SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número40Ativismo Político-social e Crise Institucional na Guiné-Bissau: Caso do MCCI, Bassora di Povu, O Cidadão e Voz do Cidadão do Mundo índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Cadernos de Estudos Africanos

versión impresa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.40 Lisboa dic. 2020  Epub 14-Mar-2022

https://doi.org/10.4000/cea.5153 

Introdução

Ativismos em África: Introdução

i Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, magdalena@bialoborska.com

2ii Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (CESAC), Reino de Bôr, Rua da Clínica de Bôr, s/n, C.P. 1063, Bissau, Guiné-Bissau, miguel.m.debarros@gmail.com


O presente número temático é o resultado da persistência e da perseverança dos ativismos no continente africano e da crescente consciencialização da academia no estudo destes movimentos de transformação social. Este dossiê surge na sequência de uma série de iniciativas ligadas ao projeto “Ativismos em África”, que começou a ser desenhado no ano de 2016. Aos promotores deste projeto, Mojana Vargas e Rui Garrido, investigadores do Centro de Estudos Internacionais do Iscte - Instituto Universitário de Lisboa, juntaram-se ativistas e investigadores de outros centros de investigação. Em conjunto prepararam a primeira edição da Conferência Internacional “Ativismos em África”, que decorreu no Iscte em janeiro de 2017. Esta conferência foi acompanhada de um longo ciclo de cinema documental, intitulado “Ativismos em Docs”, que extravasou os ‘portões da universidade’ e se apresentou no espaço da cidade, o Largo Café Estúdio, em Lisboa, e que teve como principais objetivos a difusão do projeto entre um amplo público, bem como o incentivo ao debate acerca da temática abordada em múltiplas perspetivas ao longo da conferência. O projeto cresceu e viajou além-fonteiras. Dois anos depois, em 2019, teve lugar a segunda conferência internacional do projeto, desta vez mais próxima dos ativistas que se propõe discutir. Organizada em parceria pelo CEI-Iscte e o CESAC - Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral, esta decorreu em Bissau e foi igualmente antecedida pelo ciclo de cinema documental, também ele no espaço da cidade, neste caso no Centro Cultural Português. O projeto “Ativismos em África” prepara-se para ultrapassar novas fronteiras, pois está a ser preparada, para setembro de 2021, a terceira conferência, desta vez no Brasil. Esta será acolhida pelo Instituto de Estudos de África da Universidade Federal de Pernambuco, e tem apoio na organização da Universidade Federal da Paraíba, o CEI-Iscte e o CESAC.

O termo “ativismo” tem sido uma das expressões mais marcantes para designar as formas de manifestação pública dos atores sociais, singulares e coletivas, das últimas décadas. O conceito tem sido projetado quer para os campos de ação política stricto sensu, como forma de designar atores que se inscrevem no campo político-partidário, mas também, lato sensu, para designar formas de mobilização e participação de grupos sociais que defendem e promovem direitos cívicos.

Pessoas singulares e coletivas em várias épocas e contextos foram caracterizadas como “ativistas”, por lutarem e combaterem regimes políticos - escravatura, colonização, ditadura -, mas também por combaterem ideologias totalitárias, fascistas, xenófobas ou, ainda, modelos económicos baseados na exploração do ser humano que geraram desigualdades sociais em várias escalas. Grupos sociais, organizados territorialmente, tematicamente, geracionalmente e por afinidades identitárias são protagonistas das principais transformações sociais e até há menos de cinquenta anos era-lhes atribuído o estatuto de “militantes”. A que se deve a mudança de paradigma na identificação desses atores? Quais os elementos novos ou não que norteiam o processo de sua intervenção, identificação, modos de comunicação, compreensão pública da sua intervenção, lógicas de organização e mobilização, estética, visibilidade e impacto?

A base estrutural que influencia os novos movimentos sociais muito para além das limitações do sistema democrático, é sobretudo a necessidade de produção de sentido da ação de mudanças sociais enquanto elemento decisivo da sua construção. Este processo é caracterizado pela emergência reivindicativa dos atores que procuram modelos organizativos menos hierarquizados e/ou formalizados, capazes de desencadear ação coletiva, face à inércia das políticas públicas, e, através dessa ação, desencadear modalidades mais amplas de governança baseada na capacidade de protesto, mas também a capacidade de iniciativa popular da agenda pública, ampliando os cânones democráticos.

Ao protagonizarem projetos de sociedade para além da esfera partidária, os atores que eram convencionados como “militantes” transitam para a condição de produtores da sociedade, na medida em que as causas de luta não visam vantagens políticas instrumentais, como a conquista do poder de decisão, mas sim as transformações nas relações com atores em situação de desigualdade (Melucci, 2001; Touraine, 1984). Esse elemento novo tem sido explicado de forma inadequada por várias correntes teóricas associadas ao institucionalismo da sociedade civil, pelo facto de que as bases que têm sido usadas enquadram-se num contexto histórico menos dinâmico, interativo e de redes de relações desiguais, caracterizadas pelo voluntariado e portadoras de significados múltiplos.

De acordo com Guerra (2006, p. 21), essa dificuldade de compreensão na caracterização dos novos movimentos sociais reside na heterogeneidade interna e das formas de representação dos atores, num contexto complexo de debate sobre ação coletiva com diversidade de lógicas sociais. O ativismo, guiado pelos fatores emancipatórios e de justiça social, tem como principal objetivo proporcionar a mudança ou, tão-só, preparar o caminho para que ela possa acontecer a partir da participação cívica. As ações de ativistas manifestam-se de formas diversas, em ações individuais ou coletivas, que propõem mudança das circunstâncias económicas, sociais e políticas.

Os estudos científicos existentes sobre os ativismos têm estado mais centrados nos contextos europeu e americano, relegando para um plano secundário iniciativas e atores do continente africano. Nos contextos ocidentais, numa primeira fase, grande parte da produção concentrou-se no estudo dos movimentos operários, particularmente nas lutas dos sindicatos, como é o caso dos EUA, mas também dos movimentos estudantis, pacifistas, feministas e ecologistas, no caso europeu (Gohn, 1997, pp. 327-332). Na América Latina e em África, as lutas de libertação foram secundarizadas e/ou ignoradas no campo teórico dos movimentos sociais dominantes da época, enquadradas mais no campo político, para análises centradas em teorias neoliberais de desenvolvimento.

África Insubmissa (Mbembe, 2013) passa a ser considerada como um novo campo de atenção e de interesse de pesquisa, fundamental num contexto dinâmico e produtivo de movimentos sociais ativistas, entre outros, associados às rebeliões alimentares na África Austral com as crises de fome, pobreza e injustiças sociais (Holt-Giménez & Patel, 2009). Ademais, as revoltas populares nas cidades, protagonizadas pelos jovens - como é o caso das “primaveras árabes” - trazem à luz do dia várias questões complexas, associadas à transição para a vida adulta, ao emprego e à democratização nas sociedades africanas (Honwana, 2013).

A temática dos sete artigos que compõem esta edição é bastante variada, evidenciando a multiplicidade de assuntos que se ligam, de forma direta ou indireta, com ativismos em África. Assim como durante as sessões de cinema organizadas, também na seleção de textos para este número ou de comunicações a serem apresentadas na conferência, não nos limitamos aos assuntos que evocam o ativismo literalmente. Há temas que nos parecem pertinentes para incentivar o debate sobre o ativismo ou contribuir para a teoria do mesmo, muitas vezes abrindo outros caminhos, não visíveis num primeiro instante. O primeiro artigo, de autoria de Rui Jorge Semedo, analisa as conexões entre os movimentos da sociedade civil e as crises institucionais da Guiné-Bissau. Através do estudo de quatro organizações guineenses, o autor analisa o impacto das suas ações para a mobilização e consciencialização da sociedade em geral. Luca Bussotti, autor do segundo artigo, reflete sobre as formas de resistência de comunidades rurais moçambicanas perante a “corrida para a terra” dos investidores estrangeiros, que se intensificou em Moçambique em meados da primeira década do século XXI. O autor do artigo seguinte, Gabriel Tati, analisa a abrangência das atividades dos sindicatos na Suazilândia, que das ações a nível local, passaram para as atividades internacionais e transnacionais, estabelecendo alianças transfronteiriças. Segue-se o artigo de Jeremy Sarkin, que se debruça sobre o posicionamento da África do Sul perante o direito internacional e a justiça penal internacional, examinando, entre outros, a decisão deste país acerca da sua retirada do Tribunal Penal Internacional. Esta reflexão torna-se muito premente quando os direitos humanos, fundamentais para o florescimento e diversidade dos movimentos de ativismo, se encontram pressionados por Estados que não os respeitam e procuram furtar-se às suas responsabilidades internacionais. A discussão sobre constrição dos direitos humanos é encetada pelo texto de Rui Garrido, que reflete sobre o ativismo jurídico e a sua relevância para o ativismo LGBTI em África, analisando como os tribunais internacionais têm sido mobilizados como arenas de reivindicação de direitos de cidadania. Os últimos dois artigos do número estudam os meios de comunicação social, a rádio e as redes sociais, como veículos de mudança. Francisco Miguel, através da detalhada análise de uma série de episódios do programa radiofónico Café Púrpura, reflete sobre o processo de institucionalização da homossexualidade em Moçambique. Por sua vez, Dércio Tsandzana foca-se na função das redes sociais, mais especificamente do Facebook, como importante ferramenta de consciencialização que resulta em aumento da participação política de jovens dos espaços urbanos moçambicanos.

De uma forma global, com a publicação deste número temático, pretende-se demonstrar como as performances sociopolíticas nos diferentes contextos em África geraram movimentos de protesto que, por sua vez, têm provocado várias lutas na paisagem democrática, nas transformações dos sistemas políticos. Apresenta-se, também, os desafios de estruturação dos próprios movimentos sociais e as possibilidades de pesquisas que se abrem ao espaço académico para acompanhar, documentar e aprofundar o debate sobre as lógicas de ação coletiva no contexto africano.

Referências

Gohn, M. G. (1997). Teorias dos movimentos sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. Loyola. [ Links ]

Guerra, I. C. (2006). Participação e acção coletiva: Interesses, conflitos e consensos. Principia. [ Links ]

Holt-Giménez, E., & Patel, R. (2009). Food rebellions! Crisis and the hunger for justice. Pambazuka Press. [ Links ]

Honwana, A. (2013). O tempo da juventude: Emprego, política e mudanças sociais em África. Kapicua Livros & Multimídia. [ Links ]

Mbembe, A. (2013). África insubmissa: Cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial. Pedago. (Obra original publicada em 1988) [ Links ]

Melucci, A. (2001). A invenção do presente: Movimentos sociais nas sociedades complexas. Vozes. [ Links ]

Touraine, A. (1984). Le retour de l’acteur. Fayard. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons