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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.36 Lisboa dez. 2018

 

DOSSIÊ

 

Cooperação Educacional Brasil-Moçambique: Considerações sobre discursos de modernidade e distinção social

 

Brazil-Mozambique educational cooperation: Considerations on discourses of modernity and social distinction

 

 

Sara Morais

Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro/UnB, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Antropologia, Brasília, CEP: 70910-900, Brasil, sarasmorais@gmail.com

 

 


RESUMO

Discuto neste artigo aspectos da cooperação internacional brasileira no âmbito de acordos educacionais com Moçambique. Argumento como a implantação de grandes investimentos agrícolas e a difusão de telenovelas desempenham um papel central na execução desses acordos, ao promoverem imagens atrativas de um Brasil de riqueza e de oportunidades. À luz do exame de narrativas de duas gerações de moçambicanos que estudaram em universidades brasileiras e da constatação de continuidades históricas das práticas laborais locais, discuto como as ideias de desenvolvimento, trabalho e modernidade são decisivas para a compreensão dos efeitos da denominada cooperação sul-sul.

Palavras-chave:  cooperação educacional, cooperação sul-sul, Moçambique, telenovelas brasileiras, trabalho, desenvolvimento 


ABSTRACT

In this article I discuss some aspects of Brazilian international cooperation within educational agreements with Mozambique. I argue how the implantation of large agriculture investments and the diffusion of soap operas play a central role in the execution of these agreements, in promoting attractive images of a richness and full of opportunities Brazil. At the light of the analysis of narratives from two distinct generations of Mozambique students which studied at Brazilian universities and the observation of historical continuities in local labour practices, I discuss how ideas of development, work and modernity are pivotal to understand the effects of so called south-south cooperation.

Keywords:  educational cooperation, south-south cooperation, Mozambique, Brazilian soap operas, labour practices, development


 

 

Em meados do mês de agosto de 2011, quando realizava pesquisa de campo em Maputo, capital de Moçambique, li na capa de um jornal local a seguinte manchete: “Governo oferece norte de Moçambique a brasileiros”(Savana, 2011) . De acordo com a reportagem, que se remetia a uma outra que havia sido publicada no jornal brasileiro Folha de São Paulo (Mello, 2011), o governo moçambicano teria disponibilizado a agricultores brasileiros uma área de seis milhões de hectares no norte do país para o cultivo de cereais (soja e milho) e algodão. Essa notícia causou grande furor em vários locais na cidade, sendo inclusive televisionada à noite pelo noticiário local. Várias pessoas com quem me encontrei durante esse dia comentaram sobre o assunto, demonstrando insatisfação com a ideia de o Governo ter oferecido uma área extensa do país para investimento externo[1]; por outro lado, e com certa resignação, demonstravam tímido contentamento por essa tarefa ter sido delegada ao Brasil e não a algum país europeu[2].

O episódio descrito é parte de um contexto mais amplo de investimentos de instituições brasileiras em Moçambique. Embora o período de ditadura militar no Brasil (1964-1985), especialmente durante o governo do general Ernesto Geisel em meados da década de 1970 e o governo de Fernando Henrique Cardoso, no final da década de 1990, tenham aberto as portas da atuação do Brasil no continente africano, foi somente no governo Luís Inácio Lula da Silva (2003-2011) que as relações diplomáticas com o continente africano se alargaram consideravelmente[3].

Estudos recentes têm discutido a cooperação internacional brasileira em Moçambique (Alden, Chichava, & Alves, 2017; Cesarino, 2012, 2014; Rossi, 2015) e em outros países africanos a partir dos aspectos voltados aos grandes investimentos econômicos de grupos empresariais e do próprio Estado brasileiro. De facto, são surpreendentes os dados divulgados acerca da penetração do capital brasileiro em terras moçambicanas na construção de obras de infraestrutura e nos seus impactos ambientais, econômicos e socioculturais (Rossi, 2015). Há, no entanto, outra dimensão do mesmo fenômeno que não tem sido abordada pelos estudos disponíveis acerca da cooperação sul-sul Brasil-Moçambique. Refiro-me à cooperação educacional, que possibilita a circulação de estudantes moçambicanos em universidades brasileiras através de processos altamente moralizadores, ou seja, processos capazes de influenciar e modificar ações, comportamentos e decisões.

O objetivo do artigo é analisar e refletir sobre algumas facetas da cooperação do Brasil em Moçambique a partir de uma de suas vertentes, a educacional, entendida como “formação de pessoal estrangeiro por meio da concessão de bolsas de estudo e oferta de vagas em instituições de ensino no país nos mais variados níveis de formação” (Lima, 2016, p. 65). Discuto, nesse sentido, à luz das experiências de moçambicanos de duas distintas gerações – uma que realizou seus estudos no Brasil entre a década de 1980 e 1990 e uma outra, mais contemporânea, que chega a universidades brasileiras após o ano 2000 –, aspectos desse fluxo internacional de estudantes através de programas cuja diretriz é o “desenvolvimento” do país receptor da cooperação.

O conteúdo dessas discussões está organizado em três seções. Na primeira, “Cooperação educacional e discursos de desenvolvimento”, descrevo alguns dos elementos que articulam os acordos de cooperação internacional para educação e faço uma discussão sobre desenvolvimento e distinção social tendo como foco trajetórias de duas gerações de moçambicanos que estudaram em universidades brasileiras. Na segunda, “Trabalho e distinção social”, realizo uma reflexão sobre o mercado de trabalho e os mecanismos de diferenciação social por ele gerados a partir do início do século XX em Moçambique. Argumento que, parte da dinâmica de distinção social produzida pelas diferentes ocupações no mercado de trabalho em Maputo, ancora-se em práticas que remontam aos períodos colonial e pós-colonial. Na terceira seção, intitulada “Influências brasileiras em solo moçambicano como estratégias de diferenciação social”, aponto como elementos relacionados à imagem/representação do Brasil em Moçambique são utilizados pelos estudantes moçambicanos como símbolos de status e como estratégias de inserção no mercado de trabalho no retorno a Maputo.

Cooperação educacional e discursos de desenvolvimento

Os principais acordos de cooperação internacional voltados à educação superior no Brasil são o PEC-G (Programa Estudante-Convênio de Graduação)[4] e o PEC-PG (Programa Estudante-Convênio de Pós-Graduação)[5]. Para cada um dos casos, respectivamente, alunos de graduação e de pós-graduação recebem bolsa do governo brasileiro de igual valor ao recebido pelo estudante local, de acordo com as regras das agências de financiamento. O processo seletivo para os programas de graduação é realizado pelo Centro Cultural Brasil-Moçambique (CCBM) (parte da estrutura da Embaixada do Brasil em Moçambique), que distribui as vagas pelos candidatos aprovados a partir dos cursos disponibilizados pelas Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras.

Outro importante acordo de cooperação educacional entre os dois países foi o Programa de Pós-Graduação Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)/Ministério da Ciência e Tecnologia de Moçambique (CNPq/MCT-Mz), que teve por objetivo:

contribuir no desenvolvimento do Programa de Recursos Humanos de Moçambique, possibilitando que cidadãos moçambicanos realizem seus estudos em instituições de ensino superior brasileiras para aprimorar o seu conhecimento e experiência, na expectativa de contribuírem para o desenvolvimento sócio-económico do país, bem como para a maior interação com o Brasil (Programa MCT-Mz).

