atribuída aos segundos.

Assim deve compreender-se o lugar que o tema das relações familiares e a propaganda do matrimónio católico assume na atividade dos missionários, e o sentido que, para eles próprios, adquirem as resistências dos africanos à sua imposição. Como em relação aos demais sacramentos, também aqui as dificuldades não se exprimiam apenas na linguagem do confronto ou da recusa, antes tomavam outras tonalidades mais subtis que desafiavam sumamente a paciência dos religiosos. As dificuldades começavam desde logo na própria compreensão das estruturas de parentesco africanas e das formas de construção de alianças. No rol de dúvidas de 1650, a confusão é aliás patente, quando os missionários questionam os cardeais sobre o estatuto a dar a mulheres que eram adquiridas pelo homem junto dos seus progenitores e que coabitavam com aquele, sendo chamadas de “mulheres”, mas não o sendo de facto, visto que não ligadas pelo vínculo do casamento; perguntava-se então, como deviam chamar-se essas mulheres, já que “non è vera moglie, perche non stà col reciproco patto di non laschiarsi, mà sempre que l’huomo vuole la manda via, nè anche è concubina, perche non è libera, si che possa partire à suo piacere”? O canónico Fagnani resolve o problema, reduzindo tudo à condição de “concubina” – leitura que sempre será partilhada pelos missionários – mas a simples colocação da pergunta demonstra que, para os religiosos no terreno, o problema não era tão simples assim, ainda mais porque, no próprio contexto europeu, a imposição das ordenações de Trento estava longe ainda de impor a extinção das formas privadas de estabelecimento de alianças matrimoniais que envolviam coabitação, muitas vezes sancionadas pelo próprio clero (Braga, 2003, p. 51). Aliás, neste particular a distância entre a ação e as preocupações dos missionários e o douto parecer do canónico haveria de prolongar-se. Em 1650, os missionários sugeriram a possibilidade, dada a escassez de religiosos e a imensidão daquela vinha, assim como a contumaz inclinação lúbrica dos africanos, de poderem ensinar que homem e mulher poderiam juntar-se com pacto recíproco e público de não se separarem até que houvesse ocasião para um sacerdote consagrar a união com o rito prescrito pela Igreja. A resposta de monsignor Fagnani foi clara e a que seria de esperar: “non si deue introdurre, nè insegnare tale vsanza contro il Sacro Concilio di Trento”[22]. Tudo leva a crer, no entanto, que aquela sugestão acabou por ser seguida já que Bernardino Ignazio, cerca de um século depois, referia-se àquela prática, considerando que, embora errada, ela devia ser tolerada dadas as exigências particulares da missão e as contingências que dificultavam a mobilidade dos religiosos, mas também porque não podia esperar-se que “con un scarso lume di nostra Santa Fede, debba gà hauere tanto spirito, e uirtu di spaersi conseruar in tal continenza di non prender Moglie” (Ignazio, p. 52).

A ênfase posta no exame sobre o estado das relações conjugais logo no enunciado dos rudimentos da fé e o facto de a coabitação entre homens e mulheres ser motivo que podia justificar a recusa na administração do batismo, se confirma por um lado a ligação indissolúvel entre os dois institutos na estratégia de evangelização, ao mesmo tempo mostra como, no contexto africano, os rituais propostos eram apropriados de forma diferenciada, em função do significado específico e dos sentidos particulares de que podiam ser investidos à luz da cosmologia daquelas sociedades e da sua própria visão do mundo. Os missionários fazem-se eco de crenças que alegadamente distorciam e desincentivavam o casamento: para alguns, a circunstância de os seus pais não terem sido casados no rito católico não os autorizava a tomarem eles próprio esse estado; para outros, os que aceitavam o casamento morriam mais cedo que os demais; segundo alguns, marido e mulher experimentariam os rigores da morte se mantivessem comércio entre si na primeira noite ou durante a semana seguinte à celebração do matrimónio; outros ainda, escravos ou súbditos, recusavam submeter-se à celebração do matrimónio sem a autorização prévia dos seus senhores (Belotti, pp. 113-115 e 131-132). Ao mesmo tempo, a realização do casamento católico não parecia ser incompatível com a persistência de certos rituais e hábitos sociais. O padre Bernardino Ignazio d’Asti recomendava o maior cuidado aos padres de maneira a identificarem os que se apresentavam para o matrimónio imbuídos ainda das crenças e rituais imundos e supersticiosos que a seu modo praticavam a propósito do casamento e dos quais apresenta exemplos (Ignazio, pp. 50-51).

Estas e outras práticas refletem, na verdade, tensões de um tecido social que resistia ao programa disciplinador proposto pelos missionários. Todavia, o modelo antropológico que sustentava a representação do africano que transparecia na caracterização das suas crenças e do seu modo de vida não permitia que esses processos fossem entendidos na sua componente de apropriação e ressignificação da diferença e da novidade do cristianismo. A contrário de Fortunato Alamandini, pelo menos Bernardino Ignazio entendia que os erros e falsidades a que os africanos se dedicavam resultavam “piú dá ignoranza che da malizia”, por serem aquelas gentes simples e inclinadas para aceitar as verdades da fé (Ignazio, p. 69). Não o afirmando expressamente, tanto Belotti como Monari não deixavam de subscrever tal opinião. E mesmo assim, sob os seus olhos, mas impercetível para a sua visão do mundo, as cosmologias africanas exibiam uma apreciável plasticidade, ao incorporar com outros sentidos, e sem abalo estrutural, práticas e objetos rituais tomados de um contexto cultural bem diverso.

 

Referências

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Recebido: 22 de março de 2016

Aceite: 10 de agosto de 2016

 

 

NOTAS

[1] Para uma descrição detalhada sobre o manuscrito Araldi, veja-se Thornton (n.d.).

[2]   Os documentos de Fortunato Alamandini analisados podem consultar-se em “Observações de Frei Fortunato sobre a História das Missões (1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 201, pp. 488-493, e “Outras advertências de Frei Fortunato (1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 202, pp. 494-495.

[3]   Pelas referências que faz é quase certo que terá analisado de forma detalhada toda a documentação do arquivo dos capuchinhos relativa àquela missão; veja-se, a este propósito, Osservazioni fatta da me frà fortunato da Bologna..., ff. 68rv, publicado em “Observações de Frei Fortunato sobre a História das Missões (1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 201, p. 491.

[4]   Os dois documentos em causa não estão datados. O padre António Brásio na sua Monumenta Missionaria Africana atribui-lhes a referência de 1679, mas há boas razões para pensar que são posteriores. Não é provável que, tendo recebido, em 1678, o encargo da revisão da obra de Cavazzi, o padre Alamandini se aventurasse, logo no ano seguinte, a produzir recomendações sobre a missão do Kongo. Acresce que a 18 de Abril de 1679 o conde Isolani escreveu ao Secretário da Propaganda Fide, solicitando que o encargo da revisão não fosse retirado ao padre Alamandini, prevendo queixas e insatisfações sobre a lentidão do processo ou as opções que guiavam o rumo que tomava a revisão. Cf. “Carta do Conde Giacomo Isolani (18.04.1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 199, pp. 484-485. Neste quadro, não é crível que o padre se abalançasse a tal empreendimento, mais ainda, como se verá, dado o conteúdo crítico de boa parte da sua reflexão.

[5]   “Observações de Frei Fortunato sobre a História das Missões (1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 201, p. 489.

[6]   Esta apreciação de Alamandini não deixa de ser singular. O padre não ignoraria as críticas que circulavam em Luanda, e nos meios da Cúria também, sobre o comportamento dos jesuítas, o seu distanciamento em relação ao trabalho pastoral fora do círculo protegido da colónia, a censura sobre a dimensão da fábrica do colégio de Luanda e o seu envolvimento no tráfico de escravos. Mas além do contexto local, importa ter presente o ambiente de competição existente entre as diferentes ordens religiosas e especificamente entre jesuítas e capuchinhos no quadro do impulso reformista pós-tridentino, e que não era apenas de obra e de prestígio, mas também de benfeitores e patrocinadores.

[7]   Veja-se, sobre este ponto, Almeida (2009, pp. 479-569).

[8]   “Observações de Frei Fortunato sobre a História das Missões (1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 201, p. 489.

[9]   “Outras advertências de Frei Fortunato (1679)”, in MMA, I Série, Vol. XIII, Doc. nº 202, p. 495.

[10]  A noção de cristianismo como “religião de estado” no Kongo encontra-se logo na obra de John K. Thornton de 1983, p. xiv, e é, desde então, utilizada por diferentes autores, incluindo no trabalho recente de Cecile Fromont a que adiante se aludirá (Fromont, 2014, p. 4). Veja-se num sentido convergente com este, o trabalho de Richard Gray (Gray, 1983). Em língua portuguesa, a ideia de um “catolicismo africano” tem sido sustentada, em particular, por Marina de Mello e Souza (2002).

[11]  Num trabalho mais recente (Thornton, 2013a), Thornton propôs o conceito de “sincretismo afro-cristão” para designar aquele mesmo processo cultural, pensado, não já a partir da perspetiva missionária, mas antes dos recetores da proposta dos religiosos europeus. Todavia, além de não explicitar os fundamentos desse conceito – enunciado no título do artigo e não mais retomado no desenvolvimento do argumento – este autor mantém-se na verdade fiel às suas teses centrais sobre a conformação de um “cristianismo kongo” sem resolver os problemas colocados pela própria noção de “sincretismo”.

[12]  O esforço recente de Thornton (2013) não parece inteiramente satisfatório.

[13]  Conhecem-se três exemplares manuscritos destes textos: Biblioteca Nacional de Lisboa, cod. 1432; Biblioteca Vaticana, Borg. lat. 316; e Biblioteca Civica Torino, Torino, cod. 432. Os exemplares da Biblioteca Vaticana e de Torino apresentam ilustrações, embora as mais conhecidas e ricas sejam as do manuscrito de Torino. Neste trabalho foi utilizada a versão da Biblioteca Vaticana.

[14]  “O Pe. Pero Rodrigues visita a Missão de Angola (15.4.1594)”, in MMA, I Série, Vol. III, Doc. nº 135, pp. 471-479.

[15]  “Breue Sommario de gli abusi, e riti piu communi y pernitiose in questo Regno del Congo (4.8.1649)”, in MMA, IS, Vol. X, Doc. nº 135, pp. 395-400.

[16]  “Dúvidas de Frei Boaventura de Sorrento e Respostas da Propaganda Fide (Junho.1650)”, in MMA, I Série, Vol. X, Doc. nº 189, pp. 536-545.

[17]  Sobre o lugar dos escravos na missão capuchinha, sugere-se a consulta de Almeida (2014).

[18]  “O Pe. Pero Rodrigues visita a Missão de Angola (15.4.1594)”, in MMA, I Série, Vol. III, Doc. nº 135, pp. 477-478.

[19]  “Carta do Padre Cristóvão Ribeiro (31.7.1548)”, in MMA, I Série, Vol. XV, Doc. nº 64, p. 149; MacGaffey (1994).

[20]  “Dúvidas de Frei Boaventura de Sorrento e Respostas da Propaganda Fide (Junho.1650)”, in MMA, I Série, Vol. X, Doc. nº 189, p. 537.

[21]  “Dúvidas de Frei Boaventura de Sorrento e Respostas da Propaganda Fide (Junho.1650)”, in MMA, I Série, Vol. X, Doc. nº 189, pp. 539 e 541.

[22]  “Dúvidas de Frei Boaventura de Sorrento e Respostas da Propaganda Fide (Junho.1650)”, in MMA, I Série, Vol. X, Doc. nº 189, pp. 543-544.

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