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Cadernos de Estudos Africanos

Print version ISSN 1645-3794

Cadernos de Estudos Africanos  no.42 Lisboa Dec. 2021  Epub June 27, 2022

https://doi.org/10.4000/cea.6660 

ARTIGO ORIGINAL

O DIFÍCIL PROCESSO DE RESOLUÇÃO DO CONFLITO DE CASAMANSA: UMA MEDIAÇÃO PODE TER ÊXITO?

THE DIFFICULT PROCESS OF RESOLVING THE CASAMANCE CONFLICT: CAN MEDIATION SUCCEED?

1 Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal, arosagomes54@gmail.com


Resumo

O conflito de Casamansa é um conflito armado de secessão no sul do Senegal, em que o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC) reivindica a independência da região de Casamansa. O processo de resolução deste conflito teve início na década de 1990 e, a esta parte, contou com diferentes intervenientes, dentre os quais Estados vizinhos do Senegal: Guiné-Bissau e Gâmbia; líderes tradicionais; líderes religiosos; organizações da sociedade civil senegalesas e, nos últimos anos, a Comunidade de Sant’Egídio. De 1991 a 2004 foram assinados vários acordos de paz entre as partes, mas todos falharam devido ao seu incumprimento. Portanto, serão analisados aqui a mediação, o papel dos diferentes intervenientes e os obstáculos à paz.

Palavras-chave: Casamansa; resolução de conflito; mediação; partes intervenientes

Abstract

The Casamance conflict is an armed secession conflict in southern Senegal in which the Casamance Democratic Forces Movement (MFDC) claims the independence of the Casamance region. The process of resolving this conflict began in the 1990s and involved different actors, among which neighboring states of Senegal: Guinea-Bissau and Gambia; traditional and religious leaders; Senegalese civil society organizations and, in recent years, the Community of Sant’Egidio. From 1991 to 2004, several peace agreements were signed between the parties, but all failed due to non-compliance. Therefore, the mediation, the role of the different actors, and the obstacles to peace in this protracted conflict will be examined.

Keywords: Casamance; conflict resolution; mediation; intervening parties

A resolução do conflito de Casamansa teve início em 1990, com negociação direta entre o governo senegalês e o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC), mas não houve acordo, e as partes decidiram pela nomeação de uma terceira parte interveniente, a Guiné-Bissau.

A resolução de conflito é a adoção de medidas que visam pôr fim a um conflito, eliminando as divergências entre as partes. Este procedimento aplica-se mais facilmente em conflitos não armados, mas nos conflitos armados de uma maneira geral, e em particular no conflito de Casamansa, tem sido difícil. As negociações diretas entre o Governo e o MFDC e a mediação por terceira parte resultaram em acordos de paz não duradouros, por incumprimento dos compromissos assumidos pelas partes beligerantes. O MFDC reivindica a independência da região de Casamansa desde 1982, quando fez a primeira manifestação em Ziguinchor, com base nos seguintes argumentos: a região de Casamansa foi administrada de forma independente do território do Senegal na época colonial e, no momento da independência do Senegal, em 1960, foi incorporada ilegalmente como distrito do Senegal (Beck & Foucher, 2009; Marut, 2001, p. 8); os casamanceses não são beneficiários dos recursos de Casamansa, porque são desviados para o centro e o norte; os terrenos dos autóctones foram injustamente expropriados e atribuídos de forma prioritária aos senegaleses vindos do norte, considerados migrantes, como os Toucouleur (Beck, 2008; Marut, 2010, p. 85), e os casamanceses têm sido marginalizados dos postos da administração local e do direito das pescas em benefício dos nortistas. A manifestação foi reprimida pelas forças da ordem, houve confrontos que resultaram em várias vítimas mortais e feridos de ambas as partes. O Estado senegalês opôs-se à pretensão separatista do MFDC com fundamento em que Casamansa nunca foi administrada de forma independente, sempre fez parte do território do Senegal. Porém, este argumento não convenceu o então líder do MFDC, o abade Augustin Diamacoune Senghor, que preferiu continuar a reivindicação armada.

O objetivo deste trabalho é analisar e produzir conhecimento sobre as dificuldades de resolução do conflito de Casamansa. Consultando a literatura sobre a resolução do conflito de Casamansa verifica-se que há muitos estudos sobre o conflito e poucos sobre a sua resolução e as dificuldades. Para melhor entender as dificuldades de resolução deste conflito, o presente artigo propõe-se analisar: a mediação, que tem sido um dos meios alternativos utilizados, as causas de fracasso dos acordos de paz e as hipóteses de a mediação surtir os resultados esperados.

O trabalho é estruturado em seis partes: a primeira é esta introdução e as opções metodológicas, em que se faz uma abordagem geral do conflito de Casamansa e é descrita a metodologia adotada para análise. A segunda parte debruça-se sobre a mediação e seus princípios, e analisa o papel do Estado da Guiné-Bissau como garante do processo de paz e o comportamento das partes na mediação. A terceira parte aborda a divisão interna do MFDC e as implicações nos acordos de paz. A quarta parte analisa a abertura das partes beligerantes ao diálogo e as medidas adotadas para esse fim. A quinta parte faz uma análise das causas de fracasso dos acordos de paz obtidos pela mediação e as possibilidades de uma mediação ter êxito. Finalmente, a sexta parte faz as considerações finais sobre o tema.

Opções metodológicas

A opção metodológica para este trabalho é de caráter indutivo na formulação da problemática, em que a autora partiu de uma situação real para buscar um referencial teórico dentre as teorias existentes para análise e compreensão. Referindo-se à análise do tipo indutivo, Gray (2007, p. 24) defende que “o problema de pesquisa surge como resultado da confrontação direta com um conjunto de comportamentos”. No caso concreto, da confrontação com o comportamento das partes beligerantes e de terceiros intervenientes surge a formulação do problema de pesquisa que é a dificuldade de resolução do conflito por meios alternativos pacíficos. Daí, as seguintes perguntas de partida:

Porquê a negociação direta entre o governo senegalês e o MFDC não deu certo?

Porquê a mediação por terceira parte não conseguiu pôr fim ao conflito?

É possível a mediação ter êxito?

O referencial teórico para análise e compreensão deste trabalho é a teoria de resolução de conflitos e a mediação, que permitirá fazer a confrontação da situação com um conjunto de comportamentos.

A recolha de dados foi feita essencialmente através de pesquisa bibliográfica e documental, excertos de entrevistas semiestruturadas do trabalho de campo de doutoramento realizado pela autora e relacionados com o tema, e consulta de fontes eletrónicas. O método de análise é qualitativo, que permite interpretar os dados recolhidos numa abordagem interdisciplinar, enriquecendo o objeto de estudo.

Mediação

Mediação é um dos mecanismos de resolução pacífica do conflito, em que uma terceira parte neutra nomeada pelas partes beligerantes intervém para ajudar a encontrar solução que ponha fim ao conflito. Para Moore (1986), mediação é “intervenção num conflito ou negociação de uma aceitável terceira parte imparcial e neutra, sem poder de tomada de decisão autoritária, para ajudar voluntariamente as partes a encontrarem solução mutuamente aceitável” (p. 14). O mediador deve conhecer as causas do conflito e merecer a confiança das partes, porque ele constitui um elo entre elas na procura de solução consensual. “Mediation is the intervention of a neutral third party in a conflict for the purpose of proffering solutions for the peaceful resolution of the conflict” (Kieh Jr. & Mukenge, 2002, p. 15).1 Portanto, é um procedimento que envolve uma terceira parte, mas depende da vontade das partes beligerantes e deve obedecer alguns princípios, a saber: boa-fé, neutralidade, imparcialidade e confidencialidade. A terceira parte pode ser personalidade política, governo, instituição, grupo privado convidado ou voluntário, sendo que neste último caso, a sua intervenção depende da aceitação das partes. A mediação governamental “track one diplomacy” nem sempre foi bem-sucedida, como por exemplo nos casos de mediação sul-africana do conflito armado na República Democrática do Congo (1997).

A mediação tem sido um mecanismo utilizado pelas partes, na tentativa de resolução do conflito de Casamansa. O processo de paz iniciou-se com negociação direta entre o governo senegalês e o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa, em 1990, em Cap Skirring, e posteriormente em Toubacouta, um dos departamentos de Ziguinchor. Após o fracasso dessas negociações diretas, as partes em conflito acordaram em nomear o Estado da Guiné-Bissau como Parte Garante do processo de paz, na busca de solução pacífica duradoura, e as autoridades guineenses aceitaram o convite. Parte Garante do processo de paz equivale à figura de mediador ou terceira parte interveniente, que deve ser neutra em relação ao conflito, e imparcial em propor solução que vai ao encontro da vontade das partes. Essa nomeação foi uma demonstração de confiança, para um contributo positivo deste país na solução pacífica do conflito. Em virtude da polarização do conflito entre as partes, não se pode menosprezar a relevância do papel da terceira parte como é o caso da Guiné-Bissau. Pois, além de ser não protagonista do conflito, tem proximidade fronteiriça com o Senegal na zona do conflito, conhece as causas do conflito e tem em comum com o Senegal um dos grupos étnicos Jola do Senegal, conhecido como Felupe da Guiné-Bissau (Jola-Felupe) e Jola da Gâmbia. A condição de garante do processo de paz tem permitido à Guiné-Bissau mediar e influenciar alguns acordos de paz assinados entre as partes e acompanhar a sua implementação.