Meus interlocutores, que haviam realizado cursos de ensino superior em instituições brasileiras[6], em geral falavam aberta e positivamente sobre os investimentos do Brasil em Moçambique. Os “laços de amizade” entre os dois países, atribuídos pelo passado comum de colonização portuguesa, o reconhecimento precoce do Brasil em relação às independências dos PALOP[7], a migração de brasileiros – os “cooperantes da revolução” (Azevedo, 2012, p. 463) – para Moçambique no momento pós-independência em 1975 e o tráfico atlântico de escravos para o Brasil[8]: tudo é parte integrante da construção de um discurso comum, entre os moçambicanos que estudaram no Brasil através de acordos de cooperação internacional, que referencia esse país da América Latina como importante parceiro comercial e cultural desse país africano.

Para além dos objetivos formais propalados pelos acordos educacionais, representações sociais sobre as relações do Brasil com Moçambique são fundamentais na consolidação e efetivação das relações políticas entre os dois países, e influenciam as decisões dos sujeitos que se candidatam às vagas disponíveis em universidades brasileiras. No caso da cooperação brasileira, importam menos as cifras aviltantes destinadas a projetos de desenvolvimento[9] – após o ano de 2003 “mais de 30 instituições públicas brasileiras implementaram projetos de apoio a Moçambique” (Rossi, 2015, p. 26) – que seu poder sedutor, “pela preponderância de outras culturas institucionais, expertises” (Cesarino, 2012, p. 12), de influenciar discursos e práticas, como por exemplo as reiteradas afirmações relativas ao grau de parentesco (“países irmãos”) entre Brasil e PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), que justificaria o crescente número de acordos bilaterais. 

Embora o discurso que ampara a cooperação sul-sul brasileira busque “marcar uma diferença estratégica com relação ao Norte através de que as soluções desenvolvimentistas produzidas pela experiência periférica (…) seriam melhores do que aquelas oferecidas pelos países situados no topo da escala da modernização” (Cesarino, 2014, p. 36), a circulação de estudantes moçambicanos para o Brasil pode ser entendida como produto de práticas de governo (Foucault, 2008) forjadas, em uma escala sociológica, para gerar efeitos de hegemonia (Silva & Morais, 2012). Acordos internacionais com objetivo de formação de recursos humanos operam como uma das formas mais típicas dessas práticas; por meio deles países interessados em potencializar suas influências além-fronteiras financiam a formação de quadros em nível superior (Silva, 2012).

Nesse contexto, a hegemonia produzida pelas práticas de cooperação internacional é revertida no sentido de que tais quadros formados promovam e reconheçam o país no qual receberam sua educação, seja em seu território de origem ou em arenas internacionais. Sob esse ponto de vista, e considerando os dados que serão apresentados no texto, podemos considerar que a estratégia do Brasil foi e tem sido muito bem sucedida. Ao retornarem a Moçambique, os profissionais deparam-se com disputas e tensões de vária ordem para conquistar uma posição no mercado laboral em Maputo, que reatualizam um sistema organizador de diferentes posições sociais, integrando-os ainda mais ao universo cosmopolita da capital e no contexto de “desenvolvimento” do país.

No dossiê intitulado “Ensino superior e circulação de estudantes: os PALOP no Brasil e em Portugal” (Gusmão, 2009), vários autores discutem o fluxo de estudantes dos PALOP para o Brasil como parte intrínseca de um processo mais amplo de busca do desenvolvimento dos seus países de origem. Alternativamente a esse argumento, e paralelamente a ele, outros motivos são articulados durante o cumprimento desses acordos pelos moçambicanos com quem me relacionei durante os cerca de três meses de pesquisa em Maputo, em 2011. Ou seja, embora o discurso dominante do desenvolvimento seja o do compromisso político assumido ao retornarem ao seu país, os estudantes elaboram seus desejos de sair para estudar como uma das estratégias de desenvolvimento de projetos de vida pessoais. Esse aspecto pode ser mais facilmente observado entre a geração que se desloca a partir dos anos 2000, mas é também possível sustentar que, mesmo aqueles que se vinculam ao “chamado de Samora”, ao serem contemplados com bolsas de estudos no exterior, viram possibilidades de melhoria na vida profissional e pessoal quando do regresso.

Olivier de Sardan (2005), ao discutir o poder das palavras dentro de uma configuração desenvolvimentista, mostra como “desenvolvimento” é uma palavra chave na África contemporânea, em torno da qual muitos projetos e processos de modernização estão articulados. De forma semelhante aos modos como a colonização portuguesa, no território que hoje é Moçambique, utilizou-se de estratégias de controle e indução de mudanças em parte da população classificada como “indígena” – a estetização da vida cotidiana, a circulação de bens, a maneira como os sujeitos recebiam e se apropriavam do que lhes era oferecido de fora do seu mundo –, os efeitos de poder alcançados pelos projetos de desenvolvimento são arquitetados a partir de ferramentas altamente sofisticadas de construção de universos morais. Nesse contexto, estratégias de hegemonia são capitaneadas por países com maiores habilidades em penetrar no cotidiano de grupos que com elas se identificam.

O termo desenvolvimento, em suas múltiplas acepções, é fundamental no contexto de instrumentalização dos acordos educacionais que permitem a circulação dos estudantes moçambicanos para o Brasil. A partir dos dados construídos pela pesquisa, quando abordam a questão do desenvolvimento, os moçambicanos retornados referem-se à sua inserção no mercado de trabalho e ao modo como, através dos cargos que ocupam, se distinguem socialmente de outros moçambicanos. A distinção é aqui abordada a partir da oposição produzida entre aqueles que obtiveram diplomas de curso superior e demais moçambicanos, especialmente aqueles que trabalham como empregados domésticos[10]. Aproximo-me, nesse sentido, da proposta analítica de Bourdieu (1998; 2007; 2008) acerca dos processos de diferenciação social e dos sinais de distinção pelos quais estes se expressam. Para os propósitos desse artigo, são valiosas as análises do autor que atribuem às trajetórias pela instituição escolar fontes de processos complexos de diferenciação, a depender do tipo de capital escolar e das experiências extraescolares vividas pelos sujeitos.

É possível observar, também, a produção de diferenciações entre os que saíram para estudar no exterior e quem se formou em universidades nacionais, com professores moçambicanos[11]. Atribuem às viagens internacionais e à vivência em outros circuitos escolarizados etapa fundamental para a aquisição de capacidades necessárias ao enfrentamento dos desafios do mundo contemporâneo. Entretanto, mais do que exaltarem o conteúdo aprendido nos cursos ou elogiarem uma suposta “excelência” do ensino superior no Brasil, em detrimento do ensino em Moçambique, ressaltavam a importância de terem realizado um intercâmbio cultural. Nesse sentido, as viagens para o exterior são elementos integrantes dos capitais que os estudantes possuem e mobilizam no processo de construção de seu prestígio, sendo parte desse processo as diferenciações em relação a seus conterrâneos que estudaram em universidades nacionais.

