SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número35O “Direito à Cidade” nos PALOP: Quatro décadas de expansão urbana, de políticas e de mutações sociais. Notas para uma investigaçãoVivências e percepções acerca da educação em Moçambique: Olhares etnográficos em uma escola primária no bairro da Matola A índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.35 Lisboa jan. 2018

https://doi.org/10.4000/cea.2753 

ARTIGO ORIGINAL

 

Para Além de uma Escolha: Da música de crítica e protesto social às identidades político-partidárias em Moçambique[1]

 

Beyond a choice: From the music of criticism and social protest to party-political identities in Mozambique

 

 

Tirso Hilário Sitoe

Kaleidoscopio – Pesquisa em Políticas Públicas e Cultura, Av. Paulo Samuel Kankhomba, 1810, Maputo, Moçambique, tirsohilariositoe@gmail.com

 

 


RESUMO

No debate sobre os processos de governação em África, a juventude se tem mostrado como ator social fundamental, engajado em questionar e contestar, através das artes e da cultura, as avenidas de governação que os altos representantes do Estado tomam. Se, por um lado, os músicos começam a abordar diretamente aos líderes políticos, protestando contra a falta de prestação de contas e exigindo um diálogo justo sobre a representação dos seus interesses, por outro lado, os líderes políticos buscam exercer um controlo social da arte dos músicos, fazendo com que estes façam a mobilização popular nas suas expressões de crítica e protesto social, enaltecendo questões “nacionalistas” e “patrióticas”. O presente artigo explora a forma como as músicas de crítica e protesto social são um ponto de partida para a compreensão da forma como as identidades político-partidárias são forjadas discursivamente por parte dos músicos, em particular do músico Azagaia e seu público em Moçambique.

Palavras-chave: música de crítica e protesto social, identidades político-partidárias, tempo, discurso, Moçambique


ABSTRACT

In the debate on governance processes in Africa, the youth have shown themselves to be a fundamental social actor, engaged in questioning and challenging, through the arts and culture, the avenues of governance that senior state representatives take. If, on the one hand, musicians begin to approach directly the political leaders, protesting the lack of accountability and demanding a fair dialogue on the representation of their interests, on the other hand, the political leaders seek to exert a social control of the art of the musicians, making them mobilize in their expressions of criticism and social protest, extolling ‘nationalist’ and ‘patriotic’ issues. This article explores how the songs of criticism and social protest are a starting point for the understanding of how party-political identities are forged discursively by the musicians, in particular the musician Azagaia and his audience in Mozambique.

Keywords: music of criticism and social protest, party-political identities, time, discourse, Mozambique


 

 

“Comecei a apoiar o MDM, porque apoiava o Daviz Simango, mas após uma reflexão concluí que a melhor opção era mesmo distanciar-me. Fazer música para apoiar o MDM ‘mata' o Azagaia”,disse à Lusa o “rapper” (2012)[2]

A juventude africana no meio urbano foi gradualmente empurrando-se ao espaço público e comentando sobre política, economia e cultura nas últimas décadas do século XX, onde mostra o encolhimento do Estado na prestação de serviços sociais, devido às mudanças económicas globais, e a música tornou-se a plataforma para a releitura de um novo mundo (Ntarangwi, 2009). Determinadas vezes, as intervenções sociais e políticas da juventude encontram-se fora de partidos políticos e em organizações da sociedade civil, na medida em que elas estabelecem e envolvem-se em associações que desenvolvem ações políticas sem necessidade de filiação partidária (Honwana, 2015).

Entretanto, entende-se que, ao desenvolverem ações sem necessidade de filiação partidária, em suas narrativas musicais ou em movimentos de crítica e protesto social encontra-se implícita a ideia de verem as suas preocupações reunidas e resolvidas dentro de uma agenda política nacional. É dentro desse contexto que se lançam olhares para a forma como a esfera política vai influenciar o posicionamento que os músicos tomam, em suas narrativas musicais, sobre os processos políticos e de governação, e como os que detêm o poder político vão procurar exercer um controlo social dos músicos e suas musicalidades.

