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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.39 Lisboa jun. 2020  Epub 12-Jun-2021

 

DOSSIÊ

A Universidade nos PALOP: Que Espelho Mirar? Uma discussão tomando como exemplo a disciplina Economia Regional e Urbana1

The University in PALOP: Which Model to Follow? An argument taking Regional and Urban Economics as example

Cassio Rolim1 

1Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico, Universidade Federal do Paraná, Brasil, cassio.rolim@gmail.com


Resumo

Este trabalho irá discutir algumas questões relativas ao que seria uma “universidade necessária” para um país dos PALOP, tomando como exemplo o que poderia ser uma disciplina de Economia Regional e Urbana ministrada em um curso de Economia. O trabalho está focado na quase impossibilidade, e na discutível utilidade para o país, em formar pessoas com o mesmo perfil de um acadêmico saído das universidades ditas de padrão internacional. O primeiro problema a ser discutido será a definição do perfil esperado para esses formandos; em segundo lugar será o que deverá ser oferecido a eles dentro do amplo leque de conhecimento acumulado pela ciência regional; finalmente, como isso será ensinado, quais as técnicas e metodologias mais adequadas. O texto enfatiza a necessidade da adoção de metodologias de ensino baseadas na solução de problemas como a PBL (Problem Based Learning).

Palavras-chave: instituições de ensino superior; ensino superior na África; PALOP; economia regional e urbana; PBL; universidade necessária

Abstract

This paper will discuss some issues related to what would be the “necessary university” for a country of the PALOP (Portuguese-speaking African countries) taking as example a Regional and Urban Economics course taught in an undergraduate programme in Economics. The main argument is that it is almost impossible and useless for the universities of these countries to train people with the same profile of an academic out of the so-called world-class universities. Because of this, the PALOP would look for alternative models. The first issue discussed is the definition of the profile expected for the graduates; secondly is what should be offered to them among the options from regional science; finally, what are the most appropriate methodologies and techniques for learning this subject. The text emphasizes the need for adopting teaching methodologies based on solution of problems such as the PBL (Problem Based Learning).

Keywords: higher education institutions; higher education in Africa; PALOP; urban and regional economics; PBL; necessary university

Há um certo consenso entre as teorias econômicas contemporâneas de que o desenvolvimento de um país ou de uma região repousa na capacitação educacional e nas habilidades que seus habitantes possuem para gerar inovações. Nesse contexto o provisionamento de educação é o grande desafio. Esse desafio é ainda maior quando o país ou a região é pobre em recursos financeiros e humanos. Cada centavo terá que ser muito bem aproveitado e ter um grande retorno social. O ensino universitário nessas circunstâncias tem um papel predominante porque formará as gerações que irão trabalhar para a transformação do país.

Em países como os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), com elevados níveis de carência em tudo, a questão que se coloca é como as suas universidades cumprirão esse papel. Qual o tipo de universidade será mais adequado para esses países? Que esperar dos egressos dessas universidades? Que tipo de ensino lhes será fornecido para que eles correspondam às expectativas que os países têm sobre eles? A “universidade necessária”, no sentido que Darcy Ribeiro (1969) atribuía ao termo, é sempre um projeto utópico que necessita de um grande esforço para tornar-se realidade. É sempre um projeto de construção de uma universidade adequada às necessidades específicas de uma comunidade. Ainda que o resultado dessa construção não corresponda necessariamente a essa utopia ou ainda que os seus construtores sonhem essa utopia com perspectivas diferentes, o ponto de partida é sempre a discussão de um projeto.

Darcy Ribeiro tinha em mente o contexto da época, que opunha países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Entre eles, particularmente, o Brasil. Essa universidade utópica deveria ser aquela que conseguisse desempenhar as funções necessárias para que o país caminhasse para o desenvolvimento.

Tais funções, como foi dito, são herdar e cultivar, fielmente, os padrões internacionais da ciência e da pesquisa, apropriando-se do patrimônio do saber humano; capacitar-se para aplicar tal saber ao conhecimento da sociedade nacional e à superação de seus problemas; crescer, conforme um plano, para formar seus próprios quadros docentes e de pesquisa e para preparar uma força de trabalho nacional da grandeza e do grau de qualificação indispensável ao progresso autônomo do país; atuar como o motor da transformação que permita à sociedade nacional integrar-se à civilização emergente. (Ribeiro, 1969, pp. 171-172)

Não é difícil trazer para os dias de hoje essa perspectiva de guia para as universidades. É possível reencontrá-la de maneira mais ampla e elaborada (Kempton et al., 2014) para um contexto diferente, argumentos que lembram os apresentados por Darcy Ribeiro (Chatterton & Goddard, 2000; Mamdani, 2019). Por sua vez, o Banco Mundial também chama a atenção para as três grandes tarefas do ensino superior para contribuir na construção de sociedades democráticas de conhecimento:

  • Supporting innovation by generating new knowledge, accessing global stores of knowledge, and adapting knowledge to local use.

  • Contributing to human capital formation by training a qualified and adaptable labor force, including high-level scientists, professionals, technicians, basic and secondary education teachers, and future government, civil service, and business leaders.

  • Providing the foundation for democracy, nation building, and social cohesion. (World Bank, 2002, p. 24)

Este trabalho é uma proposta de discussão dessas questões tomando como exemplo o que poderia ser uma disciplina de Economia Regional e Urbana ministrada em um curso de graduação em Economia e Gestão. Considera-se o caso, idealizado, de uma Instituição de Ensino Superior (IES)2 típica de um país dos PALOP tendo em conta o que elas têm em comum, não obstante as grandes diferenças existentes entre esses países. Quando necessário será utilizado como ilustração um dos casos mais dramáticos - a Guiné-Bissau. O trabalho está focado na quase impossibilidade e na discutível utilidade para o país em formar pessoas com o mesmo perfil de um acadêmico saído das universidades ditas de padrão internacional. O primeiro problema a ser considerado será a definição do perfil esperado para esse formando; em segundo lugar será o que deverá ser oferecido a ele dentro do amplo leque de conhecimento acumulado pela ciência regional; finalmente, como isso será ensinado, quais as técnicas e metodologias mais adequadas. Nunca é demais esclarecer que os argumentos aqui apresentados se somam àqueles que defendem uma universidade baseada na produção de conhecimento em que o saber universal seja utilizado para a solução dos problemas mais prementes das comunidades locais (Castells, 1993; Chatterton & Goddard, 2000).

O artigo contém mais três seções. Na primeira é feita uma discussão inicial sobre o ensino superior em África, particularmente nos PALOP. Na segunda é colocada a questão de qual poderia ser um modelo adequado de universidade para um país dos PALOP, usando o exemplo da disciplina Economia Regional. Uma das propostas é a adoção da metodologia de ensino baseada na solução de problemas PBL (Problem Based Learning). Na terceira seção é apresentada uma proposta de estruturação de uma disciplina de Economia Regional e Urbana com flexibilidade suficiente para a utilização da PBL. Conclui o artigo uma seção com as considerações finais.

Ensino superior em África3

O quadro geral

O acesso ao ensino superior vem aumentando em todo o mundo. Entre 1985 e 2003 a taxa bruta de matrícula no ensino superior (TBE) passou de 9% para 22,3%. Entre 2003 e 2016 ela passou de 22,8% para 38%. Infelizmente essa expansão foi muito desigual. A África subsaariana, ainda que tenha ampliado em muito os valores desse indicador − entre 2003 e 2018 passou de 5,6% para 9,4% − teve nesse período uma média de apenas 7,8%. A situação é ainda pior nos PALOP. Com a exceção de Cabo Verde, todos estão abaixo da média do bloco. Apenas no final do período, São Tomé e Príncipe (2015) e Angola (2016), esta última ligeiramente, conseguem superar a média. Vide tabelas 1 e 2.

Tabela 1 

Tabela 2: Ensino Superior - Dados comparativos PALOP 

Vários motivos têm sido apontados como responsáveis por esses baixos níveis de matrículas. Um deles é a ênfase colocada até recentemente na expansão do ensino primário em detrimento do secundário e terciário pelas instituições internacionais, em especial o Banco Mundial. Esse fato é apontado por vários autores e as razões para essa não priorização estariam no debate relativo ao pequeno retorno do investimento em educação superior na África subsaariana (Bloom et al., 2005, 2006; Holtland & Boeren, 2006).

Esse debate parece ter sido superado. Bloom et al. (2005, 2006, 2014) mostram que se o aumento de um ano na escolaridade média em África eleva o PIB em 0,24% por ano, o aumento em um ano na educação superior traz uma elevação do PIB em 0,63% por ano. O próprio Banco Mundial parece ter reconhecido isso, a julgar pelo aumento do volume de empréstimos para a educação secundária e terciária e pelos documentos que recentemente tem patrocinado (Ng’ethe et al., 2008; World Bank, 2009, 2014).

Apesar desses avanços na percepção do problema, a educação superior nos países da África subsaariana enfrenta grandes desafios. Entre eles estão a redução do gasto por estudante (que fez decair a qualidade do ensino), a divisão dos encargos financeiros (ensino público e privado), a garantia da qualidade do ensino (além dos problemas já existentes com as universidades públicas adicionam-se os riscos com a grande expansão das privadas), a ampliação do acesso para as classes menos privilegiadas, a conexão do produto das universidades com o setor produtivo, as dificuldades de manter os quadros (frente à competição com o setor privado, consultorias para instituições públicas e privadas e universidades estrangeiras) (Holtland & Boeren, 2006). Também se destaca o baixo nível de matrículas, vários tipos de discriminação: de gênero, de etnias, de localização (urbano x rural), etc. A grande expansão do setor privado, em decorrência da redução dos investimentos públicos, geralmente oferece cursos de baixa qualidade, voltados para atendimento imediato do mercado. Na maioria das vezes esses cursos são na área comercial e de negócios, informática e turismo e hotelaria e quase todos centrados no ensino ao nível da graduação (Teferra, 2007).

Além dessas constatações também é apontado que, apesar dos avanços recentes, a maioria das instituições de ensino superior em África não consegue graduar profissionais em quantidade e qualidade suficiente. Além disso, esses graduados não têm apresentado o nível de conhecimento necessário para apoiar o desenvolvimento da região nas próximas décadas (World Bank, 2009). Entre as razões para essas deficiências está a grande desconexão entre os currículos escolares e as demandas de qualificações necessárias para o desenvolvimento nacional. Isso leva a um desperdício adicional de recursos na medida em que contribui para o alto desemprego de egressos do ensino superior4. A chamada “terceira missão” parece não ter sido ainda assumida pelas instituições de ensino superior africanas (Bloom et al., 2014, p. 49).

Por outro lado, nas universidades públicas, censura e perseguição de natureza política a professores e alunos não é propriamente algo que inexista. O ambiente está muito longe de propiciar condições favoráveis de liberdade para criar e produzir conhecimento e formar cidadanias. Há, no entanto, quem veja sinais de avanço nesse quadro (Teferra, 2007). Em especial a partir dos primeiros anos do século XXI, inicialmente como uma reação ao documento do Banco Mundial (2002) já mencionado, várias agências de desenvolvimento dos países desenvolvidos e consórcios de fundações estrangeiras financiaram vários eventos e mesmo projetos de expansão do ensino superior. Surgiram instituições pesquisando sobre ensino superior, como a Association of African Universities (Gana), o Council for the Development of Social Science Research in Africa (CODESRIA, Senegal), a Organization for Social Science Research in East and Central Africa (OSSREA, Etiopia), o Center for the Study of Higher Education (University of the Western Cape, África do Sul) bem como várias publicações tais como o Journal of Higher Education in Africa e os textos publicados pela Partnership for Higher Education in Africa (Teferra, 2007).

Também muito importante foi o surgimento em 2007 do projeto Higher Education Research and Advocacy Network in Africa (HERANA), apoiado por vários países, entre eles a Noruega, e coordenado pelo Centre for Higher Education Transformation (CHET), uma organização não governamental baseada na África do Sul. Foi criada uma parceria entre oito universidades5 e nos dez anos de sua execução importantes trabalhos foram publicados (Cloete & Schalkwyk, 2018). Um dos pontos de partida do projeto foi a construção de sistemas de informações sobre o ensino superior que permitiram investigações posteriores com maior evidência empírica sobre vários temas. Em 2015, com a conclusão da segunda fase do projeto, foi publicado um importante livro (Cloete et al., 2015) com o conhecimento acumulado dessas pesquisas até àquela altura. Um dos argumentos centrais do livro era a necessidade da existência de um grupo de universidades baseadas e/ou direcionadas para a pesquisa. Elas teriam como compromisso a produção e disseminação de conhecimento em determinadas áreas e para isso estariam equipadas com a infraestrutura necessária para o ensino e pesquisa ao mais alto nível acadêmico possível. Entre as oito universidades do projeto HERANA, apenas a Universidade da Cidade do Cabo, em função da alta produtividade em pesquisa e ensino bem como a produção de conhecimento para o desenvolvimento, cumpriria essas funções razoavelmente. Para atingir essa situação ideal teriam que ser equacionados problemas relativos à governança do sistema educacional, à estrutura acadêmica das universidades, ao financiamento e à ajuda dos doadores internacionais bem como às reformas direcionadas a apoiar a ênfase em pesquisa (Cloete et al., 2015, p. 261).

Em uma análise após a conclusão do projeto, Cloete e Schalkwyk (2018) apontam cinco grandes lições aprendidas com o projeto. Em primeiro lugar, a não existência de uma visão clara do papel a ser desempenhado pela universidade, em especial a sua importância para o desenvolvimento, era mais uma figura de retórica do que propriamente um reconhecimento de fato. Em segundo lugar, os governos deram pouco apoio para concretizar as transformações necessárias nas universidades e a maioria delas permaneceu como instituições de ensino de graduação. A terceira lição foi que apesar dos esforços para transformar a coleta e análise de dados e, consequentemente, direcionar a administração universitária com o suporte da evidência estatística, os resultados ficaram muito aquém do esperado. A práxis dos doadores internacionais, mais voltada a financiar uma agenda própria de projetos do que aqueles necessários à estratégia de transformação das universidades, foi a quarta lição obtida. Finalmente, o descolamento entre as universidades e os objetivos do desenvolvimento em decorrência de um consenso nacional sobre as suas missões, que é ao mesmo tempo uma lição e um desafio.

The challenge for higher education systems is to develop universities that will be strong and dynamic enough to withstand the tensions inherent in their contradictory functions, while at the same time being able to respond to what they see as their specific mission at any given moment in the history of the system. (Cloete & Schalkwyk, 2018)

A expectativa de transformar as universidades africanas tornando-as mais direcionadas à pesquisa e à produção de conhecimento também orientou a criação da African Research Universities Alliance (ARUA). Trata-se da construção de uma rede de 16 universidades6 tendo como objetivo comum ampliar a quantidade e qualidade das pesquisas feitas em África por pesquisadores africanos. Para isso propõem-se a colaborar e trabalhar em parcerias objetivando aumentar a massa crítica de produção de conhecimento. A agenda estratégica para isso baseia-se em quatro pontos: colaboração em pesquisa, treinamento e apoio para doutoramento, capacity building para gerenciamento de pesquisa e o que denominam research advocacy. Este último é uma analogia do advocacy planning (Davidoff, 1965), estratégia que organizações mais frágeis, convivendo em um ambiente política e financeiramente mais poderoso, utilizam para negociar seus objetivos. Neste caso trata-se de manter uma estratégia de permanente valorização da pesquisa e dos pesquisadores para a produção de conhecimentos necessários ao desenvolvimento.

Por outro lado, no que se refere à colaboração em pesquisa, estabeleceram dois grandes temas de pesquisa: mudança climática e pobreza e desigualdade. O primeiro subdividido em cinco: segurança alimentar, energia, abastecimento de água, desenvolvimento de materiais e nanotecnologia, doenças crônicas. O segundo, por sua vez, subdividido em seis: desemprego e desenvolvimento de habilidades, noções de identidade, boa governança, urbanização e habitabilidade, migração e mobilidade, sociedades pós-conflito (ARUA, n.d.).

A rede pretende ajudar-se mutuamente para incrementar a quantidade e qualidade de pesquisas. Para isso conta com seis universidades do país com o melhor ensino superior na região, a África do Sul. Por outro lado, são quase7 todas universidades do universo anglófono da África subsaariana e, consequentemente, os vínculos e a busca de recursos externos estão orientados, principalmente, à Inglaterra e aos Estados Unidos da América.

Se por um lado há sinais de importantes avanços no universo académico africano, o esforço para ampliar o papel de universidades voltadas à pesquisa e produção do conhecimento é um deles, por outro, permanecem uma série de restrições que se manifestam no dia a dia daqueles encarregados de conduzirem essas transformações. A instabilidade, a sobrecarga de tarefas didáticas e de pesquisa, a dependência do financiamento externo, a inexperiência e o número reduzido de mentores académicos, os entraves burocráticos administrativos por que passam os jovens acadêmicos não são problemas menores (Beaudry et al., 2018). Por sua vez, o equacionamento e superação desses entraves é algo que cabe fundamentalmente às próprias universidades.

O quadro geral dos desafios e problemas enfrentados pelo ensino superior em África não difere substancialmente daquele encontrado em outras partes do mundo em desenvolvimento. O problema, no entanto, é a magnitude e a urgência que eles colocam para o atendimento das necessidades de desenvolvimento do continente. O enfrentamento concreto desses problemas certamente terá que ser condicionado pelas especificidades de cada país. Porém, mais que isso, dentro de cada país terá que ser otimizado para as regiões em que essas instituições estiverem localizadas.

O quadro geral nos PALOP

Como já foi dito, o panorama do ensino superior nos PALOP enquadra-se na situação geral da África, porém com maiores dificuldades e com indicadores abaixo da média do continente. O caso de Cabo Verde é a exceção pois os principais indicadores estão muito acima da média da África subsaariana. Vide tabelas 1 e 2.

Entre 2003 e 2018, a taxa bruta de matrícula no ensino superior em Cabo Verde passou de 4,7% para 24%, índice muito acima da África subsaariana e dos PALOP. Também foi o país com maior índice de paridade de gênero no ensino superior (IPA)8. Aliás, já em 2003, a taxa era superior a 1 e no final do período estava em 1,45, indicando que no ensino superior havia mais mulheres que rapazes. Da mesma forma, a participação dos gastos com ensino superior no PIB sempre foi superior à dos outros PALOP e da própria África subsaariana. Apenas em 2013 foi ultrapassado por Moçambique nesse item. A primeira universidade, Uni-Piaget, foi criada em 2001. Atualmente existem nove universidades, sendo apenas uma pública, a Universidade de Cabo Verde, criada em 2008 (Teixeira & Videira, 2015). No entanto essa única universidade pública encontra-se distante de onde está concentrada a população (Rego, Lucas, Ramos, Carvalho, & Baltazar, 2015).

Nos dois países mais populosos, Moçambique e Angola, os indicadores são tradicionalmente baixos, porém nos últimos anos vêm apresentando sinais de significativas melhoras. Os dados mais recentes que permitem comparação são os do Banco Mundial na tabela 2. Note-se os baixos níveis das taxas brutas de matrícula e dos índices de paridade de gênero. Entre 2003 e 2016 a população em idade de cursar a universidade cresceu cerca de 3% ao ano em ambos os países, porém o crescimento do número de universitários superou em muito essa taxa em ambos, especialmente em Moçambique, 19,92%, enquanto em Angola foi de 13,54% (Vide tabela 3). Apesar dessa grande expansão as taxas brutas de matrícula no superior e os índices de paridade de gênero permanecem baixos em ambos os países. Atualmente em Moçambique existem 23 IES, das quais 11 públicas (República de Moçambique, Ministério da Educação, 2014) e em Angola 73, das quais 28 públicas (Governo da República de Angola, 2015).

Tabela 3: Taxa média de crescimento 2003-2016 (*) 

TBE PE.TER
Cabo Verde 14,32% 1,53%
Angola 13,54% 3,95%
Moçambique 19,92% 3,14%

(*) Período variável de acordo com a disponibilidade de dados; TBE = Total de alunos matriculados no ensino superior; PE.TER = População na idade oficial para o ensino superior.

Fonte: Cálculo do autor a partir da tabela 2

O caso particular da Guiné-Bissau parece ser ainda mais grave. O país tem cerca de 1,5 milhão de habitantes e é um dos mais pobres do mundo. Além disso tem sido vítima de constante instabilidade política. Há uma ausência muito grande de informações sobre o seu sistema educacional, particularmente sobre o ensino terciário9. A primeira universidade do país, Colinas de Boé (Langa, 2013, p. 52), foi criada em 2003 por um grupo de empresários e intelectuais, apoiados pelo programa InfoDev (Agyeman, 2007) do Banco Mundial, objetivando essencialmente a formação de quadros para a administração do país. Em 200410 foi criada a Universidade Amílcar Cabral, como universidade pública, porém em parceria com a Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia (ULHT) de Lisboa. Em 2008 essa parceria foi desfeita, a universidade desativada e cursos e alunos foram transferidos para a então criada Universidade Lusófona da Guiné-Bissau (Sucuma, 2016). A Universidade Amílcar Cabral, após essa desativação, voltou a funcionar em 2014, mantendo-se como a única universidade pública do país. Em 2019 existiam cinco universidades, apenas uma pública, em funcionamento no país11. No entanto a instabilidade política e a ausência de regulamentação eficaz levaram a um ensino com qualificação muito baixa (Langa, 2013, pp. 55-56).

De uma maneira geral, os objetivos para o ensino superior perseguidos pelos governos dos PALOP não diferem significativamente de objetivos universais presentes na maioria dos discursos dos dirigentes em todo o mundo. São eles, formar capital humano qualificado; contribuição para o desenvolvimento; integração com a comunidade; formação da cidadania; etc. (Rego et al., 2015, p. 31). Em quase todos esses países, além da restrição de recursos, e aparente falta de efetiva priorização, as IES enfrentam grandes desafios como: fortalecimento institucional através de um quadro legal para o ensino superior; garantia da qualidade da aprendizagem; equidade social e de gênero; promoção de gestão democrática e transparente. Produzir papers para journals internacionais de primeira linha não parece estar entre as prioridades.

Qual é a universidade necessária para um PALOP?

Como se viu na seção anterior, a expectativa geral sobre os graduandos do ensino superior nos PALOP é que atendam às necessidades da economia e da sociedade. Essa expectativa, no entanto, é cada vez mais universalmente generalizada. Porém, será que os alunos oriundos das mais prestigiadas universidades do mundo conseguem atendê-las? A julgar pelos resultados de uma vasta literatura, a resposta é não12. Se isso é verdade, não estará sendo colocada uma carga muito grande sobre os ombros da juventude africana?

Inicialmente é importante ter-se em conta que mesmo para um país que seja considerado um dos mais pobres do mundo, que ainda tenha grandes desafios para superar o analfabetismo e implantar o ensino básico, investir em universidades e em pesquisa não é um luxo. Pelo contrário, esses investimentos são fundamentais para a superação desses desafios básicos. Ainda que se tenha um país vivendo essencialmente da exploração da castanha de caju e da pesca, as inovações necessárias para o setor e outras necessidades sociais tais como a luta contra a pobreza, as catástrofes naturais, etc., terão que vir daqueles que detenham maior conhecimento (Bloom et al., 2014; Salmi, 2003).

Por outro lado, que conhecimento é esse e como deve ser transmitido? Em todas as áreas a quantidade de conhecimentos disponíveis cresce a um ritmo alucinante, só comparável à rapidez com que muitos deles ficam obsoletos. O cenário para a universidade do futuro prevê diplomas com validade de apenas cinco anos e currículos de curso sendo reformulados a cada três anos (Salmi, 2003). Em um cenário como esse em que, no mundo inteiro, as universidades estão fazendo grandes esforços para se readaptar à nova situação é difícil encontrar um modelo a ser seguido. O modelo de universidade em que um país dos PALOP poderá se espelhar certamente não será o de Harvard, Oxford, Cambridge ou a Universidade de Paris. Mesmo porque até essas universidades estão se reestruturando e não são as mesmas do passado. O modelo a ser seguido em África é uma questão em aberto.

No entanto, considerando que os profissionais oriundos de uma universidade africana deverão continuar sendo em número menor do que o necessário e que, além de tudo, as suas opções de curso serão restritas em função das dificuldades dos países, eles terão que se desdobrar em suas atividades quando saírem da universidade. Certamente serão obrigados a realizar tarefas para as quais não foram preparados. Assim sendo, um médico certamente terá que discutir questões como seca e praga em culturas de cacau, algodão e/ou café. Um engenheiro provavelmente terá que discutir questões relativas à saúde pública e redução da pobreza. Um economista deverá ter que enfrentar questões esdrúxulas como, por exemplo, consertar o gerador de energia da comunidade ainda que não tenha tido formação específica para isso. Como essas pessoas desenvolverão conhecimentos para atender essas questões se nem mesmo nas suas especialidades elas dominarão todo o campo de conhecimento?

Não há ensino universitário que dê conta de tudo isso e muito menos o dos PALOP será capaz de fazê-lo. A única chance para esses profissionais cumprirem o que se espera deles é que mais do que conhecimentos básicos em suas especialidades, aprendam a resolver problemas.

Assim sendo, já se tem uma pista sobre a universidade necessária para um PALOP: ela deverá formar pessoas capazes de resolver problemas concretos. Quaisquer problemas concretos que venham a enfrentar ao longo da vida. No entanto isto ainda não esclarece por que Harvard ou Cambridge não podem ser as referências para um país pertencente aos PALOP. Afinal elas não poderiam ser referências universais?

Existem vários tipos de universidades. Algumas estão mais voltadas para o mundo acadêmico, outras mais voltadas para o atendimento das questões imediatas da sociedade, existem aquelas mais direcionadas às atividades de ensino e aquelas mais voltadas às atividades de pesquisa (Wedgwood, 2006). Na realidade qualquer universidade é uma combinação linear dessas quatro características.

A expectativa que, provavelmente, o governo de um país dos PALOP tem para a sua universidade é que ela seja mais voltada às demandas imediatas da sociedade e tenha uma grande ênfase nas atividades de ensino, bem como produza conhecimentos através de pesquisa aplicada. Sendo assim, provavelmente, o espelho a se mirar serão outras universidades não tão conhecidas, porém mais adequadas a serem tomadas como exemplo. São, entre outras, universidades como Aalborg, na Dinamarca, Twente na Holanda, Turku na Finlândia ou Rovira i Virgili, na Espanha. Essas universidades têm em comum o fato de serem relativamente pequenas, estar em estreito contato com as necessidades das suas comunidades, em especial com as demandas do setor produtivo, e praticar metodologias de ensino direcionadas à solução de problemas incentivando a criatividade e o empreendedorismo entre seus alunos, além de pautar sua agenda de pesquisa pelos problemas concretos da comunidade.

Uma das características importantes dessas universidades é a utilização de metodologias de ensino baseadas na solução de problemas. Essas metodologias, conhecidas como Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL)13 consistem, na realidade, na utilização de problemas para iniciar, direcionar e motivar a aprendizagem de conceitos, teorias e desenvolvimento de habilidades e atitudes no contexto da sala de aula (Ribeiro, 2008).

Figura 1: Fonte: Princípios de PBL - Universidade de Aalborg Kjaersdam & Enemark (1994) 

O método consiste basicamente na estruturação de um curso/disciplina a partir de um problema (ou projeto) concreto, por exemplo, a elaboração de uma estratégia de desenvolvimento para a região de Gabu, na Guiné-Bissau, ou em Nampula, Moçambique. A partir desse problema, os trabalhos são organizados de forma a buscar a sua solução; isso direciona a literatura a ser pesquisada, as aulas e os trabalhos em grupo. Por outro lado, as soluções são buscadas nos manuais sobre o tema, nas pesquisas de campo necessárias e nos experimentos necessários. Uma vez encontrada a solução, a etapa que se sucede é a da elaboração de um relatório pelos grupos de estudantes e o registro do conhecimento adquirido (Kolmos et al., 2004). A figura 1 ilustra o que foi dito.

A sua implementação implica em uma grande reformulação em relação às metodologias tradicionais de ensino, no entanto os resultados são muito positivos e tem sido apontada como a metodologia que mais indivíduos empreendedores consegue formar. Esse empreendedorismo não depende de os alunos terem tomado cursos específicos sobre essa matéria, mas sim do maior potencial criativo e inovador que adquirem ao longo da formação.

Não há espaço nas dimensões deste texto para aprofundamento do assunto, no entanto a figura 2 ilustra as principais diferenças de atitudes de professores e alunos quando consideradas metodologias tradicionais de ensino e a metodologia PBL. Para as situações concretas de uma universidade nova como as de um PALOP essa metodologia parece ser a mais promissora. A sua implementação também é assunto de uma vasta literatura e tende a ser mais fácil em universidades novas ainda não sequestradas por tradições e ritos acadêmicos imobilizadores. O leitor interessado encontrará uma ótima introdução a esses assuntos em Moesby (2008).

Figura 2: Principais diferenças entre os papéis dos alunos e docentes na sala de aula convencional e no PBL 

Metodologia Convencional Metodologia PBL
Docente assume o papel de especialista ou autoridade formal. Papel do docente é de facilitador, orientador, co-aprendiz, mentor ou consultor profissional.
Docentes trabalham isoladamente. Docentes trabalham em equipes que incluem outros membros da escola.
Docentes transmitem informações aos alunos. Alunos responsabilizam-se pela aprendizagem e criam parcerias entre colegas e professores.
Docentes organizam os conteúdos na forma de palestras, com base no contexto da disciplina. Docentes concebem cursos baseados em problemas com fraca estruturação, delegam autoridade com responsabilidade aos alunos e selecionam conceitos que facilitam a transferência de conhecimentos pelos alunos. Docentes aumentam a motivação dos alunos pela colocação de problemas do mundo real e pela compreensão das dificuldades dos alunos.
Docentes trabalham individualmente nas disciplinas. Estrutura escolar é flexível e oferece apoio aos docentes. Docentes são encorajados a mudar o panorama institucional e avaliativo mediante novos instrumentos de avaliação e revisão por pares.
Alunos são vistos como tábula rasa ou receptores passivos de informação. Docentes valorizam os conhecimentos prévios dos alunos, buscam encorajar a iniciativa dos alunos e delegam autoridade com responsabilidade aos alunos.
Alunos trabalham isoladamente. Alunos interagem com o corpo docente de modo a fornecer feedback imediato sobre o curso, com a finalidade de melhorá-lo continuamente.
Alunos absorvem, transcrevem, memorizam e repetem informações para realizar tarefas de conteúdo específico, tais como questionários e exames. Docentes concebem cursos baseados em problemas com fraca estruturação que preveem um papel para o aluno na aprendizagem.
Aprendizagem é individualista e competitiva. Aprendizagem ocorre em um ambiente de apoio e colaboração.
Alunos buscam a “resposta correta” para obter sucesso em uma prova. Docentes desencorajam a “resposta correta” única e ajudam os alunos a delinearem questões, equacionarem problemas, explorarem alternativas e tomarem decisões eficazes.
Desempenho avaliado com relação a tarefas de conteúdo específico. Alunos identificam, analisam e resolvem problemas utilizando conhecimentos de cursos e experiências anteriores, em vez de simplesmente relembrá-los.
Avaliação de desempenho escolar é somativa, e o instrutor é o único avaliador. Alunos avaliam suas próprias contribuições, além de outros membros e do grupo com um todo.
Aula fundamentada em comunicação unilateral; informação é transmitida a um grupo de alunos. Alunos trabalham em grupos para resolver problemas. Alunos adquirem e aplicam conhecimento em contextos variados. Alunos encontram seus próprios recursos e informações, orientados pelos docentes. Alunos buscam conhecimentos e habilidades relevantes à sua futura prática profissional.
Fonte: Extraído de Ribeiro (2008), segundo Samford University (n.d.)

Como estruturar um curso de Economia Regional e Urbana para um PALOP?

O perfil do profissional a ser formado

Grande parte dos estudantes do ensino superior dos PALOP estão matriculados em cursos de Economia e Gestão e em Direito14. Segundo o Banco Mundial eles representaram entre 30% e 35% das matrículas ao longo dos últimos anos. No último ano que se tem registro comparável, eles representavam 37% em Moçambique e 32% em Cabo Verde. O último registro para Angola (2015) foi 30% (Vide figura 3). Nas 32 novas IES criadas em Moçambique a partir de 2003, em 23 delas haviam cursos na área de Economia e Gestão e em Direito, sendo essa a área preferencial das IES privadas (Langa, 2013, pp. 76-77). Os dados mais recentes de Moçambique mostram que em 2017, 43% dos alunos matriculados, 45% dos graduados e 42% dos ingressantes do total das IES pertenciam à grande área Ciências Sociais, Negócios e Direito. Considerando apenas as IES privadas, esses percentuais chegavam a quase 60% (República de Moçambique - Ministério de Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Técnico Profissional, s.d.).

Figura 3: Fonte:  Matrículas em Economia e Gestão e Direito - Angola, Cabo Verde e Moçambique - 2004-2018 World Bank: EdStats-Education Statistics - All Indicators (21/04/2020) 

Em um país com as características dos PALOP é difícil justificar a formação de um especialista. Um jovem formado na área de Economia e Gestão, assim como o formado na área de Direito, deverá ter os conhecimentos gerais de economia, administração e contabilidade. Dada a pobreza de recursos humanos do país ele deverá ser capaz de resolver a maioria dos problemas dessas três áreas. Ao longo da sua atividade ele terá que ser capaz de receber uma missão do Fundo Monetário Internacional bem como sugerir orientações para a orçamentação de uma província e/ou fazer a contabilidade da cooperativa local de microempresas.

Por outro lado, em um país com peculiaridades regionais acentuadas como são os PALOP, esse jovem profissional também deverá estar atento às implicações dessas peculiaridades. Dessa forma, a temática tratada em Economia Regional e Urbana deveria ser obrigatória para todos os estudantes de Economia e Gestão. Compreender os determinantes das disparidades regionais lhes será tão importante como entender a dinâmica macroeconômica.

As questões centrais da disciplina Economia Regional e Urbana

Tendo em conta que não é possível saber tudo e/ou ver tudo em um curso de graduação, qual deverá ser o conteúdo desse curso? Tome-se como exemplo a disciplina Macroeconomia. O jovem profissional deve saber a essência do funcionamento de uma economia de mercado e as relações entre o lado real e o lado monetário da economia. Deverá conhecer os vínculos entre gastos públicos e inflação, câmbio e juros. Para isso, evidentemente, deverá conhecer muito bem os procedimentos da contabilidade macroeconômica. Esses são os conhecimentos básicos para que ele possa participar de uma conversa sobre a macroeconomia do seu país. Seria importante que ele conhecesse os debates macroeconômicos conhecidos como a Controvérsia de Cambridge? Certamente sim, no entanto, esse conhecimento teria pouca utilidade para as questões objetivas com as quais ele lidaria no seu cotidiano.

De maneira análoga, o mesmo problema existe com as disciplinas de Economia Regional e Urbana. Que conteúdo elas deveriam ter em um contexto como o de um PALOP? A resposta a essa questão não é fácil, no entanto é possível fazer um esboço do que poderia ser uma disciplina de Economia Regional e Urbana com 60 horas-aula.

Na análise regional as grandes questões partem dos conceitos de:

  • espaço econômico e de sua subdivisão, a região econômica;

  • crescimento, desenvolvimento e integração regional;

  • como a região funciona internamente e como se insere no resto do mundo (os diversos espaços econômicos).

Uma das grandes mensagens desses conceitos é que os espaços econômicos não seguem necessariamente as divisões político-administrativas. Além disso, a constituição desses espaços é um fenômeno complexo em que além das questões de ordem natural (solo, relevo, clima, etc.) também estão presentes questões de ordem social (etnia, religião, mercados, etc.) e político-administrativas (governo, moeda, leis, regulamentos, etc.) e que, por isso mesmo, eles modificam-se ao longo do tempo.

A subdivisão do espaço econômico constituindo as regiões econômicas acaba tornando-se um problema mais complexo ainda. A perspectiva que parece ser mais promissora é trabalhar um conceito de região em que ela passe a ser vista como a resultante de um processo de construção onde uma determinada sociedade, interagindo com o meio natural, constrói um particular subsistema social. Somente aqueles espaços geográficos que consigam também ser espaços sociais poderão ser considerados regiões. Nesse processo de construção da região (Boisier, 1992), certos elementos vão sendo estabelecidos formando um microcosmo, que a diferencia dos demais territórios e também do nível agregado nacional, onde regras comuns de relacionamento passam a ser aceitas, estabelecem-se instituições diferenciadoras, sob as quais são constituídas as organizações locais.

Região nesse sentido passa a constituir-se numa

matriz de grupos sociais cujo nexo de articulação seja dado pela consciência coletiva de pertencer a um território comum que, formando parte de um território nacional, possui suficientes especificações (recursos, cultura, paisagem, etnia, etc.) para diferenciar-se em tudo, e cujos interesses fracionais ou de classe estejam subordinados estruturalmente a um interesse coletivo regional, expresso em reais projetos políticos, tanto de caráter permanente como transitório. (Boisier, 1989, p. 595)

Por outro lado, os conceitos de crescimento, desenvolvimento e integração regional tem como mensagem que o crescimento e o desenvolvimento de uma região estarão sempre ligados às respostas que a região apresenta em decorrência da atuação de forças externas a ela. Essas forças podem ser a demanda sobre um produto da região, a possibilidade de produzir um novo produto para atender a uma demanda externa, a implantação de uma grande obra na região a partir de investimentos externos à região (públicos ou privados), etc. O crescimento e o desenvolvimento de uma região estarão sempre ligados ao momento em que ela consegue, de alguma forma, integrar-se a espaços econômicos maiores do que ela.

A argumentação acima não é contraditória com as correntes do chamado “desenvolvimento autóctone” ou “desenvolvimento de baixo para cima”. Os autores dessa corrente privilegiam o papel das forças locais no desenvolvimento regional. No entanto eles não negam que os grandes impulsos vêm de fora da região, cabendo a ela arregimentar e aprimorar os seus recursos internos para melhor aproveitar esses momentos. A possibilidade de uma região crescer independente dos estímulos externos é quase tão irreal como a possibilidade de alguém voar puxando os próprios cabelos.

Esses conceitos permitem a análise de duas questões essenciais para a análise regional: como a região funciona internamente e como ela se relaciona com o resto do mundo. Assim sendo, um estudante guineense, por exemplo, deveria conhecer como funciona a economia de Gabu15. O que ela produz (castanha de caju), como ela produz, para quem vende, como é feita a comercialização interna, que tipo de pessoa está envolvida na produção (como empresário e como trabalhador), as condições naturais favoráveis/desfavoráveis à produção, as instituições de apoio, etc. Por outro lado, entender como, através dessa produção, Gabu relaciona-se com o resto do mundo. Para obter essa resposta, o estudante deverá conhecer quem demanda esse produto, os concorrentes internacionais, os canais de comercialização, o financiamento da comercialização, etc.

Esses são os conceitos essenciais que um aluno de Economia Regional e Urbana deve dominar. No entanto para que isso seja possível há a necessidade de alguns conhecimentos complementares e o curso poderá ser estruturado em blocos temáticos, como será visto a seguir.

Os blocos temáticos16

Para enfrentar as questões concretas do desenvolvimento regional, um economista deveria receber uma formação que contemplasse cinco grandes conjuntos de questões. Um conjunto onde estão agrupadas as questões relativas à base teórica; um outro com os instrumentos quantitativos; outro relativo aos parâmetros institucionais; e outro denominado, ad hoc, a capacidade de organização social da região. O quinto conjunto é o das estratégias e análises concretas. Como se verá, essa distinção é meramente didática; evidentemente, os elementos que compõem esses conjuntos são interligados (Vide figura 4).

O conjunto teórico engloba, além das questões relativas ao “rastreamento” dentro da teoria econômica, aquelas relativas aos conceitos básicos da análise regional, como espaço econômico e região; crescimento/desenvolvimento regional; teoria da localização; urbanização; reestruturação produtiva; mundialização.

O conceito básico da análise regional - espaço e região - é uma discussão sempre difícil, à qual os economistas menos atentos ao rigor da profissão procuram fugir. Ela é equivalente à discussão de preço e valor. De fato, é possível reduzir o conceito de região a uma parte de um todo e analisá-la como se fosse um pequeno país. Se por um lado essa prática facilita o trabalho, há que se considerar que os resultados dessas análises são sempre pobres e acabam ocultando fenômenos essenciais para a compreensão da dinâmica regional. Por mais trabalhosa que ela seja e mesmo correndo-se o risco de afugentar alguns alunos com a sua aridez, não há como evitá-la. Pode-se discutir o momento ou os momentos em que ela será apresentada, ou ainda o nível de profundidade que ela deverá merecer, porém, esquecê-la é impossível. No entanto, o enfoque mais promissor para a sua discussão é o apresentado anteriormente neste texto.

Na parte relativa ao crescimento/desenvolvimento regional, espera-se que os alunos terminem por conhecer as principais teorias sobre esse ponto, como a teoria da base de exportações e a macroeconomia regional, a teoria neoclássica, da polarização, Myrdal e o seu texto básico de 1957 sobre desigualdades regionais (Myrdal, 1957), sistemas regionais de inovação, etc. Daqui podem ser derivados alguns elementos quantitativos como os indicadores de disparidades e a contabilidade regional e, também, algumas das implicações em termos de políticas regionais e mecanismos de compensação para as regiões desfavorecidas.

A parte da teoria da localização é das mais difíceis. A localização das atividades econômicas está relacionada a custos de transporte, custos do trabalho e a economias de aglomeração. A importância dos custos de transporte é cada vez menor na explicação da localização em países desenvolvidos e emergentes. Por esse motivo as universidades desses países colocam mais ênfase nas economias de aglomeração como fator explicativo da localização das atividades econômicas. No entanto esse não é o caso de um país típico dos PALOP. No contexto desses países os custos de transporte importam e muito!

A questão da urbanização é essencial no curso. O título do curso - Economia Regional e Urbana - já é um indicativo de que as regiões são definidas pelas suas cidades e pelas relações existentes entre elas, ou seja, pela sua rede urbana. Dessa forma a questão urbana passa a ter uma conotação predominantemente macroeconômica e indissociável da regional. É nessa perspectiva que o conceito de economias de aglomeração é importante para os PALOP17. Porém, no contexto dos PALOP, o ponto de partida é o próprio conceito do que é urbano. Além desse, os principais pontos a serem discutidos englobam as relações da urbanização com o desenvolvimento econômico, a ampliação dos mercados, a vinculação com a localização das atividades terciárias, os sistemas urbanos, as economias de aglomeração e os processos de metropolização, as implicações para a localização das atividades econômicas.

O segundo conjunto de questões é relativo aos instrumentos quantitativos utilizados na análise regional. A ordenação a seguir reflete uma preferência pessoal quanto ao uso desses instrumentos. Começaria pelos indicadores clássicos, a contabilidade regional, depois a estatística descritiva e a não-paramétrica, a análise insumo-produto e finalmente, os modelos econométricos. Os indicadores clássicos, como quociente de localização, coeficientes de associação geográfica, de localização, de reestruturação, etc., têm a vantagem de serem de fácil construção e também de serem amplamente utilizados na literatura, o que facilita as comparações. Merece uma atenção especial a análise shift-share. Existem softwares em que uma vez introduzidos os dados básicos de emprego ou renda das regiões, todos esses indicadores são calculados. A metodologia básica é a avaliação do grau de semelhança entre duas distribuições, uma referindo-se ao universo de comparação, geralmente o país, e outra à região.

A contabilidade regional, por sua vez, é o grande desafio para os institutos geradores de estatísticas de todo o mundo. A questão essencial aqui é que existe uma metodologia padrão, recomendada pelas Nações Unidas, para o cálculo das contas nacionais, mas não existe nada com desenvolvimento equivalente para o nível regional. Uma das principais dificuldades está na separação entre o que é produzido e o que é apropriado na região. Assim sendo, o conhecimento detalhado da metodologia utilizada para esse cálculo é essencial para as interpretações dos dados. Embora isso seja verdadeiro para qualquer conjunto estatístico, no caso das contas regionais é crucial.

Muitas vezes, no entanto, a simples utilização de medidas da estatística descritiva, como média e variância, permitem uma primeira aproximação do quadro a ser analisado. Por outro lado, a estatística não-paramétrica oferece um arsenal de medidas e testes, estranhamente desprezados pelos economistas, que permitem, com um número reduzido de informações, a realização de trabalhos impossíveis com os métodos paramétricos. A análise de séries de tempo reduzidas é um deles. Por sua vez existe uma vasta literatura sobre a utilização das matrizes de insumo-produto na análise regional. Realmente os resultados obtidos podem ser muito ricos, desde que os parâmetros das matrizes regionais sejam confiáveis. Acontece que na grande maioria dos países, e o Brasil é um deles, os sistemas de informações estatísticas não permitem a construção de matrizes regionais precisas. Uma vez obtida uma matriz de insumo-produto é possível a construção de modelos de equilíbrio geral computável. Eles encontram-se na fronteira do conhecimento. No entanto, para um país como um PALOP eles, concretamente, seriam utilizados por um grupo muito restrito.

Não há dúvida que os modelos econométricos podem ser poderosos instrumentos para a interpretação regional. No entanto eles são cada vez mais sofisticados para as realidades paupérrimas em informações que prevalecem na maioria das análises concretas. Por exemplo, os modelos que envolvem séries de tempo utilizam atualmente técnicas que demandam no mínimo 40 ou 50 observações. Ao nível regional são raras as séries que atendem esse requisito. Mesmo quando são utilizados os modelos de dados em painel, as restrições permanecem. A inconsistência dos dados, as hipóteses heroicas que eles necessitam e os resultados muitas vezes banais a que eles chegam, desencorajam a sua utilização.

De qualquer forma é importante o conhecimento desses recursos, a questão novamente trata-se da escolha do nível de detalhamento em que eles serão utilizados. Talvez a questão importante aqui seja desenvolver no economista regional uma sensibilidade crítica para a escolha do instrumental quantitativo disponível. Isso sem falar no fato de que cada vez mais a complementação qualitativa das informações é importante. O desenvolvimento desta sensibilidade talvez seja a tarefa mais importante do curso uma vez que muito provavelmente os alunos terão que eles mesmos gerar seus dados através de pesquisas de campo.

O conjunto dos parâmetros institucionais, na realidade vai tratar fundamentalmente das regras de funcionamento das instituições dentro das quais se desenrola o processo regional. É o que se pode chamar do estudo das regras do jogo. A temática central é o Estado. A sua natureza, o nível de intervenção, a sua eficiência. A sua organização nos diversos níveis territoriais, as instituições e suas delimitações no território, os fluxos financeiros entre os diversos níveis de governo, o grau de liberdade e autonomia das diferentes unidades administrativas, etc. Apesar das periódicas retomadas dos argumentos antiestatais, dificilmente se encontrará estratégias factíveis de desenvolvimento regional onde o Estado e em particular o Estado nacional não desempenhe papel importante.

O conjunto da capacidade de organização social da região é aquele em que os economistas mais necessitam buscar auxílio nas outras ciências sociais. Os elementos estudados aqui são cada vez mais importantes para explicar por que muitas vezes uma região dotada de grandes trunfos econômicos é superada por outra aparentemente menos qualificada. Servem também para apontar os elementos necessários para aumentar o grau de eficácia e eficiência das estratégias regionais. A literatura sobre essas questões começa a se avolumar. Um dos trabalhos que melhor sintetiza esse quadro é o de Boisier (1989). Segundo ele, essa capacidade vai depender de fatores como a qualidade e identificação com a região da classe política local, a qualidade da tecnocracia local, o tipo de empresários que a região possui, os canais de participação dos demais segmentos sociais.

Questões como regionalismo, identidade territorial, etc., começam também a tomar corpo na literatura, muitas vezes mescladas com questões da reestruturação produtiva e da mundialização. Embora ainda não estejam bem estruturadas, apontam para um campo promissor onde a maior aproximação com as demais ciências sociais será importante.

Esses conjuntos evidentemente são entrelaçados. Todos eles levam ao quinto conjunto, que será denominado Estratégias de Desenvolvimento Regional e Análises de Casos Concretos. Uma ideia possível é analisar, a partir do conhecimento oriundo dos demais conjuntos, algumas experiências concretas de estratégias, bem ou malsucedidas, procurando ver quais os fatores que estiveram presentes.

Porém o mais revolucionário, e que provavelmente formaria melhores profissionais para o enfrentamento dos problemas de um PALOP, seria centrar o curso nesse bloco e utilizar os demais para trazer o conhecimento necessário para ele. Dito de outra forma, centrar o curso, por exemplo, na solução de um problema concreto: montar uma estratégia de desenvolvimento para a região de Gabu, na Guiné-Bissau ou em Huambo, Angola. A partir desse problema ir buscar nos demais blocos os elementos necessários para o encaminhamento da sua solução. Esta metodologia é a que foi referida na seção anterior como PBL.

Figura 4: Blocos temáticos 

Considerações finais

Ao longo deste texto foram discutidas questões sobre a universidade necessária aos PALOP, tendo como exemplo a estruturação possível de uma disciplina de Economia Regional e Urbana.

Foi mostrado que o ensino superior em África ainda atinge um número muito restrito da população, particularmente nos PALOP. Além disso, foi visto que a recente expansão das universidades, em grande parte devido ao ensino privado, trouxe também uma queda na qualidade de ensino.

De uma maneira geral os governantes reagem negativamente a essa situação e em vários dos PALOP estão em andamento estratégias para o desenvolvimento do ensino superior que atribuem às universidades o papel de contribuir com as necessidades da economia e da comunidade. De fato, cada vez mais esse é o papel que é cobrado das universidades em todo o mundo. Para um país dos PALOP ele é ainda mais importante dadas as suas grandes carências de recursos financeiros e humanos. Cada centavo alocado ao ensino superior terá que ser muito bem aproveitado. Além disso será impossível enfrentar o desafio da redução da pobreza e da estruturação para o desenvolvimento de um país sem profissionais com conhecimento universitário.

Por outro lado, tendo-se em conta que mesmo que as metas quantitativas previstas nos planos sejam atendidas, o número desses profissionais ainda será reduzido e eles estarão expostos a situações novas para as quais não foram treinados. O grau elevado de obsolescência dos conhecimentos, que é um problema universal, torna-se ainda mais grave para um país pobre com profissionais formados em meio a grandes restrições.

Assim sendo, o essencial para esses profissionais - que serão os construtores do futuro do país - será a aquisição de uma grande capacidade de lidar com problemas novos através de metodologias de ensino que privilegiem esse enfoque, como é o caso da PBL (Problem Based Learning).

O grande desafio para os PALOP é descobrir em quais espelhos mirar para construir, com as grandes restrições de recursos que os caracterizam, essa universidade que consiga desempenhar as funções necessárias para o seu desenvolvimento. Relembrando Darcy Ribeiro:

Tais funções, como foi dito, são herdar e cultivar, fielmente, os padrões internacionais da ciência e da pesquisa, apropriando-se do patrimônio do saber humano; capacitar-se para aplicar tal saber ao conhecimento da sociedade nacional e à superação de seus problemas; crescer, conforme um plano, para formar seus próprios quadros docentes e de pesquisa e para preparar uma força de trabalho nacional da grandeza e do grau de qualificação indispensável ao progresso autônomo do país; atuar como o motor da transformação que permita à sociedade nacional integrar-se à civilização emergente. (Ribeiro, 1969, pp. 171-172)

Esse debate, em que este texto é uma modesta contribuição, continua em aberto.

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1Este artigo está escrito na variante brasileira da língua portuguesa e segue o Acordo Ortográfico em vigor. Versões deste texto foram apresentadas em seminários realizados em Lisboa e Marraquexe. O autor agradece as sugestões de dois pareceristas anônimos da revista.

2Ao longo do texto os termos “instituição de ensino superior” e “universidade” serão usados como sinônimos.

3Parte desta seção foi tratada em Rolim e Serra (2010).

4As pesquisas junto aos empregadores dizem que os formandos são fracos na solução de problemas, visão empresarial, uso de informática, trabalho em equipe e comunicação (World Bank, 2009, p. 44).

5Botswana, BW; Cape Town, ZA; Dar-es-Salam, TZ; Eduardo Mondlane, MZ; Ghana, GH; Mauritius, MU; Makerere, UG; Nairobi, KE.

6University of: Lagos, NG; Ibadan, NG; Obafemi Awolowo University lle-Ife, NG; Ghana, GH; Dar es Salaam, TZ; Nairobi, KE; Cape Town, ZA; Witwatersrand, ZA; Rwanda, RW; Cheikh Anta Diop, SN; Makerere, UG; Stellenbosch, ZA; Pretoria, ZA; Rhodes University, ZA; Kwa-Zulu Natal, ZA; Addis Ababa, ET.

7A Universidade Cheikh Anta Diop, no Senegal, é a única francófona.

8Nº de mulheres/nº de homens matriculados no ensino superior.

9Um histórico das tentativas de estabelecer ensino superior no país pode ser visto em Langa (2013, pp. 45-60).

1010 Na realidade foi criada em 1999 mas só abriu as portas em 2004.

11Não foi possível encontrar um documento oficial com essa relação, no entanto há uma confirmação indireta da sua existência através de eventos registrados no site do Instituto Camões (Instituto Camões, 2019) e no da Plataforma 9 (Plataforma9, 2019). Além dessas, também se intitula universidade o BIMANTECS (Bissau International Management and Technology School).

12A literatura é vasta. Uma introdução pode ser vista em Goddard e Vallance (2013) e Lundvall (2008).

13A sigla em inglês PBL (Problem Based Learning) será utilizada ao longo do texto por ser a mais utilizada na literatura.

14Business and Law.

15Gabu é a segunda cidade da Guiné-Bissau, próximo de 40 mil habitantes, e capital da província do mesmo nome que abriga cerca de 200 mil habitantes. Está cerca de 260 km a leste da capital do país, Bissau.

16Esta parte do texto segue de perto Rolim (1998).

17O texto de Myrdal (1957) é básico para o aprofundamento desse ponto.

Recebido: 28 de Maio de 2020; Aceito: 29 de Junho de 2020

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