Além disso, a distinção é construída entre eles mesmos, no sentido de mostrarem, como um grupo, a sua capacidade de ter uma vida moderna e civilizada, comprovada através da ocupação em diferentes atividades laborais. Desenvolvimento define sentidos poderosos para essa elite intelectual moçambicana, pois passa a ser visto e vivido como um processo mais amplo de entrada e pertença a um mundo “moderno” de Moçambique. A integração ao universo laboral em Maputo pode ser compreendida a partir dessa perspectiva. Essa reflexão se aproxima do argumento de Smich (2008) sobre a construção de uma ideologia da modernidade pela elite política em Moçambique[12]. Utilizada como forma de reivindicação do poder social e legitimação de suas posições frente à sociedade, a modernidade desejada e conquistada por essa elite permite que ela se diferencie do restante da população, ou seja, “a ideologia de modernidade da elite baseia-se em ideias de igualdade com o mundo exterior, das quais retira legitimidade, mas constitui também um poderoso instrumento para a criação de desigualdade” (Smich, 2008, p. 321).

Diversos moçambicanos com quem interagi em 2011 enfatizavam como estavam bem “integrados” em Maputo e como conseguiam ter um “padrão de vida” através de seus múltiplos trabalhos[13]. Circulávamos pela cidade sempre em seus carros, por locais que faziam emergir paisagens e espaços sociais distintos daqueles vividos pela maior parte da população da capital. Seus carros altos, four by four, metaforizavam a altura e a distância através das quais aqueles que os possuíam enxergavam as pessoas que circulavam com os pés no chão. Os capitais adquiridos com os estudos no Brasil e/ou em outros países pelos ex-estudantes faziam parte do repertório de elementos de diferenciação social em relação àqueles que não tiveram a oportunidade de viajar, o que sugere como, localmente, a participação em projetos de cooperação gera efeitos de exclusão moral.

O processo de escolarização pela educação superior internacional, vivenciado como passo estratégico para o acesso a hierarquias sociais mais altas, e a pertença às elites nacionais, detêm um poder altamente sedutor para os moçambicanos que se articularam para estudar no Brasil. No contexto das independências de países africanos que as conquistaram após a década de 1970, a formação de quadros especializados para atuarem nas várias esferas da vida burocrática e empresarial foi uma das grandes justificativas para a implementação da ajuda internacional no intuito de enviar estudantes para o exterior. De acordo com Gusmão (2009, p. 10):

a constituição, nas últimas décadas do século xx, de novos Estados nacionais africanos de língua portuguesa leva muitos estudantes dos países africanos de língua oficial portuguesa – PALOP – a procurarem formar-se no Brasil e em Portugal.

Do conjunto dos sete artigos do dossiê “Ensino superior e circulação de estudantes: os PALOP no Brasil e em Portugal” (Gusmão, 2009), seis versam sobre a saída dos estudantes dos PALOP com objetivo de estudarem em universidades no Brasil e em Portugal e as expectativas em relação ao retorno a seus países de origem. Os autores dessa publicação (Costa, 2009; Faria, 2009; Fonseca, 2009; Hirsch, 2009; Mourão, 2009; Subuhana, 2009) se apoiam na questão do desenvolvimento dos países como objetivo último dessa circulação, enfatizando o discurso formal que estrutura os protocolos da cooperação.

No caso de Moçambique, esse quadro pode ser melhor compreendido a partir de 1977, dois anos após a independência do país, quando os moçambicanos que possuíam ensino básico ou técnico foram “chamados” pelo primeiro presidente do país, Samora Machel, para trabalhar nos setores demandados pelo Estado nascente[14]. Naquele momento de efervescência pelo surgimento de uma nova configuração político-histórica, inúmeros jovens estudantes passaram pelo curso de formação de professores, que os preparava para atuar na escolarização da sociedade moçambicana.

A estratégia da Frelimo e, mais particularmente, de Samora, em salientar a urgência do país recém-liberto em incorporar-se na estrutura ideológica de pertença nacional através da personificação dos sujeitos na figura do “homem novo” foi fundamental para conquistar a confiança de muitas pessoas naquele momento. Machel assumiu a presidência em 1975, após um período de transição iniciado em 1974. Diante desse quadro de instabilidade política e econômica, grande parte da mão de obra qualificada (conhecida por “população branca”) saiu do país. O corpo burocrático do Governo precisou ser reestruturado, colocando os moçambicanos frente a frente com tensões desde há muito instauradas nas complexas relações desiguais construídas a partir de categorias fundamentais na configuração do Moçambique contemporâneo – educação, trabalho e modernização.

Para esses moçambicanos da geração do “chamamento” de Samora e que posteriormente foram realizar seus cursos de ensino superior no Brasil no final da década de 1970, toda a década de 1980 e início de 1990, a volta a Moçambique teve um sentido bastante particular. Antes mesmo de saírem do país, já haviam construído seu espaço familiar e trabalhavam em esferas do Governo – em grande medida devido à sua dedicação à Frelimo e seu envolvimento no processo de construção da nação moçambicana. Regressar, portanto, alinhava-se a um compromisso interno de realização pessoal que passava não só pelo sentimento de dar continuidade a atividades de construção de um país, mas também pelas motivações individuais e conjuntas influenciadas pelo desejo de manter um “padrão de vida” em Maputo.

André[15], um dos meus interlocutores[16], nasceu em 1967, em Nampula, província localizada na região norte de Moçambique. Aprendeu a ler com sua mãe, camponesa, que sempre o incentivava a estudar. Quando Samora Machel fez um de seus discursos mais famosos, em 8 de março de 1977, cursava o ensino secundário em Nampula. Em suas palavras, sentiu-se “obrigado”[17] a fazer o curso de formação de professores em Maputo, a responder ao “chamamento da pátria”. Chegou à capital em 1981. Sua primeira atividade foi ingressar no curso de formação de professores do ensino secundário, optando pela especialidade em desenho.

A permanência na capital propiciou o ingresso de André na universidade, em 1984, onde concluiu o bacharelato em 1986 e foi convidado a ser assistente na Faculdade de Educação. Especializa-se em Didática do Desenho e em 1987 torna-se assistente estagiário, sendo convidado posteriormente a fazer parte do corpo docente da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Em 1989, a Faculdade de Educação é fechada, sendo criado o Instituto Superior Pedagógico. Nessa ocasião, há uma realocação de professores, que deveriam optar em se deslocar para outros espaços da administração pública. No caso do meu interlocutor, suas alternativas recaíam em ser professor na décima primeira classe, trabalhar no Ministério da Cultura ou atuar na Reitoria da UEM. Por motivos diversos, André optou por esta última função, onde ainda trabalhava quando nos conhecemos, em 2011.

Em 1990, fruto de sua atuação, conjugada com circunstâncias favoráveis, assume um posto na área de relações internacionais da universidade. Posteriormente, assumiu cargo de relações públicas, chegando a diretor adjunto da Reitoria, função de bastante prestígio. Impulsionado pelo desejo de crescer profissionalmente e pelos esforços da própria universidade em profissionalizar seus quadros, André ingressa, em 1994, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com bolsa de estudos da UEM financiada pelo Banco Mundial[18].

Assim, pela sua proximidade em relação aos centros de decisão, André e toda essa geração de estudantes teve facilidade de acesso às oportunidades de circulação internacional, através de projetos de desenvolvimento na área educacional e de formação de quadros qualificados para atuar na esfera burocrática do Estado. A possibilidade de estudar no Brasil se alinhou a esse contexto de interesses cruzados e o regresso para Maputo é parte dos valores arquitetados ao longo das rápidas transformações dos anos que seguiram 1975, momentos cruciais na nova configuração política que articulava a noção de modernização ao discurso de desenvolvimento do país.

Diversamente dos primeiros contemplados por bolsas de estudos para universidades brasileiras e de outras nacionalidades, numa época de fortes carências de quadros qualificados e de fortes lealdades políticas e ideológicas, as gerações de estudantes que rumaram ao Brasil a partir da década de 2000[19] encontraram diante de si, no regresso, um país marcado por profundas transformações de ordem econômica (aceleração do processo de urbanização e industrialização, recrudescimento do mercado de trabalho), sociodemográficas (crescimento populacional da capital e de outras cidades), políticas (maior consolidação da ordem democrática após uma longa e sangrenta guerra civil, expansão dos aparelhos do Estado), educacional (ampliação da rede de ensino superior, criação de novos cursos), etc.

Com efeito, a consolidação da ordem civil dinamizou o acesso a outras fontes de financiamento estudantil no exterior, além de ampliar a possibilidade de escolha por cursos diversos. Beatriz tinha 26 anos quando a conheci em Maputo. Chegou ao Brasil em 2004, ano em que foi selecionada pelo PEC-G para realizar seus estudos de graduação na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Lembra-se de ter vivido muitas dificuldades para se acostumar com o novo contexto: morar sozinha, ser observada nas aulas por ser de outra nacionalidade, saudade de casa. Aos poucos, porém, a cidade de Recife tornou-se mais agradável. Beatriz se formou no curso de Arquitetura e Urbanismo e trabalhava, no momento da minha pesquisa, num escritório de arquitetura em Maputo cujos donos eram brasileiros. Quando nos conhecemos, ela tinha voltado para Moçambique havia apenas dois meses, situação que estava causando uma série de conflitos familiares e de reorientação pessoal. A pressão pelo casamento já tinha começado e a vontade de morar sozinha não era bem vista. Seu plano inicial era montar um local de trabalho próprio, mas o convite de um amigo para trabalhar, também arquiteto e dono de um escritório repleto de projetos, a fez deixar temporariamente de lado o desejo de ter um negócio seu.

Jean, que conhecia Beatriz quando estudaram juntos em Maputo, também cursou Arquitetura, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Antes disso, havia passado uma temporada nos Estados Unidos porque o pai, jornalista, conseguira um emprego naquele país. O único motivo que o fez voltar foi o provável reconhecimento profissional que teria em Moçambique (“queria ter uma marca como arquiteto”), diferentemente do Brasil, onde seria “só mais um”. De acordo com Jean, Maputo tem vivenciado um boom na construção civil, resultante de investimento privado, e isso tornou o seu regresso um grande atrativo, mas não o fez sem tensões. Além da grande quantidade de amigos que deixou para trás, era noivo de uma brasileira e estava fazendo esforços para que se casassem e ela fosse morar em seu país, assim que o casal conseguisse um “padrão de vida” que fizesse valer a pena o deslocamento dela para Moçambique.

A despeito das intensas diferenças geracionais e contextuais enfrentadas, os estudantes moçambicanos que frequentaram universidades brasileiras, uns mais e outros menos, depararam-se no regresso com um universo de práticas ancoradas no universo intrincado de estratégias laborais, que reatualizam um sistema classificatório organizador de diferentes posições sociais em Maputo. A formação geral e as competências acadêmicas, técnicas e culturais adquiridas no Brasil, mais que garantir a inserção no mercado de trabalho e alterações no padrão de vida, fornecem prestígio e distinção social no interior da sociedade moçambicana. A cooperação educacional promovida pelo Brasil contribui, nesse sentido, para a expansão dos quadros especializados em Moçambique e para o acirramento das disputas pelos melhores empregos no mercado de trabalho em Maputo.

Meus interlocutores diziam frequentemente o quanto estavam ocupados, e por que precisavam ter mais de um emprego para manter um padrão de vida desejado na capital do país. Em nossas conversas, apontavam o trabalho especializado, fruto de formação acadêmica no exterior, como elemento fundamental para o seu desenvolvimento pessoal. O discurso do desenvolvimento e os modos como os moçambicanos dele se apropriam atualizam práticas civilizatórias/modernizantes com raízes nas práticas de governo coloniais de fins do século XIX e grande parte do XX. É o que discutirei na próxima seção. 

Trabalho e distinção social

Colaço (2001, p. 91) argumenta como o “trabalho ocupou, ao longo do século XX, lugar fundamental na formação e organização da sociedade moçambicana”. Enquanto ideia central no argumento de vários autores que discutem o tema (Cabaço, 2009; Colaço, 2001; Penvenne, 1995; entre outros), a trajetória dos moçambicanos pelo trabalho (forçado ou assalariado, ou um misto dos dois) pode ser pensado como uma característica fundamental para compreender o complexo quadro surgido com a inserção do país num sistema racional de produção de riquezas.

Nesta seção busco discutir o modo como distintas classificações de pessoas e status sociais foram e são produzidas a partir do posicionamento em diferentes colocações no mercado de trabalho. Sugiro que ideias e práticas do período colonial[20], embora apresentadas com outras roupagens, fazem parte de um processo de continuidade com fenômenos sociais contemporâneos.

A presença colonial portuguesa manteve-se no território que é hoje Moçambique a partir de um equilíbrio/jogo de forças baseado no monopólio da mão de obra “indígena”: o trabalho, ou seja, o recrutamento de mão de obra para realização de atividades produtivas, era ideologicamente entendido pelos colonos como ação civilizadora, a melhor saída para o “atraso” em que se encontrava esse grupo social. Os missionários cristãos estiveram entre os maiores responsáveis por esse projeto civilizador, sendo a passagem pelo trabalho um passo fundamental para a purificação das almas.

A publicação de uma portaria do governo colonial em 1917 estabelece uma diferenciação entre “indígenas” e “não indígenas” que, consequentemente, foi estruturante no tocante às distinções das atividades laborais em relação a esses grupos. Os “assimilados”, classificados como “não indígenas”, são tópico bastante sensível nesse processo de identificação e diferenciação, porque juridicamente partilhariam o mesmo estatuto dos colonos portugueses, concorrendo pelos mesmos empregos que exigiam uma qualificação que ambos possuíam. Obviamente, a situação era mais complexa que essa. A prática laboral foi fundamental na atribuição de diferentes estratos sociais e de cidadania nesse período colonial tardio. A capacidade para desempenhar o trabalho “moderno”/intelectual  era lida como aptidão à civilização. 

A categoria “assimilados” forjava um lugar social altamente sedutor para as elites locais; como nem todos conseguiam alcançar esse status, ela produzia um fosso entre quem tinha acesso à educação mais “intelectualizada” e quem continuaria a exercer as atividades “menos qualificadas”. Uma pequena elite civilizada aos moldes europeus dificilmente seria ameaça para os colonos e, ainda, demonstraria o sucesso do projeto colonizador. Assim,

Do assimilado esperava-se um outro mais em sintonia com os valores da cultura lusa que, entre os colonizados, permitisse uma gestão ideológica da questão indígena e alimentasse a ilusão de que a sociedade colonial tinha espaços para a mobilidade social (Cabaço, 2009, p. 119).