Por ora, o estudo desenvolvido por Schumann (2013) documenta os arranjos realizados em gravações musicais “patrióticas”, através de atividades dos empresários políticos no negócio da música na Costa do Marfim. Neste estudo, a autora refere que os políticos exercem um controlo social da arte dos músicos e que a nova geração de atores políticos usa a música popular como ferramenta de mobilização popular, nas suas expressões de “louvor” e “protesto”, e algumas vezes não apresentam diretamente a sua posição em relação à política. Esta situação acontece por diversas razões, dentre as quais questões nacionalistas e patrióticas em que os músicos estão engajados. No entanto, no caso dos jovens guineenses e cabo-verdianos, através do rap re-contextualizaram o discurso pan-africanista e nacionalista de Amílcar Cabral. O papel dos políticos e governantes é posto em xeque, na medida em que são considerados opressores ao invés de defensores do povo, por conta de um sentimento de revolta e desencantamento com a falta de oportunidades e de justiça social vivenciado por estes jovens (Barros & Lima, 2012).

Do mesmo modo, Francis Nyamnjoh & Jude Fokwang (2005) desenvolveram um estudo nos Camarões, que incidiu sobre a dinâmica da agência política e da identidade política entre os músicos. Neste estudo, os autores constataram que os políticos nos Camarões têm uma tendência a ganhar simpatia pelos músicos competentes e sua criatividade, como parte de uma movimentação para o poder. Neste contexto, segundo os autores, abre-se espaço para que um primeiro grupo de músicos possa encontrar oportunidades para um maior reconhecimento e respeitabilidade. Um segundo grupo de músicos olha esta oportunidade como um espaço para criticar quem está no poder, e um terceiro e último grupo situa-se entre os dois mundos acima descritos – ou seja, servindo aos políticos e ao mesmo tempo fazendo o exercício da sua arte, no interesse de outros eleitores, o que de grande modo é influenciado pelas noções de política e mudança de regimes políticos que abrem espaço para obterem certo estatuto social e acumularem fortunas.

Os dois estudos acima apresentados enfatizam que os músicos irão, consequentemente, negociar os processos políticos e de governação a partir de uma posição de poder que é, muitas vezes, cimentada na música, enquanto os políticos, na sua condição de altos representantes do povo, irão manter-se estoicamente no poder, na medida em que fazem uso dos discursos assentes nas narrativas musicais em prol de seus interesses. Neste sentido, o enfoque na contribuição dos músicos, designadamente nos processos políticos e de governação, é circunscrito às suas intervenções que carregam uma posição política, grande parte delas apontando para questões de corrupção dos partidos no poder e a falta de oportunidades para o avanço da juventude (Shepler, 2010).

Com este artigo pretende-se chamar a atenção para o facto de que é necessário ir além das músicas de crítica e protesto social enquanto meio que os músicos usam como forma de questionar os processos políticos e de governação, e tomar as narrativas musicais como um ponto de partida para a compreensão da forma como as identidades[3] político-partidárias são forjadas discursivamente por parte dos músicos e seu público.

O artigo desenvolve dois argumentos fundamentais: o primeiro sugere que é impossível pensar a música de crítica e protesto social sem analisarmos questões relativas à censura na esfera política. O segundo argumento sublinha que os músicos de crítica e protesto social, mesmo fora dos canais políticos formais, nas suas narrativas musicais levam-nos às análises sobre as identidades político-partidárias. Esse levantamento acontece porque os músicos, mais do que tomarem posicionamentos em relação aos processos políticos e de governação adotados pelos partidos no poder, clamam pela diferença. E essa diferença pode ser encontrada, mesmo que de forma subjetiva, nos posicionamentos apresentados nas suas narrativas musicais e na forma como o público reage aos seus discursos.

O estudo toma, por um lado, a noção de “tempo”, na medida em que encontra-se articulado na forma narrativa, em que as ações, as situações e os acontecimentos vividos esboçam traços da experiência temporal humana (Ricoeur, 1994). Por outro lado, toma a noção de “discurso” entendido como um conjunto de enunciados e, por sua vez, o “enunciado” é um “acontecimento” que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com que estas apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço, como nos ensina Foucault (2014).

As noções de “tempo” e “discurso” sugerem-se como um ponto de entrada para melhor compreender a forma como as identidades político-partidárias são forjadas pelos músicos e seu público, como espaço de referência para pensarmos a pluralidade de representações em torno das distribuições desiguais de poder em Moçambique. Pensamos igualmente que estas duas noções ajudam-nos a mapear as mudanças de perspetiva nos discursos assentes nas narrativas musicais no contexto em que são dados. Para tal, a análise baseia-se nas narrativas musicais de Azagaia presentes no seu primeiro álbum, intitulado Babalaze (2007), no segundo álbum, intitulado Cubaliwa (2013), assim como na música por ele desenvolvida em apoio ao MDM[4]. Igualmente, o documento apresenta alguns excertos de entrevistas realizadas ao músico e a forma como o seu público reagiu às mesmas em blogs e sites de jornais em Moçambique. Esse recorte oferece uma apreciação compreensiva da forma em que se estabelece a interação entre as narrativas musicais de Azagaia e o público.

 

Da crítica à censura

Azagaia é um rapper moçambicano, mediático e sobejamente conhecido pelo teor crítico de suas letras, que buscam refletir sobre aspetos do quotidiano em Moçambique e no mundo. Contudo, foi versando sobre questões políticas e de governação em Moçambique que o rapper notabilizou-se no espaço público após a apresentação da música “As mentiras da verdade” em 2007, parte do álbum intitulado Babalaze, lançado depois no mesmo ano, em que questiona a história política e de governação de Moçambique e seus representantes. Na verdade, este álbum abriu espaço para a análise de questões relativas à representação política em Moçambique, bem como o questionamento do papel desempenhado pelos dignitários do povo.

Numa época marcada pelo silêncio dos músicos críticos, Azagaia notabilizou-se em vários quadrantes do social e conquistou vários admiradores. A pujança que trazia em sua música fez com que entrasse em discórdia com o discurso autoritário do governo. Foi dessa forma que suas músicas foram alvo de censura em rádios e televisões nacionais[5]. Em resposta à censura protagonizada, Azagaia, dentre várias músicas, apresentou o tema intitulado “Eu não paro”, que é a terceira faixa do álbum Babalaze (2007). Nela, Azagaia refere o seguinte:

Azagaia, o miúdo que tem testículos no lugar/ Que metade destes políticos deviam alugar/ Eu nunca uso a língua para lamber botas/ No último show não usei a língua porque o palco estava em obras/ Sou do partido da verdade/ Sem lugar no Parlamento/ E vão me acusar de fraude quando eu mostrar meu pensamento/ Pensador da velha escola no palco da balalaica/ Venho mudar a velha história do Paulo e da Aida.

Mais adiante a música faz menção ao seguinte:

O nome do álbum é babalaze/ Mas podem chamar camicase/ Porque aqui, comprometer-se com a verdade é suicidar-se/ E sabes porquê o próximo passo ninguém prevê?/ Porque eu pilo a maçaroca e faço molho com a perdiz/ Eu nem tenho costas quentes como por aí andam a espalhar/ Eu estou tão frio que as vossas contas vão todas congelar/ Mas não estou sozinho/ Tenho o povo de meu lado/ Pronto para marchar e derrubar FRELIMIGRADO[6].

Neste excerto, Azagaia mostra como se encontra estruturada a esfera política em Moçambique. Nesta viagem situa o “lambibotismo” como o oposto da verdade. Possivelmente quem é lambe-botas encara qualquer situação social como uma oportunidade para obter alguma recompensa ou ganhar elogios vazios. Ao mesmo tempo, Azagaia retorna a questão da censura protagonizada pelo poder político, neste caso a FRELIMO[7] no que toca à música de crítica e protesto social e de que modo o poder político-partidário trata as questões que o tocam diretamente e que vêm sendo questionadas no espaço público ou por meios de comunicação como a rádio e a televisão. Isso mostra o quanto o poder político-partidário encontra-se enraizado em instituições-chave e como os altos representantes destas instituições usam-nas em prol dos interesses político-partidários.

Todavia, mesmo diante dessas questões, Azagaia afirma, por um lado, que “tenho o povo de meu lado, pronto para marchar e derrubar o FRELIMIGRADO” e, por outro lado, toma uma posição neutro-partidária ao afirmar que “é do partido da verdade sem lugar no Parlamento”. Aqui, abre-se espaço para a análise da construção das identidades de indivíduos ou de grupos que possam ser representáveis e aceites dentro dos processos políticos e de governação.

Azagaia, ainda na esteira de questões relativas à censura, no mesmo álbum Babalaze apresenta a música intitulada “Ciclo da censura” (2007), que é a faixa número doze. Nela, Azagaia refere o seguinte:

Tu és um pai de família/ Acordas cedo engravatado/ Preparado pra engolir no teu emprego mais um sapo/ E não trais a família, engoles em seco esse prato/ És treinado para temer o patronato que te assalaria/ Então não falas, só trabalhas/ Assumes a culpa de todas falhas/ Recebes em troca umas migalhas/ E em sinal de gratidão quando te humilham tu te calas/ Mesmo que saibas o que vales, o teu medo paralisa-te/ E a tua preocupação mais uma vez banaliza-se/ Se trabalhas para o Estado na direção requisita-se/ Cartão de membro do partido ou a situação complica-se/ Mas esse partido não é teu partido tu só queres tirar partido/ Gritas viva o partido mas com coração partido/ Chegas a casa e trazes a mesma ditadura/ Não se fala em assuntos que sejam alvos de censura/ Tua ordem é incontestável, sim e os teus filhos cumprem/ Medo e silêncio são os valores que eles nutrem desde cedo/ Filho tu fazes em segredo o que o papá proíbe mas não diz o porquê/ E nas conversas dos papás teu palpite não é chamado/ Tá calado/ Não há espaço pra o que tem te preocupado/ És censurado como censuram o teu pai/ Mas tu não sabes disso e a TV te distrai!

Mais adiante, no refrão refere o seguinte:

Quem foi que disse que neste país há liberdade de expressão?/ Tentei falar mas calaram a voz do meu coração/ Há sim, há não, ou é sim ou é não/ Diga, se somos ou não somos seiva desta nação/ Quem foi que disse que neste pais há liberdade de expressão?/ Tentei falar mas calaram a voz do meu coração/ Há sim, há não, ou é sim ou é não...[8].

Nesta música, ainda na esteira da música intitulada “Eu não paro”, Azagaia faz a descrição de um cenário social em que a censura é consubstanciada pelas relações de poder político e tende a ser reproduzida de geração em geração. Como exemplo disso, toma como ponto de partida um pai de família que encontra-se refém do discurso autoritário no ambiente laboral, ao mesmo tempo que mostra como o regime político-partidário oprime e é excludente, quando certos indivíduos não demonstram simpatia por ele ou não defendem os seus princípios. Neste caso, a serventia ao partido gera o facilitismo e resulta em benefícios próprios ou individuais.

Ora, se por um lado, tomamos em conta que este cenário apresentado na música traduz de certa forma um conjunto de situações dentro de um quadro social que se vive em Moçambique relativamente ao bem-estar social, liberdade de expressão, direitos humanos, soberania, representação política e democracia nas relações entre o Estado e sociedade ou cidadãos, por outro lado, a alusão que o músico faz ao “cartão de membro do partido” pode ser considerada como elemento que traduz-se num símbolo de instrumento de “integração social” a vários níveis, por parte de quem detém-no e permite com que se crie o lugar por excelência da eficácia simbólica, ação que se exerce por sinais capazes de produzir coisas sociais e, sobretudo grupos (Bourdieu,1989, p. 159). Neste sentido, as intervenções cimentadas na música podem ser tomadas como forma de auxiliar a desconstrução das relações de poder e tornar “visível” as normas “invisíveis” que estruturam as relações de poder dentro do discurso autoritário.

 

Azagaia pelo MDM ou do MDM?

Os líderes e partidos políticos reconhecem o poder do rap e têm recrutado estrelas de hip-hop para fazerem parte de grupos de apoio. Em Moçambique, o músico MC Roger é famoso na promoção da FRELIMO e do presidente Guebuza; Azagaia, por outro lado, apoiou a campanha do partido de oposição MDM (Movimento Democrático de Moçambique), no final de 2008 (Rantala, 2015). Contudo, no ano seguinte, Azagaia em campanha em apoio ao MDM para as eleições gerais de 2009, grava uma música intitulada “Corre e avisa”[9].

Nesta música, Azagaia refere que chorou quando soube que uns venderam-se para vender o povo de Simango. Este Simango a quem o músico aludiu é o filho de Uria Simango, membro fundador do partido FRELIMO, com estatuto de vice-presidente até 1969, que morreu em circunstâncias até hoje pouco esclarecidas e foi tomado como traidor da pátria. É dentro desse contexto que Azagaia refere na música que outros dirigentes da FRELIMO é que tornaram-se traidores da pátria, na medida em que estes é que venderam o país.

No decurso da narrativa musical toma Daviz Simango como filho do povo e, por sua vez, esse povo é que manda. Isso sugere pensarmos que Simango manda junto do povo. Dessa feita, para o músico não havia espaço para nenhum outro partido governar, particularmente a Beira[10], porque a Beira é de Simango. É por isso que a dado momento refere, num extrato da música, “vai corre, avisa para FRENAMO[11] que o povo escolheu Daviz Simango”.

Todavia, entre a música em apoio ao MDM e a entrevista realizada ao Azagaia pelo jornal O País em abril de 2009, encontram-se informações contraditórias dentre várias questões colocadas ao músico. Ora vejamos parte das questões e as respetivas respostas:

P:Tem simpatias por algum partido especificamente?
R:Tenho simpatia, sim, por um partido político. É o MDM, que foi recentemente criado. Sou simpatizante do partido.
P: O que é que o faz acreditar no MDM?
R: Antes de eu acreditar no MDM, sempre tive a convicção de que a solução dos problemas que nós temos agora é existir uma terceira, uma quarta ou quinta forças. Não podíamos continuar nesta coisa de Frelimo-Renamo, porque é um jogo muito fechado. Há muita gente que diz, por exemplo, existe dinheiro da Frelimo a ir para Renamo. E, por causa disso, há muita confusão. Há tentativa de compra deste e daquele. Isto é muito fácil quando temos um jogo entre duas forças políticas. Mas quando o jogo começa a passar para três, quatro, esta possibilidade começa a diminuir. E, se calhar, estaremos cada vez mais perto de vivermos um exercício democrático muito mais próximo daquilo que é a definição. Antes de eu apoiar ou ser simpatizante da existência de um partido como o MDM, sou simpatizante desta ideia de que não podemos continuar nesta linha de bipolarização política.
P: O que acha que faz de Daviz Simango um líder diferente dos da Frelimo e da Renamo?
R:Penso que, acima de tudo, são as obras. Já fui várias vezes à Beira e pelo que posso ouvir dos beirenses é que Daviz Simango, no seu primeiro mandato, fez alguma coisa de positivo pela Beira. E não fazia sentido, na minha opinião, tirá-lo de lá. Ou que se não lhe desse a chance de concorrer. Foi o que acabou acontecendo. Então, esta tendência que eu sinto nele deve-se à sua apetência de mostrar trabalho, ao invés de discursos. Acho que é isto o que está a faltar nos nossos líderes. O que também dizer, que também afirmei na Beira, é que agora as pessoas dizem que eu sou frelimista. Não importa se a Frelimo faz mal ou se faz bem. Eu sou Frelimista até à morte. Eu sou Renamista. Não importa se faz bem ou mal. Eu sou Renamista. Isto é o problema. Então, se eu atualmente sou simpatizante desta ideia da criação deste movimento, MDM, porque acho que sim, temos que dar oportunidade às outras pessoas de trabalhar e mostrar que podem fazer. E, enquanto continuar, na minha opinião, e se aparecer uma opção válida, eu vou apoiar. Quando deixarem de aparecer eu também não vou apoiar. É isto o que é importante que aconteça[12].

As respostas apresentadas pelo músico levam-nos a olhar para a forma como a noção de “tempo” é importante para a análise dos fenómenos sociais. Numa primeira tentativa de responder à primeira questão, o músico afirma ter simpatia por um partido político, neste caso o MDM, ao mesmo tempo que nas respostas subsequentes ele afirma ser da “FRELIMO até à morte” e “Renamista” ao mesmo tempo.

A partir desse prisma de ideias, pode-se afirmar que o músico mostra-se como sendo pelo MDM e não do MDM. Estes dois pontos, “pelo” e “do” MDM sintaticamente apresentam-se como sendo diferentes, o que concede-lhes sentidos também diferentes. Ao afirmar-se “FRELIMO até à morte” ele mostra que é da FRELIMO e circunstancialmente pela RENAMO ou pelo MDM. Contudo, na música em apoio ao MDM reitera a ideia segundo a qual “o povo escolheu Daviz Simango e o MDM, não a FRENAMO”, o que leva a inferir novamente que ele era pelo MDM. Na verdade, aqui temos um Azagaia que sai de uma esfera exclusiva de músico de crítica e protesto social a uma esfera da “política ativa”, o que sugere que ele é simpatizante e apoia a partidos políticos que tem ideais que são congruentes com o seu discurso poético que reflete-se nos anseios do povo.

Some-se a isto a música intitulada “Homem Bomba”, a faixa número doze do álbum Cubaliwa (2013), onde o músico empresta sua voz a vários indivíduos, no sentido de, mais uma vez, chamar a atenção sobre as injustiças sociais em Moçambique. Ou seja, é retomada a inquietude frente à realidade social, política e económica moçambicana, no contexto de uma geração que cresce com a herança das políticas excludentes adotadas pelo governo e que começou a compreender a importância da liberdade de expressão como meio de questionar os processos políticos e de governação. É diante disso que refere, na música, o seguinte:

Se querem matar-me é bom que matem-me já/ Eu tenho a mente engatilhada, carregada, pronta para disparar/ Eu sou a voz que calar já não dá/ Aprisionada, sufocada, censurada que se quer libertar/ Eu sou o pai que quando tenta sonhar/ A humilhação do salário mínimo logo vem-me acordar/ Eu sou a mãe que sustenta o lar/ Com um negócio que a polícia camarária vem e tenta roubar/ Sou o polícia que tenta disfarçar/ Mas não passo de um ladrão com licença para disparar/ Numa situação em que não pedi para estar/ Mas se o Estado não me dá o meu salário tenho que ir buscar/ Sou a estudante que apenas quer se formar/ Mas o ensino superior ensina-me que há um preço há pagar/ Prostituir-me para completar/ O valor da propina antes do prazo do pagamento expirar/ Sou o cidadão que pensa em protestar/ Mas a força de intervenção rápida pode ripostar/ Balas de ignorância que podem-me custar/ A vida que eu rezo todos dias para melhorar[13].

É por meio dos diferentes significados atribuídos à liberdade de expressão que Azagaia chama de novo a atenção a questões relativas à censura ou meios de coerção que o Estado mobiliza contra o cidadão que pensa em protestar. Ou seja, ao pensar em protestar o cidadão deve ter em conta dois aspetos fundamentais: qual é o preço que tem de pagar por protestar e qual é preço que tem de pagar por conta do seu silêncio.

Como em todo um conjunto de suas narrativas musicais, Azagaia faz menção nesta música a Samora Machel[14], Eduardo Mondlane[15], Uria Simango[16] e André Matsangaissa[17], do seguinte modo:

Enteados dessa pátria do Sa/ Mora Machel, Mondlane, Uria e Matsangaisa/ Desesperado sem lugar para morar/ Enquanto os condomínios de luxo estão se a multiplicar/ Pago para receita tributária alargar/ Mas do transporte que recebo em troca tenho que me apertar/ Sou o eleitor que não sabe em quem votar/ Nos que querem continuar/ Ou nos que dizem que algo tem que mudar/ Num país em que a verdade é uma pá/ Quando a dita cava fundo um buraco onde vão enterrar/ Por isso é que é melhor engraxar/ Porque se não puxo o saco, o meu tapete alguém há de puxar[18].

Neste sentido, a referência a estes nomes, por um lado, pode ser vista como um ponto de entrada para olharmos as diferentes formas de pensar os processos políticos e de governação que as figuras acima mencionadas defendiam. Por outro lado, a própria referência a figuras políticas do passado poder ser vista como um ato de criação e, pode-se dizer, de mobilização (Augé, 1998, p. 28), que é acionada em torno das injustiças sociais.

 

Azagaia: notas sobre o comentário do público

Dentro desse contexto, podemos tomar em conta a forma como parte do seu público reagiu aos seus posicionamentos na entrevista que lhe foi realizada pelo sociólogo Carlos Serra no seu blogue em 2007, intitulada “Azagaia (2) (biografia e entrevista) (continua)”. Por exemplo, Martin de Sousa referiu o seguinte:

[Comentário 1]

O Azagaia é um crítico social. É assim que ele se define. Bem-haja Azagaia. Espero que a sociedade que ainda não está habituada a críticos como tu não te faça ACREDITAR que és um ANTI FRELIMO ou ANTI GOVERNO DO DIA. Prefiro ver te como um indivíduo que não se acomoda perante o que está mal seja qual for a origem. Espero que amanhã tenhas a capacidade de ver e criticar não só a HIPOCRISIA ASSASSINA da FMI e da ONU mas também a de muitos pseudo-moçambicanos que querem nos fazer crer que não temos capacidade de nos auto governar nem de ir para frente. We are around. Ninguém terá interesse em MATAR-TE os que criticas tem interesse em ouvir o que dizes. A sua música “A Marcha” foi tema de debate na nossa célula. Fizemos o exercício para apontarmos ao topo onde se tem estado a errar em termos de políticas que faça com que o regime seja criticado desta forma. Acredito que seremos ouvidos e o Azagaia amanhã cantará o progresso e sentirá o orgulho de com a sua voz e sabedoria ter ajudado a mudar as coisas. Espero que motive outros[19]
.

Mais adiante um dos comentadores à entrevista de Azagaia referiu o seguinte:

[Comentário 2]

ESTE JOVEM EKI O VERDADEIRO LIDER DA OPOSIÇÃO![20].

No entanto, o primeiro comentário à entrevista feita ao músico pressupõe lançarmos o olhar sobre a forma como a música de crítica social pode estar ao serviço dos interesses político-partidários quando estão em debate na “célula”, neste caso da FRELIMO, ao mesmo tempo que sustenta a ideia de pacifismo por parte de quem a escuta, na medida em que o comentador reitera a ideia segundo a qual os indivíduos que não se encontram habituados aos críticos podem inferir que o músico seja “ANTI-FRELIMO” ou “ANTI-GOVERNO”.

No segundo comentário é notória a ideia segundo a qual a música de crítica social pressupõe que o músico pertença à “oposição”. Porém, fica uma ideia ambígua aqui. A que oposição o comentador se refere e o que é ser da oposição num cenário em que temos diferentes políticos? Todavia, estes pronunciamentos dos comentadores à entrevista ajudam-nos a pensar a forma como os indivíduos conferem identidades aos outros tendo em conta o discurso das narrativas musicais que os músicos apresentam, ao mesmo tempo que são um ponto de entrada para analisarmos as identidades pelas quais estes indivíduos que conferem aos outros, constroem sobre si, ao identificarem-se ou não pelas questões assentes no discurso das narrativas musicais de Azagaia.

 

Conclusão

As ideias aqui apresentadas pretendem indicar alguns caminhos para futuras pesquisas sobre a música de crítica e protesto social e seu lugar nas estratégias de desenvolvimento de Moçambique, e de que modo as identidades político-partidárias construídas discursivamente por estas, abrem espaço para uma maior afirmação política das musicalidades e um campo de escolhas racionais político-partidárias por parte do público, mesmo em sentidos e caminhos divergentes.

Por um lado, pode verificar-se neste estudo que os agentes sociais mobilizam identidades político-partidárias em torno de seus interesses e dos ideais com os quais identificam-se no “tempo” em que se encontram, e é dentro deste campo discursivo que os músicos e seu público reivindicam o direito à diferença e o reconhecimento de modos de vida específicos dentro da agenda de governação, mesmo com plena consciência da existência dos mecanismos de censura que são acionados pelo poder político em prol da legitimação do discurso autoritário. Por outro lado, o desafio de compreender os processos políticos e de governação e as posições que os músicos tomam discursivamente é em certa medida complexo, uma vez que busca problematizar não só os valores das posições que tomam, mas a lógica através da qual esses valores são apresentados na procura de legitimar os discursos assentes em suas narrativas musicais.

Algumas questões importantes podem ser levantadas dentro desse contexto: que públicos estes discursos nas músicas representam, quando tomamos a noção “estratificação social”? De igual forma, a noção de “povo” que Azagaia aciona, o que procura representar nestes processos políticos e de governação? Podemos assumir que o “povo” que Azagaia chama para juntos questionarem o discurso autoritário é em parte a oposição? Ora bem, com base na análise, assume-se que nos processos políticos e de governação, tanto os músicos como o seu público encontram-se em um campo de múltiplas escolhas.

 

Referências

Augé, M. (1998). A guerra dos sonhos: Exercícios de etnoficção. Campinas, SP: Papirus.

Barros, M. de, & Lima, R. W. D. (2012). Rap kriol (u) o pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde. Disponível em:http://portaldoconhecimento.gov.cv/handle/10961/3242        [ Links ]

Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico (Trad. de F. Tomaz). Acedido de http://www.sumak.cl/1Por%20Temas/2Ciencias/3Ciencias_Sociales/Educacion/Curriclo_Didac/Nuevos/Pierre%20Bourdieu%20-%20Sobre%20el%20Poder%20Simbolico.pdf        [ Links ]

Pina Cabral, João de. (2003). Identidades inseridas: Algumas divagações sobre identidade, emoção e ética. Working Papers (WP 2-03), Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa.         [ Links ]

Foucault, M. (2014). A arqueologia do saber (Trad. de L. F. B. Neves) (7ª ed.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Obra original publicada em 1969)         [ Links ]

Honwana, A. (2015). Juventude, waithood e protestos sociais em África. Acedido de http://www.iese.ac.mz/lib/publication/livros/des2014/IESE-Desafios2014_14_ProtSoc.pdf         [ Links ]

Ntarangwi, M. (2009). East African hip hop: Youth culture and globalization. Chicago: University of Illinois Press.         [ Links ]

Nyamnjoh, F. B., & Fokwang, J. (2005). Entertaining repression: Music and politics in postcolonial Cameroon. African Affairs, 104(415), 251-274.         [ Links ]

Ricoeur, P. (1994). Tempo e narrativa. Vol. I. Campinas, SP: Papirus.

