A República Democrática de Timor-Leste (RDTL) apresenta como singularidades um período de administração transitória das Nações Unidas (1999-2002) e a instância de edificar um Estado de raiz, na decorrência da eclosão dos confrontos e da vaga de destruição desencadeados pelas forças indonésias e por milícias armadas, após a divulgação dos resultados da Consulta Popular, a 4 de setembro de 1999. De acordo com o relatório de 2002 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 1999 o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Timor-Leste era de 0,395 e em 2001, de 0,421, despontando como um dos mais baixos da Ásia e um dos piores do mundo. Já o rendimento per capita estimado para 1999 era de 337 USD, o que colocava o país no último lugar do ranking do Produto Interno Bruto (PIB) de 162 países (PNUD, 2002).
Na esfera educativa, o cenário do pós-referendo era complexo e desolador: cerca de metade da população não sabia ler nem escrever, mais de dois terços das escolas tinham sido parcial ou totalmente arrasados, todos os materiais didáticos removidos, apenas perto de 75% dos docentes do ensino básico tinha permanecido no território e o número de professores do ensino secundário não atingia os 20% (World Bank, 1999). Destarte, como sublinha o ex-ministro da Educação, João Câncio Freitas:
falar do setor da educação de Timor-Leste é falar de um evento histórico em que uma das mais jovens nações do mundo teve de reconstruir, a partir do zero, toda a estrutura e todo o sistema de educação e de ensino. (Freitas, 2012, p. 7)
A maioria dos atores da cooperação internacional defende que a educação fomenta a estabilidade a seguir a um conflito desta dimensão. Sustenta, igualmente, que os baixos níveis de escolarização representam um enorme constrangimento para a evolução económica e social dos países. A este respeito, o PNUD sublinha que a educação “é uma das componentes fundamentais do desenvolvimento humano. A não ser que as pessoas tenham pelo menos um mínimo de educação básica, muitas das outras escolhas permanecem inacessíveis para elas” (PNUD, 2002, p. 50).
Este artigo observa a evolução do sistema educativo da RDTL e os desafios que atualmente se colocam ao setor. Na presente abordagem não é equacionado o ensino superior. As considerações explanadas têm como suporte: (i) a Constituição da RDTL; os programas de governo; planos estratégicos; a Lei de Bases da Educação e normativos; e relatórios nacionais e dos parceiros do desenvolvimento; (ii) dados estatísticos do Ministério da Educação, da Direção-Geral de Estatística do Governo e dos Censos de 2004, 2010 e 2015; e (iii) as perceções de seis decisores políticos.
Evolução da educação e do sistema educativo
Ao longo dos dois anos de administração das Nações Unidas, a educação foi encarada como uma das áreas de intervenção a priorizar, motivando a definição de um plano de ação que tinha como desígnios: (i) a (re)construção das escolas; (ii) o apetrechamento das salas de aula; (iii) a contratação e a formação de voluntários para exercerem funções docentes; (iv) a reintrodução da língua portuguesa (língua oficial, a par do tétum, e língua de instrução); (v) a elaboração e a disseminação de materiais didáticos; e (vi) a preparação do currículo para os primeiros seis anos de escolaridade. Ainda que respondendo apenas a necessidades imprescindíveis, as iniciativas empreendidas viabilizaram, em outubro de 2000, o regresso à escola das crianças.
Após a restauração da independência, em 2002, os níveis de iliteracia continuavam muito elevados (PNUD, 2002; World Bank, 2004) e o cenário foi paulatinamente evoluindo (Figura 1). Simultaneamente, a população passou de 741.530 habitantes em 2004 para 1.183.643 em 2015, o que reflete um acréscimo de 442.113 (Figura 2) e veio intensificar os desafios políticos, económicos e sociais.
Em 2015, 50,6% dos timorenses tinha menos de 20 anos (Figura 3) e:
there were 717,553 persons of working age (15 years old and over) in 2015 in Timor-Leste, of whom 402,664 were in the labour force, 383,331 as employed and 19,333 as unemployed persons. The labour force participation rate was 56,1 percent and the unemployment rate was 4,8 percent. (General Directorate of Statistics, UNICEF, & UNFPA, 2017, p. ii)
A construção de um sistema educativo a partir do zero exigiu, portanto, a planificação de reformas estruturais que garantissem a edificação de um sistema sólido e estável. Procedeu-se, desde 2002, entre outros: (i) ao desenvolvimento do primeiro currículo para o ensino primário (do 1.º ao 6.º ano do ensino básico); (ii) à reintrodução da língua portuguesa; (iii) ao investimento na formação de professores; (iv) à expansão do acesso ao ensino; (v) à elaboração de um quadro legislativo e normativo; (vi) à formulação e aprovação da Lei de Bases da Educação (LBE); (vii) à delineação da Política Nacional de Educação (2007-2012); (viii) à definição e aprovação do Plano Estratégico Nacional da Educação 2011-2030; (ix) à reforma da gestão da educação; e (x) ao desenvolvimento dos currículos para o pré-escolar, para o Ensino Básico (EB), para o Ensino Secundário Geral (ESG) e para o Ensino Secundário Técnico-Vocacional (ESTV). O Friso 1 espelha as políticas de educação de maior relevo empreendidas após o colapso do sistema educativo.
Ele permite verificar que: (i) o primeiro currículo surgiu três anos após a independência, em 2005; (ii) a LBE foi promulgada em 2008, com a Lei n.º 14/2008 de 29 de outubro; (iii) o Estatuto da carreira dos educadores de infância e dos professores do ensino básico e secundário foi aprovado em 2010, com o Decreto-Lei n.º 23/2010 de 9 de dezembro; (iv) o Plano curricular do ESTV foi publicado em 2010, com a publicação do Decreto-Lei n.º 8/2010 de 15 de fevereiro ; (v) o Plano curricular do 3.º ciclo do EB surgiu em 2011, com a Resolução do Governo n.º 24/2011 de 10 de agosto; (vi) o Plano curricular do ESG apareceu em 2011, com o Decreto-Lei n.º 47/2011 de 19 de outubro; (vii) o Currículo nacional de base da educação pré-escolar foi deferido em 2015, com o Decreto-Lei n.º 3/2015, de 14 de janeiro; e (viii) o 2.º Currículo nacional de base do 1.º e 2.º ciclos do EB, com o Decreto-Lei n.º 4/2015 de 14 de janeiro.
Cruzando as medidas com os programas de governo e com as respetivas orgânicas2, retém-se que: (i) o II Governo procurou “dar continuidade à melhoria das condições e da qualidade de ensino nas escolas” (PN-RDTL, 2006, p. 1424); (ii) ao Ministério da Educação do III Governo competiu, entre outros:
Propor a política e elaborar os projetos de regulamentação necessários às suas áreas de tutela;
Assegurar a educação da infância, a alfabetização e o ensino;
Propor os curricula dos vários graus de ensino e regular os mecanismos de equiparação de graus académicos (...) (Decreto-Lei n.º 4/2007, p. 1785).
(iii) o IV Governo, no seu Plano Governativo, elegeu a Educação como um investimento no futuro e por isso destacou “áreas prioritárias de intervenção, através da criação de um plano de ação orientado para a reforma do sistema de ensino” (PCM-RDTL, 2007, p. 8). Para o efeito, comprometeu-se, entre outros, a:
“criar infraestruturas e as condições necessárias para capacitar o pessoal docente e não docente das escolas”;
reequacionar a “problemática da língua oficial de ensino e do ensino de outras línguas, incluindo as línguas nacionais, o inglês e/ou o indonésio, como línguas de trabalho”;
realizar a “melhoria e o reforço do parque escolar”;
fortalecer a “política de maior retenção (diminuição do absentismo escolar) e promoção no ensino básico, que deverá ser gratuito para todas as crianças”;
“criar as condições para uma melhor articulação entre o Ensino Secundário Geral, o Ensino Técnico e a Formação Profissional” (PCM-RDTL, 2007, pp. 39-40).
E determinou: (i) a ratificação do plano Política Nacional de Educação 2007-12: Construir a nossa nação através de uma educação de qualidade (PNE); (ii) o aumento do orçamento para o setor em 30%; e (iii) a aprovação de uma nova Lei Orgânica do Ministério da Educação. O Quadro 1 explicita a evolução do sistema educativo desde 20043.
Quanto ao Plano Estratégico Nacional da Educação 2011-2030, este veio reforçar que a educação e a formação fomentam a melhoria das oportunidades do povo ao ajudá-lo a:
concretizar todo o seu potencial. São também vitais para o crescimento e desenvolvimento económico de Timor-Leste. A nossa visão é de que todas as crianças timorenses devem ir à escola e receber uma educação de qualidade que lhes dê os conhecimentos e as qualificações que lhes permitam virem a ter vidas saudáveis e produtivas, contribuindo de forma ativa para o desenvolvimento da nação. (ME-RDTL, 2011, p. 18)
Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados no Plano Estratégico Nacional da Educação 2011-2030 do ME, para o período compreendido entre 2004 e 2010, e na página do Ministério de Educação (EMIS), para o período compreendido entre 2011 e 2017.
Atendendo à importância conferida ao 1.º e 2.º ciclos do EB a seguir à independência, observa-se o crescimento exponencial do número de alunos, de escolas e de docentes. Após este período, consideram-se relevantes os anos subsequentes: (i) à implementação do novo currículo do ensino primário (1.º e 2.º ciclos do EB) e à publicação da LBE; e (ii) à implementação dos currículos do ESTV, do 3.º Ciclo do EB, do ESG e da educação pré-escolar.
Assim, verifica-se que, entre 2004/2005 e 2010, o número de alunos passou de 147.207 para 230.562, que o número de professores conheceu um aumento de mais de 45% e que foram construídas mais 225 escolas.
Com referência ao período que se estende de 2010 a 2017, no ensino pré-escolar, retém-se, entre 2015 e 2017, um acréscimo de 2.849 alunos, de 76 escolas e de 43 docentes. Quanto ao 3.º ciclo do EB e ao ES, o primeiro registou um crescimento de 24.589 alunos e o segundo de 20.827. Já o número de docentes quase duplicou no 3.º ciclo do EB (entre 2010 e 2015) e manteve-se praticamente idêntico no ES. Relativamente às escolas, infere-se que o investimento ficou aquém do necessário.
Na sequência do explanado, depreende-se a persistência de inúmeros constrangimentos, sobretudo no ES. Aliás, a Figura 4, alusiva ao número de alunos por turma, é disso ilustrativa. Enquanto se assiste a um ligeiro decréscimo no 1.º e 2.º ciclos do EB, no 3.º ciclo do EB e no ES estes são extremamente elevados. No ES, por exemplo, o número de discentes por sala e por docente ronda os sessenta.
Elaborado pela autora a partir dos dados estatísticos disponibilizados na página do Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017
A despeito dos sucessos alcançados, importa, por conseguinte, atentar, por um lado, à diminuição do número de alunos no 1.º e 2.º ciclos do EB desde 2013 e, por outro, à discrepância entre o número de discentes que frequentam estes ciclos e os ciclos subsequentes.
Tomando como referência o ano de 2017, e tendo como suporte o facto de o número de alunos do 1.º e 2.º ciclos do EB não ter conhecido grandes variações, nota-se um decréscimo de 134.885 crianças no 3.º ciclo do EB e de 160.952 entre o 1.º e 2.º ciclos do EB e o ES. O facto de o ES não ser obrigatório pode explicar a disparidade constatada. Contudo, a mesma leitura não pode ser efetuada para o 3.º ciclo do EB.
Seguindo esta linha, interessa olhar para as diferenças entre as taxas brutas4 e reais5 de matrículas; e para as taxas de retenção e de abandono escolar. As Figuras 5, 6, e 76 consubstanciam os dados expostos no Quadro 1.
De facto, percebe-se que: (i) muitas crianças que se encontram nas faixas etárias correspondentes à frequência dos diferentes níveis de ensino estão fora do sistema; (ii) as taxas de retenção são mais elevadas no 1.º ciclo do EB; e (iii) as taxas de abandono escolar conheceram um ligeiro decréscimo no 3.º ciclo do EB e no ES, mas continuam praticamente inalteradas nos restantes.
Elaborado pela autora a partir dos dados estatísticos disponibilizados na página do Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017
Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados na página do Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017
Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados na página do Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017
Genericamente, os relatórios nacionais e internacionais apontam como fatores para as tendências apresentadas: (i) a desvalorização da educação por parte das famílias; (ii) a distância entre a casa e a escola; (iii) a falta de meios de transporte; (iv) a obrigação de trabalhar para apoiar a família; (v) doenças; (vi) as despesas relacionadas com a frequência da escola; (vii) a ausência de acesso a água potável e problemas de saneamento; (viii) a sobrelotação das turmas; (ix) a elevada taxa de absentismo dos docentes; (x) a falta de qualidade do ensino; (xi) os baixos níveis de proficiência na língua de instrução por parte dos professores e dos alunos; e (xii) a desmotivação (PNUD, 2009; ME-RDTL, 2011; ME-RDTL & UNESCO, 2015).
Por último, importa observar a evolução registada no que toca ao número de docentes e às suas qualificações. O Relatório do Desenvolvimento Humano de 2002 indica que, em 2002, o Ministério da Educação empregava “cerca de 6400 professores em todos os níveis de ensino” e que a maioria exercia no ensino primário. Esses, durante o período da ocupação indonésia, “concluíram o nível inferior do ensino secundário, tendo posteriormente prosseguido os seus estudos em estabelecimentos do ensino secundário superior especializados na formação de professores”. Assinala, igualmente, que, no ano letivo 2000/2001, “somente 106 - 69 homens e 37 mulheres - dos 2091 professores do ensino secundário possuíam alguma formação pedagógica” (PNUD, 2002, p. 56).
Em 2007, a PNE definiu a formação de professores como uma medida de política prioritária, conferindo um papel central a: (i) a formação inicial, “realizada pela Universidade Nacional de Timor Lorosa’e (UNTL), em Díli, e pelo Instituto de Formação de Professores, em Baucau (...)”; e (ii) a formação em serviço, através do “Curso de Bacharelato para Professores e do Programa de Formação em Exercício de Professores na Escola Primária em Timor-Leste, bem como outros tipos de formação em serviço a serem realizados no âmbito do Instituto Nacional de Formação Profissional e Contínua (...)” (ME-RDTL, 2007, p. 19). A Figura 8 expressa os progressos alcançados desde 2011 e reflete os resultados das políticas implementadas.
Tendo por base os elementos do relatório de 2002 do PNUD, constata-se que: o número de professores com qualificações inferiores ao ES conheceu um decréscimo de quase 67%; o número de docentes com o ES diminuiu cerca de 34% e o número de professores licenciados teve um aumento superior a 50%. Nota-se, também, a presença no sistema de 76 docentes com o grau académico de mestre, em 2017.
Para o caso concreto da formação em serviço, reconhece-se que foram desenhadas e concretizadas várias políticas para suprir as lacunas científicas e pedagógicas dos docentes em exercício. Muitas dessas medidas foram implementadas com o apoio do Brasil e de Portugal. A título ilustrativo destacam-se os efeitos do protocolo de cooperação bilateral celebrado entre Timor e Portugal, Projeto de Formação Inicial e Contínua de Professores (PFICP), desenvolvido entre 1 de janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2014, que
conseguiu formar 6231 docentes de todos os níveis de ensino que se encontravam no regime transitório da carreira docente, permitindo-lhes, através da formação contínua, alcançar a obtenção das habilitações necessárias para ingressarem no Regime Definitivo da Carreira Docente. (ME-RDTL & Camões, I.P., 2017, p. 12)
Desafios do atual sistema educativo
Subordinado ao tema “A educação é o pilar da consolidação da identidade nacional e do desenvolvimento da nação”, teve lugar em Díli, entre 15 e 17 de maio de 2017, o 3.º Congresso Nacional da Educação. A abertura do encontro contou com os discursos de António da Conceição, no exercício das suas funções de ministro de Estado, coordenador dos Assuntos Sociais e ministro da Educação, e de Rui Maria de Araújo, primeiro-ministro do VI Governo Constitucional. Destas intervenções, retêm-se a constatação do ministro da Educação:
apesar de, durante os primeiros 15 anos após a restauração da nossa independência, se terem registado vários progressos, é notório que a qualidade dos serviços educativos não responde, de forma eficaz e eficiente, às necessidades da nossa população. [...] O sistema educativo tem desvios estruturais e de caráter organizacional que afetam a prestação de serviços educativos de qualidade à população. (ME-RDTL, 2017, p. 20)
mas, sobretudo, as questões levantadas pelo então primeiro-ministro:
A nossa política educacional está adequada às realidades de Timor-Leste neste século XXI? Se não o que é que está desajustado, e como calibrá-lo em função dos desafios que o país enfrenta?
Sabemos exatamente para onde caminhamos com a nossa Educação?
Qual é o resultado que se espera do nosso sistema educativo?
Qual é o perfil do timorense que se pretende formar neste século XXI?
Está o nosso sistema educativo a formar cidadãos aptos para o novo milénio, isto é, cidadãos ou quadros que sejam capazes de inspirar confiança onde quer que estejam colocados, cidadãos ou quadros capazes de aprenderem e desenvolverem as suas potencialidades duma forma autónoma, cidadãos ou quadros capazes de serem contribuidores ativos para o desenvolvimento socioeconómico do país, e acima de tudo, cidadãos e quadros conscientes das suas responsabilidades para com o Estado e a nação?
Será que o que queremos é começar tudo de novo ou melhorar o que pode ser melhorado, corrigir o que pode ser corrigido e reforçar o que pode ser continuado?
Será possível, em 2020, ensinar em português em todas as escolas?
Como vamos ultrapassar a barreira da literacia e da numeracia nas nossas crianças?
Como vamos apurar as reais necessidades pedagógicas e académicas e desenhar o modelo mais adequado de formação dos professores?
E que mecanismos podemos criar para que a administração e gestão escolar concorram para implementar as políticas educativas e conseguirem melhores resultados dos alunos? (ME-RDTL, 2017, pp. 29-31)
É da reflexão profunda, alargada, responsável e transparente em torno destas interrogações, que, entende-se, poderão surgir os princípios e as linhas estratégicas suscetíveis de corrigir os desvios apontados e a delineação de políticas educacionais coerentes e sustentáveis.
Retomando a análise do 3.º Congresso Nacional da Educação, percebe-se que o evento reuniu representantes do Ministério, ex-titulares da pasta da Educação, dirigentes políticos, agentes educativos e grupos de interesse, com o propósito de efetuar “uma reflexão crítica, profunda e realista” (ME-RDTL, 2017, p. 216) da situação de seis áreas-chave: (1) o Currículo Nacional de Ensino; (2) a Gestão e a Formação de Professores; (3) a Administração e a Inspeção Escolar; (4) as Infraestruturas, os Equipamentos e os Recursos Educativos; (5) a Gestão do Ensino Superior Público e Privado; e (6) a Participação dos Pais, da Comunidade, do Setor Privado e dos demais Parceiros.
Apontados como domínios prioritários de intervenção a médio prazo, a estes subjaz a materialização da visão do Plano Estratégico de Desenvolvimento 2011-2030, que institui que
todas as crianças timorenses devem ir à escola e receber uma educação de qualidade que lhes dê os conhecimentos e as qualificações que lhes permitam virem a ter vidas saudáveis e produtivas, contribuindo de forma ativa para o desenvolvimento da nação. (RDTL, 2011, p. 18).
Relativamente às questões curriculares, foram identificados como desafios: (i) assegurar a consistência e coerência dos conteúdos e das metodologias dos diferentes níveis de ensino, “uma vez que o desenvolvimento de cada um deles decorreu em momentos distintos”; e (ii) reforçar o investimento na formação contínua dos docentes e assegurar a distribuição “do número adequado de manuais e materiais didáticos para todos os professores e alunos” (ME-RDTL, 2017, p. 109).
No que concerne à Gestão e à Formação de Professores, foram apontadas como problemáticas a capacidade limitada das instituições responsáveis em responder às necessidades formativas dos docentes (inicial e contínua) e “a eficiência na gestão do corpo docente permanente e contratado” (ME-RDTL, 2017, p. 113).
Na área da Administração e da Inspeção Escolar foram destacadas a falta de formação dos recursos humanos e a dificuldade dos mesmos em responderem às carências existentes.
Já no âmbito das Infraestruturas, dos Equipamentos e dos Recursos Educativos foi assinalada a escassez de materiais e de espaços para as atividades laboratoriais, para a prática de exercício físico, para o estudo (bibliotecas) e para o alojamento de professores e de alunos que se encontram longe de casa (residências e dormitórios).
Com relação à Gestão do Ensino Superior Público e Privado, foi indicado que os constrangimentos incidem na qualidade e na relevância do ensino ministrado, “manifestamente insuficientes para promover o emprego qualificado e responder às necessidades de desenvolvimento do país” (ME-RDTL, 2017, p. 116).
No quadro da Participação dos Pais, da Comunidade, do Setor Privado e dos demais Parceiros, registou-se “uma insuficiente participação dos pais e encarregados de educação, quer no acompanhamento dos seus educandos, quer no apoio à melhoria das condições da aprendizagem” (ME-RDTL, 2017, p. 117).
Parte destes problemas sobressaiu na recolha das perceções dos decisores políticos7 relativamente aos desafios que atualmente se colocam ao sistema educativo timorense e cuja leitura foi concretizada recorrendo-se à análise de conteúdo8. Assim, começou-se pela observação dos “significados”, ou seja, por um estudo temático ou categorial9 das respostas. Este foi desenvolvido com recurso ao software informático MaxQda10 e comportou duas etapas: (i) a determinação de categorias11, a partir da identificação dos temas abordados e do sentido a estes conferido, e o desdobramento dessas categorias em subcategorias (qualitativa); e (ii) a contabilização, sob a forma de frequência12, com que as subcategorias surgem nos testemunhos (estatística de subcódigos em que a unidade de análise foi a percentagem de segmentos codificados), possibilitando o estabelecimento de algumas correlações (quantitativa). Em seguida, foram criadas três categorias (ação governativa, políticas públicas de educação e condicionalismos da qualidade da educação) e catorze subcategorias, conforme explanado no Quadro 2, e foi contabilizada a frequência com que estas últimas apareceram nos enunciados dos protagonistas (segmentos codificados) (Figuras 9, 10 e 11).
Categorias | Subcategorias |
Ação governativa | - Orçamento - Atenção política - Reconhecimento da importância da educação |
Políticas públicas de educação | - Merenda escolar - Currículo - Línguas de instrução - Valorização da carreira docente - Formação dos recursos humanos afetos à educação - Formação dos docentes - Ajuste da oferta formativa ao mercado de trabalho |
Condicionalismos da qualidade da educação | - Formação científica e pedagógica dos docentes - Inconsistência das políticas - Falta de materiais/infraestruturas - Qualidade das infraestruturas |
Fonte: Elaborado pela autora
De modo geral, a maioria dos atores reconheceu que o setor não tem merecido, por parte dos governantes, nem orçamento:
A fatia para a Educação continua muito baixa se comparada com a do I Governo… A Educação compreendia entre 16% e 20% do Orçamento do Estado. Atualmente, se não me engano, ronda 3%… Se se diz que a Educação é uma prioridade, tem de se meter dinheiro no Orçamento. (Ex-ministro da Educação, Armindo Maia, E1)
Se o Governo está a definir a Educação como uma prioridade nacional, tem de apostar [nela] seriamente… (Ex-ministro da Educação, António da Conceição, E5)
nem atenção política:
O primeiro desafio é que, praticamente desde 2007, a Educação não tem merecido o apoio que deveria ter por parte do Estado. (Ex-ministro da Educação, Armindo Maia, E1)
Isto vai exigir, por parte do governo, uma análise… Uma análise profunda do sistema de ensino até ao mercado de trabalho. Do meu ponto de vista… Senão, daqui a nada… Nós estamos a tentar entrar na ASEAN e, se conseguirmos ser membro da ASEAN, aí não sei onde vamos parar… Não sei onde vão parar os nossos formados. (Ex-ministro da Educação, Armindo Maia, E1)
Eu penso que, como disse no início, nós, os timorenses, e isso especialmente na Educação, temos de começar a fazer uma reflexão profunda e contextualizar a Educação… (Ex-ministro da Educação, António da Conceição, E5)
nem o devido reconhecimento:
A Educação, quando falamos de Educação, falamos do desenvolvimento humano, é crucial. Se não damos atenção suficiente ao desenvolvimento humano, sempre podemos ter tudo… Podemos ter as melhores infraestruturas do mundo, as melhores facilidades do mundo, mas, sem recursos humanos prontos para isso, vamos ter de convidar outros para aqui… Voltamos à dependência. (Ex-ministro da Educação, Armindo Maia, E1)
Timor-Leste é um país jovem e situado numa ilha, mas também uma nação pós-conflito. [Como tal,] deve reconhecer a importância da Educação, da formação, da ciência e da cultura, e nelas investir fortemente, não só para desenvolver um Estado economicamente próspero e sustentável, como também uma nação tolerante, justa e informada… Uma nação onde qualquer cidadão pode ter a oportunidade de receber instrução e participar, de forma plena, no processo de desenvolvimento do seu país. (Ex-ministro da Educação, João Câncio Freitas, E3)
A Educação é essencial e, por isso, é preciso apostar nela… (Ex-ministro da Educação, António da Conceição, E5)
No que respeita às políticas educativas, os decisores apontaram a falta de coerência na política linguística como um entrave ao desenvolvimento da qualidade da Educação, ao acesso ao conhecimento e ao domínio efetivo das línguas oficiais:
Os nossos docentes… Eu não tenho muita experiência na universidade, mas, até agora, ainda se usa a língua indonésia. Nas universidades privadas também…Ainda continuam a ensinar com a língua indonésia. (Ex-vice-ministra da Educação e ex-ministra da Educação, Rosária Corte-Real, E2)
Para além disso, a consolidação da língua portuguesa enquanto língua de excelência e de conhecimento no sistema de ensino, conjuntamente com o desenvolvimento da língua tétum, ambas símbolos da identidade nacional e pilares de todo o setor formal do sistema de Educação e Ensino, constituem grandes desafios. (Ex-ministro da Educação, João Câncio Freitas, E3)
Referiram, igualmente, a pertinência de: (i) se repensar e reforçar a formação contínua dos docentes em exercício e de se investir na capacitação dos recursos humanos, recorrendo-se ao Fundo de Desenvolvimento do Capital Humano, criado para esse efeito; (ii) se valorizar a carreira docente, de modo a “motivar os professores para o seu papel: educar e ensinar com profissionalismo e empenho” (Ex-ministro da Educação, João Câncio Freitas, E3); (iii) “ter um currículo correto, abrangente e coerente nos níveis todos” (Ex-vice-ministra da Educação, Lurdes Bessa, E6); (iv) ajustar a oferta formativa às necessidades do mercado de trabalho, para evitar que os jovens frequentem cursos sem saídas profissionais; e (v) continuar com a política da merenda escolar e assim combater os elevados índices de malnutrição e melhorar a aprendizagem dos alunos nas escolas.
No que toca aos condicionalismos que afetam a atual qualidade da educação, das respostas obtidas ressaltam: (i) a formação científica e pedagógica como um obstáculo, apontando a necessidade de se proceder à reciclagem dos docentes sem qualificações e à integração no sistema dos jovens licenciados pela Faculdade de Educação e Humanidades da UNTL que se encontram sem colocação; (ii) a qualidade das infraestruturas; (iii) a falta de materiais/infraestruturas; e (iv) a inconsistência das políticas educativas empreendidas ao nível do ensino superior. A este propósito, distingue-se a perspetiva do ex-titular da pasta da Educação e ex-reitor da UNTL, Armindo Maia, para quem esta inconsistência está a originar o aumento do desemprego qualificado:
Temos milhares de formados, licenciados de universidades públicas e privadas para quem, depois da formação, é muito difícil encontrar trabalho. Eu não sei, não tenho os números comigo… Não sei qual é a percentagem de formados que encontra trabalho… Isto é preciso ver… Eu creio que [tem de haver] uma responsabilidade social depois disso… Formam-se as pessoas para quê? Cursos que se calhar não têm futuro. (E1)
Conclui-se, face ao exposto, que os decisores entrevistados detêm não só dados precisos sobre a situação atual do setor, como também uma visão realista sobre a mesma. Infere-se, igualmente, que muitos dos problemas persistentes resultam da forma como os alicerces do sistema foram desenvolvidos, do contexto, dos meios, da formação e das competências dos recursos humanos, das fragilidades institucionais e da ausência de uma política linguística clara.
Os desvios estruturais e de caráter organizacional, aliados aos constrangimentos e desafios descritos requerem, presentemente, a observação das recomendações que emanaram do 3.º Congresso Nacional da Educação e que se pretende que sirvam de suporte ao desenho das políticas educacionais e às intervenções no setor (Quadro 3).
Áreas-chave | Recomendações |
Currículo Nacional de Ensino | 1. Elaborar e aprovar uma política do uso das línguas oficiais em cada um dos níveis do sistema de ensino. 2. Criar um Conselho Nacional da Educação para promover consensos técnicos, científicos e pedagógicos (com pedagogos, académicos e peritos nacionais). 3. Constituir uma Comissão Científica Especializada para avaliar a adequação, a coerência e a consistência dos currículos nacionais. 4. Regular a distribuição e a atribuição dos materiais didáticos. 5. Desenvolver legislação para regular a avaliação das aprendizagens dos alunos. |
Gestão e Formação de Professores | 6. Clarificar o estatuto do INFORDEPE. 7. Estabelecer uma política de gestão da formação contínua de professores. 8. Constituir uma equipa interdisciplinar para avaliar as necessidades em termos de formação inicial e contínua de professores. 9. Alinhar a formação inicial com os currículos. 10. Realizar um estudo para planear a expansão dos CAFE aos postos administrativos. 11. Rever os parâmetros da avaliação de desempenho docente. 12. Implementar um concurso para a colocação de professores. |
Administração e Inspeção Escolar | 13. Desenhar e implementar um programa padronizado de formação para os administradores e inspetores escolares. 14. Formalizar um padrão de administração e gestão escolar. 15. Aprovar um modelo de uniforme nacional para os alunos. 16. Definir mecanismos de controlo da assiduidade dos docentes e medidas a tomar em caso de incumprimento. 17. Criar um Fundo Especial que garanta a continuidade dos programas da merenda escolar. |
Infraestruturas, Equipamentos e Recursos Educativos | 18. Formalizar o padrão mínimo de infraestruturas e equipamentos escolares de cada nível de ensino. 19. Realizar o diagnóstico das infraestruturas existentes e elaborar um plano de intervenção com vista a melhorar o mapa escolar. 20. Definir um modelo que permita a construção de residências e dormitórios para os docentes e os alunos que se encontrem deslocados. 21. Refletir sobre a oferta pública do Ensino Técnico-Vocacional. |
Gestão do Ensino Superior Público e Privado | 22. Elaborar e aprovar uma Política de Gestão e Organização do Ensino Superior. 23. Priorizar a oferta do Ensino Politécnico. 24. Analisar as atuais modalidades de formação contínua e pós-graduada e o seu impacto na implementação do Estatuto da Carreira Docente Universitária. 25. Garantir a utilização das línguas oficiais no ensino superior e estudar a criação de um “ano zero” para o reforço das competências linguísticas dos alunos. 26. Analisar os mecanismos de implementação do currículo padrão mínimo. 27. Introduzir um Fundo de Empréstimos para estudantes. 28. Constituir o Conselho dos Reitores. 29. Consolidar o papel da Agência Nacional para a Avaliação e Acreditação Académica. 30. Considerar a aprovação de legislação específica (sistema de graus académicos, regime de equivalências e de reconhecimento de graus académicos, regime jurídico do ensino superior privado e cooperativo). 31. Fortalecer o Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia. |
Participação dos Pais, da Comunidade, do Setor Privado e demais Parceiros | 32. Desenvolver e implementar um instrumento legal para as Associações de Pais. 33. Celebrar acordos entre escolas privadas e públicas. 34. Criar uma Comissão Técnica Especializada para avaliar a possibilidade de introduzir propinas no ensino público (sobretudo no ES). 35. Reforçar os contactos entre as escolas e as empresas. 36. Reforçar e consolidar a ACETL, com vista assegurar o alinhamento das intervenções da CID com as prioridades do ME. 37. Garantir a coordenação nacional dos projetos de cooperação. |
Fonte: Adaptado de ME-RDTL, 2017, pp. 204-209
Atendendo ao conteúdo das 37 recomendações, depreende-se que estas refletem intenções claras e linhas de orientação política e estratégica sólidas para as seis áreas-chave. Todavia, estas recomendações apenas poderão ter um impacto real no sistema educativo se forem mais do que um conjunto de boas intenções e sirvam o objetivo ambicionado. Tudo isto sem perder de vista, como sublinhou o ex-primeiro-ministro Rui Maria de Araújo, que
a educação é o centro “nevrálgico” do desenvolvimento da sociedade e que ela tem um papel de suma importância na construção e formação da identidade do indivíduo, na sua formação social e na formação dos seus conceitos e valores sociais, morais e éticos. (ME-RDTL, 2017, p. 24)
Considerações finais
Até à independência, o sistema educativo de Timor-Leste era uma réplica dos sistemas dos países que ocuparam o território, o que explica o facto de a premência da sua reforma ter surgido ainda durante a administração transitória. Após 20 de maio de 2002, esta aspiração prevaleceu, procurando-se “aumentar a qualidade da Educação e garantir a equidade de acesso de todos os timorenses aos diversos níveis de ensino” (ME-RDTL, 2007, p. 11).
Da análise efetuada ao longo deste artigo, conclui-se que a escolarização e a qualificação têm constituído um dos eixos da ação governativa. No entanto, apesar dos progressos registados, múltiplos e complexos continuam a ser os desafios que à esfera educativa se colocam. Este artigo trouxe à luz alguns desses desafios, nomeadamente: (i) o número elevado de crianças e jovens não escolarizados; (ii) as elevadas taxas de abandono escolar; (iii) o número insuficiente de docentes e o elevado rácio de alunos por professor; (iv) as baixas qualificações dos docentes; (v) a carência de infraestruturas; e (vi) o impacto limitado das medidas implementadas.
Reconhece-se que os resultados na Educação exigem tempo, um investimento contínuo e políticas coerentes. Estes, num contexto sui generis como o da RDTL, adquirem proporções ainda mais acentuadas, tendo em conta que mais de metade da população tem menos de 20 anos e que o país necessita de recursos humanos qualificados. Como sublinhou o ex-primeiro-ministro Rui Maria de Araújo, “são os indivíduos, e é a sociedade, que vão construir uma nação e permitir que ela se desenvolva e avance” (ME-RDTL, 2017, p. 24).
Urge, portanto, que os governos priorizem o investimento na Educação e que as recomendações do 3.º Congresso Nacional da Educação instituam as premissas à elaboração dos programas dos próximos governos, dos orçamentos do Estado, dos planos estratégicos e dos projetos de cooperação internacional para o desenvolvimento.