Os assimilados são, para Thomaz (2001), o grupo fundamental para compreender o processo de construção de Moçambique, pois foram afastados de suas alianças tradicionais, tomando a língua portuguesa como ponte de comunicação primordial para aquele mundo, e participaram de uma complicada relação (no mínimo, ambígua), que lhes elevava ao patamar da civilização; permanecia, contudo, a diferença entre colonos e nativos.

O sistema colonial português inculcou, pouco a pouco, valores culturais relativos a uma civilização desejada, pois era vivida no cotidiano associada a uma cultura superior. Essa ideia precisava ser absorvida pelos nativos e era na capital da colônia que isso se sentia mais à flor da pele. A chegada de um migrante do interior a uma cidade como Lourenço Marques “provocava um sem-fim de ‘rituais’ que visavam humilhar os que não se mostravam familiarizados com a cultura e o modo de vida do colonizador” (Thomaz, 2001, p. 147). Esse modo de vida e seus constrangimentos vinculavam-se a uma distinta urbanidade.

O acesso a diferentes tipos de profissões no mercado de trabalho urbano indicava a ocupação de cargos mais prestigiados pelos segmentos raciais vistos como mais civilizados. A população branca cresceu com a transformação de Lourenço Marques, que ganhava ares urbanos (com a chegada da luz, por exemplo). A partir de 1912 essa minoria já ocupava postos de direção, profissões liberais, a maioria dos cargos administrativos e empregos públicos (Zamparoni, 1998). Trabalhavam, portanto, com atividades que não demandavam esforço físico, necessitando somente de sua capacidade intelectual. Aos “indígenas”, restavam os trabalhos menos ilustres na hierarquia laboral, como as atividades domésticas e braçais, “constituindo-se eles no exército de força bruta com que se construía, alargava, embelezava a cidade e se movimentavam os negócios da Colônia” (Zamparoni, 1998, p. 197).

Zamparoni (1998) aponta como o trabalho doméstico pertencia ao nível mais baixo na escala de salários urbanos: punições físicas a trabalhos “mal cumpridos”, acompanhadas muitas vezes de um encaminhamento à polícia por motivos correcionais eram comuns até a década de 1960. Ao regressar do “castigo” da administração ou da polícia, o empregado voltava para a casa da “patroa” com um bilhete informando a que humilhação tinha sido exposto (Cabaço, 2009, p. 45). Penvenne caracteriza esse trabalho como um aspecto fundamental da nascente urbanidade em Lourenço Marques:

Beginning in the late nineteenth century, domestic service was a growing, typically urban employment category. It was an important component in the making of a ‘white man’s town’, and since it was often a young Mozambican’s first experience with ‘work for the white people’, it was also a formative category (Penvenne, 1995, p. 54).

Outra fonte de diferenciação e humilhação no ambiente urbano eram as vestimentas usadas pelos diversos estratos sociais em Lourenço Marques: “podia-se adivinhar profissões, riqueza e outros indicativos sociais, pela roupa que se usava, muito mais facilmente que nas metrópoles europeias” (Penvenne, 1995, p. 282). Além do estatuto racial, era pela maneira como as pessoas se apresentavam vestidas que a distinção se fazia presente. O vestir-se bem transformou-se, assim, em símbolo privilegiado de diferenciação social e proteção contra possíveis aproximações aos “indígenas”. A maneira como europeus e assimilados se vestiam demarcava fronteiras e era parte fundamental da identificação no quadro civilizatório. Como discute Cabaço (2009, p. 122), dessas relações de poder nasceu uma elite moçambicana predominantemente mestiça que se localizava principalmente nas grandes cidades, ou seja, “nos centros urbanos mais importantes, como Ilha de Moçambique, Quelimane, Tete, Inhambane, Lourenço Marques e Beira”.

Com a independência em 1975, as antigas famílias dos “africanos portugueses” (Cabaço, 2009) passaram a trabalhar no Estado e nas empresas que aos poucos se instalaram no país. A esse respeito, Geffray (1990) aponta como aqueles que se envolveram em posições de prestígio no período pós-independência eram os mesmos que, no período colonial, ocupavam cargos importantes de decisão política. No Moçambique recém-independência, fazia parte dos projetos de construção nacional a participação ativa da juventude na missão de desenvolver o país. Samora Machel, primeiro presidente do país, era um entusiasta do trabalho dos jovens e os identificava como uma unidade social (Colaço, 2001) que poderia se devotar aos ideais do Partido (Frelimo) e os encorajava a se engajarem com as ações do Governo. Poucos, portanto, tinham acesso aos melhores cargos e empregos.

Confrontando as práticas do projeto colonial (racionalização do processo produtivo) àquelas dos anos que antecedem o IV Congresso do Partido Frelimo em 1984 e que caracterizaram o tratamento daqueles considerados “improdutivos”, Feijó (2017) discute como, a despeito da mudança dos discursos oficiais sobre a atividade produtiva e recrutamento de mão de obra, é possível sustentar a existência de continuidades nesses diferentes períodos históricos:

Se a produção no período capitalista colonial era representada como assentando em relações de exploração, no período revolucionário era considerada como uma forma de construção e libertação do Homem Novo (Machel, 1976a: 6). Diversos elementos que estiveram na base destes fenômenos sociais apareceram em continuidade com algumas práticas do período colonial (Feijó, 2017, pp. 334-335).

Concordo com o autor e, nessa esteira, defendo que elementos de distinção que operavam em Lourenço Marques – modos de vestir e portar-se no espaço urbano, acesso aos melhores postos de emprego, oportunidades de mobilidade social, entre outros – persistem no Maputo pós-independência. Ressaltei a questão dos empregados domésticos não para sublinhar a posição e o papel desse grupo, apenas, mas sobretudo para refletir sobre o modo como meus interlocutores a eles se referiam e deles se distanciavam, esse Outro que, diferentemente deles, modernos e bem integrados no mercado de trabalho, submetem-se a trabalhar em suas casas em troca de “baixíssimos salários”.

Assim, é possível afirmar que parte da dinâmica contemporânea de acesso e disputa por melhores postos no mercado de trabalho em Moçambique faz parte de um processo de continuidade em relação a certas práticas veiculadas nos períodos colonial e pós-colonial. Embora as concepções e abordagens relativas ao tema do trabalho em Moçambique tenham sidos alteradas, a ideia de pertencer a um mundo de empregos desvalorizados e mal remunerados, que impossibilita o acesso a bens de consumo e o reconhecimento social – universo próprio aos “indígenas” – é algo evitado pelos moçambicanos que obtiveram títulos no exterior.

Nesse sentido, conquistar uma formação superior em arenas internacionais é parte de estratégias contemporâneas de diferenciação e reconhecimento social, uma das portas de entrada a um mundo moderno e civilizado, ao permitir ao estudante, no retorno ao país, adquirir bens e serviços, realizar mais viagens ao exterior, exibir fotos e vídeos nas mídias sociais, etc. Esses são elementos importantes e poderosos, símbolos de pertença a esse mundo, a uma modernidade que insistem em divulgar aos parentes, conhecidos, amigos e aos empregadores. Mesmo que esse não seja um fenômeno exclusivo no caso daqueles profissionais que estudaram no Brasil, o que venho discutindo neste artigo são algumas das particularidades da circulação de estudantes por esse país.