Rantala, J. (2015). O rapper Azagaia e seus críticos: O debate sobre Moçambique. Kulimar, 4, pp. 127-140.         [ Links ]

Schumann, A. (2013). Songs of a new era: Popular music and political expression in the Ivorian crisis. African Affairs, 112(448), 440-459.         [ Links ]

Shepler, S. (2010). Youth music and politics in post-war Sierra Leone. The Journal of Modern African Studies, 48(4), 627-642. DOI: 10.1017/S0022278X10000509        [ Links ]

 

 

Recebido: 30 de janeiro de 2017

Aceite: 30 de abril de 2018

 

 

Notas

[1] Este documento enquadra-se na pesquisa que venho desenvolvendo sobre música de crítica e protesto social em Moçambique pós-colonial. A versão preliminar do documento foi apresentada no ciclo de seminários internos da Kaleidoscopio, e agradeço os contributos oferecidos por Euclides Gonçalves, Rufus Maculuve, Pedro Julião, Anselmo Matusse e Carla Alberto, que foram de grande importância para a revisão do projeto de pesquisa do presente documento. Agradeço igualmente a Domingos da Cruz pela contribuição após a leitura da versão final do presente documento.

[2] Disponível em http://noticias.sapo.mz/lusa/artigo/13986735.html (consultado em 11 de setembro de 2015).

[3] No presente estudo procuramos sustentar que nenhuma identidade existe sem ser em relação com outras e sem ser num contexto espácio-temporal específico de objetivação. Estas identidades são mais ou menos nomeáveis e, portanto, também são mais ou menos conscientes (Pina Cabral, 2003, p. 16).

[4] O Movimento Democrático de Moçambique, também conhecido pelo seu acrónimo MDM, é um partido político criado a partir de uma dissidência da RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana), fundado em março de 2009. Dentre os membros fundadores encontram-se Daviz Simango e Lutero Simango, filhos de Uria Simango e Celina Simango, membros fundadores da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique).

[5] Parte do contorno deste assunto encontra-se melhor desenvolvido num artigo intitulado “Cultura hip-hop como plataforma de cidadania em Moçambique” que foi apresentado na III Conferência Internacional do Centro de Estudos Africanos em novembro de 2014 em Maputo, com o tema “Dinâmicas Sociais em África: Rupturas e continuidades”.

[6] Azagaia (2007), “Eu não paro”. Babalaze, 1 CD, Maputo: Cotonete Records.

[7] Frente de Libertação de Moçambique, também conhecida pelo seu acrónimo FRELIMO. Partido no poder fundado em 1962 e desde 1975, altura da independência, é a principal força política de Moçambique.

[8] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zrcgMDyjX2U(consultado em 9 de setembro de 2015).

[9] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=S1D5o28sB08 (consultado em 10 de outubro de 2015).

[10] Beira é a capital da Província de Sofala, no centro de Moçambique.

[11] O acrónimo FRENAMO é uma juncão das iniciais do acrónimo FRELIMO e as terminais do acrónimo RENAMO feita pelo músico.

[12] Disponível em http://opais.sapo.mz/index.php/entrevistas/76-entrevistas/857-nao-podemos-continuar-calados.html (consultado em 10 de outubro de 2015).

[13] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=MLZCVJI453Q (consultado em 13 de setembro de 2015).

[14] Samora Machel foi primeiro presidente de Moçambique, entre 1975 e 1986.

[15] Eduardo Mondlane foi um dos fundadores e primeiro presidente da FRELIMO e veio a falecer em 1969.

[16] Uria Simango foi um líder proeminente e um dos fundadores da FRELIMO.

[17] André Matsangaissa foi o primeiro comandante em chefe da RENAMO, entre 1975 e 1979.

[18] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=MLZCVJI453Q (consultado em 13 de setembro de 2015).

[19] Disponível em http://oficinadesociologia.blogspot.com/2007/11/azagaia-2-biografia-e-entrevista.html#ixzz3l8N4ZtUK(consultado em 16 de novembro de 2015).

[20] Disponível em http://oficinadesociologia.blogspot.com/2007/11/azagaia-2-biografia-e-entrevista.html#ixzz3l8NQRqDq (consultado em 16 de novembro de 2015).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons