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Cadernos de Estudos Africanos

Print version ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.38 Lisboa Dec. 2019  Epub June 11, 2021

 

DOSSIER

As eleições legislativas de 2018. Acerca da sobrevivência da democracia em São Tomé e Príncipe

The 2018 legislative elections. About the survival of democracy in São Tomé and Príncipe

Augusto Nascimento1 

1Centro de História da Universidade de Lisboa, Portugal, anascimento2000@gmail.com


Resumo

Este texto procura descrever e analisar o devir histórico e as contingências do sistema democrático em São Tomé e Príncipe. Em particular, pretende realçar o significado político das eleições de 7 de outubro de 2018, que se revelaram um marco da democracia no arquipélago. Este texto procura recensear pontos de reflexão sobre a sobrevivência da democracia num contexto micro-insular em África. Ao invés de equacionar a viabilidade da democracia representativa à luz de uma presumida idiossincrasia africana, avalia-se a sintonia do apriorismo da superioridade da democracia com as escolhas dos são-tomenses, frequentemente menos baseadas em princípios políticos do que, por exemplo, na adesão a homens fortes e a projetos salvíficos, tal um dos dados da cultura política prevalecente nas ilhas.

Palavras-chave: São Tomé e Príncipe; democracia; autoritarismo; eleições

Abstract

This text seeks to describe and analyze the historical development and contingencies of the democratic system in São Tomé and Príncipe. In particular, it intends to highlight the political significance of the October 7, 2018 elections, which proved to be a hallmark of democracy in the archipelago. This text aims to identify points of reflection on the survival of democracy in a micro-island context in Africa. Rather than equating the viability of representative democracy in the light of a presumed African idiosyncrasy, it assesses the superiority of democracy in the face of São Tomé’s choices, often less based on political principles, than, for example, on the adherence to big men or salvific projects, as one of the data of the prevailing political culture in the islands.

Keywords: São Tomé and Príncipe; democracy; authoritarianism; elections

Neste texto analisaremos sumariamente o devir histórico e as contingências do sistema democrático e, em particular, as eleições de 7 de outubro de 2018 em São Tomé e Príncipe, procurando recensear pontos de reflexão sobre a sobrevivência da democracia num contexto micro-insular em África. Ao invés de equacionar a viabilidade da democracia representativa1 à luz de uma presumida idiossincrasia africana, sopesa-se a sintonia da evolução histórica e do apriorismo da superioridade da democracia enquanto regime de governação2 com as escolhas políticas dos são-tomenses, as quais, tendo por base princípios políticos ou meras motivações de contingência ou de conjuntura, não constituem necessariamente a razão3.

Neste texto não se invoca uma noção cristalizada de insularidade ou uma suposta idiossincrasia, nem se absolutiza uma noção normativa ou estrita de democracia4, assente na realização de eleições livres e nas liberdades individuais que as possibilitam e com elas se podem fortalecer. Sopesada a história e os condicionalismos da recente evolução política no arquipélago, intenta-se uma interpretação dos resultados eleitorais de outubro de 2018 e, bem assim, da performance dos órgãos institucionais enquanto garantes da democracia formal, esteio das liberdades cívicas e do espaço de decisão política dos cidadãos.

A incerteza sobre o devir histórico não é menor por se tratar de duas pequenas ilhas. Ao arrepio da eventual suposição sobranceira relativamente à mais fácil resolução dos problemas sociais, a micro-insularidade revela-se crescentemente complexa, fruto do avolumar desses problemas, da escassez de recursos, da deliquescência das instituições e, arriscaríamos dizer, da consequente facilidade de dominação de um meio insular. Também por isso, ao invés do que erroneamente se queira inferir das votações5, não sobram razões para otimismos quanto à preservação ou ao apego à democracia, desde logo pelas inúmeras dificuldades respeitantes às necessidades mais primárias, do que resulta a inexistência de tempo político para os sucessivos governos, em especial na ausência de ondas de adesão emocional a um big man ou a políticos carismáticos.

Noutros termos, apesar do curso de palavras emblemáticas em ocasiões solenes, permanece incerta a relação entre, por um lado, traços idiossincráticos eventualmente imputáveis à micro-insularidade, forçosamente facetada pela história e, em particular, pelas contingências do pós-independência, e, por outro, a tendência de evolução política no arquipélago, cuja adesão à democracia representativa poderia estar a diminuir, menos pela aventada inadaptação dos mecanismos constitucionais do que pela incapacidade de parar o acúmulo das dificuldades das pessoas ao cabo de sucessivas governações.

Entre as dificuldades, cite-se, para lá da custosa angariação da sobrevivência, a desregulação social e os imprevisíveis óbices a qualquer esperança, a desconfiança e a acrimónia que desembocam na interiorização de visões depreciativas dos são-tomenses sobre si mesmos e na conclusão da necessidade de uma regeneração pela imposição de um certo sentido de ordem por um “pulso forte”, personificado em tempos e moldes diferentes por Pinto da Costa ou Patrice Trovoada6.

Assim, importa avaliar a evolução política pelas ações tendentes à observância e à salvaguarda da democracia e, concretamente, pelos resultados das derradeiras eleições. Diga-se, conquanto seja difícil sopesá-lo cabalmente, talvez cumpra não descartar o chamado substrato cultural7, fruto dos moldes da vida coletiva pautada pela influência de instituições passadas, por exemplo, na noção de indivíduo, disjunta da baseada em laços imprescritíveis entre as pessoas que opera noutros contextos africanos. Em todo o caso, a distinção não é clara e tal substrato, apesar de moldado pela insularidade, não deriva de uma qualquer essência insular, mas da história que em 1975 abriu as portas para uma deriva inimaginável, até para os adeptos da independência.

Embora se relativize a importância de supostas idiossincrasias, não se menoriza o peso do contexto social na corrosão das instituições e, daí, da democracia representativa. Tal corrosão - politicamente bem mais relevante do que a influência diáfana de celebrados artefactos culturais - resulta evidente na dificuldade da administração da justiça, indesmentível quando estão em juízo os mandantes e, bem assim, os seus protegidos. Os escolhos na justiça não se resumem à difícil imparcialidade no juízo de causas próximas, antes se evidenciam na perniciosa subordinação dos juízes aos poderosos e na (eventual) instrumentalização impune do aparelho judicial para pendências civis e, sobretudo, para lutas políticas8.

Em suma, a micro-insularidade há de ser histórica (cf. Nascimento, 2017) e, da democracia, consideremos a vertente, porventura redutora, conquanto não menos decisiva, da livre escolha eleitoral9. Apesar de alvitres acerca de fórmulas adaptadas ou locais de democracia, a realização regular de eleições permitiu a alternância no poder desde 1991 e revelou-se importante quando a democracia esteve ameaçada pela concentração de poder nas mãos de Patrice Trovoada na esteira da conquista da maioria absoluta de deputados em 2014, da vitória de Evaristo Carvalho em 2016 e da subversão da Constituição do país. Sem tempo nem ocasião para ativismos ou lucubrações sobre fórmulas alternativas de democracia, os são-tomenses usaram as eleições para um veredito sobre a governação numa legislatura sem entropias que não as criadas pelo próprio governo.

Os derradeiros anos demonstraram a fragilidade da democracia perante uma ofensiva política que, sem a derrogar completamente, a esvaziava de conteúdo, como o atesta o banimento de órgãos de justiça na sequência de sentenças revertidas de forma atrabiliária, apenas porque pressupostamente pouco conformes a desejos de mandantes.

Apesar de restrições, por exemplo, ao pluralismo na imprensa10, as eleições de 2018 puseram, ao menos momentaneamente, fim a uma deriva autoritária. Não se estava perante uma restauração autoritária11, que, anos depois, sobrevém à vaga (ou à condicionalidade) democrática dos anos 90 em África12, a que, embora por pouco, se antecipou o intento de democratização de São Tomé e Príncipe. Aqui, as eleições de 2018 equivaliam à ratificação, ou não, de uma deriva autoritária decerto meticulosamente gizada e bem executada13 para a dominação na terra através da divisão dos ilhéus. Podemos, pois, falar de uma deriva autoritária14, percebida como tal por muitos que a viveram e, a dado passo, tiveram medo de falar dela e, até, de a nomear.

As eleições de 2018 poderiam ter permitido perpetuar a entrementes encetada subversão do Estado de direito democrático, tornando São Tomé e Príncipe num Estado de um direito qualquer, preterível e ajustado à vontade do mandante. Uma vitória eleitoral de Patrice Trovoada teria permitido alento e tempo para a consolidação a breve trecho de uma situação quase inamovível, tal a especulação plausível em face da facilidade com que, como de um sopro, se subverteu o Estado de direito. Neste artigo, procurar-se-á descrever a recente evolução política do arquipélago, ressaltando o trajeto de atores políticos com desígnios de recorte autoritário num cenário político onde avultam, como linhas de força, a deliquescência das instituições e as pulsões da rua. Focar-se-á a tentativa de construção de uma solução autoritária por Patrice Trovoada, primeiro-ministro entre 2014 e 2018 e chefe e patrono de um partido de um homem só, tentativa interrompida por uma derrota tangencial nas eleições de outubro de 2018.

Para o propósito deste texto, a descrição densa pareceu o melhor suporte para a compreensão e a explicação históricas - as que permitem um balanço crítico - da trajetória de conquista de poder e de um modo de governação, assente, por um lado, na hábil exploração do ressentimento e do desejo de reparação da injustiça e, por outro, no aproveitamento das debilidades institucionais, as mais das vezes substituídas por dependências pessoais e pela consequente informalidade dos processos decisórios.

A deriva do São Tomé e Príncipe independente

Com uma população a rondar os 70.000 indivíduos, o arquipélago tornou-se independente em 1975. Após a independência, a pequena elite independentista15 impôs um regime de partido único de vocação socialista como a concretização de uma independência dita “verdadeira”. Tal implicava continuar uma “luta”, até então retórica, mas que, a partir daí, se prolongava na procurada emancipação de imaginárias formas de neocolonialismo. Supostamente, este desígnio visava a mobilização em prol de um futuro melhor, mas, na prática, traduzia-se na demanda de obediência a quem, invocando embora os verdadeiros interesses do “povo”, governava de forma autoritária, cerceando as liberdades individuais em nome da unidade de propósitos dos são-tomenses. O poder do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) e do “líder”, Pinto da Costa, acabou transformado numa canga sobre o dia a dia de grande parte dos são-tomenses independentemente da condição social ou do estatuto político.

Estatizou-se a economia, mormente as roças produtoras de cacau, cuja mão de obra era constituída por ex-serviçais, décadas antes importados de outras colónias portuguesas, e pelos seus descendentes. Tal deveria ter alavancado maior justiça social, mas a economia colapsou, para o que contribuíram as iniquidades nas roças geridas por são-tomenses, a burocratização e, a outro nível, as dificuldades dos anos 80 agudamente sentidas no continente africano.

Esvanecido o inebriamento da independência, numa trajetória de empobrecimento e de crescentes privações, quando apenas florescia o mercado negro, não era fácil manter o poder em nome de um futuro ridente cada vez menos alcançável, tal a convicção disseminada e corroborada pela perceção da disparidade de condições de governantes e governados, disparidade em tudo avessa ao apregoado ideário socialista.

Uma fome inusitada em 1983-1984 levou o presidente Pinto da Costa a decidir-se pela abertura à iniciativa privada no domínio económico. Já no plano político, apesar da falência da ideologia e da corrosão da legitimidade16, não existiam movimentações sociais que o forçassem a uma liberalização17, nem mesmo dos ditos “renovadores”, obrigados a antepor a lealdade ao líder às contidas sugestões no sentido de abertura política sem pôr em causa o poder. Porém, anos depois da abertura na economia, Pinto da Costa teve o rasgo ou a intuição (ou, ainda, a sapiência de acolher a sugestão) de mudar o regime para uma democracia representativa. Anterior à vaga suscitada pela queda do muro de Berlim, este lance político, embora arrostando com a relutância de parte do aparelho partidário, concitou um amplo consenso num referendo ao projeto de Constituição decalcado da portuguesa, ainda que com adaptações atinentes ao reforço dos poderes presidenciais em matéria de relações externas, crivo crucial para a preservação do poder, e no tocante às possibilidades de dissolução da assembleia (cf. Sanches, 2015, p. 143).

Ao invés do sucedido em eleições noutros países convertidos à democracia, sob o lema redentor da “mudança”, o partido histórico da independência foi derrotado pelo Partido da Convergência Democrática - Grupo de Reflexão (PCD-GR), composto de elementos derrotados em 1975 e de sucessivos desafetos do MLSTP durante a quinzena de anos do putativo “socialismo” e de “partido único”. Miguel Trovoada, um dos elementos do pequeno grupo que arvorara o lema da independência e que, já primeiro-ministro, estivera preso, sendo depois exilado, seria recebido triunfalmente antes de vencer eleições presidenciais de 1991 para que não teve competidor, por desistência de outros dois candidatos18.

Afora ter apadrinhado a criação da Ação Democrática Independente (ADI)19, que concorreu às eleições de 1994, Miguel Trovoada adotou uma atitude de litigância com dois governos do PDC-GR, formados por apoiantes da sua eleição. Ao cabo dos dois mandatos, teve um lance tático de génio ao promover a candidatura de um seu “substituto”, Fradique de Menezes, um negociante que, certamente nunca tendo imaginado ser presidente, tinha a vantagem de se apresentar como um outsider da “política” erodida pelo contínuo de carências e pela pobreza avassaladora no arquipélago. Ainda com a memória do tempo do partido único bem viva entre os são-tomenses, a escolha foi certeira para travar o passo à eleição de Pinto da Costa.

Eleito em 2001, Fradique não se revelou tão manipulável quanto porventura dele se esperaria. Fradique também criou um partido de um homem só, o Movimento Democrático Força da Mudança - Partido Liberal (MDFM-PL). Fosse como fosse, prevaleceu o carácter errático da sua ação política, vazia de ideias, programa e objetivos. Patrice Trovoada, filho do ex-presidente, que começara por ser diretor da sua campanha eleitoral e ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro governo empossado por Fradique, dispôs-se a disputar a corrida presidencial em 2006, enquanto paulatinamente começava a crescer o apoio à ADI, de que se tornou secretário-geral em 2002 (cf. Santos, 2014, p. 218).

Desde a independência o país experimentara sucessivas soluções salvíficas - independentemente dos contextos, traduzidas na adesão a personalidades que induziram a criação de partidos seus20 - que, no plano económico, tinham redundado em desilusão e na contínua erosão das instituições21. Ao cabo de dois decénios de democracia sobreveio a desilusão por força da continuação da precariedade, nalguns casos extrema, da condição de vida das pessoas. O cenário político diversificara-se, ao mesmo tempo que valores ideológicos e programas substantivos eram substituídos pela ascendência temporária de sucessivos chefes. Porém, por entre as inúmeras questiúnculas políticas, derivadas da luta pelo açambarcamento das oportunidades tidas como irrepetíveis, o arquipélago tornou-se uma referência como país com arraigadas liberdades, onde, ao invés do sucedido na era colonial e no regime de partido único, era assaz difícil travar a liberdade de expressão e, até, os excessos da “rua” relativamente aos “políticos”. Com efeito, a par da duplicidade dos que orbitavam nas esferas de poder e, bem assim, da rarefeita mediação política qualificada, o moralismo sumário e a linguagem desbragada da “rua” eram o reverso das suas cada vez maiores provações.

Os impasses resultantes do marasmo económico que também em democracia não se conseguiram resolver levaram alguns a questionar as virtudes da democracia ou a demandar a sua adaptação a uma (nunca definida) matriz cultural local22. Fosse como fosse, não só esta não foi posta em causa, como as eleições - seu último e decisivo fundamento e reduto - se foram realizando num ambiente aberto, competitivo e livre. Foi por essa via que Patrice Trovoada chegou ao poder.

A senda do poder

Apesar da rampa de lançamento comum em África - a de filho de presidente -, a trajetória de Patrice Trovoada até à conquista do poder é notável, desde logo por não aparentar ter a loquacidade de vários dos seus opositores. Também é certo que, dada a usura da palavra dos “políticos” por força do estendal de promessas por cumprir e do crescendo das clivagens económicas23, ele retirou ganhos da parcimónia das palavras. Seja como for, sobra a questão de saber porque é que os são-tomenses lhe creditaram boas intenções quando, por regra, apodam os políticos de ladrões24.

Face a outros políticos, Patrice Trovoada tem a vantagem de “ter mundo” - de ter lidado com poderosos - e de não ter laços na terra, onde raramente ou nunca vive quando não está no poder25 - o que lhe confere a faceta salvífica que os são-tomenses tendem a conferir a quem vem de fora26. Da ausência os ilhéus inferem que ele não precisa da terra para viver. Evidentemente, tal não elimina a hipótese de a terra lhe servir, como, decerto, serviu a outros políticos antes dele, hipótese que, enquanto foi encarado como um salvador, a “rua” rejeitava sem outro fundamento que o da adesão acrítica à sua pessoa.

Patrice Trovoada cultiva o distanciamento face aos seus concidadãos, entre os quais teve (e tem) fiéis ou clientes, alguns deles mantidos anos a fio27. A sua solidariedade ritual, pública, para com um dos seus numa ocasião difícil decerto não se desdobrará numa cumplicidade firmada no convívio comum na terra, nem na comunhão de destinos que a concretização de um projeto político de monta devia suscitar. Assim o sugere o facto de os contornos dos seus desígnios permanecerem imperscrutáveis para os seus seguidores, como o indiciam as decisões nunca antes sequer alvitradas - por exemplo, entrada no país da guarda pretoriana ruandesa, rompimento das relações com Taiwan, emissão de novas notas -, algumas conhecidas depois de concretizadas e concretizadas independentemente da necessária aprovação parlamentar prévia.

A ascensão ao poder foi um longo tirocínio que certamente contou com lealdades subterrâneas28, possivelmente até nos partidos opositores29. Algumas lealdades permaneceram insuspeitas porquanto datam de épocas em que a sua ascensão ao poder era inimaginável, desde logo por força da aversão à figura do pai, o principal visado no equivocado golpe de 1995. Não se pode arredar a hipótese de ter inspirado a contestação social fomentadora do descontentamento face a sucessivos governos. Naturalmente, não sendo atribuíveis a uma qualquer fidelidade inconfessada, essas contestações eram encaradas como resultado da idiossincrasia dos ativistas, a quem, de resto, não faltavam boas razões para contestar corrosivamente sucessivos governos.

Patrice Trovoada construiu uma clientela de indefetíveis, desde titulares de instituições estatais a spin doctors, incluindo ministros que, quedos e mudos largas temporadas, preservaram a disponibilidade para a assunção do cargo. Com efeito, um dos aspetos a realçar é a disponibilidade para retomar o desempenho político subalterno - e que assim permaneceria visto ser a ADI um partido do chefe onde não existia competitividade política - uma vez passado o pousio do afastamento do poder. Mesmo tendo presente a primazia da ação política em desfavor do pensamento crítico, surpreende que algumas personalidades abdicassem (se é que não continuam a fazê-lo) de inevitáveis convicções próprias por troca com uma fidelidade a toda a prova em nome de desígnios assaz vagos, erráticos, quando não imprevistos e nunca imaginados.

A imagem de homem poderoso, que a parcimónia de palavras não desmentia, resultou tanto da mobilização de meios quanto de um percurso político singular onde se foi insinuando como cada vez mais imprescindível. Depois do empurrão dos Trovoadas a Fradique de Menezes, enfrentou-o nas eleições de 2006. Aparentemente, era o único político a dispor-se a perder contra o quase inevitável vencedor, Fradique, menosprezado por muitos ilhéus que, todavia, não o afrontavam, eventualmente por não quererem perder para quem rebaixavam nas conversas maledicentes da rua. Ou, hipótese porventura mais fecunda, por lhes faltar horizonte para além dessa luta, o que, sabemo-lo hoje, não ocorria com Patrice Trovoada. Seja como for, importa perguntar porque é que o MLSTP não avançou com o apoio a algum militante em vez de objetivamente promover alguém30 que seria sempre - e isso era previsível - um adversário31? Só uma trajetória de perda e de desnorte político do MLSTP podia transformar o ressentimento contra Fradique e a inconfessada impotência em o derrotar em razões para o apoio à candidatura de Patrice Trovoada.

O erro do MLSTP foi vincado por um episódio prenunciador do que anos depois viria a estar politicamente em jogo, a saber, a predisposição para condutas atrabiliárias desde que garantida a impunidade. A campanha eleitoral de 2006 ficou marcada pela insólita invasão da Televisão São-Tomense (TVS) à hora da emissão do telejornal. Em resultado dessa invasão, os estúdios ficaram danificados. Tal foi a forma de protesto contra a alegada parcialidade da TVS a favor da campanha do presidente em exercício. Protagonizado por políticos com responsabilidades, Edgar Neves, da ADI, e Jorge Amado, do MLSTP, este ato de vandalismo passou sem consequências32.

Nessas eleições, Patrice Trovoada obteve 38,5% dos votos, uma percentagem apreciável, talvez não devidamente sopesada porque displicentemente atribuída à rejeição inspirada por Fradique. Ao invés de adesões irruptivas relativamente a outras figuras, o movimento de suporte a Patrice Trovoada foi gradual, tendo, todavia, acabado por surpreender os do MLSTP, sobranceiramente fiados em que, na hora, os votos acabavam inevitavelmente por pender para o seu lado. Em sucessivas eleições, Patrice Trovoada foi amealhando apoio em razão do acúmulo de ressentimento contra os “políticos” em crescendo desde a independência. Nas ruas, nas vésperas das eleições de 2010, esse ressentimento era indisfarçável entre os mais jovens que repetiam que iam usar o voto como arma contra os “ladrões”33.

Se por ocasião dos primeiros lances políticos de Patrice Trovoada ainda se ouviram vozes a rejeitar que São Tomé e Príncipe fosse um “país do pai e do filho” - um dichote decerto ditado pela aversão a Miguel Trovoada e com que ainda se ensaiava dissociar o arquipélago de outras realidades africanas -, a desesperante involução do país ajudou à caminhada de Patrice Trovoada que, sem crivos ideologicamente excludentes, antes com critérios pragmáticos ou de oportunidade, se foi firmando também pelo reconhecimento do seu partido como força política e dele como ator relevante na composição de soluções governativas. Em fevereiro de 2008, Fradique34 convidou-o para a condução de um governo, decisão com que Fradique desconsiderou o primeiro-ministro, Tomé Vera Cruz, do seu próprio partido, o mais votado mas que não aprovou o orçamento. Assim, Patrice Trovoada, chefe do terceiro partido mais votado, tornou-se primeiro-ministro de um governo suportado por vários partidos, a saber, MDFM, PCD e ADI. É mister supor uma conexão causal diversa da sugerida pela cronologia, a saber, a de a rejeição do orçamento se ter sucedido a um conluio para derrubar Tomé Vera Cruz35. Em todo o caso, não tardou que o PCD fizesse cair o governo de Patrice Trovoada ao sair da coligação. Em junho, foi empossado um novo governo, composto por todos os partidos com exclusão da ADI. Esse governo chefiado por Rafael Branco (MLSTP/PSD) durou até às eleições de 2010, mas nada teria sido mais benéfico para a vitimização de Patrice Trovoada do que um governo da coligação encabeçada pelo MLSTP.

Às eleições de 1 de agosto de 2010, seguiu-se novo governo de Patrice Trovoada suportado por uma maioria relativa. Entrementes, em 2011, o antigo presidente do regime do partido único, Pinto da Costa, chegou à presidência por uma pequena margem sobre o candidato da ADI, Evaristo Carvalho. Como a pulsão sobrepujou a razão, não se cedeu à tentação de repetir a tática, contraproducente, de tentar isolar a ADI. Presumivelmente por inspiração de Pinto da Costa, o governo de Patrice Trovoada foi apeado por uma moção de censura em finais de 2012. No caso, a legalidade processual só podia desesperar ainda mais os desapossados que viam nas leis um instrumento, não da prossecução do bem comum, mas da perpetuação, mesmo se rotativa, dos mesmos de sempre no poder36 em prejuízo do grosso dos são-tomenses. Não espanta que, pressentindo a enchente da sua maré política, um deputado da ADI aludisse a violências sangrentas, se necessárias fossem, palavreado que escandalizava os deputados mas que encantava os desapossados das ruas, cuja decisão se decantava do desejo de desagravos e de vingança dos “políticos” que aí circulavam mas em carros de alta cilindrada. De alguma forma, a anunciada rutura da futura governação de Patrice Trovoada cativava pelas insinuadas facetas de um justicialismo, comummente esperado pelo “povo pequeno”37 das grandes figuras. O suposto propósito de reposição da justiça e da equidade não deixava de contar com a pose de antissistema dos das ruas.

Na sequência da citada moção de censura de finais de 2012, o sucedâneo governo de iniciativa presidencial foi chão fértil para ataques aos “políticos” assaz proveitosos para a ADI. Desde 2013, vários spin doctors aventavam que Pinto da Costa tencionava instaurar uma ditadura38, o que, sendo por demais improvável, decerto até para quem o enunciava, não deixava de correr como uma certeza39 e a benefício de Patrice Trovoada.

Ciente do apoio popular que concitava, após a queda do seu governo em 2012, Patrice Trovoada desafiou Pinto da Costa para umas eleições pessoalizadas40. A sua proposta era a de uma revisão constitucional para se adotar um regime presidencial. Ao cabo de um ano de um governo de transição, realizar-se-iam eleições, das quais se presumia e, decerto, seria vencedor. Em rigor, os resultados de 12 de outubro de 2014 só poderiam surpreender os mais desprevenidos. Mais do que a ADI - como os demais partidos, transformada num partido de um homem só -, foi Patrice que ganhou com maioria absoluta.

Em 2016, pela primeira vez, um presidente não conseguiu um segundo mandato. Em parte pela fragmentação no MLSTP, mas certamente também por ser tido como mentor do derrube do governo de Patrice Trovoada, obteve uma votação dececionante na primeira volta, abdicando de disputar a segunda volta. Em 2011, Evaristo de Carvalho perdera para Pinto da Costa, eleito por conta de um desejo de um “pulso forte” que restabelecesse uma certa ordem no quotidiano. Mas em 2016 Patrice fez eleger Evaristo Carvalho, que se tornara um incondicional dos Trovoadas, para presidente.

A posse, a 3 de setembro, de um presidente que, embora pretextando o contrário, se anunciara dependente do chefe do partido com uma maioria de mandatos parlamentares, tornou o primeiro-ministro Patrice Trovoada detentor de um poder tendencialmente absoluto, cuja construção começara muito antes.

O mandato de Patrice Trovoada revelou a atonia ou a incapacidade da sociedade - também por nenhum vulto ter sido capaz de corporizar o descontentamento - perante a subversão das leis e das instituições, cujos efeitos, até pelo histórico da sua paulatina deliquescência, poderão ser duradouros. Da mesma forma poderão ser duradouros os efeitos da cizânia. Hoje, ninguém asseverará crer nos atores institucionais - por exemplo, juízes -, pressupondo que estão politicamente motivados pagos ou, talvez até, a soldo, o que implicará um qualquer ganho indevido por parte de quem neles supostamente manda.

A deriva autoritária

Até 2014 prevalecera entre os políticos e outras proeminentes figuras de distintas afinidades ideológicas e sociais a lógica da espera pelas oportunidades que, cedo ou tarde, chegariam a todos eles e às respetivas clientelas. Ora, o propósito de rutura de Patrice Trovoada visava não apenas a perpetuação no poder, mas a desestruturação da oposição. Em consonância com o espírito belicoso patenteado na Assembleia pelos seus arautos, que tinham prometido sangue, encetou-se uma governação assente na exclusão, mormente após a eleição de Evaristo de Carvalho. Progressivamente, a governação tornou-se um fator de incerteza e de medo.

Em maio de 2017 chegaram militares ruandeses sem que, até à véspera, a sua missão fosse conhecida ou estivesse autorizada por qualquer acordo validado na Assembleia41, com o que se violava a legalidade constitucional. Alegadamente, chegavam para dar instrução, mas a uma guarda pretoriana de Trovoada, um sinal da desconfiança deste relativamente aos militares e aos demais concidadãos que eram intimidados pela intrusiva presença dos “seguranças” no espaço público.

Em inícios de 2018 constituiu-se um Tribunal Constitucional (TC), cuja inexistência até então fora suprida pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) chamado a desempenhar esse papel ad hoc. Ao TC competia funcionar como tribunal eleitoral. A urgência de criação de um TC colocou-se após a presidência do STJ mudar para um juiz independente de Patrice Trovoada. Era por demais plausível que a criação de um TC visasse garantir sentenças favoráveis em eventuais demandas no tocante à contagem de votos (Nascimento, 2018a).

Aprovada uma lei inconstitucional reguladora do processo de eleição dos juízes do TC, seguiu-se uma eleição conflituosa de um TC de fação, por fim lograda de permeio com atuação da polícia de intervenção, que culminou um processo ilegal e inconstitucional validado por um presidente por quem a rua entrementes desafeta perdia o já escasso respeito que por ele tinha, apodando-o de “pau mandado”42. Após audiências com este, representantes de partidos da oposição disseram ter ouvido, a propósito das medidas inconstitucionais, a alegação de que se estava sob a “mudança”, pelo que tudo era permitido43.

Os derradeiros tempos da legislatura assistiram não só à derrogação da Constituição como à decapitação da justiça independente. A uma sentença do STJ sobre a posse da fábrica de cervejas Rosema, pressupostamente contrária a inconfessados interesses do governo - de outra forma não se entenderia que este enviasse a polícia para obstar à execução da sentença -, seguiu-se o banimento dos juízes desafetos do STJ e a posterior criação de um STJ de exceção com juízes nomeados pela maioria da ADI. Qual efeito da estrita obediência, a maioria de deputados não deu nota do mínimo incómodo com o possível atropelo institucional subjacente a esta medida tomada de supetão44. Mesmo se eventualmente escorada numa enviesada leitura da letra da lei, a medida não deixava de violar o princípio basilar da separação de poderes. Partidos e instituições clamaram que estava em causa a democracia e o Estado de direito (democrático). Em vão.

Mudados os ventos, aflorava nova divisão entre a “rua” e alguns políticos próximos de Trovoada, manifesta a propósito de itens da governação, entre eles, a amiudada ausência do primeiro-ministro do país. Pessoas diferenciadas defendiam tal anormalidade, pretextando que as oposições não queriam senão impedir o “homem de trabalhar pelo país”, quando elas mesmas não podiam crer no que diziam. Na falta de duplicidade, o medo suscitava raciocínios distorcidos, por exemplo, o de que Patrice Trovoada perseguia a concretização de intentos ditatoriais, mas por via democrática. Que tal asserção ilógica compusesse uma impossibilidade - nalgum momento, um putativo ditador, mesmo se eleito, abandona os trilhos da lei e da democracia -, pouco importava, porquanto o medo pesava mais do que qualquer ponderação. Aliás, talvez o medo não pesasse pouco nas eleições de 2018, às quais a sociedade são-tomense chegou dividida, sem esperança e partilhando receios de vários desenlaces possíveis.

O “ar irrespirável” e a resiliência dos ilhéus

Sem embargo da observância de direitos políticos - mormente do de manifestação da mole revoltada, mas inoperante, desde logo por falta de liderança45 -, o governo introduziu uma dinâmica de desconfiança, conflitualidade e de medo. Em contraponto à observância das liberdades na rua e na internet, que, apesar das ameaças de punição46, não conseguiu silenciar, afrontou as liberdades, incluindo as prerrogativas dos deputados, intentando a sua intimidação através do propósito de os fazer revistar à porta do Parlamento numa operação policial assistida pelos militares ruandeses.

O ano de 2018 começou com uma manifestação a 9 de janeiro, que, suportada pelos partidos da oposição, juntou três mil pessoas47. Animada, entre outras razões, pela declaração de nulidade por inconstitucionalidade dos atos do presidente da República - uma sentença do STJ que supostamente não poderia deixar de produzir efeitos, mas que seria inútil -, essa significativa manifestação não causou, longe disso, nenhum abalo telúrico. Era bem mais relevante do que a anteriormente intentada manifestação de jovens que mobilizara mais polícias do que manifestantes, mas não teve sequência nem consequências. Num ambiente crispado como o desses dias, é de supor que a manifestação - politicamente conveniente porque antevista como inócua - se manteve ordeira por força do musculado aparato policial que a emoldurava. Afinal, realizada contra a posse do TC de fação, que se constituiria dias depois, esgotou-se em si mesma.

A raiva levava ilhéus a invetivar Patrice Trovoada48 com o epíteto de “gabonês”, no que poderá ressoar a antiga desqualificação dos antigos escravizados “gabão” ou a rejeição da submissão a padrões políticos pressentidos como opressivos. A mudança da hora para a hora dita do Gabão e a visita do filho de Bongo, presidente do Gabão e amigo pessoal de Patrice Trovoada, praticamente a seguir à de Marcelo Rebelo de Sousa, foram sentidas como sinais de uma indesejada direção política, que, todavia, não se travava com epítetos. Expressões erradas de sentimentos porventura fundados, epítetos desta índole apenas acirravam a cizânia.

Vigorava um estado de exceção disfarçado, onde prevaleciam a delação e a desconfiança. Nos órgãos de comunicação, em vez do contraditório prevalecia a “bufaria”49, receando-se que esta se estendesse à sociabilidade, mormente com a prometida introdução de escutas para auxiliar a investigação e, também, para mudar os hábitos do dia a dia, tal o fito que Patrice Trovoada considerava uma exigência da sociedade50.

Em junho, praticamente ao mesmo tempo em que falava da futura aquisição de equipamento de escutas telefónicas, o governo anunciava o desmantelamento de uma tentativa de assassinato do primeiro-ministro, cuja verosimilhança quedou logo diminuída pela rejeição das provas carreadas pelo tribunal de primeira instância. Já em agosto, a TVS mostrava imagens de alegadas provas de um novo complô, desmantelado a 4, golpe que, contando com mercenários estrangeiros detidos, visava, uma vez mais, a eliminação física do primeiro-ministro51.

Enquanto isso, crescia a violência. Já em vésperas das eleições, a morte de um jovem de Monte Café às mãos da polícia gerou revolta, tendo o comando policial na Trindade e o hospital sido protegidos por contingentes policiais que visavam conter a ira de populares. O corpo seria enterrado de noite e os presumíveis autores imediatamente pronunciados52. As eleições impunham tal medida.

Ao cabo de décadas, ao passo que o progressivo esvaziamento e a desestruturação tinham tornado o Estado informal e inepto, o poder estava personalizado (Castells, 2002, p. 123). Como que invertendo um embrionário grau de mediação institucional nos derradeiros anos do colonialismo, o processo de deliquescência institucional e de correlata personalização do poder é anterior a 1990. Depois, a personalização do poder político prosseguiu com a democracia, sucedendo-se os patronos dominantes. Ao mesmo tempo que se destruía o Estado, mantinha-se o seu aparato formal, preenchendo-se os vários órgãos com clientes ou apaniguados. Porém, foi durante o governo de Patrice Trovoada que a apropriação de todos os órgãos de poder por uma rede de fiéis encimada por uma figura se extremou. Assinale-se a baldeação de quadros de topo de outros partidos para a esfera da sua influência durante a sua governação.

Chegadas as eleições, perguntar-se-ia o que pesaria mais, se o medo de um Estado musculado que formalmente garantia certos direitos, se a sensação difusa de que o país importara a “tradição africana” de violência que só poderia ser tolhida pela reposição da legalidade. Noutros termos, obviamente Patrice Trovoada não podia ser responsabilizado pela morte do economista Jorge Santos53 mas, para uma fração da sociedade, um clima de crescente disrupção e de violência impune por parte de alguns que lhe eram próximos não podia deixar de ser sentido como uma ameaça de uma futura violência irrestrita e infrene, realidade bem mais tangível do que as inventonas de atentados contra o primeiro-ministro.

A pretexto da falta de verbas, as eleições autárquicas tinham sido adiadas para 2018 e acopladas às legislativas, o que já sucedera em anteriores ocasiões. Sem embargo, o manejo do calendário eleitoral pode ser relacionado com o intuito de somar vitórias por efeito de empatia, o que já funcionara em 2014, e, presumivelmente, com o intuito de protelar eleições porventura sinalizadoras de dissidências um ano antes das legislativas de 2018, o que aumentaria as dificuldades da governação e de repetição da maioria absoluta. Não se dirá que a eventual intuição relativa à necessidade de evitar expor fissuras no bloco de poder não estivesse certa...

Acerca dos prováveis resultados, aventar-se-ia que o então primeiro-ministro ganhava ou... ganhava, prognóstico que antecipava o possível efeito de arrastamento do exercício do poder - efeito comprovado pela votação obtida pela ADI - por contraposição ao presumido esfacelamento da oposição, que, ademais, não apresentava nenhum vulto politicamente arrebatador. Tal prognóstico contemplava igualmente a hipótese de eventual manipulação dos resultados, se necessária fosse, para sustentar a vitória do governante, tal a inferência decorrente dos atropelos às disposições constitucionais pelos quais se criara um TC de fação, na circunstância, tribunal eleitoral.

A dinâmica conflitual introduzida pela governação na sociedade reduzia a hipótese de repetição de uma votação assente na esperança existente em 2010 e renovada em 2014. Depois de a confrontação ter chegado à intervenção da polícia no Parlamento, só a maioria absoluta era uma vitória, que, contudo, parecia incerta, como o indiciou o inesperado dizer do presidente, “o povo põe, o povo tira”. A reprodução desta coloquialidade da terra destoava da até então incondicional obediência ao primeiro-ministro.

O ar tornara-se “irrespirável” até para militantes da ADI. Dados vários fatores - subversão e instrumentalização das instituições, controlo dos meios de comunicação social tornados órgãos de propaganda, capacidade de mobilização com base em operações de marketing, medo instalado e curso de uma narrativa irrebatível acerca do chefe -, as eleições deveriam ser encaradas como a possibilidade de o povo protestar e de se livrar de um, se assim considerado, potencial ditador. Em alternativa a esta possível hipótese, o poder podia exercer um efeito de arrastamento favorável a Patrice Trovoada, o que ficou comprovado pela votação que este obteve54.

Estava em causa a democracia55. Embora sem figuras galvanizadoras que mobilizassem a população em torno de uma alternativa política, partidos da oposição coligaram-se para não se desperdiçarem votos. Dramatizadas pela bipolarização e pela afirmação da imperiosa necessidade de uma maioria absoluta - o que pode ter feito recuar o “banho”56 -, as eleições terão sido determinadas pela emotividade.

Quebrados pela metade, os votos traduziram uma relativa aceitação da governação ou, talvez, a descrença na melhoria advinda da alternância no poder. Aliás, legítimas habilidades de circunstância ajudaram Patrice Trovoada a (quase) alcançar a vitória. A criação por trânsfugas do MLSTP de um partido correspondente a uma afinidade local57 no sul de São Tomé, em Caué, o Movimento de Cidadãos Independentes de São Tomé e Príncipe, resultou em ganhos de deputados, de outro modo difíceis de conseguir para a ADI, mas que certamente alinhariam com Patrice Trovoada se tal tivesse proporcionado a maioria absoluta58.

Embora por uma margem estreita - pouco consonante com os queixumes generalizados, incluindo até de correligionários, entre quem, todavia, pode ter lavrado o receio da revanche, indício de que, uma vez instalada, a dinâmica de medo é de difícil remoção -, os resultados penderam para a rejeição de Patrice Trovoada.

Mais relevante, comprovaram a inequívoca importância das eleições e, afinal, da tão depreciada democracia representativa, ocidental, como gratuita e diletantemente se a usa apodar. Todavia, e prudentemente, não se dirá que para a maioria dos ilhéus a questão do regime e de quem manda não seria irrelevante se tivessem minimamente asseguradas necessidades básicas, segurança e previsibilidade nas suas vidas.

O incêndio do jipe, a deserção e a alternância no poder

Às primeiras horas do escrutínio dos votos, quando o futuro do arquipélago se decidia pela diferença de um deputado, não faltou um apagão por falta de eletricidade. Mesmo se rotineiro, um apagão na hora da contagem de votos e com a oposição à frente lançava a suspeição59. Não era claro se houvera, ou não, fraude, mas compreende-se a suspeita quanto à possível viciação dos resultados, porquanto a ADI prontamente pretextou que a recontagem de votos em Água-Grande, distrito da capital, lhe garantia um deputado. Porém, se atribuído a um partido da oposição, permitia a esta guindar-se ao poder (ADI, 25, e Movimento de Caué, 2, perfaziam 27 mandatos, excedidos pelos 28, 23 do MLSTP e 5 da formação PCD/MDFM/UDD). A reivindicação da ADI de mais um deputado pode ser entendida como uma experimentação da possibilidade de alterar os resultados. No ver da “rua”, fora para a eventualidade de ter de dirimir a contento pleitos eleitorais que ilegalmente se criara um TC de fação.

Foi por estas circunstâncias e, também, pela afinidade com a irmã, ministra da Justiça, que se presumiram as intenções da juíza Natacha Amado Vaz. A destruição do seu jipe durante a manifestação teve um tom de resposta ao teste da tomada de pulso do ambiente social pela ADI. Na realidade, quem quer que recontasse votos era potencialmente suspeito de cumplicidade numa fraude em prol do governo. Quiçá injustamente, lavrou a suspeita de que a juíza Natacha estaria a transformar os votos nulos em votos da ADI, o que ela enfaticamente negou. Para a oposição, tal validação era ilegal, sem embargo de, pelas suas contas, nem isso bastar para a ADI eleger o deputado em falta para obter a maioria absoluta em coligação com Movimento de Caué.

Fosse como fosse, alguns jovens pretextaram defender a vontade ditada nas urnas. Durante o protesto, os manifestantes incendiaram o jipe da juíza Natacha, um episódio algo inesperado, não à luz da violência crescente desde há anos, mas pela passividade das forças policiais que, ostensivamente presentes noutras atuações preventivas, pareceram ressentir-se da ausência de mando.

O incêndio do jipe poderá ter sido uma das chaves do rumo dos eventos após as eleições. Só a posteriori as forças policiais intervieram, mas o comedimento pautou a sua atuação. A desajeitada proibição, pela Polícia Nacional, de manifestações enquanto durasse a contagem final dos votos e durante 72 horas após a publicação dos resultados denotou desnorte. A Polícia foi publicamente desautorizada por exorbitar poderes, não tendo sido secundada por qualquer governante. Embora contido, como que se manteve um estado de vigilância, enquanto o apuramento se arrastava - parecendo incompreensível a demora da contagem de menos de cem mil votos - sob escrutínio internacional que, num primeiro momento, também foi considerado suspeito e conivente com a propalada adulteração dos votos.

Talvez a contestação nas ruas não tivesse pesado não fosse a antevisão da deserção de Patrice Trovoada, um dado politicamente relevante por desmoralizador dos correligionários. Todavia, também é difícil asseverar que a tergiversação e a contemporização, evidenciadas aquando das anteriores denegações atrabiliárias de fundamentos do Estado de direito, chegariam à viciação dos resultados, sendo de admitir que, mesmo se residuais, imperativos de ordem moral poderiam obstar a fraudes, as quais, se concretizadas, minariam de forma drástica o valor das eleições como último reduto - e prova - da democracia no arquipélago. Ora, a premonição do abandono do chefe, saído a 12 de outubro60, antes da confirmação dos resultados, desferiu uma machadada na eventual predisposição para falsear resultados ou para ações repressivas. Em razão do abandono do chefe - se não antes imaginado, decerto prontamente percebido como inevitável e duradouro -, as hostes claudicaram, a fidelidade deslassou e a belicosidade cedeu lugar à contemporização61. Dir-se-ia até que só o pressentido abandono do chefe permitiu a manifestação e a ocorrência de violências, porquanto, sem ele, ninguém quis arriscar decisões que poderiam cindir ainda mais os são-tomenses62.

A 11 de outubro, Patrice Trovoada lamentou que a justiça ainda não tivesse acusado os suspeitos do último dos alegados atentados contra si, acrescentando que “a situação de risco se mantém”63. Poucos terão reparado nesta afirmação que, substantivamente oca, se destinaria a justificar a saída do país a 12. Os seus clientes tiveram de começar a pensar em sobreviver sem ele, enquanto alguns mais fiéis ou dependentes, tomando o seu desejo por uma inevitabilidade, começaram a prognosticar a queda do futuro governo da oposição e, decerto, a antever a volta do patrono.

O país quedou sem governo, não por qualquer caos criado nas ruas, mas por, ao lastro de décadas de progressiva deliquescência das instituições, se somar a ausência do chefe. Patrice Trovoada saiu do país, alijando sem mais as suas obrigações, mas mantendo - oficialmente em parte incerta - as prerrogativas de primeiro-ministro. O governo só seria demitido pelo Presidente aquando da tomada de posse da nova Assembleia ocorrida a 22 de novembro.

A aparente solidez da união contra Patrice Trovoada levou à alternância no poder. Se, no passado, os sortilégios na recomposição das alianças para efeitos eleitorais, tributários da liquefação ideológica e da vacuidade programática, resultavam incongruentes e desacreditavam a ação política - abrindo espaço a crenças em soluções providenciais -, o governo saído das eleições polarizou, ao menos momentaneamente, a esperança num desempenho competente que, na falta de outra medida, a vox populi avaliará pela inexistência de negociatas e pelo cumprimento de promessas relativas a itens básicos. Afinal, e ainda mais do que no passado, a nenhum governo restaria qualquer tempo, um bem precioso na política mas que só os governos ditatoriais conseguem criar.

O dramatismo das eleições colocou o governo de Jorge Bom Jesus - fruto da coligação de todos os partidos da oposição, encabeçada pelo MLSTP - no fio da navalha. Como ação imediata, repôs-se a ordem constitucional64. O governo ficou obrigado a ser exemplar, exigência agravada pelo facto de o comum das pessoas ter como certo que nenhuma das instituições, mormente a judicial, é independente. No imediato, impõe-se-lhe uma governação transparente, que, avessa ao arbítrio, reintroduza a decência e a ética nas relações políticas e cívicas. Outra conduta desmentiria a valia de um Estado de direito democrático, prezado pelos são-tomenses65 conforme se comprovou nas eleições pelas quais a maioria deles esperou com paciência.

Num quadro de dificuldades financeiras, de degradação de serviços e na impossibilidade de prover de pronto bens básicos, resta ao governo a solidariedade moral com a esmagadora maioria dos ilhéus que pouco ou nada tem e, menos ainda, esperança. Noutros termos, importaria incutir nos vínculos políticos uma noção de confiança derivada da irmandade e da necessidade de convivência pacífica, tudo escorado no fortalecimento das instituições que garantem a liberdade dos homens.

Os resultados sugerem uma clivagem, quiçá mais aparente ou mutante do que decantada ou de princípios, porquanto, dada a volatilidade do ambiente político - as fidelidades partidárias são lassas e as ideológicas quase inexistentes, propiciando a movimentação de indivíduos na direção de outras forças políticas -, o suporte eleitoral da ADI poderá desfazer-se se o “chefe” se tornar (ou parecer) definitivamente ausente. Mas poderá recompor-se se entrementes se perspetivar um regresso do “chefe”.

Ao invés do alvitre de que Patrice Trovoada se desqualificou irremediavelmente pela fuga, demonstrando não estar à altura do cargo, diria que o abandono da função não o desqualifica para futuros tirocínios políticos por, afinal, a qualificação em política e, em particular, em São Tomé e Príncipe ter pouco a ver com ponderações racionais sobre factos da história, incluindo da recente. Se a evolução política e social se mostrar propícia, não será impossível a Patrice Trovoada arriscar uma candidatura presidencial. Em futuras eleições, poderá reaparecer como salvador e até ser eleito por ressentimento. Se o futuro político de Trovoada se mantiver relevante, é porque, num Estado de direito democrático política e institucionalmente deslassado, a sociedade terá continuado mergulhada num défice de esperança.

Sem embargo da titânica luta dos ilhéus pela afirmação da sua dignidade num quotidiano pejado de incomensuráveis escolhos, dada a vulnerabilidade da sociedade insular, não se tentarão muitos ilhéus a aderir de novo a quem, chegado de fora e com signos de poder e riqueza, acene com uma mirífica promessa de uma melhoria mínima das condições de vida, por exemplo, através da cooptação para a respetiva clientela? Maior dúvida será a de saber por quanto tempo prevalecerá o atual quadro político…

Por fim, vozes africanas, democracia africana ou… tão-somente democracia?

As eleições puseram a nu a vanidade de muitas lucubrações sobre a viabilidade da democracia no meio são-tomense. Com fundamento variável, algumas menções a uma democracia de feição local66 ou “africana”67 emanam de genuínas inquietações políticas, ao passo que outras advêm de modismos ou de particulares sentidos de oportunidade68, caso, por exemplo, de tentativas de ganho de votos. Adiante-se, estas tentativas são risíveis e inúteis porque a determinação do voto tem pouco a ver com a dita feição da democracia. No limite, arriscaríamos dizer que, se aos desapossados dissesse respeito, a determinação do voto teria pouco a ver até com a natureza do regime…

Seja como for, a democracia representativa, dita redutora por algum ativismo propenso a idealizar o mundo e as ações, não deixou de ser crucial para os ilhéus. Os eventos recentes colidem com a argumentação acerca da necessária especificidade da democracia são-tomense, cujos défices, em termos simplistas, radicam antes na incapacidade de nomear os poderosos que instrumentalizam a lei e de prevenir ou coibir práticas corrosivas das instituições, das leis e da regulação social do bem comum.

É certo que, desde há anos, se assiste a uma renovação do autoritarismo em África, e não só, ao mesmo tempo que se passou a duvidar de que a democracia seja o melhor regime para assegurar a boa governação69 ou o crescimento económico, para já não referir a coesão e a justiça social70. Apesar de décadas de observância formal dos mecanismos democráticos, quantos são-tomenses não estariam rendidos à ideia de que a boa governação era a do “pulso forte”, almejando que esta se revelasse justiceira ao punir os privilégios indevidos... até que a governação atrabiliária de Trovoada veio mostrar a importância da democracia, mesmo se reduzida a eleições competitivas e livres? Relembre-se que nas eleições a sociedade se cindiu.

Em parte, a benevolência para com o “pulso forte” resulta de há muito não se vincarem princípios políticos e éticos, uma falha por vezes explicada por imperativos da governação. Este espaço de um forçoso (e movediço) pragmatismo pode também ser um cadinho das derivas ditatoriais amparadas em virtudes ilusórias que, por vezes, população e governantes julgam ver nessas derivas. Por isso, não raro a “democracia africana” acaba reduzida a uma das várias modalidades do “pulso forte” ou a uma deriva autoritária.

Logo, a par da denodada aposta no fortalecimento das instituições que garantem os direitos dos cidadãos, talvez seja imperiosa a inequívoca afirmação de princípios, a estender à regulação dos desempenhos institucionais - por onde, aliás, deveria começar - para se poder lidar com a agrura e a acrimónia inevitavelmente resultantes das privações que, há décadas, avassalam a sociedade são-tomense.

Para parte dos ilhéus as eleições de 2018 decidiam entre a paragem ou a continuação da deriva autoritária. No caso, a equação era complicada pela circunstância de Patrice Trovoada nunca ter enjeitado a democracia71, mesmo se a governação se pautou por sucessivos atropelos à lei e, por fim, pela subversão do Estado de direito democrático - formalmente mantido como parte da sua subversão -, que só não foi completa pela realização de eleições. Estas comportavam uma escolha dilemática, assaz diversa das lucubrações sobre a aplicabilidade da democracia.

Pela primeira vez desde a implantação da democracia, umas eleições decidiam da respetiva sobrevivência72. A governação de 2014 a 2018, pautada pela surpreendente facilidade com que se desmorona um edifício constitucional, devia tornar os opinion makers e estudiosos mais cônscios da necessidade de sopesarem o valor de lemas criativos mas desajustados das realidades. Num tal contexto não será desarrazoado advogar uma supostamente exigente, mas, afinal, vaga e indefinida democratização da sociedade para além da observância das leis e da realização de eleições? Embora possa parecer banal, não será de saudar a realização de eleições livres e a paz política e social quando sobre a terra se abatia um horizonte de medo e de violência?

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1Independentemente de prováveis facetas não democráticas do sistema político no arquipélago, passíveis de inventariação num estudo tipológico norteado pela ciência política (atente-se nas possíveis variáveis e nos indicadores a considerar; cf., por exemplo, [xref ref-type="bibr" rid="r12"]Lindberg, 2006[/xref]), é indubitável que em São Tomé e Príncipe se viveu desde 1990 em regime democrático. Sem embargo da rala e desigual participação política, preservaram-se, mesmo se diminuídos pelas circunstâncias, crivos decisivos como a liberdade de expressão e o voto livre.

2Desde há anos, a democracia perdeu adeptos por deixar de estar associada à melhor performance económica por que, nos anos 90, no rescaldo das dificuldades da década precedente, os Estados africanos ansiavam. Ora, embora sociedades democráticas sejam mais abertas à competitividade e à inovação, a correlação entre democracia e progresso económico não é intemporal nem linear, dependendo de variadíssimos fatores e de sortilégios da história, como a do arquipélago o confirma.

3A racionalidade não é um dado da decisão política no terreno. E menos o é em função da impetuosa avalanche de informação não mediada ou da reflexividade crescente mas imponderada nos dias de hoje. Qualquer otimismo a respeito da sensatez da nova praça pública em qualquer sociedade tornou-se uma crendice ingénua e uma fonte de erros de análise.

4Estamos cientes da diferença entre democracia e multipartidarismo ([xref ref-type="bibr" rid="r7"]Chabal, 2002[/xref], pp. 127-128 e 133) – ainda assim grosso modo coincidentes no arquipélago durante décadas –, como também das nuances de regimes entre o democrático e o autoritário, que, por vezes, não se deixam de reclamar de democráticos. Até pela complexa interação e pela facilidade de construção de dependências pessoais num contexto micro-insular, valemo-nos de uma definição de democracia atida ao exercício das liberdades para uma livre escolha dos governantes.

5Por vezes de significados múltiplos, intrincados e, porventura, algo contraditórios. Por exemplo, a persistente adesão a Patrice Trovoada, traduzida numa votação relativamente equilibrada nestas eleições de 2018, não quererá significar que os seus votantes não quisessem preservar a possibilidade de validar a sua governação através de atos eleitorais, ao que, em última análise, se poderá resumir a democracia.

6Tal foi a expetativa em parte subjacente à eleição de Pinto da Costa em 2011 ([xref ref-type="bibr" rid="r16"]Nascimento, 2013[/xref]). Não se estranhe que uma das mensagens de Patrice Trovoada fosse a da necessária restauração da autoridade do Estado. Obviamente, os sentidos das expetativas populares e dos dizeres dos políticos são assaz diversos e, no caso da governação de Patrice Trovoada, o reforço da autoridade do Estado quase se resumiu ao apetrechamento da polícia e ao acréscimo da sua discricionariedade e da sua dominação apesar da observância (retórica) das disposições legais e constitucionais alteradas ad hoc.

7Referindo-se a Cabo Verde, Chabal defende que a matriz cultural é mais importante do que a ideologia na determinação do modo de funcionamento do campo político (cf. [xref ref-type="bibr" rid="r7"]2002[/xref], p. 91). A propósito, anotem-se as diferenças entre Cabo Verde e São Tomé e Príncipe já observáveis na era colonial ([xref ref-type="bibr" rid="r24"]Tenreiro, 1956[/xref]), evidenciadas nos rumos divergentes dos dois arquipélagos após a independência a despeito da comunhão da ideologia.

8Em março de 2013, Frederique Samba foi nomeado procurador-geral. Em junho, Patrice Trovoada foi acusado de lavagem de dinheiro, mas, salvo uma diligência risível, o processo nunca andou. Em 2014, a meses das eleições, Patrice Trovoada negou a acusação de branqueamento de capitais, atribuindo-a a motivações políticas, o que parecia plausível, mesmo para não apoiantes. Perante a maré política, a acusação caiu. Já o procurador acabaria nomeado em julho de 2018 juiz do STJ no âmbito do rearranjo ad hoc dos órgãos judiciais por decisão da ADI na assembleia. Diga-se, as acusações de parcialidade, antes atribuíveis à influência de Patrice Trovoada, atêm-se agora às acusações a membros do anterior governo. A prisão de um ministro é imputada à influência do governo de Jorge Bom Jesus (matéria que transcende o escopo deste texto).

9Para Chabal, multipartidarismo e democracia não são sinónimos (cf. [xref ref-type="bibr" rid="r7"]2002[/xref], pp. 127-128 e 133). Várias noções de democracia – mormente as que remetem para a democratização e para a pluralidade da vida política e social – têm menor relevância por serem idealizações menos atidas à realidade do arquipélago, onde a ação política falece por força da desagregação social, da deliquescência institucional e, não menos importante, da rara probidade pública e política numa terra de intenso escrutínio da vida alheia.

10Veja-se, por exemplo, a expressão das preocupações americanas em inícios de 2018 em https://www.telanon.info/politica/2018/02/02/26352/eua-alerta-o-poder-sao-tomense-para-garantia-da-liberdade-de-imprensa/ (Acedido em 26 de junho de 2019).

11Segundo Falola, desde há anos ocorre um renovado movimento no sentido do autoritarismo ([xref ref-type="bibr" rid="r9"]2004[/xref], p. 273), qual refluxo do que, afinal, teria sido mais um constrangimento do que uma adesão à democracia. Ora, apesar quer deste contexto africano, quer das provações sociais e das pulsões políticas, em São Tomé e Príncipe a democracia ainda concita apoio, incluindo da “rua” que prontamente invetiva os “políticos”. Num certo sentido, a democracia ainda parece oferecer alguma segurança contra a arbitrariedade decorrente da propensão voluntarista e autoritária.

12Para uma abordagem concisa quer da onda democrática e do seu refluxo, quer das análises desse movimento, ver [xref ref-type="bibr" rid="r12"]Lindberg (2006[/xref], pp. 52-53).

13Aliás, tão bem que, há anos, o apoio da rua e as adesões incondicionais, impensadas ou dúplices, de indivíduos socialmente distintos conferiram à eleição de Patrice Trovoada e ao seu esperado protagonismo político uma dimensão salvífica.

14Dir-se-ia que se compreenderia mal tais intentos autoritários de quem alega ter nascido no estrangeiro por força da “luta” e foi vítima da prepotência totalitária após a independência. Porém, é uma crendice inane supor que vítimas da arbitrariedade não a reproduzem.

15Acerca da luta entre nacionalistas no período de transição, ver [xref ref-type="bibr" rid="r20"]Nascimento (2019)[/xref].

16Apesar de somadas às dificuldades económicas agravadas de ano para ano no início da década de 1980, a quebra da ideologia e a corrosão da legitimidade do poder (assinaladas por [xref ref-type="bibr" rid="r21"]Sanches, 2015[/xref], p. 122) não conduziram a movimentações políticas e sociais de oposição. Na prática, estas reduziam-se a críticas à boca pequena que causticavam o regime à medida que se percebia que a sanha persecutória perdia fôlego. As movimentações políticas tiveram lugar depois da perceção do passo tendente à liberalização. Assim, como afirma Seibert, a adoção da democracia não resultou da pressão interna (2001). Para uma súmula do debate sobre a “mudança” para a democracia, ver [xref ref-type="bibr" rid="r14"]Nascimento (2007[/xref], pp. 74-76).

17Talvez a expressão que melhor sintetize o sentimento político de então, pautado pela quebra do ímpeto revolucionário e autoritário, seja a de marasmo ou de completa ineficiência, conforme descrição em [xref ref-type="bibr" rid="r2"]Cahen (1991[/xref], pp. 130-131).

18Acerca das incidências impolíticas dessa campanha, ver [xref ref-type="bibr" rid="r5"]Ceita (2012[/xref], pp. 397 e 419).

19Na biografia de Patrice Trovoada, Santos defende que Miguel Trovoada foi alheio à ideia e à formação da Ação Democrática Independente ([xref ref-type="bibr" rid="r22"]2014[/xref], pp. 178-179). A prudência e a comparação obrigam a duvidar desta tese, cabendo admitir como plausível a confluência de vontades entre o então presidente e o filho, Patrice Trovoada. Cumpriria comprová-la, indagando, por exemplo, quem e em que circunstâncias desencantou e apresentou aos dirigentes da ADI a hipótese de candidatura presidencial de Fradique de Menezes. Se ela tivesse sido apresentada por Patrice teria tido a mesma força entre aqueles que esperavam pela sua hora como recompensa pelo seu amparo a Miguel Trovoada?

20O “modelo promotor”, consequência das decisões tomadas no período de transição para a democracia, facilitou esta criação de partidos, a fragmentação partidária e a competitividade política. Veja-se, por comparação com o modelo protetor operante em Cabo Verde, as consequências do modelo promotor no tocante à competição partidária em São Tomé e Príncipe (cf. [xref ref-type="bibr" rid="r21"]Sanches, 2015[/xref], p. 142). Acrescente-se que, na ausência de competição entre as ilhas enquanto locus criador de identificação, e dada a crença no sucesso de uma arquitetura política consentânea com o substrato cultural, terá parecido negligenciável a proteção institucional da competitividade política. Na realidade, os são-tomenses não terão imaginado nem os efeitos política e socialmente corrosivos da continuação da pobreza, nem os efeitos do aprofundamento das dinâmicas de pessoalização do poder – iniciada aquando da independência – perniciosos para a ação das instituições, dinâmicas contra as quais de nada valeriam as baias de cariz institucional. Neste caso, as consequências, muitas inimagináveis, decorrem, não das medidas tomadas num período crucial – em 1990, a exemplo do já sucedido em 1974-1975 ([xref ref-type="bibr" rid="r20"]Nascimento, 2019[/xref]) –, mas das medidas não tomadas, entre outras razões, por incapacidade ou desinteresse em pensar as múltiplas possibilidades de deriva política e institucional.

21Por conta da debilitação das instituições, a sociedade e a democracia pagam um elevado preço porque a dado passo parece que só o voluntarismo e a força de alguém resolverão os problemas. Face a tal deriva, advogar mudanças de arquitetura política sem denunciar a autoria da infração às leis corresponde a uma sorte de escapismo intelectual, nalguns casos porventura bem-intencionado mas, em todo o caso, inútil e contraproducente…

22O problema não está na democracia, nem sequer na impossibilidade de a adaptar (em termos talvez nunca concretizados). Uma das dificuldades, e de monta, é a de nomear os farsantes ou responsabilizar os políticos. Ora, na impossibilidade de nomear os políticos – liberdade que a “rua” tem –, inculpar a democracia é fácil mas inútil. Labora-se numa equação errada porque a democracia não é um ator, é um cenário de possibilidades de ação e de decisão. Obviamente – e como sustentou Patrice Trovoada em entrevista ao semanário português Sol (cf. https://sol.sapo.pt/artigo/76608/patrice-trovoada-pinto-da-costa-nao-esta-a-altura, acedido em 25 de novembro de 2019) – o problema são as pessoas. De resto, foi com tais asserções que ele ganhou o eleitorado. Claro que à verdade que a conjuntura conferia ao que ele dizia, importaria acrescentar que o pecado original é de todos, mormente de todo e qualquer um que viole a lei. Diga-se, em São Tomé e Príncipe as instituições são demasiado frágeis e incapazes de prevenir e punir a violação continuada e sistemática das leis. Diria que, ao arquipélago, só já lhe valem, ainda que cada vez menos, os valores que sustentam as sociedades quando lhes falecem as instituições e as leis.

23Porventura, operam outros considerandos de difícil computação na formação dos sentimentos políticos. Anos a fio, a vox populi nomeava este e aquele político, para não dizer a totalidade, como “ladrões”. Porém, prevalece a adesão, por vezes incondicional, a quem afeta a posse de meios de origem desconhecida, desde logo por não provirem de atividade na terra. A indulgência (impensada ou inconfessada) relativamente a cada político decorre da adesão, conjuntural, das gentes se ele se revelar ou se perfilar como o mais forte. Neste caso, é como se se esvanecesse a capacidade crítica da “rua” e o moralismo sumário fosse substituído por uma crença acéfala nos propósitos do putativo mandante, avaliados pelo valor facial das promessas e, sobretudo, pela prodigalidade de meios. Acerca deste mecanismo enviesado de contato entre quem se apropria e distribui os recursos e o comum das gentes em privação crónica, veja-se Chabal e Daloz, para quem o verdadeiro desapossado seria o que não tem chefe ([xref ref-type="bibr" rid="r8"]1999[/xref], p. 42), não vendo, por isso, reconhecida a sua existência social.

24Independentemente do juízo que se possa fazer acerca de cada um dos visados, a verdade é que, no que é de conhecimento público ou se propala – o que nas ruas vale o mesmo –, não faltariam motivos pelos quais os ilhéus o poderiam invetivar como aos outros políticos. “De facto, já após a conquista do poder, não foi preciso andar muito nas ruas para ouvir acerca dele o que comummente é dito dos políticos e de qualquer um que esteja ou tenha estado no poder” (Testemunho pessoal, A. Nascimento).

25Quando está no poder, também prima pela ausência, como foi por demais evidente nestes últimos quatro anos.

26Diga-se, a dimensão salvífica foi atribuída a outros políticos, por vezes a partir do nada – o mesmo é dizer, por o ponto de partida desses políticos ser exterior à vivência local – e por força das circunstâncias, como resulta dos casos de Pinto da Costa, Miguel Trovoada e, em especial, Fradique de Menezes. Porém, estes não podiam ter a convicção de um dia chegar ao poder como homens providenciais. Diferentemente, a trajetória de Patrice Trovoada foi engenhosamente preparada.

27“Cabe uma advertência: é impossível adicionar comprovação empírica de alguns laços e de alguns lances sem colocar em causa pessoas. Por isso, algumas inferências quedam aferíveis apenas pela congruência da narrativa e da explicação” (A. Nascimento).

28Esta inferência baseia-se em indiscrições relativamente a lealdades devidas a Patrice Trovoada – que tive ocasião de comprovar pela trajetória das pessoas – e na leitura de entrevistas com vários anos que indiciam que tais lealdades já operavam. Eram lealdades subterrâneas porquanto as pessoas aparentavam e até protestavam ser independentes ou ter outras filiações partidárias, majorando, dessa forma, o impacto da (posterior) aceitação de Patrice Trovoada, assim aureolado como providencial.

29Esta inferência é difícil de provar por falta de suporte empírico bastante (embora possivelmente os são-tomenses tenham conhecimento de factos indiciários dessas relações). Não obstante, e tomando como exemplo o MLSTP, a sua oposição afigura-se tão inane que não se pode deixar de equacionar uma tal hipótese.

30Santos alude ao apoio do MPLA à candidatura de Patrice Trovoada contra Fradique de Menezes, detestado pelos angolanos ([xref ref-type="bibr" rid="r22"]Santos, 2014[/xref], pp. 239-240). Ao tempo, à luz dos interesses do MLSTP, deveria importar que o MPLA se tivesse decidido pelo apoio a Patrice Trovoada?

31Em 2006, Posser da Costa era responsável máximo do MLSTP. Em 2018, na qualidade de advogado de Melo Xavier – empresário angolano com vários interesses em São Tomé e Príncipe e, concretamente, na cervejeira Rosema, cuja posse foi disputada em sede judicial –, veio a ser afrontado por Patrice Trovoada aquando da reversão da sentença do STJ por ação policial, ação que, evidentemente, não teria acontecido sem a anuência de Patrice Trovoada.

32Cf. https://uk.groups.yahoo.com/neo/groups/saotome/conversations/messages/15487 (Acedido em 16 de agosto de 2015).

33Acerca do ambiente político por ocasião das eleições de 2010, veja-se [xref ref-type="bibr" rid="r15"]Nascimento (2010)[/xref]. A esse momento e, por certo, ao das eleições de 2014 poderia aplicar-se a interpretação de Santos acerca do paradoxo dos Trovoadas que concitavam, por um lado, o apoio e o respeito do “Povo” e, por outro, o ódio e as manobras de uma elite política ([xref ref-type="bibr" rid="r22"]Santos, 2014[/xref], pp. 182-183). Apesar de simplista e maniqueísta, referido a 2010, tal apontamento ainda tinha sentido em 2014, quando Patrice Trovoada ainda não perfizera uma governação por que pudesse ser avaliado.

34Fradique foi destratado na encomiástica biografia de Patrice Trovoada ([xref ref-type="bibr" rid="r22"]Santos, 2014[/xref], pp. 217-218).

35Tomé Vera Cruz acusou Fradique de deslealdade. A este respeito, veja-se a carta aberta de Vera Cruz, de 2010. https://www.telanon.info/politica/2010/05/27/4139/4139/ (Acedido em 20 de junho de 2019).

36Desde há anos que se assinala a ausência de diferenças ideológicas entre os partidos. Como também Frynas, Wood e Oliveira notaram, a causa dos conflitos no seio da elite é a partilha dos fundos da ajuda internacional. Mais do que conflitos duradouros, ocorrem pequenos conflitos cuja solução acaba por não excluir futuros acordos entre os litigantes e, mais concretamente, as figuras-chave ([xref ref-type="bibr" rid="r10"]Frynas et al., 2003[/xref], pp. 74-76). Ora, uma razão para a clivagem mais profunda entre Patrice Trovoada e os demais políticos era o seu ostensivo propósito de se furtar a tal lógica de rotatividade observável desde a adoção da democracia.

37Com essa designação, Patrice Trovoada vincava a assimetria entre esse povo e as elites de “ladrões” e “corruptos”, com quem prescindia de dialogar.

38Cf. http://www.dw.com/pt/s%C3%A3o-tomenses-acreditam-que-uma-ditadura-esteja-a-caminho-no-seu-pa% C3%AD s/a-17093222 (Acedido em 14 de agosto de 2015).

39“Em 2014, em Lisboa, ouvi falar do propósito de instaurar uma ditadura. Perguntei ao orador quem queria concretizar tal propósito e foi-me respondido ‘Pinto da Costa’” (A. Nascimento). Para os circunstantes, a par da eventual vontade em acreditar, o desassombrado processo de intenções ao presidente talvez fosse a melhor prova da verdade da asserção. Em todo o caso, a análise não podia guiar a tal conclusão, desde logo por a conjuntura ser avessa a tal intento, se ele porventura existisse (diferentemente, corroboraria a ideia de que a mais que provável retumbante vitória da ADI não agradava a Pinto da Costa). Afinal, o presidente marcara eleições na véspera. Fosse como fosse, a seriedade analítica fora trocada a favor de um registo panfletário que se sabia não corresponder à verdade.

40Cf. https://sol.sapo.pt/artigo/76608/patrice-trovoada-pinto-da-costa-nao-esta-a-altura (Acedido em 10 de junho de 2019).

41Cf. https://www.telanon.info/politica/2017/05/07/24362/militares-ruandeses-destacados-em-sao-tome-com-polemica/ (Acedido em 17 de junho de 2019); http://pt.rfi.fr/sao-tome-e-principe/20170508-oposicao-contra-presenca-de-oficiais-ruandeses-em-sao-tome (Acedido em 11 de junho de 2019). Aparentemente, desconhecia-se o número de militares ruandeses e o tempo de permanência no território. Os militares ruandeses terão treinado um corpo especial de são-tomenses, que, bem equipado, obedecia ao primeiro-ministro Patrice Trovoada.

42Uma expressão corrente na campanha para a eleição derivada da avaliação do seu trajeto, da pertença a um partido de homem só, fulcral para a sua eleição, e, porventura, do curso da sua vida. Obviamente, Evaristo Carvalho tentou rebater esse epíteto (cf. https://ivairs.wordpress.com/2016/08/11/evaristo-carvalho-o-novo-presidente-de-sao-tome-e-principe-afirma-nao-serei-um-pau-mandado/, acedido em 17 de junho de 2019) que, todavia, a sua atuação e, em particular, a promulgação de diplomas inconstitucionais ou a tergiversação perante ilegalidades, comprovou.

43Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/01/03/26176/mlstp-evaristo-rasgou-a-constituicao-politica-e-lanco u-para-o-lixo/ (Acedido em 14 de junho de 2019).

44Acerca das consequências deste passo, coteje-se [xref ref-type="bibr" rid="r19"]Nascimento (2018b)[/xref].

45Embora relutante a teorias conspirativas como explicações históricas, não arredaria a hipótese da captura de dirigentes de um partido de oposição.

46Em setembro de 2017, o procurador-geral prometeu punir os autores de crimes de difamação e injúrias na internet (https://www.telanon.info/politica/2017/09/27/25379/procurador-geral-promete-cacar-criminosos-ciberneticos/, acedido em 17 de junho de 2019), propósito apoiado pelo primeiro-ministro (https://www.telanon.info/politica/2017/10/ 03/25399/patrice-e-bom-que-a-justica-toma-conta-deles/, acedido em 17 de junho de 2019). A intimidação não terá surtido efeitos práticos, desde logo pela duplicidade dos sequazes de fidelidade menos estrita e, também, pela falta de meios para concretizar tal ameaça.

47Cf. http://abola.pt/Mundos/Noticias/Ver/710201 (Acedido em 9 de janeiro de 2018).

48A acusação amiudada de que Patrice Trovoada é um “gabonês” – avivada, aliás, pelo pouco que se sabe dos seus atos, incluindo os processos de decisão – tem contornos políticos que importa considerar enquanto elemento de formação dos juízos políticos na sociedade islenha. Porém, cumpre reafirmar que a interpretação do sentido dos atos políticos, e não só, de modo algum pode menorizar a plenitude política e jurídica da nacionalidade de todos os são-tomenses.

49Cf. https://www.telanon.info/politica/2017/05/04/24348/stp-falar-nao-pode/ (Acedido em 17 de junho de 2019).

50Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/06/12/27197/patrice-pj-com-escutas-para-mudar-comportamentos-na-socie dade/ (Acedido em 17 de junho de 2019).

51Já após as eleições, a acusação seria alterada para crime contra o presidente Evaristo Carvalho. Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/08/08/27560/alegada-operacao-terrorista-para-subverter-a-ordem-constitucional-em-stp-foi-desmantelada/ e https://www.telanon.info/politica/2018/11/09/28160/mp-deduziu-acusacao-contra-20-ale gados-golpistas/ (Acedido em 18 de junho de 2019). Porém, por ocasião da posse do novo governo, por decisão judicial os cinco réus presos foram soltos e sujeitos a termo de identidade e residência. Mais tarde, o ministro da Defesa e Ordem Interna veio dizer que não existiu qualquer tentativa de golpe. Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/12/19/28408/ministro-da-defesa-denuncia-golpes-de-estado-forjados/ (Acedido em 19 de junho de 2019).

52Na circunstância, agentes da polícia e um elemento da guarda pretoriana do primeiro-ministro foram pronunciados pela morte do jovem. Cf. https://www.telanon.info/sociedade/2018/10/05/27920/jovem-morre-nas-maos-da-forca-governamental-e-tumulto-agita-trindade/; https://www.telanon.info/sociedade/2018/10/05/27930/morte-do-jove m-funeral-foi-esta-noite/, https://www.telanon.info/sociedade/2018/10/05/27933/morte-do-jovem-agentes-da-forca-governamental-acusados-pelo-ministerio-publico/ (Acedido em 19 de junho de 2019).

53Ex-presidente do conselho de administração da Autoridade Conjunta Nigéria / São Tomé e Príncipe, o economista Jorge Santos foi aparentemente vítima de um assalto à sua residência.

54Este efeito de arrastamento – contrário à suposição de que as eleições seriam um momento de desforra da população desencantada, como, de resto, já sucedera com o “castigo” do partido único, a derrota do PCD e as do MLSTP desde 2010 – também se observa noutros países, onde os resultados eleitorais por vezes revelam um conformismo algo inexplicável. Noutros termos, a adesão ao mais forte – porventura o fator mais decisivo para parte dos votantes – e o receio de novos conflitos não terão jogado o seu papel?

55Ver, por exemplo, https://www.telanon.info/politica/2018/09/15/27764/o-que-vai-estar-em-jogo-nestas-eleicoes-e-a-sobrevivencia-da-democracia/ (Acedido em 18 de junho de 2019).

56Se em momentos anteriores, a relação chefe-cliente fora fundamental, porquanto a população esperava ajuda concreta em troca do apoio político, sendo esta a única perspetiva segundo a qual a política faz sentido para a população ([xref ref-type="bibr" rid="r8"]Chabal & Daloz, 1999[/xref], pp. 38-39), para a diminuição do “banho” em 2018 pode ter contado a intuição de indesejáveis incertezas advindas da provável deriva autoritária.

57Mesmo que traduzam uma afinidade étnica ou laços clientelares, nem por isso os votos no Movimento de Cidadãos Independentes de Caué são menos legítimos do que outros (em todo o caso, a estar em vigor a lei nº 8/90, o dito Movimento poderia representar uma violação da interdição da formação de partidos de cariz regional concorrentes às legislativas). Seja como for, esses votos indiciam clivagens internas e disrupção social. Sobretudo, evidenciam o quanto a pobreza e a exclusão tornam as pessoas permeáveis a um mísero “banho” ou, talvez ainda mais, ao caciquismo. Ainda que não se possa aceitar acriticamente o relato do jornal (https://www.telanon.in fo/politica/2018/10/09/27960/povo-resgatou-a-democracia-e-tera-dado-golpe-de-misericordia-ao-banho/, acedido em 18 de junho de 2019), não deixa de ser significativa a fidelização dos votantes aos irmãos Monteiro.

58Não era evidente que na ausência deste movimento, os resultados fossem favoráveis à ADI. Este passo denota uma apuradíssima noção da oportunidade e da tática política.

59No arquipélago, não eram inéditas as acusações de fraude mas, ao invés das anteriores, formuladas de modo contido e à guisa de desculpa por derrotas, desta feita a suspeição revestia-se de dramatismo.

60Os primeiros resultados foram anunciados a 8. Patrice Trovoada saiu a 12 e, só dias depois, a 19, deu sinal de si, numa entrevista em Portugal na qual admitiu afastar-se do poder. Cf. https://www.dn.pt/mundo/interior/sao-tomeeleicoes-pm-patrice-trovoada-pede-entendimento-alargado-e-admite-afastar-se-do-poder--10033336.html (Acedido em 18 de junho de 2019).

61 Quem anos antes prometera sangue, veio afirmar não poder dizer que as eleições tinham sido falseadas quando tinham sido livres e justas. Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/12/12/28358/convulsao-na-adi-levy-nazare-partiu-as-loicas-todas-e-diz-que-teme-pela-sua-vida/ (Acedido em 19 de junho de 2019). Já o ministro Olinto Daio não se prontificou a ser imolado à frente de um governo por antecipadamente derrotado no Parlamento. Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/11/25/28241/olinto-daio-declinou-o-convite-de-patrice-para-ser-candidato-ao-cargo-de-1o-ministro/ (Acedido em 19 de junho de 2019). Esta apreciação de um ator do lado perdedor não elide um problema virtual mas significativo para a análise e valoração das eleições, a saber, o de como considerar tais eleições se porventura Patrice Trovoada – do qual se poderá dizer ser autor de uma deriva autoritária em curso mas não um rematado autocrata ou ditador – tivesse ganho. À luz de que dados e ponderações se poderia considerar as eleições como não livres nem justas?

62Um quadro de possibilidades posteriormente confirmado pelas declarações de Levi Nazaré após entrar em rota de colisão com Patrice Trovoada. Segundo Levy Nazaré, ele recusou-se a mobilizar militantes da ADI para contramanifestações, endossando tal responsabilidade a quem lho demandava, Patrice Trovoada. Cf. https://www.telanon.info/politica/2018/12/12/28358/convulsao-na-adi-levy-nazare-partiu-as-loicas-todas-e-diz-que-teme-pela-sua-vida/ (Acedido em 19 de junho de 2019).

63Cf. https://www.lusa.pt/article/24952696/pm-s%C3%A3o-tomense-lamenta-atraso-na-acusa%C3%A7%C3%A3o -de-suspeitos-de-alegado-plano-de-ataque (Acedido em 12 de outubro de 2018).

64Diga-se, tal pode não bastar para uma sociedade, que, de tão frágil, se afigura facilmente capturável por desígnios políticos nebulosos, voluntaristas e, nessa medida, inapelavelmente disruptivos e excludentes.

65Poderíamos sopesar a perspetiva de que a relação entre governantes e governados tem pouco a ver com as estruturas formais de poder, pelo que os fundamentos da responsabilidade política são extrainstitucionais, feitos de laços particulares – de fação – entre os big men, ou chefes, e as respetivas comunidades. De resto, não seria evidente que a democratização e as transições democráticas tivessem modificado as relações políticas entre governadores e governados (cf. Chabal & Daloz, 1999, p. 37). A ser adotada para São Tomé e Príncipe, esta perspetiva interpretativa – para que se encontra algum suporte empírico – poderia sustentar a ideia da inviabilidade da democracia, até por falta de independência e de capacitação do Estado. Por ora, o arquipélago ainda não se enquadra completamente nesta caracterização, até por, em última análise, ainda se invocar o Estado quando se apela à ordem social e se concita à autoridade, à regulação e à coesão, mesmo se já se está ciente de que o Estado não é mais a entidade presente, como, por exemplo, foi no ocaso do colonialismo e, por algum tempo, no regime de partido único.

66Enfatize-se que, pressupondo uma cultura islenha ou um conjunto de artefactos culturais singulares e supostamente específicos dos são-tomenses, procurar facetar uma democracia adaptada à matriz cultural dos ilhéus parecerá um intento louvável. Porém, independentemente da celebração da são-tomensidade, importará inquirir o que é que esta noção, e o conglomerado cultural a que ela alude, têm de transitivo para a prática política ou, mais propriamente, se serve de muito quando se pensa em escolhas como a das eleições de outubro de 2018. Acresce que a idealizada são-tomensidade forçosamente estará corroída pelos expedientes de safar a vida no difícil dia a dia dos desapossados no arquipélago.

67Contra a facilidade com que se invoca não se sabe bem o quê, cite-se a opinião de Mbembe de que o “bastão, o gorro de leopardo e o enxota-moscas constituem símbolos de modos de governar que, para se sistematizarem ideologicamente, recorrem a conceitos espantosos como o de ‘democracia à africana’” ([xref ref-type="bibr" rid="r13"]2013[/xref], pp. 102-103). Para dar nota da vacuidade da supracitada invocação, acrescente-se que alguns destes referentes (miméticos) de uma suposta africanidade – que ainda chegaram a entrar em São Tomé em 1975 – foram celeremente preteridos em benefício das balalaicas, tornadas o traje oficioso do regime.

68Contra apriorismos sedutores mas apartados das realidades, é forçoso supor que muitos trocariam, talvez envergonhadamente mas de bom grado, a sua parcela individual de decisão política pela resolução dos seus problemas básicos mesmo se à custa da contenção do seu padrão de necessidades. Atualmente, em São Tomé, laborará contra a democracia a perceção de esta não servir senão para os “políticos” enriquecerem por conta de um desempenho fictício em prol do bem comum. À vez, e consoante as afeições, todos os políticos acabam por ser encarados depreciativamente. Neste particular, a São Tomé e Príncipe aplicar-se-ia a ideia de que a desejável reconstrução social em África com base na autoconfiança é tolhida pelos óbices apostos pelos interesses e valores da maioria das elites e de suas redes de patronagem ([xref ref-type="bibr" rid="r4"]Castells, 2002[/xref], p. 154).

69Em tese, cumpre acolher dúvidas pertinentes e legítimas, por exemplo, a de ser, ou não, a democracia o melhor regime para assegurar a boa governação (por exemplo, [xref ref-type="bibr" rid="r9"]Falola, 2004[/xref], pp. 273 e 274). Em todo o caso, o autor, que lista entre as heranças do colonialismo o Estado-nação como um fardo, o capitalismo como um falhanço, e a democracia como uma ilusão, pondera a circunstância de parecer inexistirem alternativas credíveis ([xref ref-type="bibr" rid="r9"]Falola, 2004[/xref], p. 117). Embora seja uma reconhecida voz africana, não estará tão distante quanto outros (ditos ocidentais ou eurocêntricos) do contexto aqui em apreço? Poderá uma boa governação dispensar a observância da lei emanada de um poder representativo?

70Pode ser argumentado que, entregue a si mesmo, o mercado – um pressuposto da democracia liberal ou representativa – nem sequer democratiza o ambiente económico. Ao contribuir para a pobreza e para outras iniquidades sociais, também por força da integração desigual de África no mercado mundial, não reforça, antes pelo contrário, a democratização da sociedade, pois que os itens da democracia dirão pouco aos desprovidos dos mais básicos bens necessários à sobrevivência ([xref ref-type="bibr" rid="r11"]Kieh Jr. & Agbese, 2014[/xref], p. 8). Este argumento merece ponderação. Porém, queda por saber que outra arquitetura política preveniria os efeitos dolosos da dicotomia entre a esfera económica e o poder político, talvez também presentes, ainda que sob outras roupagens, noutros regimes políticos impostos após as independências.

71Aduziu como prova da democracia a existência do Tela Non. Cf. https://www.telanon.info/sociedade/2018/ 05/14/27001/patrice-indica-tela-non-como-prova-da-liberdade-de-imprensa-em-stp/ (Acedido em 27 de junho de 2019).

72Numa síntese forçosamente simplista, dir-se-ia que a trajetória de empobrecimento e de desespero, por um lado, e de deliquescência institucional, por outro, tornam São Tomé e Príncipe uma sociedade onde, por força de vincadas clivagens sociais, o primarismo e a pulsão se impõem à ponderação, à mediação, impedindo a construção de um mínimo denominador e abrindo o caminho a derivas autoritárias (presumivelmente) envoltas em desígnios aparentemente restauradores da justiça e da equidade. As disrupções sociais são avessas à democracia, de que até hoje persistiu a possibilidade de eleições livres e competitivas (de que, independentemente de outros condicionalismos, o “banho” fez parte). No arquipélago, as eleições como que traduzem um resiliente consentimento tácito a uma decisão comum. Seja como for, tais disrupções sociais, impensáveis há não muitos anos – para já não mencionar os projetos da independência –, não são de bom agouro para a democracia porque a história do arquipélago, e não só, se faz de lances que, ao contrário de lucubrações de intelectuais e de presumidos desejos de políticos, não se constituem de racionalidade e ponderação.

Recebido: 30 de Junho de 2019; Aceito: 02 de Outubro de 2019

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