De acordo com os relatos de meus interlocutores, estudar no Brasil é algo valorizado nesse mercado de trabalho. No jogo competitivo por integração e busca por melhores empregos, os moçambicanos que estudaram no Brasil beneficiam-se das imagens e representações do país veiculadas em Moçambique e as utilizam como capital cultural na competição por integração ao mercado de trabalho e nos seus exercícios diários de diferenciação. A próxima seção busca abordar o conjunto dessas questões.

Influências brasileiras em solo moçambicano como estratégias de diferenciação social

Muitas imagens e representações sobre o Brasil foram construídas pelos estudantes moçambicanos anteriormente à sua ida ao país a partir de fontes variadas: todos eles “conviviam” diariamente com os personagens das telenovelas e de programas de televisão variados, com as notícias sobre os investimentos brasileiros frequentemente divulgados nos jornais locais, com músicas de artistas brasileiros (Roberto Carlos, Djavan, Gilberto Gil, Martinho da Vila, entre outros), com o futebol brasileiro, com moçambicanos que estudavam no Brasil e voltavam para Moçambique no período das férias escolares[21].

Durante uma das conversas que tive com meus interlocutores sobre o episódio narrado no início deste artigo, um deles concluiu que o investimento do Brasil vinha “em boa hora”, considerando que o país tinha experiência de longa data com aquele tipo de plantação, sabendo manejar a terra com “menos maquinário que os europeus”. A esse respeito, o ministro da Agricultura de Moçambique declarava na televisão: “os agricultores brasileiros têm experiência acumulada que é muito bem-vinda. Queremos repetir em Moçambique o que eles fizeram há 30 anos no Cerrado”. Essa narrativa, acerca das experiências de sucesso do Brasil, era recorrentemente citada, e fazia parte inclusive do discurso oficial da cooperação brasileira. Não é demais relembrar que o objetivo do acordo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico e Ministério da Ciência e Tecnologia de Moçambique era contribuir para “o desenvolvimento socioeconômico do país, bem como para a maior interação com o Brasil” (Programa MCT-Mz., s.d.).

Essa interação é marcadamente vivida pelos estudantes através de experiências de caráter informal que situam suas relações na universidade. Muitos dos meus interlocutores apontaram a informalidade da relação professor-aluno na universidade brasileira como algo bastante positivo, o que permitia inclusive a melhor compreensão do conteúdo das disciplinas dos cursos. Quando retornaram a Moçambique, tornaram-se mais críticos ao formalismo dessa relação e de outras que se desenrolam nos espaços públicos em Maputo, e algumas mudanças tímidas foram experimentadas em seus locais de trabalho, como no caso de alguns professores universitários que relataram ter flexibilizado a relação com seus alunos, ao promoverem conversas sobre o conteúdo do curso fora da sala de aula e ao fornecerem material bibliográfico inexistente nas bibliotecas em Moçambique.

Uma funcionária que trabalhava no Centro Cultural Brasil-Moçambique diretamente com as candidaturas dos estudantes relatou-me que aqueles que voltavam do Brasil estavam “mais bem colocados”. Explicou-me que os moçambicanos que estudaram em universidades brasileiras apresentavam maior “expressividade” que aqueles formados em Portugal ou Austrália, uma qualidade conquistada no país pelo envolvimento mais informal nas universidades e pela relação mais próxima com os professores brasileiros. Devido a esses recursos, fruto da interação com o Brasil, é que, de acordo com ela, essas pessoas teriam mais facilidade em encontrar trabalho quando retornam.

Certamente a inserção em um mercado de trabalho especializado, seja ele representado pela esfera pública ou empresarial, é parte de uma dinâmica mais complexa que a opinião da funcionária. Apesar disso, esse posicionamento ecoava nas narrativas de muitos deles, quando demonstravam estar muito bem “integrados” em Maputo. Retomo a afirmação de Jean, que preferiu se desenvolver profissionalmente em Moçambique, pois poderia ter uma “marca” só sua. No Brasil, com o mercado laboral saturado, dificilmente alcançaria o status como arquiteto que construiu rapidamente em sua terra natal.

Juntamente com a procedência universitária, é necessário considerar uma série de fatores conjuntos que se manifestam nas estratégias de acesso a esse mercado, como redes familiares e de amigos, filiação partidária, capacidades linguísticas (especialmente com o inglês), etc. Viver na capital do país certamente é um desses fatores, e contribui para o acesso tanto às informações sobre as bolsas de estudo, como às vagas destinadas a empregos especializados em Maputo. Grande parte de meus interlocutores, além de acessar essas redes no retorno ao país, disputaram a integração no mercado de trabalho ao demonstrarem a aquisição de título de ensino superior no Brasil.

As telenovelas desempenham um papel central na busca por essa integração, porque fornecem um repertório que coincide com suas aspirações de desenvolvimento pessoal no universo laboral em Maputo, como imagens de belas casas, carros, roupas e posições de prestígio dos personagens. Assim como as telenovelas, os moçambicanos têm acesso a músicas brasileiras, às conversas com quem já esteve no país, aos produtos brasileiros vendidos nos supermercados e nas lojas, os quais mobilizam o imaginário e os desejos de boa vida e prestígio que podem aumentar ainda mais caso sejam beneficiados pelas vagas oferecidas pelos acordos educacionais disponíveis. Esses aspectos surgiram no horizonte dos interlocutores como veículos que concretizam a realização de sua distinção.

As telenovelas brasileiras começaram a ser transmitidas pela programação televisiva estatal moçambicana a partir da segunda metade da década de 1980 (Wane, 2011). Com o aumento gradual do acesso aos meios de comunicação de massa, muitos moçambicanos (principalmente aqueles que moravam na capital) passaram a incorporar as imagens diárias das tramas no imaginário coletivo sobre o país. Wane (2011) aponta como:

muitas das temáticas trazidas pelas telenovelas desencadearam interessantes dinâmicas em Moçambique, desde a adoção de um vestuário mais “abrasileirado” (mais informal, contrastando com a formalidade do vestir local) até a debates públicos sobre diferentes temas, como a prostituição (retratada em “Laços de Família” e “Paraíso Tropical”), a juventude emergente consumista (vista no seriado “Malhação”), a corrupção, etc. Outros subgrupos da sociedade moçambicana também viram alguns de seus elementos culturais abordados nas telenovelas como os indianos (em “Caminho das Índias”) e os muçulmanos (em “O Clone”).

No intuito de explicitar a importância do circuito das novelas brasileiras (especialmente aquelas emitidas pela Rede Globo de Televisão) em Moçambique, uma de minhas interlocutoras cunhou o termo “globo dependente” para se referir àquelas pessoas que, como ela, não se contentavam apenas com a prática de assistir aos capítulos diários, mas se envolviam com todo o universo ao redor das fofocas sobre os artistas. Sites como o Yahoo Brasil ou o Globo.com, que veiculam esse tipo de informação, eram acessados frequentemente. Assim, notícias sobre a vida dos “globais” (referência aos atores da Globo) e as sinopses das telenovelas são atualizadas em solo moçambicano. Além disso, algumas moçambicanas que conheci pesquisavam na internet as cores dos esmaltes utilizados pelas atrizes, para que também pudessem utilizar.

Muitas pessoas relataram gostar das telenovelas brasileiras porque, segundo elas, abordam questões de cunho social, como gravidez na adolescência, corrupção na política, a ocupação dos negros em papéis importantes, como de empresários, etc. O fascínio exercido pelas imagens da cidade do Rio de Janeiro pode ser percebido entre algumas pessoas que gostariam de estudar no Brasil: as belas paisagens naturais, a beleza das atrizes e atores, as fartas mesas de café da manhã foram citadas como atrativos para morar no país.

Essas expectativas, entretanto, dificilmente são correspondidas quando chegam ao Brasil (Silva & Morais, 2012). Como apontado anteriormente, a identificação pela cor da pele e a categorização de moçambicanos como “negro” passa a operar diariamente como marcadores sociais em cidades e universidades brasileiras, causando uma série de constrangimentos gerados pelo racismo. Assim, a representação de um Brasil acolhedor e cordial veiculado pelas novelas cai logo por terra. Outros estranhamentos dizem respeito à realidade das favelas, ao clima frio de algumas regiões, à inexistência de mar na capital do país, à falta de informações sobre Moçambique e o continente africano por parte dos colegas e professores brasileiros.

No retorno a Moçambique, continua vigorando, para fins de apresentação pública, a representação do Brasil de riqueza e bem-estar. Muitos preferem não explicitar as experiências ruins ou de sofrimento, argumentando que as pessoas não entenderiam. Prevalece entre eles o desafio de continuar cultivando os ideais de um mundo moderno e demonstrar superioridade da sua posição social em relação à maioria da população moçambicana. A cooperação educacional Brasil-Moçambique contribui para esse processo de produção de diferenciação social, pois a oferta de vagas e bolsas em universidades, associada a investimentos brasileiros em Moçambique e às imagens televisivas – ambos sinais de modernidade –, promove a circulação de práticas e modos de ser e estar no mundo entre os estudantes que, no regresso como profissionais, reatualiza um sistema de prestígio em Maputo.

Considerações finais

A importância atribuída às imagens do Brasil em Moçambique e a influência exercida por elas nos processos de distinção promovidos pelos acordos educacionais fazem sentido e geram efeitos porque estão em curso, no interior da sociedade moçambicana que se estabeleceu em Maputo, elementos disciplinadores de condutas e aparição na vida pública. A importância da formação superior em universidades estrangeiras e o modo como o consequente prestígio se expressa no universo de relações laborais não pode ser desconsiderada, pois é em torno deles, entre outros aspectos, que os acordos educacionais Brasil-Moçambique se consolidam.

Sugiro, portanto, que a força do complexo semântico articulado em torno das ideias de modernidade e desenvolvimento – nos quais gravitam concepções de ocupação, educação superior, circulação internacional, vestir-se “bem”, aquisição de carros e outros bens – tem sido produzida e reproduzida em diálogo com práticas de governo coloniais e pós-coloniais. A presença do Brasil em Moçambique, através de investimentos em grandes empreendimentos e bolsas de estudo, contribui para a construção de um espaço privilegiado por meio do qual expande seu poder além das fronteiras nacionais.

Durante certo período da colonização portuguesa em Moçambique, o reconhecimento como alguém civilizado implicava o domínio da língua portuguesa e a conversão ao cristianismo, religião oficial praticada em Portugal. Atualmente, a língua continua sendo signo de distinção e a maioria das pessoas com quem conversei durante a pesquisa não sabia falar outras línguas moçambicanas, aquelas de seus pais. Mas o “ser civilizado” contemporâneo depende de outros atributos, como realizar estudos no exterior, exercer várias ocupações laborais, possuir bens, etc.

O fluxo de estudantes moçambicanos para o Brasil é um fenômeno de múltiplas dimensões. A circulação internacional, nesse sentido, é alimentada por um desejo de distinção que é vivenciado e reproduzido por certas tecnologias, discursos e práticas, tendo o Estado papel fundamental nesse sentido, assim como a televisão. A presença dos empreendimentos brasileiros e as telenovelas são elementos complementares nas decisões de sair para estudar no Brasil.

Os estudantes moçambicanos podem ser considerados mediadores nesse contexto contemporâneo de rápidas mudanças econômicas e políticas em Moçambique, justamente porque experimentam outras formas de interação social e de saberes, levando-os consigo e transferindo-os de alguma maneira a seus novos cargos e posições no mercado de trabalho. Esse processo certamente se dá de modos distintos entre os outros PALOP. A particularidade da ênfase colocada na discussão sobre trabalho e modernidade em Maputo está relacionada não só a uma certa obsessão própria das relações de demandas econômicas do mundo contemporâneo, mas também ao contexto histórico-político de transformações das relações laborais na sociedade moçambicana.

O facto de Moçambique receber somas consideráveis de projetos de cooperação internacional pode justificar como alguns estudantes que, tendo acesso aos trâmites de candidatura às bolsas, reconstroem-se como pertencentes a esse mundo internacionalizado. Ao voltarem para Moçambique após alguns anos vivendo no Brasil, e possivelmente em outros países, os moçambicanos agregam em suas vidas o mantra da globalização (Ribeiro, 2005, p. 24) sentindo-se integrantes do universo cosmopolita representado por Maputo. A noção de desenvolvimento, tal como abordada pelos acordos de cooperação internacional, a exemplo do PEC-G e do PEC-PG abordados neste artigo, é interpretada pelos estudantes como um atrativo a ser conquistado, pois atribuem a ela a possibilidade de ingresso num mundo “moderno”, em que o acesso a posições de prestígio é algo cultivado e desejado. 

Os fenômenos discutidos acerca do regresso de estudantes moçambicanos estão, nesse sentido, intimamente relacionados a uma demanda de aprovação pública e às expectativas respondidas a partir dessa aprovação. O “cultivo” do prestígio, levado a cabo pelo estudante no processo de investimento escolar, é parte da construção temporal de inculcação de valores e práticas, tal como colocado por Bourdieu (1998), e implica em desejos de reconhecimentos futuros. Para tanto, mobilizam-se os capitais social e cultural próprios à sua condição, sempre que sejam necessários. A passagem pelo Brasil tem um papel potente na manutenção do padrão de vida dos moçambicanos que vivem em Maputo. Aqueles que se formam em universidades brasileiras se diferenciam de quem estudou em outros países não só porque argumentam que através de um ensino de estilo mais “informal” teriam aprendido melhor, mas porque (e principalmente) as imagens vinculadas ao Brasil são utilizadas por eles como parte dos seus exercícios diários de diferenciação.

 

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Recebido: 03 de abril de 2017

Aceite: 02 de janeiro de 2018

 

 

Notas

[1]   De acordo com informações adquiridas em meios de comunicação na internet, o governo moçambicano buscou a parceria com agricultores brasileiros em decorrência de sua experiência bem sucedida no Cerrado brasileiro, que possui características de solo e clima muito parecidas àquelas da área em questão, a saber: Niassa, Cabo Delgado, Nampula e Zambézia, todas províncias pertencentes à região norte de Moçambique. A concessão das terras permitiria que os brasileiros utilizassem terras moçambicanas por uma taxa de 37,50 meticais (R$21 à época) por hectare, anualmente, durante 50 anos, renováveis por mais 50. Os produtores agrícolas vão para Moçambique na esteira da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), presente na área com o projeto ProSavana, que tem parceria da ABC (Agência Brasileira de Cooperação) e a JICA (Agência de Cooperação Internacional do Japão).

