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Cadernos de Estudos Africanos

versão impressa ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.40 Lisboa dez. 2020  Epub 14-Mar-2022

https://doi.org/10.4000/cea.5410 

Artigos Originais

Potencialidades e ameaças do ativismo jurídico transnacional no ativismo LGBTI no continente africano

Potentialities and threats of transnational legal activism in LGBTI activism on the African continent

1i Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, ralgs@iscte-iul.pt


Resumo

Este artigo procura perceber de que forma os tribunais internacionais africanos estão a ser mobilizados pelos movimentos de ativismo LGBTI no continente. Face aos crescentes movimentos legislativos que criminalizam a homossexualidade, à resistência política da União Africana em abordar a questão e fragilizando o sistema regional africano de direitos humanos, os movimentos ativistas LGBTI adotaram a litigância como uma nova estratégia. Os tribunais internacionais são hoje uma arena para reivindicar os direitos humanos das pessoas LGBTI. Analisando a jurisprudência recente nos tribunais regionais africanos, este artigo conclui que estes tribunais são resistentes em conhecer estas questões, revelando-se uma estratégia ineficaz para o ativismo. Por outro lado, observa que a litigância é mais bem-sucedida nas jurisdições nacionais.

Palavras-chave: jurídico transnacional; orientação sexual; tribunais internacionais; sistema africano de direitos humanos; litigância

Abstract

This article aims to understand how the international African courts are being mobilized by the LGBTI activism in the continent. In view of the growing legislative movements that criminalize homosexuality and the African Union’s political resistance to addressing the issue and weakening the African regional human rights system, the LGBTI activist movements adopted litigation as a new strategy. International courts are nowadays a legal arena for claiming human rights for LGBTI people. Through the analysis of recent jurisprudence in African regional courts, this article concludes that these courts are resistant to addressing these issues, revealing an ineffective strategy for activism. On the other hand, it notes that litigation is more successful in national jurisdictions.

Keywords: transnational legal activism; sexual orientation; international courts; African human rights system; litigation

O reconhecimento de que todos os “seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”1 é a condição de partida da Declaração Universal dos Direitos Humanos. No entanto, volvidos mais de 70 anos desde a adoção desta emblemática declaração, a realidade continua longe desta aspiração. A discriminação, marginalização e negação dos direitos fundamentais de vários grupos de indivíduos impõe que a luta pela sua concretização seja uma constante. Esta é particularmente visível nas minorias sexuais, que enfrentam o preconceito e, não raras vezes, a criminalização por causa da sua orientação sexual. E apesar dos inegáveis avanços que, de uma perspetiva global, se vão verificando, são vários os movimentos de resistência que se opõem ao reconhecimento da orientação sexual e da identidade de género como questões de direitos humanos.

Também no continente africano esta é uma realidade que afeta milhões de cidadãos. Nos diversos Estados africanos convivem distintas opções legislativas no que toca à orientação sexual, sendo que é neste espaço geográfico que há uma maior prevalência da criminalização dos atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo. Como demonstra o relatório anual da International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association (Mendos, 2019), setenta (70) Estados ao nível mundial criminalizam as práticas sexuais consentidas entre adultos do mesmo sexo, ou a manifestação de afeto entre pessoas do mesmo sexo. E trinta e três desses Estados localizam-se no continente africano. A pena de morte é aplicada em cinco Estados, dos quais a Mauritânia e o Sudão, embora se verifique a sua aplicação em partes da Nigéria e da Somália, resultado da ação de grupos extremistas islâmicos, respetivamente o Boko Haram e o al-Shabab (Mendos, 2019). Na sua grande maioria são antigas colónias britânicas que, durante o período colonial, viram ser introduzidos dispositivos penais para a penalização da sodomia e que ainda se mantêm em vigor.

A situação política em alguns dos Estados africanos tem vindo a sofrer uma deterioração significativa no que tange à situação das minorias sexuais, em especial por ação das suas elites políticas e religiosas. Inclusive, desde a metade da década de 2000 até à atualidade, verificam-se esforços no sentido de adotar legislação anti-homossexualidade, que abarcam a proibição das relações sexuais consentidas, mas também a restrição da liberdade de expressão e de associação destes grupos. Em 2013, a Nigéria adotou a Same Sex Marriage (Prohibition) Act, 2013, que entrou em vigor no início de 2014. A 20 de dezembro de 2013, o parlamento do Uganda aprova The Anti-Homosexuality Act, 2014,2 a primeira expressamente contra a homossexualidade. Viria a entrar em vigor em fevereiro de 2014 e declarada nula em agosto do mesmo ano, com base em aspetos técnicos (Caldwell, 2014). A 9 de outubro de 2014, a Gâmbia aprovou a Criminal Code (Amendment) Act, 2014, que introduziu novas disposições legais punitivas da homossexualidade,3 para além daquelas já previstas na legislação penal, inclusive a previsão de pena de prisão perpétua pelo crime de “homossexualidade agravada”4 (Goiton, 2014). Estes são apenas alguns exemplos de países africanos que adotaram medidas para uma “criminalização expansiva”5 da homossexualidade. Contudo, esta não é uma realidade exclusivamente africana.

Este ensaio pretende olhar, de uma forma ampla, para os atuais desenvolvimentos em matéria do reconhecimento dos direitos humanos das minorias sexuais em África, acompanhando os seus avanços e recuos, com particular foco no papel desempenhado pelos tribunais internacionais. Começamos a nossa abordagem por uma breve análise aos argumentos culturalistas que sustentam a alegada exogenia da homossexualidade em África. Posteriormente, tomaremos o pulso à situação atual dos direitos das minorias sexuais no continente, não de forma exaustiva, mas que ainda assim permita perceber o quão fraturante este tema é nas diversas instâncias africanas e das diferentes posições em debate. Num terceiro momento, olharemos para a litigância junto das instâncias judiciais nacionais, que tem sido usada por organizações locais e indivíduos como reparação pela violação dos direitos fundamentais, independentemente da sua orientação sexual. Por fim, iremos analisar a ação do ativismo jurídico transnacional enquanto estratégia política de contestação junto das instâncias regionais africanas e refletir sobre a potencialidade ou ameaça que esta estratégia pode comportar.

A homossexualidade é un-african?

A intensificação da homofobia em África, e em alguns casos podemos falar inclusive de uma homofobia de Estado, tem sido acompanhada por um discurso apelativo aos “bons valores” africanos, à defesa da família tradicional, entre outros. Esta centralidade da homossexualidade no discurso político é fruto da ação de vários agentes religiosos e políticos que têm vindo a atuar desde o início da década de 2000 (Awondo et al., 2012, p. 147). A relativa tolerância que se vivia em várias sociedades africanas deu lugar a uma homofobia crescente, que se traduziu, em alguns casos, em manifestações graves de violência. No documentário And Still We Rise (2005), a ativista e professora universitária Sylvia Tamale afirma que, no Uganda, as minorias sexuais viviam em relativa paz e tranquilidade. E no caso do Uganda, como em praticamente todas as sociedades africanas onde hoje impera a intolerância, houve um acontecimento - ou vários, em alguns casos - que despoletou essa mesma intolerância. No caso do Uganda, a proposta de uma legislação anti-homossexualidade, em 2009, foi o ponto de viragem. De igual forma, no Senegal, uma fotografia de uma encenação de casamento entre dois homens, tornada pública em 2008, foi o gatilho que despoletou uma intolerância contra as minorias sexuais (Associated Press, 2010), onde até então viviam em relativa tranquilidade.

Os líderes políticos têm qualificado a homossexualidade como un-african, constituindo uma ameaça às famílias e às sociedades africanas e sobretudo, que é uma ameaça vinda do exterior. Este discurso político e religioso assenta em várias falácias. Em primeiro lugar, África é apresentada como uma unidade homogénea e sem qualquer diversidade cultural (Tamale, 2014). Essa unidade é apresentada como heterossexual, rejeitando outras sexualidades que entende como desviantes, e culturalmente homofóbica (Ibrahim, 2015, p. 267). Vários estudos apontam para uma realidade bastante diferente daquela que é veiculada no discurso político e religioso dominante. Num relatório da organização não governamental Sexual Minorities Uganda (2014) são compiladas um conjunto de evidências que demonstram uma narrativa diferente, ao longo da História do continente africano.

No entanto, é possível afirmar que a colonização europeia é, em grande medida, responsável pela introdução da criminalização das relações sexuais entre adultos do mesmo sexo.6 Este tipo de legislação - que nasceu e proliferou pelos territórios colonizados pela potência britânica e conhecida como sodomy laws, ou leis contra a sodomia -, assumia formas tão distintas como “conhecimento contranatura”, “ofensas não naturais”, ou ainda “vícios contra a natureza” (Garrido, 2019a, pp. 371-372). De acordo com o Black’s Law Dictionary, a sodomia refere-se a “oral or anal copulation between humans, [especially] those of the same sex”, podendo ainda compreender os atos sexuais com animais, conhecidos como bestialidade (Garner, 2004, p. 1425).

De acordo com o relatório da Human Rights Watch (2008), a criminalização da sodomia, inicialmente prevista pela legislação penal indiana, na secção 377, de 1860, assumiu a seguinte redação:

Unnatural offences - Whoever voluntarily has carnal intercourse against the order of nature with any man, woman or animal shall be punished with imprisonment for life [...].

Explanation - Penetration is sufficient to constitute the carnal intercourse necessary to the offence described in this Section.

Este dispositivo penal terá sido, posteriormente, replicado em todo o território colonial britânico, o que explica a semelhança entre os vários códigos penais ainda em vigor nas antigas colónias britânicas, sobretudo neste tipo específico de crime. O Código Penal Indiano de 1860 distinguia, de forma clara, dois atores envolvidos. Por um lado, um sujeito ativo, que praticava, de forma voluntária, o ato sexual com um homem, mulher ou animal e que, por esse ato, praticava uma ilicitude. Por outro lado, um sujeito passivo, que seria objeto do ato sexual, mas que não incorria em nenhuma ilicitude. Portanto, poderemos deduzir que, na redação do crime de sodomia no Código Penal Indiano de 1860, distinguia-se, de forma clara, um perpetrador da violência e uma vítima. As formas atuais de leis da sodomia removem, ainda que de forma parcial, este entendimento, criminalizando ambos os sujeitos. Tomando como exemplo a secção 145.º do Código Penal do Uganda, de 1950:

Any person who-

has carnal knowledge of any person against the order of nature;

has carnal knowledge of an animal; or

permits a male person to have carnal knowledge of him or her against the order of nature,

commits an offence and is liable to imprisonment for life.

A disposição legal criminaliza o “conhecimento carnal” de outra pessoa ou animal, conhecimento esse que é “contrário à ordem natural”. Depreende-se, portanto, o ato sexual como prática criminalizada. Por este facto, esta legislação tinha como finalidade restringir a sexualidade humana à reprodução, eliminando quaisquer atos que fossem considerados pervertidos ou inúteis. Neste sentido, é impreciso afirmar que as leis da sodomia são um tipo de legislação homofóbica ou anti-homossexualidade, como se depreende da alínea c) da secção 145 supramencionada.

Contudo, não se pode negar que alguns Estados instrumentalizam esta legislação para perseguir as minorias sexuais. Não obstante, com a criminalização da sodomia introduzida inicialmente pelos britânicos, foi igualmente introduzido um novo elemento desconhecido até então: a homofobia. Como afirma John McAllister (2015, p. 43), “the roots of contemporary African homophobia are nineteenth-century European prudery and racist fantasies of ‘primitive’ black sexuality”. No mesmo sentido, sustenta Sylvia Tamale (2014) que “what is alien to the continent is legalized homophobia, exported to Africa by the imperialists where there had been indifference to and even tolerance of same-sex relations”.

Este legado colonial é hoje acarinhado pelas elites africanas, que se apropriam do mesmo para lhe imprimir um caráter de autenticidade cultural africana (Human Rights Watch, 2008). Incorporam, desta forma, a homofobia como inerente e transversal às sociedades africanas e remetem a homossexualidade para um domínio marginal, pois é percecionado como vindo do Ocidente. O que se está a assistir, atualmente, é a uma “africanização” da homofobia (Ibrahim, 2015).

Esta intolerância tem tido como adjuvante a ação de grupos evangélicos norte-americanos em África. No caso do Uganda, a influência destes grupos atinge a esfera mais alta da política do país, na medida em que a primeira-dama e deputada Janet Museveni, assumidamente evangélica, tem usado a sua posição para servir os interesses desse movimento (Awondo et al., 2012). Entre esses interesses conta-se o apoio às reformas legislativas anti-homossexualidade,7 que tiveram lugar no Uganda em 2013 (Imaka, 2011). Os evangélicos norte-americanos no Uganda têm lavrado em terreno fértil, por instigar o pânico social de que os gays pretendem sodomizar as crianças africanas, destruir a família e a cultura do Uganda (Awondo et al., 2012). As práticas sexuais gozavam de uma certa tolerância, e ganharam desta forma o caráter de desviantes, ilegítimas e criminais (Tamale, 2014). Esta mundividência, que é exterior ao continente africano, é responsável pela manipulação do poder político, que por sua vez se serve de um discurso que apela à proteção dos valores e da moralidade africana.

Sistema regional africano de direitos humanos e a questão da orientação sexual

Os direitos humanos foram consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada a 10 de dezembro de 1948, na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Este momento de universalização dos direitos humanos foi sucedido por um outro de regionalização destes direitos. Esta regionalização marca-se por adoção de tratados regionais - europeu, interamericano e africano - em matéria de direitos humanos. Veremos de seguida o caso do sistema africano e da trajetória da orientação sexual como fator proibido de discriminação neste contexto regional.

Breve introdução ao sistema

O sistema regional africano de proteção dos direitos humanos assenta na Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Carta Africana ou Carta de Banjul), adotada em janeiro de 1981. A Carta de Banjul é um marco simbólico na trajetória da Organização de Unidade Africana (OUA). A OUA primava, até então, pelo escrupuloso respeito pelo princípio de não ingerência nos assuntos internos dos Estados (Garrido, 2016c, p. 332), o que incluía a situação dos direitos humanos nos recém-independentes Estados africanos. Os regimes ditatoriais que lavraram em alguns destes Estados nas décadas de 60 e 70 do século XX foram decisivos para que a OUA reorientasse as suas prioridades e empreendesse esforços no sentido de adotar um tratado regional africano de direitos humanos (Baldé, 2017, p. 71).

A Carta de Banjul rompe com o princípio de não ingerência da OUA, muito embora de forma ainda bastante tímida, nomeadamente no que tange aos mecanismos de controlo dos direitos e deveres consagrados neste tratado africano. Prevê a criação de uma Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, um órgão “quasi-judicial” (Viljoen, 2009, p. 505) com funções de proteção e promoção dos direitos e deveres da Carta, mas com competências muito limitadas. Em 1998 é adotado um Protocolo sobre um Tribunal Africano dos Direitos Humanos (Protocolo de Ouagadougou), órgão que só viria a ser instalado em 2004. A ratificação do Protocolo de Ouagadougou é facultativa e os Estados podem limitar o acesso dos cidadãos a este Tribunal (Baldé, 2017, p. 43).

Por outro lado, e tendo em consideração a época em que foi discutida e adotada, a Carta de Banjul é um tratado vanguardista no que concerne aos direitos humanos, mas sobretudo, no contributo que dá para uma expansão do direito internacional dos direitos humanos, nomeadamente a consagração dos direitos coletivos e dos deveres (Martins, 2012; Moco, 2010). Desde a sua fundação em 1981, o sistema africano de proteção dos direitos humanos tem vindo a consolidar-se normativa e institucionalmente. A transição da Organização de Unidade Africana para a União Africana trouxe uma crescente atenção pelos direitos humanos, afirmada desde logo no seu tratado fundador - o Ato Constitutivo da União Africana, de 2000.8 Foram vários os tratados adotados que se seguiram à Carta de Banjul, os quais vieram robustecer a proteção jurídica da pessoa humana ao nível da União Africana.9 No que tange à proteção das minorias sexuais no continente africano, como iremos ver de seguida, o sistema africano tem feito um caminho no sentido de uma proteção contra a discriminação e a violência, mas dada a complexidade do tema e as resistências que gera, esta é uma batalha que passou a travar-se em outras esferas, inclusive nos tribunais internacionais.

Orientação sexual e o sistema africano de direitos humanos

Apesar de o desenvolvimento do sistema africano de direitos humanos ser relativamente recente, o mesmo já teve de lidar com questões politicamente fraturantes que colocaram todo o sistema em pressão, mas que também contribuíram para o seu desenvolvimento e robustecimento. A Carta Africana trata-se um catálogo generoso na proteção dos direitos humanos, conferindo proteção aos direitos coletivos - os direitos dos povos - com igual força jurídica aos demais direitos individuais (Moco, 2010, p. 171). No entanto, no que concerne à orientação sexual, o tratado africano é semelhante aos demais tratados internacionais, que não incluem este fator como proibido de discriminação (Garrido, 2019b). Atendendo ao facto de, em vários Estados africanos, os dispositivos legais penalizarem as relações sexuais consentidas entre adultos do mesmo sexo, compreende-se o papel vital que o sistema regional africano pode ter na reparação desta discriminação.

Dentro do sistema africano, é a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Comissão) que tem, de uma forma mais ativa, contribuído para um reconhecimento da orientação sexual e da identidade de género como uma matéria de direitos humanos. Deste modo, no ano de 1994 a Comissão recebeu uma comunicação10 que procurava que a Comissão se pronunciasse sobre a incompatibilidade da lei da sodomia, em vigor no Zimbábue, com os compromissos internacionais decorrentes da Carta de Banjul. A Comissão nunca se pronunciou sobre o caso, uma vez que o peticionário retirou a comunicação, mas os argumentos culturalistas terão sido evocados no tempo em que a comunicação esteve em apreciação. Olufemi Amao cita o rapporteur da Comissão, que inscreveu no relatório anual da Comissão que:

because of the deleterious nature of homosexuality, the Commission seizes the opportunity to make a pronouncement on it. Although homosexuality and lesbianism are gaining recognition in certain parts of the world, this is not the case in Africa. Homosexuality offends the African sense of dignity and morality and is inconsistent with positive African values. (Amao, 2019, p. 154)

A questão voltaria a ser discutida em 2006, quando a Comissão vem afirmar que o princípio da não discriminação da Carta Africana tem como finalidade “garantir a igualdade de tratamento para os indivíduos, indistintamente da sua (…) orientação sexual” (Garrido, 2019b). Entre 2008 e 2010, vários grupos de ativismo encetaram formas de diálogo com a Comissão que resultaram na elaboração de um documento de discussão que elencava os principais eixos de ação do sistema africano de direitos humanos e a questão da proteção da orientação sexual (Ndashe, 2011). Este texto identificou cinco eixos fundamentais: o primeiro diz respeito ao predomínio das leis da sodomia e à situação de vulnerabilidade de indivíduos e organizações que trabalham com direitos humanos das pessoas LGBTI face a uma crescente hostilidade política e religiosa; o segundo refere o artigo 2.º da Carta Africana (não discriminação) e o direito à igualdade perante a lei como formas de inclusão e proteção da orientação sexual; o terceiro identifica as ameaças decorrentes dos deveres previstos na Carta Africana, em especial aqueles elencados no artigo 27.º, na medida em que, proclamando que os direitos devem ser exercidos no respeito da “moral e do interesse comum”,11 tal pode servir como forma de limitar ou restringir o exercício de direitos em razão da orientação sexual; o quarto eixo procura identificar em que medida a Comissão pode proteger as minorias sexuais face às ameaças possíveis, identificadas anteriormente, e o quinto eixo identifica as ameaças que as leis da sodomia e a criminalização dos atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo constituem no acesso a direitos fundamentais, nomeadamente no acesso a cuidados de saúde e prevenção da exposição ao vírus do HIV/SIDA (Ndashe, 2011, pp. 25-26).

Posteriormente, em 2011, a Comissão reconhece, nas diretrizes sobre os direitos económicos, sociais e culturais da Carta Africana, que a orientação sexual é um fator proibido de discriminação, assim como as pessoas gays, lésbicas, bissexuais, transgénero e intersexo constituem grupos vulneráveis e desfavorecidos no acesso a direitos económicos, sociais e culturais (Garrido, 2019b). Em 2014, a Comissão adota a sua primeira - e até ao momento, única - resolução relativa à violência perpetrada contra pessoas com base na sua orientação sexual e identidade de género real ou percecionada, apelando aos Estados para que encetem esforços no sentido de minimizar essa violência.12

Apesar destes desenvolvimentos muito positivos da Comissão, a questão num nível político assumiu, dentro da União Africana, contornos de braço de ferro entre órgãos políticos e órgãos de direitos humanos, que analisaremos de seguida.

Um pântano político: o caso Coalition of African Lesbians

A Coalition of African Lesbians (CAL), uma organização não governamental sul-africana que trabalha, sobretudo, com direitos humanos de mulheres lésbicas, foi uma peça central na controvérsia que opôs o Conselho Executivo da União Africana e a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. A trajetória da CAL no sistema regional africano de direitos humanos demonstrou que a orientação sexual é um assunto politicamente muito delicado. Ao nível da política interna dos Estados africanos, o tema das minorias sexuais sempre se pautou por uma postura de desconforto ou negação.13 Mas ao nível do sistema regional, a questão assume contornos do que consideramos um “pântano político”, no qual se afundam todas as aspirações de garantir a igualdade de direitos e garantias a todas as pessoas.

A CAL fez um pedido, em 2008, para obter estatuto de organização observadora da Comissão,14 pedido que viria a ser recusado dois anos depois (Centre for Human Rights, 2010). Apesar de a Comissão já ter deliberado sobre a proibição da discriminação no acesso aos direitos e deveres da Carta Africana anteriormente, o pedido da CAL mostrou os primeiros sinais da resistência que o sistema regional viria a padecer nos anos subsequentes. A CAL trabalha na advocacy dos direitos humanos de mulheres lésbicas na África do Sul, em particular nas questões da violência física e sexual perpetrada contra estas mulheres, como as “violações corretivas”, ou ainda dos casamentos forçados a que eram sujeitas, entre outras (Ndashe, 2010). Ao fim de dois anos de discussão, e com grande clivagem interna onde a delegação do Uganda fez grande oposição, ameaçando abandonar a Comissão, este órgão rejeita conceder este estatuto à CAL (Ndashe, 2011). A Comissão justificaria este posicionamento, argumentando que a CAL não promovia nenhum dos direitos consagrados na Carta Africana (Comissão, 2010, p. 8). O estatuto de ONG observadora decorre das funções da Comissão de proteção e promoção dos direitos humanos, em particular por permitir às ONG poderem ter assento nas discussões de direitos humanos, sugerir a discussão de qualquer assunto de direitos humanos e, sobretudo, submeter relatórios-sombra à Comissão em contraposição com os relatórios nacionais apresentados pelos Estados (Monteiro, 2018, p. 324).

Durante os quatro anos que se seguiram, a CAL encetou uma campanha de advocacy em favor dos direitos humanos das minorias sexuais junto de alguns comissários da Comissão de Direitos Humanos. Em 2014 apresentou um novo pedido, desta vez aceite em pouco mais de um ano. Apesar de a CAL ter feito um trabalho consistente que lhe permitiu ver reconhecida e legitimada a sua linha de trabalho com os direitos humanos das mulheres lésbicas na África do Sul, o reconhecimento do estatuto de ONG observadora da Comissão foi amplamente criticado e diretamente contestado pelo Conselho Executivo da União Africana, que é o segundo órgão político mais importante da União. É precisamente na ação despoletada pelo Conselho Executivo que se verifica o “pântano político” que decorre de questões fraturantes e socialmente controversas.

Em junho de 2015, o Conselho Executivo iniciou uma campanha agressiva contra a Comissão. Durante a sua 27ª sessão ordinária (Joanesburgo), adotou uma decisão que coloca em causa o papel da Comissão, acusando-a de estar refém de interesses estrangeiros ao continente africano e pedindo a revogação do estatuto concedido à CAL. O Conselho Executivo expressa-se nos seguintes termos:

REQUESTS the ACHPR to take into account the fundamental African values, identity and good traditions, and to withdraw the observer status granted to NGOs who may attempt to impose values contrary to the African values; in this regard, REQUESTS the ACHPR to review its criteria for granting observer status to NGOs and to withdraw the observer status granted to the Organization called CAL, in line with those African Values. (Conselho Executivo, 2015)

A decisão adotada pelo Conselho Executivo constitui uma manifesta ingerência na atuação da Comissão de Direitos Humanos, enquanto órgão da UA dotado de independência e subvertendo a sua função primordial de promoção dos direitos humanos e dos povos. Ao fundamentar a sua posição na necessidade de preservação dos “Valores Africanos”, o Conselho Executivo incorpora a conceção de que a homossexualidade não faz parte desses valores e que tal se trata de uma importação de valores de fora do continente (Garrido, 2016a, p. 98).

A resposta da Comissão Africana surge no seu 43.º relatório de atividades (2017), no qual fundamenta a aceitação e a concessão do estatuto de ONG observadora à CAL. A Comissão começa por sustentar que a concessão de tal estatuto obedeceu, de forma rigorosa, aos critérios definidos e aprovados pela Comissão e que se aplicam a todas as ONG que o solicitem. Afirma, seguidamente, o seu papel de órgão promotor e protetor dos direitos humanos e dos povos para todos os cidadãos africanos, nos seguintes termos:

The Commission is mandated to give effect to the African Charter under which everyone is entitled to the rights and subject to the duties spelt out in the Charter, and it is the duty of the Commission to protect those rights in line with the mandate entrusted to it under Article 45 of the Charter, without any discrimination because of status or other circumstances. (Comissão, 2017, p. 19)

A Comissão procurou, ainda, manter uma postura de alguma neutralidade, sustentando estar ciente de que o seu papel de mecanismo de supervisão não se pode substituir ou impor às jurisdições nacionais. Afirmou ainda que, dentro das suas funções de interpretação da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, vai continuar a escrutinar a noção de “valores africanos” e o seu sentido no âmbito do sistema regional de direitos humanos (Comissão, 2017).

Esta posição causou desconforto dentro do Conselho Executivo, que endureceu a sua atitude e hostilidade para com a Comissão de Direitos Humanos. Em janeiro de 2018,15 o Conselho insistiu na necessidade de retirar o estatuto à CAL, exigindo à Comissão que cumpra com o disposto nessa decisão (Conselho Executivo, 2018a). Seis meses depois, o Conselho decide por uma postura que corrói, em definitivo, a independência da Comissão de Direitos Humanos. Adota a decisão 1015, na qual o Conselho Executivo sublinha que:

the independence enjoyed by ACHPR is of a functional nature and not independence from the same organs that created the body, while expressing caution on the tendency of the ACHPR acting as an appellate body, thereby undermining national legal systems. (Conselho Executivo, 2018b)

O Conselho Executivo faz ainda um ultimato à Comissão, exigindo a remoção do estatuto de observador da CAL até ao final do ano de 2018 (Conselho Executivo, 2018b). Não tendo este texto a aspiração de discorrer acerca da independência que gozam os órgãos internacionais de direitos humanos, importa, no entanto, referir que a afirmação do Conselho Executivo assume um caráter de extrema gravidade para a Comissão Africana de Direitos Humanos, mas também para os direitos humanos em África e para os movimentos associativos e de ativismo. Um órgão internacional de supervisão de direitos humanos, como é a Comissão Africana, tem o dever de escrutinar a implementação e as garantias de direitos humanos pelos Estados Partes da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. A ausência deste escrutínio internacional abre margem para que os Estados tomem medidas arbitrárias, que colocam em causa os direitos fundamentais dos cidadãos. O Conselho ignora, deliberadamente, o facto de que a Carta Africana prevê a necessidade de exaustão dos mecanismos internos, ou seja, os tribunais nacionais, antes de ser possível os cidadãos recorrerem à Comissão, precisamente para impedir que sejam criados conflitos com as jurisdições nacionais.

Após a decisão adotada pelo Conselho Executivo em junho de 2018, a Comissão foi forçada a revogar a decisão da concessão do estatuto atribuído à CAL em agosto de 2018, resultando em uma vitória para o Conselho Executivo, mas uma perda para os direitos humanos no continente. Mais ainda, este episódio mostrou a vulnerabilidade dos órgãos de direitos humanos face aos órgãos políticos da União Africana, expondo uma fraqueza que afeta não apenas os direitos humanos das minorias sexuais no continente, mas dos direitos humanos no seu todo, caso sejam entendidos como ameaçadores para os poderes instalados. Com a decisão 1015, o Conselho Executivo abre um novo precedente de escrutínio das atividades das associações e ONG, podendo, de forma arbitrária, restringir o seu acesso ao espaço público ou ainda estrangular estes movimentos da sociedade civil.

A litigância como instrumento de contestação e reivindicação social

A litigância, isto é, o recurso aos tribunais, tem sido uma estratégia importante para uma consolidação dos direitos humanos. A ação dos Estados, muitas vezes atropelando a lei, tem sido contrabalançada pelas decisões judiciais. No caso dos direitos humanos das pessoas LGBTI, e dos movimentos de ativismo que as representam, esta tem sido uma estratégia importante. No contexto africano, a litigância tem sido fundamental para repor a legalidade das ações arbitrárias dos Estados, como veremos de seguida.

O direito ao registo de organizações não governamentais em Estados africanos

O recurso aos tribunais tem sido uma ferramenta cada vez mais utilizada por movimentos de ativismo LGBTI para reivindicar uma igualdade de acesso a direitos fundamentais, acesso esse muitas vezes negado, entre outros fatores, pelo nome da organização remeter para questões LGBTI, ou por estas ONG trabalharem com pessoas LGBTI.

Não surpreende, portanto, que vários tribunais de Estados africanos tivessem sido mobilizados, principalmente a partir dos anos 2000, para decidir, direta ou indiretamente, casos em que a orientação sexual tinha um papel preponderante. Este foi um primeiro esforço de ocupação de um espaço de reivindicação, pela legitimidade e igualdade, que não tinha ainda sido preenchido por movimentos tão específicos quanto os do ativismo LGBTI. Gwendolyn Leachman (2014) concluiu, num estudo sobre litigância nos Estados Unidos da América, que os grupos de associativismo LGBTI que recorriam a esta forma de contestação tinham uma maior exposição mediática o que, naqueles casos, também se traduziu numa maior longevidade da organização. No que concerne aos movimentos africanos de ativismo LGBTI, a visibilidade decorrente da exposição mediática fez com que o tema da homossexualidade tomasse lugar no espaço público, o que nem sempre representou um ganho para os movimentos de ativismo, tampouco para os indivíduos. Demonstrativo desta situação é, por exemplo, a escalada de violência no Uganda aquando da discussão de The Anti-Homosexuality Bill, 2009 (Garrido, 2016a). É também no Uganda, fruto de uma maior compressão do espaço público no que tange aos movimentos de ativismo LGBTI, que a litigância se torna uma ferramenta essencial para a sobrevivência destes grupos.16

No entanto, foi na questão dos registos de ONG de ativismo LGBTI, enquanto ONG legalmente reconhecida pelos respetivos Estados, que a litigância se mostrou absolutamente fundamental. Um estudo da ONG OutRight International, uma plataforma que se dedica à proteção dos direitos humanos das pessoas LGBTI, fez um levantamento dos números globais em que demonstrou que, num universo de oitocentos e sessenta e quatro (864) organizações LGBTI ao nível global, cento e cinquenta e três (153) organizações encontravam-se legalmente registadas enquanto tal, quatrocentos e noventa e oito (498) organizações LGBTI não se encontravam legalmente registadas, duzentas e treze (213) organizações encontravam-se legalmente registadas, mas não explicitavam os direitos humanos das pessoas LGBTI como seu foco de atuação (Daly, 2018, p. 17). No que concerne à África subsariana, de um total de cento e quarenta e duas (142) associações de direitos humanos das pessoas LGBTI, apenas trinta e duas (32) se encontravam legalmente registadas como associações que trabalham com esta população-alvo (Daly, 2018, pp. 20-21).

O estudo da OutRight International demonstrou uma realidade preocupante: a esmagadora maioria das ONG africanas que trabalham com direitos humanos das pessoas LGBTI não estão registadas legalmente, ou, quando estão, omitem que têm trabalho com este segmento específico da população. Não é possível aferir a razão pela qual todas estas organizações não se encontram registadas, ou não são completamente abertas naquele que é o seu foco de ação. Contudo, algumas organizações procuram registar-se como organizações de direitos humanos das pessoas LGBTI, mesmo que isso seja sinónimo de uma ação hostil por parte do Estado. Neste último caso, os movimentos de associativismo procuram fazer valer os seus direitos recorrendo aos tribunais como instrumento de reparação da ação lesiva do Estado. São disso exemplo as organizações Lesbians, Gays and Bisexuals of Botswana (LEGABIBO) e Gay and Lesbian Coalition of Kenya (GALCK), que analisaremos de seguida.

O caso Lesbians, Gays and Bisexuals of Botswana

O caso LEGABIBO é o primeiro no qual uma ONG contesta, em tribunal, a recusa do seu registo legal por parte dos serviços administrativos de um Estado, neste caso o Ministério do Trabalho do Botswana. O acórdão Thuto Rammoge & 19 others v. The Attorney General of Botswana foi proferido em novembro de 2014, dois anos e meio após o início do litígio entre as partes. A 16 de fevereiro de 2012, os peticionários tentaram registar legalmente a associação LEGABIBO - Lesbians, Gays and Bisexuals of Botswana -, pedido que viria a ser recusado, fundamentado no não reconhecimento da homossexualidade na Constituição nacional e que tal registo seria contrário à secção 7(2)(a) da Societies Act.17

O juiz T. T. Rannowane, relator do acórdão, que fez uma análise extensiva e minuciosa da questão em apreço, começa por afirmar que os objetivos declarados pela LEGABIBO aparentam ser

quite harmless and in fact promote good values such as the promotion of a culture of self-reliance […], promotion of human rights of all people without discrimination […], support of public health interest of members and education of the general public on issues of human rights. (Thuto Rammoge and 19 others v. Attorney General, 2014)

Refuta ainda que o objetivo da associação de fazer advocacy, no sentido da despenalização das relações sexuais consentidas entre adultos do mesmo sexo, possa constituir um perigo para a sociedade, nem que tal é contrário ao disposto na secção 7(2)(a) da Societies Act.

T. T. Rannowane é assertivo ao afirmar que é falso que a Constituição do Botswana não reconheça as pessoas homossexuais. Na verdade, a lei constitucional não reconhece expressamente homossexuais, uma vez que é omissa no assunto. Por conseguinte, tal não pode ser evocado como argumento para recusar o registo de uma associação. No que tange à criminalização no Código Penal - que vigorava à altura, mas que, entretanto, foi revogada por decisão judicial de junho de 2019 - o juiz relator distingue, de forma objetiva, a diferença entre uma lei que penaliza atos sexuais, de um entendimento alargado que o poder político lhe quer aplicar, que é a criminalização das identidades. Assim, afirma que:

It may be that engaging in homosexual activity is outlawed. But if I were to use an example of one born left handed, if it was a crime to write with a left hand, such a person would not be punished for being left handed but for writing with a left hand just as a gay person would not be punished for being gay but rather for engaging in same sex relationship. (Thuto Rammoge and 19 others v. Attorney General, 2014)

Correndo o risco de parecer excesso de zelo por parte do relator do acórdão, a verdade é que demonstra, de uma forma muito simplificada, que ao recusar o registo desta associação na suposta ilicitude da orientação sexual dos seus elementos, o poder político incorre num erro grosseiro de interpretação e instrumentalização da legislação penal. O entendimento do tribunal corrobora a visão de que as leis contra a sodomia não criminalizam a homossexualidade, verificando-se uma instrumentalização das mesmas contra as minorias sexuais. Portanto, a homossexualidade não é um crime no Botswana, mas os atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo já o são. A legislação penal criminaliza os atos e não as identidades.

Por último, o juiz decide pela violação de vários preceitos constitucionais por parte do Ministério do Trabalho do Botswana, nomeadamente a violação da igualdade dos peticionários perante a lei, a violação da sua liberdade de expressão e a violação da sua liberdade de reunião e associação. Declara ainda que os peticionários podem reunir-se e associar-se com o nome Lesbians, Gays and Bisexuals of Botswana e que tal associação deve ser legalmente registada com esse nome.

O caso Gay and Lesbian Coalition of Kenya

A 2 de abril de 2013, o ativista Eric Gitari procurou registar legalmente uma associação com o nome Gay and Lesbian Coalition of Kenya, nome que foi rejeitado pelo Conselho Nacional das ONG (Conselho), um organismo governamental que regulamenta as organizações não governamentais. O Conselho fundamenta a sua recusa, segundo se lê no acórdão Eric Gitari v. Non-Governmental Organizations Co-ordination Board & 4 others, em dois argumentos-chave: primeiro, que o Código Penal do Quénia proíbe os atos homossexuais e, segundo, que ao abrigo da lei que regulamenta as associações NGO Regulations, 1992, o diretor do Conselho pode recusar determinado nome se, na sua opinião, este for repugnante ou inconsistente com a lei. O Conselho viria ainda a argumentar, como se pode ler no acórdão, que a orientação sexual não consta como fator proibido de discriminação na Constituição do Quénia. Nas alegações que faz em Tribunal, o Conselho evoca ainda a questão dos valores tradicionais para legitimar a restrição do direito de associação do senhor Gitari, nos seguintes termos:

The Board argues that the petitioner’s proposed NGO is hell bent on destroying the cultural values of Kenyans, and must therefore not be allowed, [as they would] be promoting prohibited acts which amounts to action prejudicial to public interest. (Eric Gitari v. NGO Board, 2015, p. 6)

Assim, é pedido ao tribunal que se pronuncie sobre a interpretação da expressão “every person” no artigo 36, n.º 1 da Constituição nacional, relativo à liberdade de associação dos cidadãos.18 Seguidamente, pronunciar-se sobre a alegada violação do direito de associação, cometida pelo Conselho, ao recusar registar a GALCK. O acórdão do Tribunal de Nairobi é muito rico na sua argumentação, uma vez que, como são alegadas inúmeras questões para fundamentar a recusa do registo - desde a criminalização dos atos consentidos entre adultos do mesmo sexo, passando pelas questões morais, evocando-se ainda o não reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo pela Constituição nacional e tratados internacionais de direitos humanos -, o coletivo de juízes debruçou-se detalhadamente sobre cada elemento.

No que respeita à primeira questão em apreço, o tribunal não tem dúvidas sobre o entendimento de “pessoa” no artigo 36 (1) da Constituição, afirmando que: “an individual human being, regardless of his or her gender or sexual orientation, is a ‘person’ for the purposes of the Constitution” (Eric Gitari v. NGO Board, 2015, p. 12).

O tribunal pronuncia-se ainda sobre a interpretação da norma penal evocada sublinhando as leis da sodomia, afirmando que:

the Penal Code does not criminalize homosexuality, or the state of being homosexual, but only certain sexual acts “against the order of nature” […], but the provision does not define what the “order of nature” is. (Eric Gitari v. NGO Board, 2015, p. 21)

O Tribunal de Nairobi repete o entendimento que já tinha sido enunciado um ano antes no caso LEGABIBO de que a legislação penal contra a sodomia não criminaliza a homossexualidade. O Tribunal conclui a sua análise ao caso decidindo que o Conselho violou o direito de associação do senhor Eric Gitari e que o mesmo tem o direito de registar legalmente a ONG Gay and Lesbian Coalition of Kenya.

Ativismo jurídico transnacional como ferramenta do ativismo LGBTI no continente africano

Tendo como pano de fundo o episódio da Coalition of African Lesbians na Comissão Africana de Direitos Humanos, bem como as experiências domésticas do Botswana e do Quénia, importa questionar se o ativismo jurídico transnacional pode ser uma ferramenta útil para um diálogo com os Estados africanos, no sentido de que adotem medidas legislativas que garantam os direitos humanos das minorias sexuais. Antes de fazer essa análise, importa perceber em que consiste o ativismo jurídico transnacional e de que modo pode ser uma ferramenta útil para os objetivos e lutas de movimentos de associativismo, em particular do associativismo LGBTI.

Encontramos uma definição de ativismo jurídico transnacional nos trabalhos de Cecília MacDowell Santos sobre a experiência do Brasil junto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e da sua importância como ferramenta que produziu mudanças legislativas concretas. Santos define esta forma de ativismo como:

um tipo de ativismo focado na ação legal engajada, através das cortes internacionais ou instituições quase judiciais, em fortalecer as demandas dos movimentos sociais; realizar mudanças legais e políticas internas; reestruturar ou redefinir direitos; e/ou pressionar os Estados a cumprir as normas internacionais e internas de direitos humanos. (Santos, 2007, p. 28)

Thais Delarisse e Marrielle Ferreira, num interessante trabalho relativo às violações de direitos humanos no Chile e a relevância do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no processo da transição democrática, reconhecem “os mecanismos judiciais e quase judiciais do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) como instâncias abertas à mobilização do direito, como parte da construção da própria identidade e de uma estratégia do ativismo para alcançar seus interesses e valores” (Delarisse & Ferreira, 2018, p. 170). O ativismo jurídico transnacional, portanto, compreende o uso de instituições jurídicas, ou quasi-jurídicas - tribunais, comissões ou outras - de natureza internacional, com a finalidade de obter uma decisão que verta sobre o Estado e resulte em medidas legislativas de reparação, proteção ou reconhecimento de direitos fundamentais. É, deste modo, uma ferramenta de advocacy que procura a mudança legislativa de uma forma up-to-down. Tanto Cecilia Santos (2007) como Thais Dellarisse e Marrielle Ferreira (2018) demonstram que, quer no Brasil, quer no Chile, o ativismo jurídico transnacional foi uma ferramenta incontornável para se conseguir reformas legislativas concretas em matéria de direitos humanos.

No caso africano, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos tem sido um órgão bastante ativo na interpretação dos direitos humanos e contribuído para a densificação destes direitos em África (Moco, 2010). A Comissão Africana apresenta-se, desta forma, como o fórum africano que melhor pode potenciar o reconhecimento dos direitos humanos das pessoas LGBTI. Muito embora o caso da CAL seja demonstrativo de uma forte resistência à questão do reconhecimento da orientação sexual como fator que afeta negativamente os indivíduos e os condiciona na fruição dos seus direitos fundamentais, também não pode ser negado o esforço que a Comissão Africana empreendeu em vários momentos, inclusive na defesa da CAL como ONG com legítimo acesso ao estatuto de observadora. Não menos importante, existe um diálogo entre a Comissão Africana e a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos no que respeita à questão da orientação sexual. Em novembro de 2015, membros das duas comissões discutiram a questão da orientação sexual e da identidade de género e como estas caraterísticas pessoais têm um impacto direto e negativo no gozo dos direitos e liberdades fundamentais, tais como o direito à vida, à integridade física, à saúde e no acesso a outros direitos económicos, sociais e culturais, bem como à liberdade de não ser vítima de tortura, às liberdades fundamentais de associação, de reunião e de expressão (Comissão, 2016). Em 2015, Abadir Ibrahim defendeu que os movimentos de ativismo não deveriam procurar uma solução junto da Comissão Africana uma vez que, dada a conjuntura da época, esta podia adotar uma decisão negativa e prejudicial, o que comprometeria todo o esforço dos movimentos de ativismo no continente (Ibrahim, 2015). A preocupação de Ibrahim era legítima, muito embora o foco da sua avaliação estivesse equivocado, como se verificou com a clara interferência do Conselho Executivo da UA, em junho de 2018.

Se, por força da decisão 1015 do Conselho Executivo da UA, a Comissão de Direitos Humanos se encontra atualmente fragilizada na sua ação de promoção e proteção dos direitos humanos das minorias sexuais, outras arenas podem ser mobilizadas, nomeadamente o caso do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.19 A trajetória dos avanços do ativismo LGBTI em outros contextos regionais, em especial na Europa e na América, passou impreterivelmente pelos tribunais de direitos humanos de âmbito regional. No caso europeu, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tem já uma vastíssima jurisprudência que produziu alterações legislativas relevantes, ao nível nacional, em matéria de combate à discriminação com base na orientação sexual.20 No caso do continente americano, a Corte Interamericana dos Direitos Humanos só se pronunciou sobre a questão em 2012, no acórdão Atala Riffo e filhas v. Chile. Não sendo propósito deste texto dissecar o caso em análise, importa referir que o mesmo foi de uma grande importância para o ativismo LGBTI no continente americano, que é um contexto de grande complexidade política e religiosa, à semelhança do que se passa no continente africano. Tendo ainda em atenção que os sistemas regionais africano e interamericano têm uma parceria no que tange ao avanço em matéria de proteção de direitos humanos, o caso Atala Riffo afigurou-se como uma janela de oportunidade para o sistema africano (Amao, 2019).

Efetivamente, o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos foi mobilizado, ainda que indiretamente, a pronunciar-se sobre um caso que envolvia uma discriminação com base na orientação sexual. Aquando do caso envolvendo a Coalition of African Lesbians, o Conselho Executivo procurou que a Comissão Africana alterasse o seu relatório anual de atividades, para retirar uma parte respeitante à CAL. O Centre for Human Rights da Universidade de Pretória (CDH) e a CAL, ambas ONG com estatuto de observador, solicitaram ao Tribunal Africano uma opinião consultiva sobre este caso, argumentando que tal ação do Conselho Executivo configurava um abuso das suas competências e uma interferência no mandato da Comissão. O Tribunal Africano evitou deliberar sobre a questão, fundamentando que, ainda que o CDH e a CAL tenham estatuto de observador reconhecido pela Comissão, estas duas organizações não são reconhecidas pela União Africana e por isso, não têm legítimo direito de interpelar o Tribunal Africano a conhecer de qualquer caso.

Desfecho semelhante aconteceu noutro tribunal regional africano, entre 2014 e 2016. Aquando da adoção pelo Parlamento ugandês de The Anti-Homosexuality Act, 2014 (AHA), os movimentos de ativismo organizaram-se no sentido de contestar judicialmente esta legislação (Garrido, 2016a). Essa contestação deu-se em duas frentes; uma nacional que se traduziu numa petição no Tribunal Constitucional do Uganda, no sentido de contestar a legalidade da AHA, e uma outra frente internacional, com a queixa no Tribunal de Justiça da Comunidade da África Oriental, alegando incompatibilidade da AHA com o tratado fundador da comunidade regional (Garrido, 2016a). A AHA viria a ser declarada nula pelo Tribunal Constitucional do Uganda, mas o processo só viria a conhecer um desfecho ao nível regional em setembro de 2016. Muito embora os argumentos evocados pelos peticionários fossem de grande solidez, apontando a incompatibilidade da AHA com vários preceitos do tratado da comunidade regional, o Tribunal de Justiça decidiu não dar provimento ao caso, uma vez que a AHA tinha sido declarada nula dois anos antes e o litígio entre as partes deixou de se verificar.21 Apesar de ter sido um fracasso, o recurso a esta instância judicial internacional para contestar a legalidade da AHA configurou uma estratégia concertada pelos movimentos de ativismo com o objetivo imediato de declarar a AHA nula, por força da incompatibilidade desta com tratados internacionais de direitos humanos, mas principalmente de impedir que os Estados membros da Comunidade da África Oriental adotassem uma legislação semelhante e que possa pôr em causa direitos fundamentais de grupos minoritários.

Considerações finais

Os movimentos de associativismo LGBTI no continente africano têm sofrido uma crescente hostilidade, que se acentua com a sua continua demanda por espaço público e igualdade de direitos. Enfrentando uma forte resistência social, os movimentos veem-se confrontados com uma abordagem restritiva, e por vezes, hostil dos Estados, quer ao nível da legislação que criminaliza os atos sexuais consentidos entre adultos do mesmo sexo, quer ao nível administrativo. A resposta dos movimentos caraterizou-se por uma mudança estratégica da sua ação, recorrendo à litigância como arena de contestação.

Esta contestação é mais estruturada e bem-sucedida ao nível doméstico, onde os movimentos de associativismo foram capazes de mobilizar a sua ação nos tribunais nacionais e reivindicar a reparação de violações de direitos humanos. Esta estratégia foi importante uma vez que, quando os casos chegaram a tribunal, este procurou efetuar uma análise aprofundada da matéria, quer a discriminação que estes coletivos estavam a ser alvo, mas também as incongruências da legislação penal. A importância destas novas arenas é tal que, quer no Botswana, quer no Quénia, ambos os coletivos decidiram, posteriormente, desafiar a legalidade das leis da sodomia, ainda que com resultados diferentes (despenalização no Botswana, manutenção da legislação penal no Quénia).

Ao nível das arenas internacionais africanas, a questão afigura-se de uma maior complexidade. O sistema de direitos humanos da União Africana ainda é um sistema jovem e alvo de inúmeras restrições e pressões. O caso da Coalition of African Lesbians demonstrou que, muito embora o sistema esteja preparado para dialogar com ONG que trabalham com minorias sexuais, os órgãos políticos vão constituir uma forma de resistência assinalável. Essa resistência traduziu-se num enfraquecimento dos órgãos de direitos humanos, fragilizando os direitos humanos de todas as pessoas, indistintamente da sua orientação sexual. Embora o ativismo jurídico transnacional seja uma ferramenta muito útil, no caso do contexto africano, a mobilização das arenas regionais em assuntos politicamente sensíveis pode não ser uma estratégia acertada, devendo ser dada uma maior relevância ao plano interno do que internacional.

Em suma, os movimentos africanos de ativismo LGBTI devem procurar o diálogo com as autoridades nacionais e conquistar espaço público procurando utilizar os instrumentos legais ao seu dispor, mas na esfera nacional. O recurso às instâncias internacionais pode ser contraproducente e representar uma ameaça capaz de afetar coletivos em vários Estados.

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1 Artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada a 10 de dezembro de 1948.

2The Anti-Homosexuality Act, 2014 previa a criminalização da homossexualidade, inclusive no que a lei entendia ser uma forma agravada de homossexualidade, punida com pena de prisão perpétua e teste forçado de deteção do vírus do HIV/SIDA. Esta legislação viria a ser declarada nula pelo Tribunal Constitucional do Uganda a 1 de agosto de 2014 (Garrido, 2016b).

3 Apesar da referência à homossexualidade, o Gambian Criminal Code penaliza apenas atos sexuais, de natureza diversa, entre pessoas do mesmo sexo.

4 O Gambian Criminal Code reproduz, na íntegra, a secção de The Anti Homosexuality Act, 2014 do Uganda para o mesmo tipo de crime. Entendem estes diplomas por “homossexualidade agravada” um conjunto vasto de atos puníveis, os quais na verdade já se encontram previstos nos respetivos códigos penais, em outras secções. A inovação que trazem é a discriminação destes atos serem praticados exclusivamente por pessoas do mesmo sexo.

5 O termo “criminalização expansiva” da homossexualidade foi usado pela ONG Sexual Minorities Uganda (SMUG), num relatório que elaborou e no qual procurou desconstruir a ideia de que a homossexualidade é uma realidade externa ao Uganda e a África (Mugisha, 2014).

6 A regulação das relações sexuais entre adultos do mesmo sexo tem o seu início na Inglaterra com a adoção da Buggery Act, 1533. Até então, as relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo enquadravam-se no domínio da moralidade e eram tratados com tribunais eclesiásticos, mas sem uma necessidade de intervenção do poder político (McCarthy, 2012). Com a expansão do Império Britânico pelo mundo, ocorreu a exportação da legislação da metrópole para todo o Império, mas teriam de se passar mais de 300 anos para que fosse adotado o Indian Penal Code (IPC), de 1860, que introduzia definitivamente nas colónias britânicas a criminalização da sodomia.

7 Em concreto The Anti-Homosexuality Act, 2014.

8 Veja-se os artigos 3 e 4 do Ato Constitutivo da União Africana.

9 Por exemplo, a Carta Africana dos Direitos e Bem-estar da Criança (1990), o Protocolo à Carta Africana sobre os Direitos da Mulher (2003), a Carta Africana sobre Democracia, Eleições e Governação (2007) ou ainda o Protocolo à Carta Africana sobre os Direitos das Pessoas Idosas (2018).

10William A. Courson v. Zimbabwe, communication n. 136/94.

11 Dispõe o artigo 27, número 2 da Carta Africana que “Os direitos e as liberdades de cada pessoa exercem-se no respeito dos direitos de outrem, da segurança coletiva, da moral e do interesse comum”.

12 Resolução 275: Resolução sobre a Proteção contra a Violência e outras Violações de Direitos Humanos contra Pessoas com base na sua Orientação Sexual e Identidade de Género Reais ou Percecionadas.

13 Como viria a reconhecer Festus Mugae - antigo Presidente do Botswana e um ativista em favor dos direitos humanos das pessoas LGBTI - num debate da BBC sobre homossexualidade em África. Cfr. https://www.bbc.co.uk/programmes/p00fjqq2

14 O Estatuto de Observador da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, previsto nas regras da Comissão, de 2010, e nos seguintes termos: “Non-governmental organisations working in the field of human rights in Africa may be granted observer status with the Commission” (regra 68, n.º 1). O estatuto de organização observadora permite, sobretudo, ter um assento nas sessões ordinárias da Comissão e propor a discussão de qualquer assunto de direitos humanos, como define a regra 63, n.º 1 das regras da Comissão: “In conformity with Rule 32 (3) of the present Rules of Procedure, any State Party, African Union organ, specialized agency or body of the United Nations or other organisation recognized by the African Union, national human rights institution with affiliate status, or nongovernmental organisation with observer status, may request that the African Commission include in its agenda for an Ordinary Session a discussion on any human rights issue. Such a request shall be made sixty (60) days in advance of the session at which the discussion is to take place”. As regras da Comissão podem ser consultadas online em https://www.achpr.org/rules

15 Na 32.ª sessão ordinária do Conselho Executivo da União Africana, 25 e 26 de janeiro de 2018, em Adis Abeba, Etiópia.

16 Veja-se, por exemplo, os casos Mukasa and Another v. Attorney-General, High Court of Kampala (2008), Kasha Jacqueline, David Kato Kisule and Onziema Patience v. Rolling Stone Ltd and Giles Muhame, High Court of Uganda at Kampala (2010), referindo-se este último ao episódio da exposição pública, num jornal nacional, das identidades e contactos pessoais de pessoas alegadamente identificadas como homossexuais e para as quais se pedia o seu enforcamento (Garrido, 2016a). Em 2014 o mesmo tribunal voltaria a pronunciar-se no caso Kasha Jacqueline Nabagesera, Frank Mugisha, Julian Pepe Onziema and Geofrey Ogwaro v. Attorney General and Rev. Fr. Simon Lokodo, com uma decisão bastante adversa para os peticionários, não salvaguardando os direitos fundamentais das pessoas LGBTI no país. O caso remonta a fevereiro de 2012, quando os requerentes organizaram um workshop para a comunidade LGBT do Uganda, sobre direitos humanos e advocacy, o qual foi interrompido e posteriormente cancelado por ordem do ministro da Ética e da Integridade, Simon Lokodo. Os peticionários alegam que esse ato violou vários dos seus direitos constitucionais, nomeadamente liberdade de reunião, de expressão, de participação em atividades políticas pacíficas e o seu direito de igualdade de tratamento pela lei. Neste caso, o juiz Stephen Musota entendeu que o ministro agiu em prol do interesse público e da proteção dos padrões morais do Uganda, o que por si, justificaria a restrição dos direitos fundamentais dos peticionários.

17 A secção 7(2)(a) diz, numa tradução livre, que os serviços devem recusar o registo de associações cujos objetivos sejam usados, ou possam ser usados, com finalidades ilícitas ou prejudiciais à paz, bem-estar ou ordem pública do Botswana.

18 Define o artigo 36 da Constituição da República do Quénia, o seguinte: (1) Every person has the right to freedom of association, which includes the right to form, join or participate in the activities of an association of any kind. (2) A person shall not be compelled to join an association of any kind. (3) Any legislation that requires registration of an association of any kind shall provide that— (a) registration may not be withheld or withdrawn unreasonably; and (b) there shall be a right to have a fair hearing before a registration is cancelled.

19 Criado pelo Protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativo ao Estabelecimento do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1998. Este tratado é de natureza facultativa, sendo necessário os Estados ratificarem o Protocolo para aceitarem a jurisdição do Tribunal e é de natureza subsidiária (Garrido, 2016c; Baldé, 2017).

20 Tome-se como exemplo o caso de Portugal, que em 1999 foi condenado pelo TEDH por ter violado direitos fundamentais do sr. Silva Mouta, violação essa que decorreu de uma discriminação com base na orientação sexual do queixoso. É também nesse acórdão que o Tribunal de Estrasburgo vem afirmar que a orientação sexual é um fator proibido de discriminação ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Garrido, 2019b).

21Human Rights Awareness & Promotion Forum versus The Attorney General of Uganda (reference n.º 6 of 2014), julgamento na 1.ª instância do Tribunal de Justiça da África Oriental, 27 de setembro de 2016. http://eacj.org/wp-content/uploads/2016/09/Ref.-No.6-of-2014.pdf

Recebido: 12 de Novembro de 2019; Aceito: 01 de Julho de 2020

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