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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.36 Lisboa dez. 2018

 

DOSSIÊ

 

A Cooperação Bilateral Brasil-Moçambique, com Enfoque Especial na Área da Defesa

 

Brazil-Mozambique bilateral cooperation, with a special focus on the field of defence

 

 

Luca Bussotti1; Ernesto Macamo2

1Universidade Federal de Pernambuco, Av. Prof. Moraes Rego, 1235 - Cidade Universitária, 50670-901, Recife - PE, Brasil; Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, luca.bussotti@iscte-iul.pt

2Universidade Técnica de Moçambique, Avenida A. Luthuli, Maputo, Moçambique, netopilav@gmail.com

 

 


RESUMO

Este artigo pretende compreender a evolução das relações bilaterais Brasil-Moçambique, sobretudo na área da defesa. As relações entre os dois países entraram numa fase nova com o advento de Lula e do lado moçambicano com a presidência de Guebuza. Tais relações se focalizaram em sectores tais como saúde e educação, mas na área da defesa houve também muitos avanços. A pesquisa, baseada numa metodologia qualitativa, conclui que as relações bilaterais no sector da defesa foram caracterizadas por uma “convergência ambígua”, em que por um lado Brasil se comprometia com programas de apoio ao desenvolvimento, mas ao mesmo tempo formava militares e vendia equipamentos necessários que o governo de Moçambique usou para reabrir uma frente de guerra com a Renamo.

Palavras-chave: defesa, Lula, Guebuza, segurança, relações bilaterais, convergência ambígua


ABSTRACT

This article aims at understanding the evolution of bilateral relationships Brazil-Mozambique, especially in the field of defence. The relationships between these two countries entered a new phase with the advent of Lula and, from the Mozambican side, of Guebuza. These relationships had as their focus sectors health and education, but also in the area of defence many advances were registered. The research, based on a qualitative methodology, concludes that the bilateral relationships in the field of defence were characterized by an “ambiguous convergence”, in which Brazil was committed to support programs of development, but at the same time trained Mozambican soldiers and sold equipment which Mozambican government used to reopen a front of war against Renamo.

Keywords:  defence, Lula, Guebuza, security, bilateral relationships, ambiguous convergence


 

 

O crescimento do sector da defesa em Moçambique deve ser enquadrado no seio da estratégia geral que Guebuza quis dar à sua governação (2004-2014), principalmente ao longo do seu segundo e último mandato (2009-2014), cuja tendência foi um restringimento da esfera pública e do debate político, e uma aposta cada vez maior em mecanismos de controlo e, quando necessário (ver os factos do dia 5 de fevereiro de 2008 e 1 e 2 de setembro de 2010), repressão dos movimentos sociais e das oposições políticas (Bussotti, 2010)[1]. Quando começaram os confrontos militares com a Renamo, concentrados no centro do país, a defesa (com as relativas formas de cooperação internacional) assumiu uma centralidade que há muito tempo tinha perdido. O maior escândalo do país, o da dívida pública oculta (cerca de dois mil milhões de dólares) tem as suas raízes na pretensão de adquirir navios para patrulhar as costas moçambicanas, medida necessária devido a vários episódios de pirataria, que estavam ameaçando os grandes investimentos ao longo do Canal de Moçambique e que protagonizaram sequestros de vários navios, entre os quais o Veja 5, de propriedade da Efripel Lda., e o americano MV Panamá (Combate à pirataria, 2011). Foi neste contexto que houve novas necessidades de desenvolver o sector da defesa nos seus vários âmbitos, tais como formação de quadros e capacitação de pessoal especializado, além de fornecimento de material bélico. E foi neste período que o Brasil foi escolhido como um dos parceiros fundamentais para capacitar quadros militares moçambicanos. A política africana do presidente brasileiro Inácio Lula da Silva (2003-2010) favoreceu esta opção estratégica do governo moçambicano mediante medidas concretas.

É possível notar uma diversificação estratégica no que diz respeito à escolha dos parceiros de Moçambique no sector da defesa, consoante, por assim dizer, o grau de democraticidade dos mesmos. O Brasil de Lula era considerado como país progressista, pelo que ficava difícil identificá-lo como fornecedor de armas ou de outro equipamento militar; os parceiros preferidos neste sentido sempre foram países do antigo bloco comunista: a antiga União Soviética anteriormente, China, Coreia do Norte e Roménia no período mais recente. A China tem vendido ou doado equipamento militar, essencialmente de tipo informático, fardamento e viaturas a Angola e Moçambique (Carriço, 2007), ao passo que a Coreia do Norte é, muito provavelmente, o país onde o governo de Maputo adquiriu armas por um valor aproximado de 500.000 USD da famosa dívida oculta, operação pela qual Moçambique está sob investigação das Nações Unidas por ter fechado negócios com uma empresa sob embargo desde 2012, a Green Pine Corporation (Moçambique investigado, 2017). Finalmente, a Roménia tem acordos de cooperação bilateral com Moçambique para formação de pilotos militares, assim como representa a primeira fornecedora de armas a Moçambique no período 2012-2016, segundo dados oficiais (Fleurant, P. D Wezeman, S. T. Wazeman, & Tian Nan, 2017). Diante deste quadro, o foco da parceria bilateral Brasil-Moçambique no âmbito da defesa concentrou-se na área da formação de quadros militares.

Do lado brasileiro, a linha de cooperação no sector da defesa, iniciada com Lula, continua em parte até hoje, embora a mudança de Lula para Dilma Rousseff e, sobretudo, Temer, tenha influenciado consideravelmente os compromissos do Brasil para com a cooperação com Moçambique neste sector.

Esta análise foi desenvolvida mediante uma metodologia qualitativa, que assumiu como suas principais abordagens a análise das políticas públicas (neste caso de defesa) do lado moçambicano, e da política externa do lado brasileiro, na altura da presidência Lula, a partir dum quadro introdutório de cunho histórico destinado a perceber as raízes económicas e ideológicas da viragem de Lula. Em termos metodológicos, a análise das supramencionadas políticas foi levada a cabo essencialmente mediante uma difícil pesquisa documental, baseada na interpretação dos acordos bilaterais entre os dois países, com ênfase especial nas parcerias relativas ao sector da defesa. A dificuldade residiu no facto de a parte moçambicana ter mostrado uma enorme resistência em providenciar a documentação necessária para levar a cabo esta pesquisa, apesar da aprovação, em 2014, da Lei do Direito à Informação (AR, 2014). Com efeito, os acordos bilaterais que o governo de Maputo assina com os seus vários parceiros internacionais são geralmente objeto de comunicação pública por parte das autoridades, mas sem que estas disponibilizem os textos de tais acordos. Esta situação faz com que a opinião pública moçambicana saiba que o acordo existe, ignorando porém os seus termos exatos, ainda mais quando se trata de parcerias de natureza militar. Sendo praticamente impossível ter acesso aos documentos necessários do lado moçambicano, tais acordos foram adquiridos graças à colaboração da parte brasileira: um certo número de tais acordos pode ser livremente encontrado nos sites institucionais do governo federal brasileiro, ao passo que os poucos que não estavam disponíveis online foram adquiridos através da embaixada brasileira em Maputo. O material conseguido foi enriquecido mediante algumas entrevistas a testemunhas-chave para perceber melhor a natureza da cooperação bilateral entre esses dois países na área da defesa. Devido ao sigilo que caracteriza grande parte da matéria aqui abordada, as testemunhas entrevistadas não quiseram assumir a sua identidade, pelo que mantivemos o seu anonimato. É apenas possível adiantar que foram entrevistadas quatro testemunhas, das quais três pertencentes ao quadro da defesa (um coronel e dois militares ainda em atividade), e uma ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. As primeiras três constituíram uma ajuda preciosa em perceber melhor o tipo de relacionamento no âmbito da defesa entre os dois países, com ênfase especial para as atividades de formação realizadas no Brasil; a última confirmou-nos as linhas gerais da cooperação Brasil-Moçambique, principalmente na altura das presidências paralelas Lula-Guebuza.

O artigo apresenta três partes, além desta introdução e das conclusões: na primeira apresentar-se-á o quadro histórico das relações bilaterais Brasil-Moçambique, com enfoque nos anos da presidência paralela Guebuza-Lula; na segunda far-se-á um resumo da estratégia geral relativa às políticas de defesa nesta mesma altura; finalmente, na última, o foco será direcionado para as relações bilaterais Brasil-Moçambique no sector da defesa nos anos de governação de Guebuza e de Lula, com pequenas e esporádicas “incursões” nos seus respetivos sucessores, Nyusi para Moçambique, Rousseff e depois Temer para Brasil.

As relações bilaterais Brasil-Moçambique antes do advento de Lula: um breve historial

A política africana de Brasil foi tradicionalmente caracterizada por alinhar-se à política portuguesa, principalmente a respeito dos países lusófonos deste continente. Em 1953 o Tratado de Amizade e Consulta, assinado entre Brasil e Portugal, obrigava o primeiro a não apoiar as lutas de libertação nacional dos países africanos que ainda se encontravam sob domínio colonial português. Este tratado condicionou o comportamento brasileiro junto às Nações Unidas: por ocasião das votações de condenação do anacrónico regime de Lisboa, em 1960, o Brasil absteve-se, criando um precedente negativo no seu relacionamento com os futuros Estados africanos de língua oficial portuguesa (Santos, 2011). Além deste acordo, a forte influência americana nos governos que se sucederam no Brasil fez com que este país mantivesse um posicionamento constantemente ambíguo para com a questão das colónias africanas lusófonas: apesar de declarações genéricas de apoio a tais lutas, na prática o alinhamento com as indicações americanas, assim como portuguesas, nunca foi posto em causa (Pinheiro, 2007).

Uma primeira tentativa de aproximação política e cultural do Brasil ao continente africano foi feita entre 1961 e 1964, com o lançamento da Política Externa Independente, por parte de Jânio Quadros e Afonso Arinos. Contudo, quando a ditadura militar assumiu o poder, em 1964, o pouco que tinha sido feito foi praticamente cancelado (Visentini & Pereira, s.d.).

Internamente, apenas ao longo do governo guiado por Artur da Costa e Silva, na segunda fase da ditadura militar (1967-1969), Itamaraty[2] viu o surgimento de uma Secretaria Geral Adjunta para África e Médio Oriente, territórios anteriormente englobados na Divisão da Europa Ocidental (Visentini & Pereira, s.d.). Poucos anos depois, em 1972, registou-se a primeira visita por parte do ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, Gibson, de cerca de um mês, ao continente africano (Selcher, 1976). Esta atitude fez com que Lisboa começasse a suspeitar fortemente da tentativa, por parte de Brasília, de substituir Portugal no relacionamento preferencial com as colónias lusófonas africanas, sobretudo pelo facto de o governo presidido por Médici ter iniciado várias pressões junto ao governo português, no sentido de mudar a sua política colonial (Selcher, 1976).

O posicionamento do Brasil para com a questão colonial africana, nomeadamente de matriz portuguesa, começou a mudar significativamente com a subida ao poder de Geisel, em 1974. Ainda antes da Revolução dos Cravos em Portugal, Geisel tinha produzido e difundido uma circular, assinada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Azeredo da Silveira, a que “todos os ministros civis e alguns ministros militares responderam de modo positivo” (Selcher, 1976, p. 93). Ao nível das relações luso-afro-brasileiras, o seu conteúdo era inovador: o interesse nacional devia ser privilegiado, e isso significava a necessidade de o Brasil se desvincular da alçada portuguesa na definição da política externa para com África, que lhe permitia o acesso a matérias-primas e mercados de vários países africanos. Dezassete países africanos votaram, em 1973, uma declaração que identificava seis Estados (entre os quais Brasil) a serem submetidos a sanções económicas e diplomáticas, caso estes não tivessem retirado o apoio ao regime sul-africano do apartheid (Selcher, 1976). Além disso, o presidente Geisel, sob solicitação de Marcelo Caetano, teve de adiar o investimento da Petrobrás na exploração do petróleo de Angola, que ele próprio, na qualidade de presidente daquela empresa pública, tinha decidido levar a cabo em 1968 (Selcher, 1976). Entretanto, o “corte” com Portugal, devido a uma série de interesses e visões políticas comuns e dificilmente separáveis, nunca ocorreu de forma definitiva, pelo menos antes da queda de Marcelo Caetano.

Imediatamente após a Revolução dos Cravos, o governo de Geisel teve “um momento de ousadia inédita” relativamente à política africana, apoiando Angola, aliado de Cuba e da URSS, e condenando finalmente o apartheid sul-africano (Oliveira & Pieri, 2016, p. 167), que porém continuou a ser o primeiro parceiro comercial do Brasil em África (Schlickman, 2017). O Brasil foi também o primeiro país a reconhecer o governo do general Spínola, procurando, embora de forma mais uma vez ambígua, espaços diplomáticos para adquirir um papel de mediador entre Portugal e as colónias, ainda em conflito militar. Contudo, Mário Soares, o novo ministro dos Negócios Estrangeiros, resolveu negociar diretamente com os movimentos de libertação o processo de independência com as ex-colónias. Esse desenlace deveu-se à proximidade política de Mário Soares para com tais movimentos, à falta de confiança dos vários líderes africanos para com o novo e tardio posicionamento anticolonialista brasileiro, tal como individualidades como Agostinho Neto, Pedro Pires e o próprio Joaquim Chissano claramente afirmaram na altura (Selcher, 1976).

A estratégia do “pragmatismo responsável” levou ao imediato reconhecimento dos novos Estados africanos lusófonos por parte do Brasil, com grande deceção de Spínola, que esperava um posicionamento de Brasil coerente com a história das relações diplomáticas com Lisboa.

Assim sendo, Guiné-Bissau foi reconhecida como Estado independente, e mesma coisa aconteceu com Angola, cujo reconhecimento ocorreu no mesmo dia da declaração da independência (Selcher, 1976). A decisão de criar embaixadas em todos os PALOP foi tomada pelo presidente brasileiro com um decreto de 31 de dezembro de 1975.

O relacionamento mais complicado que o Brasil teve que enfrentar foi com Moçambique, onde a Frelimo tinha o domínio do país e onde, diferentemente da situação angolana, não havia fações a lutarem abertamente para assumir o governo do novo Estado.

Os únicos dois brasileiros presentes na cerimónia de proclamação da independência de Moçambique eram Luís Carlos Prestes e Miguel Arraes, dois membros exilados do Partido Comunista Brasileiro, convidados pessoalmente por Samora Machel (Santos, 2014).

Apesar de ter havido uma tentativa de aproximação por parte do governo brasileiro liderado pelo general Geisel pouco antes da declaração da independência (em dezembro de 1974, em Dar-es-Salam, se encontraram Ítalo Zappa, Frank Mesquita e Sérgio Weguelin Vieira do lado brasileiro; Samora Machel, Jorge Rebelo e Marcelino dos Santos do lado moçambicano), Samora Machel manteve-se irremovível em recusar a presença institucional brasileira no dia 25 de junho de 1975 (Santos, 2014).

Com efeito, apenas a 6 de novembro de 1975 é que o Brasil conseguiu estabelecer relações diplomáticas com Moçambique, apesar das muitas pressões neste sentido feitas junto do governo de transição, em 1974; e apenas a 1 de março de 1976 é que abriu a sua embaixada em Maputo. Moçambique só fará o mesmo em Brasília em 1998.

Assim, a diplomacia que mais funcionou nas relações bilaterais entre os dois países, nos primeiros anos da independência moçambicana, foi a de tipo político, muito mais do que a institucional. Os “camaradas” brasileiros, profissionalmente qualificados, entre os quais os dois acima citados, presentes na cerimónia para celebração da independência, foram atraídos pelo projeto marxista de Samora Machel e, graças essencialmente ao comunista Miguel Arraes, que tinha convivido com membros da Frelimo em Argel, foi tomada a iniciativa de chamar vários refugiados políticos para Moçambique, entre os quais Luís Carlos Prestes, Leonel Brizola e o grupo dos Cadernos do Terceiro Mundo[3] (Cabaço, 2011). Entretanto, Sakamoto, que se juntou à Frelimo em 1973 na Tanzânia, viria a ser o primeiro e o abre-pista para que vários outros compatriotas seus se deslocassem a Moçambique após a independência (Azevedo, 2012). Seria depois de 1975 que os contactos entre a Frelimo e o Partido Comunista Brasileiro (que geria muitos dos seus membros no exílio) sofreram uma intensificação, por intermédio essencialmente de Luís Carlos Prestes, que estava a residir em Moscovo, o que irá levar a uma entrada significativa de brasileiros “cooperantes da revolução” (Azevedo, 2012, p. 468).

Com Figueiredo, o último expoente do regime militar, que governou de 1979 a 1985, as embaixadas brasileiras em África passaram de 17 (em 1974) para 21 (em 1984): foi ele o primeiro presidente brasileiro a visitar o continente, reconhecendo a SWAPO como legítima força nacional da Namíbia (Oliveira & Pieri, 2016). E foi na altura da presidência Figueiredo que Moçambique assinou o primeiro acordo de cooperação com Brasil, a 15 de setembro de 1981, promulgado a 9 de junho de 1984.

Este acordo, conhecido como Acordo Geral de Cooperação, pretende fomentar a cooperação bilateral nos sectores económico, científico, técnico e cultural, incluindo, nas ações práticas, a formação do pessoal. Uma comissão mista permanente terá de acompanhar e dinamizar o acordo. Trata-se de um documento bastante genérico, mas que constitui o instrumento fundamental em termos de identificação dos eixos que irão orientar as relações bilaterais entre os dois países.

Nos anos que se seguiram à assinatura do acordo, a atividade de cooperação não foi muito intensa. Do lado moçambicano a guerra estava a devastar grande parte do país, ao passo que, com a redemocratização (a partir de 1985) e perante a prioridade de resolver os prementes problemas internos, o presidente Sarney não investiu nas relações diplomáticas com o continente africano. Foi com o governo de Cardoso, presidente de 1995 até 2003, que o interesse para com África adquiriu novo dinamismo. Embora privilegiando os aliados ocidentais (Estados Unidos e Europa) e a estratégia na América Latina (o Mercosul tinha sido constituído há poucos anos, em 1991), Cardoso distinguiu-se como moderador de conflitos, por exemplo em Angola, onde enviou o maior contingente militar da história brasileira para fora do país (cerca de 1200 soldados na missão UNAMEV), e em Moçambique, onde militares brasileiros compuseram a missão ONUMOZ para acompanhar o processo de paz entre Renamo e Frelimo (Seibert, 2011).

Com Cardoso, as relações bilaterais Brasil-Moçambique tornaram-se mais profundas. A primeira visita de Estado a Moçambique feita por um presidente brasileiro foi a de Fernando Henrique Cardoso a Maputo em 2000, por ocasião da III Conferência de Chefes de Estado e de Governo da CPLP. No ano seguinte Chissano retribuiu a visita. Foi nesta circunstância que as duas partes assinaram importantes protocolos bilaterais no âmbito da saúde, educação, políticas sociais e segurança pública. Dois tipos de acordos foram rubricados: programas específicos e memorandos de entendimento, chamados de “protocolos de intenções”.

Pertencem ao primeiro tipo, o mais operacional, o Ajuste Complementar ao Acordo Geral de Cooperação no sector educacional, com a implementação do programa “Alfabetização Solidária em Moçambique”. Tal programa visava difundir a alfabetização em Moçambique, quer nos jovens, quer nos adultos, no interior do Plano Estratégico da Educação de Moçambique, tendo como objetivo alfabetizar um milhão de jovens e adultos até 2003. Também nos acordos operacionais deve ser incluído o Ajuste Complementar no âmbito educacional, com o programa “Bolsa-Escola”, que visava colocar todas as crianças em idade escolar a estudar em escolas públicas até 2005, com a disponibilização de 100 bolsas, ao longo do primeiro ano, para que as famílias mantivessem seus filhos na escola. O terceiro Ajuste Complementar refere-se ao “Apoio ao Programa Nacional de Controle às DTS/SIDA”, cuja finalidade era apoiar o esforço de Moçambique na luta contra SIDA e outras doenças sexualmente transmissíveis. Brasil tinha, como sua tarefa fundamental, enviar especialistas a Moçambique, formar quadros moçambicanos e garantir a transferência tecnológica.

Pertencem ao segundo tipo o Protocolo de Intenções relativo à cooperação técnica na área da mulher e ação social, da educação, da saúde (com enfoque especial na saúde da mulher, da criança e do adolescente), na formação de quadros superiores do sector, na implementação do ensino à distância para formação contínua dos profissionais da saúde, HIV/SIDA, com transferências tecnológicas na produção de antirretrovirais. Pela primeira vez, é assinado um Protocolo de Intenções também na área da segurança pública, envolvendo o Ministério do Interior dos dois países. O objetivo primário era a troca de informações entre as partes na prevenção e combate ao crime, formação do pessoal, pesquisa, desenvolvimento científico e estudos organizacionais.

Entretanto, apesar da importância assinalável dos acordos acima recordados, a verdadeira viragem nas relações bilaterais Brasil-Moçambique registou-se com a presidência Lula, a partir de 2003. No ponto a seguir procurar-se-á descrever sucintamente os âmbitos fundamentais das relações bilaterais Brasil-Moçambique de 2003 até 2010.

As relações bilaterais Brasil-Moçambique: 2003-2010

“A África é uma prioridade na nossa política externa e é importante que retomemos esse contacto”, realçou o embaixador Pedro Motta, diretor da Divisão da África do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil, em jeito de apresentação da primeira visita do presidente Lula a África (Bacoccina, 2003). A visita foi uma verdadeira peregrinação de Lula pela África subsariana: primeiro São Tomé e Príncipe, a seguir Angola, Namíbia, Moçambique e, por fim, África do Sul. Um verdadeiro périplo, através do qual é possível perceber as intenções de Lula relativamente ao relacionamento com África, desde o início da sua presidência. Trata-se de uma mistura de ideologia política, interesses económicos, solidariedade social, fortalecimento de laços históricos e culturais, bem representados desde a primeira visita africana de Lula.

Em São Tomé inaugura a embaixada brasileira, levando um projeto da Agência Nacional de Petróleo para ajudar esta antiga colónia portuguesa na melhor gestão do petróleo recém-descoberto. Em Angola o foco é nos negócios e no petróleo; ali, o Banco do Brasil segue Lula para inaugurar o seu primeiro escritório em Luanda, ao passo que o programa PROEX é reforçado: tal programa – iniciado nos anos oitenta e que Lula relança no início da sua presidência – permite a Angola pagar parte das importações de produtos brasileiros com as suas reservas de petróleo. Entretanto, o presidente brasileiro vai além das questões económicas: em Luanda, nomeadamente na Assembleia Nacional, Lula pronuncia um discurso muito ideológico, centrado na “dívida moral” de Brasil a Angola, que forneceu grande parte dos antigos escravos africanos às fazendas brasileiras, visando despertar a simpatia do mundo político e da sociedade daquele país atlântico. Em Moçambique, Lula entrega medicamentos antirretrovirais para tratar 100 doentes de SIDA ao longo de um ano. Com a Namíbia, Brasil já tinha um projeto de cooperação bilateral na área da defesa do mar, sendo o Brasil responsável pela formação da marinha namibiana. Finalmente, na África do Sul, o assunto mais abordado foi de cunho político: juntamente com a Índia e África do Sul formam o G-3, uma organização fundamental para implementar uma estratégia de cooperação Sul-Sul e um polo de desenvolvimento centrado nas novas potências do hemisfério meridional.

Só no primeiro mandato, Lula realizou quatro deslocações ao continente africano, visitando um total de 15 países. Foram abertas 10 novas embaixadas, perdoando parte da dívida a muitos países (entre os quais Moçambique, como se verá mais à frente). A “redescoberta” africana do Brasil por intermédio da política de Lula despertou uma simpatia enorme por parte de observadores e académicos, sobretudo esquerdistas. A abordagem de Lula era vista como algo de diferente e melhor em relação à usual forma de cooperação chinesa ou americana (e, no geral, ocidental):

Se a penetração chinesa e, mais recentemente, indiana visa a objectivos económicos […] e a recente presença norte-americana se preocupa com questões geopolíticas e de segurança, a cooperação com o Brasil, ao lado de inegáveis interesses materiais, traz elementos novos (Visentini & Pereira, s.d., p. 5).

Tais novidades consistiriam no combate à pobreza e às epidemias, na difusão de tecnologias no Terceiro Mundo, na edificação dum sistema geopolítico multilateral e centrado numa política de paz, tal como demonstra a iniciativa G-3 e a primeira cúpula África-América do Sul, realizada em 2006 em Abuja (Nigéria), com grande projeção internacional. Quanto a Moçambique, Lula visitou este país por três vezes, em 2003, em 2008 e em 2010.

Fatores internos também teriam impelido a que Lula se comprometesse com uma política africana engajada e abrangente: o primeiro seria a pressão dos 76 milhões (cerca de 40%) de afrodescendentes presentes no Brasil (Seibert, 2011); o segundo diz respeito às consideráveis necessidades de internacionalização do capital brasileiro, nomeadamente de empresas mineradoras e de construção, possibilitando acesso a matérias-primas, acima de tudo gás e petróleo. O resultado mais visível, ao nível diplomático, seria a abertura de 34 novas embaixadas e seis novos centros culturais em países africanos (estes últimos concentrados nos PALOP) (Seibert, 2011).

Outros observadores repararam, desde a primeira viagem africana de Lula, que nada de significativamente novo teria sido abordado, tornando patente a contradição entre os princípios éticos proclamados aquando da eleição de Lula à presidência brasileira e a prática do seu compromisso para com o continente africano.

Por exemplo, se sublinha que ainda persiste a opção “seletiva” que tinha caracterizado a política africana do Brasil ao longo da década de 1990, privilegiando os PALOP e a África Austral, e nomeadamente a África do Sul, com o acréscimo da Nigéria; mas sobretudo a política africana de Lula continua privilegiando as trocas comerciais e a penetração do capital brasileiro naqueles países, chegando-se a falar de uma “estratégia ofensiva de promoção dos interesses das empresas brasileiras em países do Sul” (Döpcke, 2011, p. 29). Houve quem acentuasse a força muito mais “gestual” da diplomacia africana de Lula, com “abuso do protagonismo e o excesso da glorificação personalista” e não tanto a respetiva eficácia (Ricupero, 2010, p. 36), cuja finalidade principal seria levar o Brasil a conseguir um posto permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.

Entretanto, os números quer dos IDE, quer das trocas comerciais entre os dois países falam claro: em termos gerais, o Banco de Desenvolvimento (BNDES) tem aprovado, desde 2007, 29 projetos em África, correspondentes a um valor de USD 742 milhões, sendo que 6 das 20 top-companies brasileiras têm investido, ao longo da presidência Lula, neste continente. Em Moçambique, os IDE brasileiros crescem de forma exponencial até aproximadamente 2014: de acordo com dados do Banco de Moçambique, em 2014 o volume de IDE era de cerca de USD 5 mil milhões, com um crescimento de cerca de 1000% relativamente a 2002. Entretanto, entre 2013 e 2014 houve um abrandamento, causado essencialmente pela diminuição do preço do carvão no mercado internacional e consequente retração da mineradora Vale, na província de Tete.

O mesmo se verifica com as trocas comerciais bilaterais entre os dois países. Entre 2008 e 2014, estas aumentaram em 129%, chegando a um valor de 74 milhões de dólares. Em 2014, o volume destas trocas alcançou os 146,4 milhões de dólares (USD), mas com o Brasil a exportar para Moçambique USD 112,3 milhões, e Moçambique a exportar para o Brasil bens correspondentes a USD 24,1 milhões, a larga maioria dos quais em matérias-primas, tais como tabaco, algodão, madeira, peixe e alumínio. Nos anos mais recentes, o volume das trocas comerciais tem aumentado progressiva e constantemente.

Restam poucas dúvidas acerca dos resultados, pelo menos materiais, do compromisso de Lula para com Moçambique. O relacionamento com Moçambique na altura de Lula não foi isento de críticas, como demonstrado pela ação da mineradora Vale em Moatize; ou pelas resistências de camponeses potencialmente afetados pelo programa ProSavana. Assim, é possível concluir que a estratégia de Lula se centrou na evocação da solidariedade para com o “Sul global”, no paternalismo, em fortes interesses comerciais e empresariais brasileiros, assim como no escasso conhecimento do “terreno” e num certo populismo de cunho personalístico e retórico. O perdão de quase toda a dívida bilateral moçambicana resume eficazmente esta nova conceção: 315 milhões de dólares de um total de 330 milhões foram cancelados por parte do Brasil, aliviando a situação financeira de Moçambique.

Moçambique tem sido o primeiro país, em termos de Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) brasileira, entre os cerca de 80 abrangidos pela ação da Agência Brasileira de Cooperação. Durante a presidência Lula foram assinados os seguintes acordos: Acordos para o Desenvolvimento do Sector Agropecuário; Acordo de Cooperação Técnica no âmbito sanitário e fitossanitário (em 2003); Acordo para o Reforço das Ações para Alimentação e Nutrição, com o objetivo de formar técnicos moçambicanos para melhorar geneticamente árvores de fruta e produtos hortícolas (cerca de USD 200.000) (em 2007); Projeto ProSavana (com a Cooperação Japonesa); Acordo para o Projeto de Suporte Técnico da Plataforma de Inovação Agropecuária de Moçambique (USD 12.188.802) (em 2009). Finalmente, ao longo da presidência de Dilma Rousseff foi assinado, em Maputo, um acordo bilateral para intensificar as relações comerciais entre os dois países, criando um grupo de trabalho bilateral para identificar as melhores oportunidades de negócio.

Os dois sectores em que a cooperação bilateral Brasil-Moçambique tem sido mais desenvolvida são a saúde e a agricultura. No primeiro caso, o Itamaraty apoiou-se ao Ministério da Saúde para levar a cabo ações que visassem a transferência de políticas públicas que no Brasil tinham registado grandes sucessos e, acima de tudo, a luta contra o HIV/SIDA (Milani & Lopes, 2014). Assim, foi envolvida a fundação brasileira Fiocruz para preparar o plano estratégico do Instituto Nacional de Saúde (INS) e abrir um mestrado em Ciências da Saúde em Moçambique.

A construção da fábrica de antirretrovirais tem sido, todavia, o elemento mais destacado da cooperação no âmbito da saúde entre os dois países, quer devido ao valor desembolsado, quer sobretudo à filosofia de fundo que animou a iniciativa: fármacos gratuitos para todos os doentes de SIDA, num país onde esta doença é a primeira causa de morte entre os adultos e onde mais de 13% da população total resulta infetada por esta pandemia (CNCS, 2015); quer, finalmente, aos próprios resultados. O Brasil contribuiu com 23 milhões de dólares, ao passo que os 4,5 remanescentes foram desembolsados pela Vale, no quadro das ações de responsabilidade social corporativa (Silva, 2012). O então vice-presidente do Brasil, Michel Temer, esteve presente na altura da inauguração da fábrica. O programa foi o maior sucesso da cooperação brasileira com Moçambique ao longo da presidência Lula: a Sociedade Moçambicana de Medicamentos é a única empresa (pública) africana que consegue produzir antirretrovirais de forma autónoma no continente, uma vez que a Fiocruz fez apenas um trabalho de supervisão e de transferência técnica (Rossi, 2013). Além disso, foram implementados programas para o controlo e a prevenção do cancro (intervenção de cerca de USD 400.000), para promover a saúde oral (com orçamento de cerca de USD 330.000), e para o fortalecimento do organismo de controlo do sector farmacêutico moçambicano, o ANVISA, orçamentado em cerca de USD 500.000 (Rossi, 2013).

No âmbito agrícola, o projeto ProSavana destacou-se quer pelos valores financeiros envolvidos, quer pelo potencial impacto social. A filosofia do projeto assentava na exportação, para Moçambique, dos alegados sucessos da agricultura tropical brasileira, e consequente transferência tecnológica para um território de cerca de 14 milhões de hectares ao longo do Corredor de Nacala (norte de Moçambique). O programa inspirou-se no Proceder, um programa de cooperação Japão-Brasil no Cerrado brasileiro, que durou cerca de 30 anos. O ProSavana recebeu muitas críticas, essencialmente por parte da União Nacional dos Camponeses (UNAC), da ONG Justiça Ambiental, do Fórum Mulher, que vieram a compor o Movimento Não ao ProSavana, reunindo várias associações locais. O programa foi criticado pela abordagem top-down, pela falta de envolvimento dos supostos beneficiários, pelo receio de usurpação de terras e pelo risco de danos ambientais que poderia provocar (Dúran & Chichava, 2013). O facto também de incentivar a monocultura e o agronegócio tem sido um dos principais alvos das críticas das organizações da sociedade civil (Almeida, 2016). As enormes críticas da sociedade civil e a retirada do investimento japonês estiveram na origem da suspensão do ProSavana, pelo menos nos moldes como foi inicialmente apresentado.

Se a transferência tecnológica representa provavelmente o eixo central da política de cooperação brasileira na altura da presidência Lula, o sector da defesa também esteve envolvido nesta estratégia, embora com características peculiares, que aqui iremos tentar elucidar.

Cooperação Brasil-Moçambique na área da defesa

Com uma longa tradição colonial, Moçambique celebrou, em 2015, o 40º aniversário da sua independência, pelo que constitui um país com um passado recente no sector da defesa. Após a independência e envolvido no processo de luta contra o apartheid da África do Sul e da Rodésia, Moçambique obteve apoio militar de países de Leste, com maior enfoque para a URSS (Chongo & João, 2015).

A URSS foi um grande parceiro de Moçambique, pois no período pós-independência a escolha pelas políticas marxistas-leninistas empurraram Moçambique para um lugar no quadro internacional que o distanciava do polo ocidental.

Um novo cenário mundial levou ao abrandamento da relação de cooperação entre Moçambique e os antigos países socialistas do bloco soviético. Ainda antes da queda oficial do bloco soviético, Samora Machel encontrou, em 1985, o presidente americano, Ronald Reagan, à procura de uma alternativa viável ao modelo marxista aplicado a Moçambique que já estava a dar evidentes sinais de crise. O novo cenário mundial que se deu depois de 1989 obrigou países como Moçambique a diversificar parcerias ou cooperações com base já não na ideologia, mas sim no pragmatismo.

Com a China a assumir um lugar preponderante na cooperação militar com Moçambique já desde os anos noventa, era necessário para a formação técnica e capacitação de quadros que outros parceiros surgissem e que tivessem um perfil adequado. Já no fim do mandato de Chissano, o Brasil representa um parceiro que responde a estes requisitos. Os laços de cooperação foram desenvolvidos ainda mais sob a presidência Guebuza, quase que paralela à de Lula no Brasil: recíprocos interesses e afinidades conseguiram fazer com que esta cooperação bilateral se tornasse cada vez mais viável e estratégica.

No caso específico, as figuras proeminentes desses dois países, Lula e Guebuza, ainda mantinham referências ideológicas de cunho esquerdista, mais explícitas do lado brasileiro, e muito “instrumentais” do lado moçambicano, essencialmente relacionadas com a exaltação da figura de Samora Machel e da sua postura ética (Samora é um líder, 2014). O relacionamento bilateral levou a algumas ações diplomáticas invulgares, tais como a doação de três aeronaves Embraer Tucano-T27 ao Estado moçambicano, sem a aprovação do Senado brasileiro e sem nenhuma contrapartida oficial.

Um dos temas colocados no ato da assinatura do AGP foi a questão do efetivo das novas Forças Armadas (FADM), que resultavam da junção dos combatentes das forças governamentais e das forças da Renamo, que deviam atingir os 30.000 homens (AR, 1992). Estas novas exigências impostas pelos acordos acarretavam que fosse assumida uma postura bastante flexível no âmbito da formação e modernização deste novo exército, e foi com intuito de formação e capacitação de quadros que surge – embora não com natureza de exclusividade – a cooperação na área da defesa entre Moçambique e Brasil (Seabra, 2014).

Moçambique surge como um dos países de África que, entre 2003-2010, assinou acordos de cooperação no sector da defesa com o Brasil, nomeadamente: março de 2009 - primeiro acordo de cooperação bilateral na defesa entre os dois países; 2014 - encontro em Maputo do ministro da Defesa brasileiro, Celso Amorim, com Agostinho Mondlane, ministro da Defesa de Moçambique, com acordo específico sobre formação com vista à manutenção da paz, exercitações militares conjuntas, formação de pilotos militares no Brasil, participação de instrutores brasileiros junto do Instituto Superior de Defesa “Tenente-General Armando Guebuza”. O acordo foi estendido à gestão dos recursos humanos, ao apoio ao agrupamento de escolas da marinha de guerra moçambicana, com a supracitada oferta de três aeronaves Tucano destinadas às Forças Aéreas de Moçambique e com a acreditação do adido militar moçambicano no Brasil e vice-versa (Área da defesa, 2014).

Na palestra proferida no Instituto Superior de Estudos de Defesa em 2014 em Maputo, o então ministro da Defesa do Brasil Celso Amorim avaliou a cooperação entre Moçambique e Brasil como fruto de laços históricos, da localização de ambos os países no Hemisfério Sul, destacando as comuns aspirações rumo ao desenvolvimento e a uma paz efetiva ao nível mundial, com acesso a energia, alimentação e luta contra a pobreza como elementos de recíproco interesse, juntamente com as demais questões mais remotas, tais como os recursos naturais.

Entretanto Moçambique e Brasil são membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), que tem numa das áreas de cooperação entre os países integrantes a área da defesa, com vista à salvaguarda da soberania de cada país membro (principalmente de conflitos internos para os países da África). No quadro desta organização são realizados, constantemente, intercâmbios a nível do sector da defesa, como é o caso do Exercício Felino, que consiste na preparação de uma força conjunta militar no âmbito da CPLP, para missões de paz e segurança internacionais; da solução de conflitos regionais; do desenvolvimento de capacidades em pessoal (capacitação de militares) e material de defesa (Fernandes, 2012).

Instrução e capacitação de militares

Diferentemente das cooperações históricas ao nível da defesa que Moçambique manteve, principalmente com os países de cunho socialista, com o Brasil a cooperação militar é especificamente direcionada para a formação e capacitação técnica de quadros. Embora se tenha intensificado desde 2009, Moçambique e Brasil já tinham assinado acordos de cooperação nesta área antes dos AGP (1992). Segundo a ABC (2010) no âmbito do acordo técnico entre Brasil e Moçambique, firmado em 15 de setembro de 1981 e promulgado em 9 de julho de 1984, os dois países tinham um acordo de “capacitação em técnicas militares de oficiais moçambicanos no exército brasileiro”, que visava estimular o conhecimento militar entre o governo do Brasil e de Moçambique, pela capacitação técnica de oficiais. Esta formação tinha como local de execução a Academia Militar de Agulhas Negras, com o custeio dos cursos oferecidos pela mesma instituição, e existiam oito cadetes sendo formados.

Em 2008, o Ministério da Defesa de Moçambique, chefiado pelo atual presidente Filipe Nyusi, solicitou um pedido de cooperação das FADM com os três ramos do Exército brasileiro (Marinha, Exército e Força Aérea) em que a maior prioridade e linearidade era a formação em diversos níveis de quadros dos vários ramos.

Este pedido foi respondido em 2009 com a assinatura de acordos de cooperação na área da defesa entre Brasil e Moçambique. Conforme o Senado Federal (2011), em 2009 os ministros da Defesa de ambos países (Filipe Nyusi e Nelson Jobin) aprovaram o texto do acordo entre os dois governos no domínio da defesa que tinha como pontos principais:

Artigo 1: A cooperação nas áreas de pesquisa e desenvolvimento, apoio logístico, aquisição de produtos e serviços de defesa, partilha de experiência no manuseio e uso de equipamento militar, bem como no cumprimento de missões internacionais, promoção de ações conjuntas de treinamento e instrução militar, exercícios militares combinados bem como correspondente troca de informação, colaboração em assuntos relacionados a equipamentos e sistemas militares assim como cooperar em outras áreas da defesa.

Artigo 2: Visitas mútuas de delegações de alto nível de ambos países a entidades civis e militares; reuniões entre as instituições de defesa equivalentes; intercâmbio de instrutores e estudantes de instituições militares; participação em cursos, debates, estágios, seminários, conferências e simpósios em entidades militares bem como civis de interesse da defesa e de comum acordo entre as partes; assim como cooperar em outras áreas no domínio da defesa que possam ser de interesse comum.

Investimento e formação

Ademais, dos investimentos feitos pelo Brasil em África principalmente na área da defesa, Moçambique surge numa posição bastante privilegiada, pois entre 2003 e 2013, foi o país para o qual se direcionou maior apoio, conforme indicam os dados abaixo.

No ramo da Força Aérea, Moçambique teve o maior número de formandos no Brasil, correspondente a 24 militares, seguido de Angola com 23 militares. No concernente à instrução de militares em instituições da Marinha entre 2003 e 2013, Moçambique teve 18 militares (Seabra, 2014).

Numa abordagem financeira, desde 2009 o Ministério da Defesa e a ABC colaboraram em uma nova supervisão dos programas de treinamento militar estrangeiro, eventualmente formalizada em 2010 entre a ABC e o Departamento de Administração Interna do Ministério da Defesa. Mais de USD 1,5 milhões foram desembolsados entre 2009 e 2014, sendo Moçambique o maior destinatário desses programas com gastos em torno dos USD 803.010,65, seguido por Angola.

Por outro lado, olhando para as despesas militares moçambicanas, é possível reparar que elas tocam o seu topo em meados da década de 1980, quando atingem cerca de 13% do PIB do país. Trata-se de uma altura em que Moçambique estava mergulhado numa guerra civil, pelo que o armamento absorvia grande parte do Orçamento de Estado. Esta percentagem tende a descer, para encontrar outro pico em 1994 (incidência de cerca de 9% relativamente ao PIB nacional), e daí descer de forma repentina e definitiva nos anos seguintes (Brüch, Fitzgerald & Grigsby, 2000).

Entretanto, com a governação de Guebuza, as despesas com o sector da defesa sofreram uma aceleração notável, espelho duma estratégia baseada no reforço da ala militar do país, em resultado do ressurgimento do conflito com a Renamo. Por exemplo, no período 2008-2011, o Centro de Integridade Pública (CIP) assinala como “As extensas alterações orçamentais que o executivo realiza no decurso do exercício tendem a favorecer os órgãos de soberania, nomeadamente a Presidência da República, o Ministério da Defesa Nacional e o Exército e a Polícia em relação aos restantes organismos”, em detrimento das despesas prioritárias (saúde e educação) (CIP, 2012, p. 2). Traduzido em termos práticos, este cenário se traduziu, para o biénio 2010-2011, numa atualização da despesa inicial prevista para a Polícia da República de Moçambique (PRM) de 24,4%, para o Ministério do Interior no seu todo (de que a PRM também depende) de 17,2% e para a Casa Militar (com orçamento autónomo) de 16,4% (CIP, 2012, p. 21).

A tendência de reforçar a parte da defesa no Orçamento Geral do Estado tem continuado com o novo governo, presidido por Filipe Nyusi, sinal inequívoco de que tais despesas foram julgadas necessárias, considerado o clima de guerra que ainda se vivia no país. Uma tal propensão manifesta-se também no Orçamento Geral do Estado de 2017, em que, apesar de contar com o retorno da paz, aumentaram os gastos com o sector militar, com o crescimento de mais de 200 milhões de meticais para as FADM (Caldeira, 2016).

Tal estratégia de médio prazo elaborada ao longo da governação de Guebuza e que continua até hoje com a presidência de Nyusi impeliu Moçambique a rubricar acordos e procurar parceiros cada vez mais credíveis e sólidos na área militar.

Após a entrada de Guebuza no poder, um dado bastante significativo na corrida pela formação e modernização das FADM foi a abertura de instituições de formação militar a diversos níveis de conhecimentos técnicos e científicos. A Academia Militar “Marechal Samora Machel” começou o seu processo de instalação mediante o Decreto n.º 62/2003 de 24 de dezembro e iniciou o funcionamento em 2005, tendo como sua principal vocação a formação de oficiais com nível técnico superior. Em 2008, abriu a Escola de Sargentos das Forças Armadas “Alberto Chipande”. Em 2012 assistiu-se à abertura do Instituto Superior de Estudos de Defesa “Tenente-General Armando Emílio Guebuza”, cuja fase preparatória teve início em 2008 com o Despacho n.º 418/MDN/2008. Este Instituto – que teve a assessoria da cooperação portuguesa – forma oficiais ao mais alto nível, mediante cursos de pós-graduação. Os três cursos principais são os de Altos Comandos, de Estado-Maior Conjunto e de Promoção a Oficial Superior.

As instituições acima mencionadas representam indícios da procura de apetrechar as fileiras do exército moçambicano de quadros altamente qualificados e com conhecimentos profundos da realidade do sistema de defesa nacional.

Equipamentos e material

Durante o período anterior ao AGP e, principalmente, antes da queda do muro de Berlim, Moçambique tinha a URSS como principal fornecedor de equipamento e material militar, assim como outros países do bloco de Leste (UNESCO, 2010). Moçambique dispunha de vasto material bélico e em quantidades significativas (basicamente nos ramos do Exército e da Força Aérea).

Após a assinatura do AGP esse material ficou obsoleto, devido ao desuso ou a questões de mau armazenamento e conservação, conduzindo a grandes perdas da maquinaria militar de que o exército moçambicano dispunha. Esta situação lesou de forma drástica o ramo da Força Aérea, que viu a sua frota de aeronaves (caça, transporte e helicópteros) parqueada e entrando em corrosão e degradação.

Com a entrada de Guebuza no poder, um novo cenário começou a se verificar no seio da defesa moçambicana, com exemplo para a recuperação de material obsoleto acima referenciado que pudesse ainda ser útil. Porém, pelo período longo que este material ficou sem ter manutenção, ficava difícil trazê-lo à operacionalidade de outrora.

É com o intuito de reaver o potencial bélico do exército moçambicano para o cumprimento dos desafios do sector da defesa no cenário atual, que foram ativados esforços no intuito de reapetrechar os ramos das FADM (Exército e Força Aérea), e também abranger o ramo da Marinha, que na altura da guerra civil não dispunha de investimentos, mas que hoje representa um ramo vital devido à sua influência não só na questão de soberania e integridade territorial, mas também na esfera económica. A proteção da costa contra as incursões dos piratas sobretudo somalis constitui, hoje, uma das prioridades na defesa estratégica do território nacional, considerada a importância dos investimentos no sector do gás, sobretudo offshore no norte do país.

Foi no interior desta política de revitalização das FADM que o Brasil se tornou parceiro privilegiado também na área do fornecimento de novo equipamento.

Por exemplo, no período da presidência Rousseff houve vontade quase consumada de doação de três aeronaves militares de treinamento Embraer Tucano-T2 para o Estado moçambicano (Seabra, 2014). Entretanto este processo teve o seu impasse na ilegitimidade do mesmo, agravado pelo afastamento da presidente Dilma Rousseff em 2016 e consequente subida ao cargo presidencial de Michel Temer, que tratou de anular o processo tendente a estas doações (Caram, 2017).

Esta tentativa de doações poderia ter representado um passo significativo na aproximação entre Brasil e Moçambique na aquisição de material da Aviação e formação de pessoal aeronáutico, visto que seria necessário um intercâmbio contínuo no que concerne à atualização e manutenção.

Conclusões

O sector da defesa representa um dos mais sensíveis e menos conhecidos em qualquer país do mundo. Nos Estados onde a democracia é incipiente, como na maioria dos africanos, incluindo Moçambique, esta regra é ainda mais válida, sobretudo se o risco de um retorno à guerra civil for significativo. Entretanto, este risco não é o único que faz com que um investimento na defesa e uma cada vez mais profunda aproximação com os parceiros que dizem respeito a este sector constituam elementos estratégicos da política nacional. No caso moçambicano, além da ameaça constante representada pela Renamo, existem outros fatores, tais como as manifestações populares violentas – particularmente em 2008 e 2010 – e sobretudo a nova ameaça representada pelo terrorismo islâmico no norte do país, que empurram para o fortalecimento do âmbito militar.

Partindo dessas bases, o presente artigo quis procurar responder a algumas questões de fundo, orientadas, por um lado, para um aprofundamento inerente às políticas de defesa de Moçambique e, por outro, para o tipo de cooperação que neste nevrálgico sector Maputo tem desenvolvido com um parceiro novo: o Brasil.

Mediante um pequeno historial da cooperação brasileira com África ficou claro que o advento de Lula à presidência brasileira constituiu um marco importante da política externa e de cooperação brasileira, incluindo o continente africano nas suas prioridades, sobretudo os PALOP. Entre eles, Moçambique recebeu uma atenção especial, devido também à conjuntura política favorável: com efeito, a quase paralela presidência de Guebuza face à de Lula facilitou sobremaneira o relacionamento de cooperação Sul-Sul entre os dois países, concentrando-se em três áreas fulcrais: saúde, agricultura e defesa. Um tal relacionamento não se limitou à cooperação em termos de APD, mas trouxe também investimentos diretos do grande capital brasileiro no território moçambicano, como por exemplo a Vale ou a Odebrecht.

A ação brasileira na área da defesa em Moçambique concentrou-se essencialmente na formação de quadros e, em pequena parte, no fornecimento de equipamento militar. Em termos políticos, a conclusão que pode ser tirada – e que constitui uma hipótese final deste trabalho que mereceria estudos ulteriores – assenta no conceito de “convergência ambígua” de cunho político. Por um lado, Guebuza precisava de incrementar a capacidade militar dos seus quadros, uma vez que a sua governação foi centrada no controlo cada vez maior dos “opositores” e, nos últimos anos, numa nova tensão político-militar com a Renamo; por outro, Lula considerava Guebuza (e a Frelimo) como amigos históricos, que deviam ser ajudados no seu esforço de limitar as tentativas de desestabilização levadas a cabo pela Renamo.

A possível ambiguidade reside na seguinte inquietação: será que Lula tinha plena consciência do desenho que visava restringir a esfera pública moçambicana e as liberdades fundamentais por parte de Guebuza, a que a cooperação brasileira no âmbito da defesa contribuía, e que contrariava o discurso de emancipação democrática global que o próprio Lula queria promover no cenário internacional?

Ou não será que o desenho global de Lula a respeito das relações com África e Moçambique procurava tornar coerentes os ideais solidários pelos quais o seu eleitorado de afrodescendentes se pautava e os interesses económicos nacionais?

Qualquer que seja a resposta a esta questão, uma tal “convergência ambígua” deu, como resultado, o novo protagonismo brasileiro no seio da cooperação no sector da defesa com Moçambique, reforçando consideravelmente os laços entre os dois países.

 

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Recebido: 04 de setembro de 2017

Aceite: 08 de janeiro de 2018

 

 

Notas

[1]  Uma das maiores provas da limitação dos espaços de debate público – iniciada com a presidência de Guebuza e continuada com a de Nyusi – é dada dos vários rankings internacionais sobre liberdade de expressão. Segundo o Índice Ibrahim de Boa Governação Africana, em 2017 Moçambique continuou a sua descida começada nos anos anteriores, colocando-se no lugar 23º, somando apenas 52,2 pontos de um total de 100. Moçambique faz parte de oito países que, nos últimos cinco anos, tiveram uma deterioração acelerada deste índice, principalmente na categoria de Participação e Direitos Humanos. A mesma tendência tem sido observada pela Freedom House que, no seu relatório de 2017, aponta como prova da deterioração do clima de liberdade de expressão o conflito armado entre Renamo e Governo, o assassinato supostamente “político” de individualidades tais como Jeremias Pondeca, expoente de ponta da Renamo, assim como ataques e ameaças graves a jornalistas, como demonstram os exemplos de José Jaime Macuane, ferido a tiro nas pernas, e a invasão abusiva na casa do jornalista de uma rádio comunitária da Província de Manica, John Chekwa, por parte de desconhecidos. Na mesma senda pode ser enquadrado o assassinato, a 3 de março de 2015, do jurista franco-moçambicano Gilles Cistac, executado em pleno centro de Maputo depois de ter expressado opiniões favoráveis à proposta de províncias autónomas apresentada pela Renamo.

[2]   Itamaraty é a denominação com que é conhecido o Ministério das Relações Exteriores do Brasil.

[3]   Tratava-se de uma revista de renome internacional, originada pela necessidade, surgida no seio dos Países Não Alinhados, e nomeadamente na Conferência de Argel em 1973, de uma Nova Ordem Informativa Internacional, alternativa à de tipo capitalista. A revista foi fundada em 1974 pelos jornalistas Neiva Moreira (brasileiro), Pablo Piacentini (diretor, argentino), Júlia Constenla (também argentina, diretora da editora) e Beatriz Bissio (uruguaia). Apenas em 1980 a revista se instalará de forma estável no Rio de Janeiro.

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