[2]   É bastante provável que tais considerações foram tecidas dessa maneira a mim, pesquisadora de nacionalidade brasileira e, possivelmente, seriam elaboradas com outra ênfase a pesquisador de outra origem nacional. Importante ressaltar que as experiências de estudantes moçambicanos no Brasil nem sempre são positivas, a exemplo das situações de discriminação racial e de outros tipos de preconceitos a que muitos deles são expostos no espaço público (na universidade e fora dela). Subuhana (2005) indica, por exemplo, que na cidade do Rio de Janeiro muitos moçambicanos apontaram o preconceito racial como uma das principais causas de incômodo e sofrimento na sociedade brasileira. 

[3]   Para um relato crítico bastante interessante desse contexto, cf. Rossi, 2015.

[4]  O PEC-G é um acordo diplomático entre o Brasil e cerca de 40 a 50 países. Uma das suas exigências é a permanência do aluno no Brasil durante período necessário à conclusão de seu curso universitário e o posterior regresso para o país de origem. De acordo com as diretrizes do Programa, os estudantes devem ter, preferencialmente, entre 18 e 25 anos.

[5]  “O Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação – PEC-PG, administrado conjuntamente pelo Departamento Cultural – DC do Ministério das Relações Exteriores – MRE, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, constitui atividade de cooperação educacional exercida entre países em desenvolvimento com os quais o Brasil mantém Acordo de Cooperação Educacional, Cultural ou de Ciência e Tecnologia.” (PEC-PG, 2016).

[6]  Os dados apresentados são fruto de pesquisa realizada em Maputo, capital de Moçambique, entre o final de Junho e o início de Setembro de 2011. Convivi e entrevistei aproximadamente 35 pessoas nesse período. A discussão surgida dessa investigação deu origem à dissertação de mestrado defendida em 2012 no Departamento de Antropologia Social da Universidade de Brasília, Brasil, sob orientação da professora doutora Kelly Silva, na qual abordei certas dimensões dos processos de diferenciação social característicos do cotidiano de profissionais moçambicanos que obtiveram formação de nível superior em universidades brasileiras. Um dos objetivos da pesquisa foi compreender os modos pelos quais se estruturam as trajetórias de regresso desses estudantes ao seu país de origem, suas tensões e dilemas, bem como o que permitiu seu fluxo. Discuti como esses profissionais estavam bem integrados no universo laboral de Maputo e a construção de prestígio advindo da formação no Brasil. Cf. Morais (2012).

[7]  As relações diplomáticas do Brasil estabelecidas com países africanos na década de 1960, durante os governos de Jânio Quadros e João Goulart, foram interrompidas com o início do regime de ditadura militar em 1964, que se alinhou, nos primeiros anos, a Portugal (Alden, Chichava, & Alves, 2017). Novas iniciativas de estreitamento de laços com o continente africano foram estruturadas no governo Geisel (1974-1979). É importante ressaltar nesse contexto que a aproximação do Brasil e o posterior reconhecimento do país à independência de Moçambique, entretanto, não foi vista com bons olhos por líderes da Frelimo, que questionavam a aproximação do Brasil com as políticas colonialistas de Portugal (Pereira & Tatim, 2017, p. 21).

[8]  As primeiras viagens de Lula ao continente foram fortemente marcadas pelo discurso do pagamento da dívida da escravidão. No Senegal, o ex-presidente afirmou: “Queria dizer ao povo do Senegal e da África que não tenho responsabilidade pelo que aconteceu nos séculos XVIII, XVII e XVI. Mas penso que é uma boa política dizer ao povo do Senegal e ao povo da África: perdão pelo que fizemos aos negros” (Luís Inácio Lula da Silva, citado em Rossi, 2015, p. 64). O apelo nada desinteressado em relação ao tema – pois, no contexto em que foi proferido, estavam em jogo diversas estratégias de ampliação e internacionalização do capital brasileiro em território africano – foi elaborado diversas vezes por Lula da Silva.

[9]  Como aponta Zimba (2010), o cenário de cooperação em Moçambique é bastante multifacetado, não estando o Brasil dentre os maiores doadores.

[10] Muitos dos meus interlocutores apontaram o facto de terem mais de um(a) empregado(a) doméstico(a) como uma “regalia” possível em Moçambique. Os baixíssimos salários pagos por esses serviços foram destacados como uma vantagem e, ao pagarem por eles, tornam-se livres da realização de tarefas de pouco ou nenhum prestígio, restando mais tempo para se dedicarem ao trabalho, às visitas familiares e a outras obrigações sociais.

[11] Muitas comparações foram feitas a esse respeito. Nesse sentido, há uma certa hierarquia entre quem estudou em universidade moçambicana, mas teve aulas com professores estrangeiros. Esses seriam “melhor formados” do que os que tiveram aulas com professores moçambicanos. Liberato (2012) mostra como essa diferenciação também opera no caso angolano. Apesar do aumento da oferta de formação superior dentro do país, não houve uma diminuição da busca dos estudantes pelo ensino superior no exterior.

[12] Agradeço imensamente a um dos pareceristas anônimos da revista pela sugestão de esclarecedora leitura.

[13] Esse padrão diz respeito não só à aquisição de bens, como carros, roupas, celulares e mesmo títulos de ensino superior, mas à obtenção do próprio prestígio que advém deles. Numa via de mão dupla, esses elementos transitam no mesmo espaço cotidiano, estabelecendo um padrão em que impera o reconhecimento pelo “esforço” diário de manutenção do status.

[14] A respeito da independência do país, entre outros, ver Cabaço (2009), Colaço (2001), Macagno (2009), Newitt (1995) e Fry (2001).

[15] Modifico ficticiamente os nomes dos meus interlocutores, para preservar-lhes a intimidade que me foi pedida.

[16] Utilizo parte das trajetórias de alguns interlocutores como recurso analítico, no intuito de abordar elementos comuns, representativos de determinada geração.

[17] Ainda que esse relato pareça distanciado de um sentimento de desejo pessoal, e o contexto a que nos reportamos não desse muito espaço para tal, muito possivelmente a oportunidade de mudar-se para a capital do país, realizar um curso e tornar-se professor significava muitas outras coisas para esses sujeitos, como por exemplo a possibilidade de mobilidade social. Agradeço mais uma vez ao parecerista por apontar esse importante aspecto.  

[18] Zimba (2010, p. 77) indica que o Estado moçambicano não é capaz de arcar com todos os custos advindos dos estudos daqueles que saem do país: “essa formação é dependente das oportunidades de bolsas de estudos oferecidas por agências internacionais de desenvolvimento, e uma parcela muito pequena é financiada pelo governo, mas com fundos doados ou créditos internacionais”.

[19] Embora tenha havido um considerável crescimento de universidades públicas e particulares em Moçambique nos últimos vinte anos, o fluxo de estudantes é constante, porque “o país ainda depende grandemente da formação no exterior” (Zimba, 2010, p. 77). 

[20] Mais especificamente, em Lourenço Marques.

[21] Moçambicanos que se conheceram no Brasil, ao voltarem para Moçambique muitas vezes mantêm seus laços de amizade, mantendo a rede que haviam construído no exterior. Tive a oportunidade de participar num encontro de cerca de dez jovens que, mesmo passados alguns anos do retorno, reuniam-se com certa frequência para relembrarem os momentos que passaram juntos no Brasil.

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