Guiné-Bissau Parte Garante do processo de paz

O Estado da Guiné-Bissau como Parte Garante do processo de paz conseguiu num primeiro momento aproximar as partes para o diálogo e influenciou o “cessar-fogo” e a assinatura de dois acordos de paz. O primeiro acordo de paz foi assinado em Bissau, a 31 de maio de 1991, com a mediação da Guiné-Bissau como terceira parte.2 A delegação do Senegal foi chefiada pelo então ministro das Forças Armadas, Médoune Fall, a do MFDC por Sidy Badji, e a Parte Garante do processo de paz esteve representada pelo então ministro da Defesa, Samba Lamine Mané. Este acordo impôs em primeiro lugar a condição de cessação de todos os atos de violência armada pelas partes. Quando o conflito atingir alto nível de violência armada entre as partes, entra-se na fase reativa da sua resolução, e numa primeira etapa, o objetivo primordial deve ser “cessar-fogo” (Fisas, 2004, p. 33). Obtida a aceitação do cessar-fogo pelas partes, foi assinado o acordo que se resume nos seguintes pontos: retirada de todas as forças militares e de intervenção das suas casernas; libertação de todos os prisioneiros políticos e guerrilheiros; garantia da livre circulação de pessoas e bens; e amnistia de todos os rebeldes do MFDC pelos crimes cometidos.

O acordo alcançado representava uma esperança de paz definitiva e o MFDC sentiu-se reforçado política e moralmente, na medida em que algumas das suas reivindicações como o cessar-fogo e a libertação dos prisioneiros constam do referido acordo. A Lei da Amnistia Geral a todos os implicados no conflito foi aprovada pela Assembleia Nacional Popular do Senegal, a 28 de junho de 1991. Por consequência, o governo senegalês libertou 350 prisioneiros políticos e guerrilheiros do MFDC. Foi criada uma Comissão de Gestão da Paz (CGP) da qual faziam parte elementos do governo senegalês, MFDC e Parte Garante, durante a reunião entre o MFDC, o governo senegalês e a Parte Garante, realizada em Ziguinchor em dezembro de 1991. A CGP tinha como objetivo principal acompanhar o processo de resolução do conflito e zelar pelo cumprimento do acordo de paz pelas partes. Mas instalou-se a divergência entre os dirigentes do MFDC, que resultou na primeira cisão deste movimento.3 Por consequência, a Frente Sul, liderada pelo abade Augustin Diamacoune Senghor, retomou o combate contra as Forças Armadas senegalesas em 1992, entre o rio Casamansa e a fronteira da Guiné-Bissau, e no departamento de Oussouye. Sidy Badji, que foi comandante da Frente Norte, e Kamougaye Diatta cessaram o combate, respeitando o acordo assinado entre o MFDC e o governo senegalês (Marut, 2001). Após algumas diligências da Comissão de Gestão da Paz junto às partes beligerantes, esta constatou que a profunda divisão no seio do MFDC dificultava o entendimento entre as partes para a cessação da violência. O Estado da Guiné-Bissau reconheceu a necessidade de ajudar à reconciliação interna do MFDC, e convocou uma reunião que teve lugar em Cacheu, entre 15 e 17 de abril de 1992. Estiveram presentes os dirigentes do MFDC, inclusive Augustin D. Senghor e Sidy Badji, e da parte do governo senegalês, o então coronel Mamadou Niang, o antigo ministro da Defesa, Assane Seck, e o chefe da Casa Militar da Presidência, conforme esclareceu o embaixador Ensa Djandy.4 Da reconciliação entre as fações moderada (Frente Norte) e radical (Frente Sul) resultou uma nova organização política e militar do MFDC, com uma direção supostamente coesa, na qual o abade Augustin Senghor foi confirmado como presidente e Sidy Badji vice-presidente (Marut, 1994). Mas essa solução não agradou a todos, e os guerrilheiros recusaram o cessar-fogo e continuaram a guerra.

Em abril de 1993, a Parte Garante proporcionou uma reunião entre o MFDC e o governo senegalês em Bissau, mas não resultou qualquer acordo, as partes acusando-se mutuamente de violação do cessar-fogo. No final da reunião e de regresso a Casamansa, Augustin Senghor foi preso pela delegação senegalesa, a partir do Aeroporto Internacional Osvaldo Vieira, em Bissau, com a colaboração do governo guineense, e levado para o Senegal, onde ficou em prisão domiciliária vigiada, em Ziguinchor.5 A Parte Garante do processo de paz ao colaborar na prisão do então líder do MFCD violou o princípio de neutralidade de terceiro interveniente, para negociar ou mediar um conflito, criando dificuldades ao Movimento das Forças Democráticas de Casamansa. Neste sentido, sua intervenção equivale ao que Simmel (1968) designa “tertius gaudens”, ou seja, um terceiro não implicado diretamente no conflito, mas a quem uma das partes deixa espaço de atuação livre a seu favor, dificultando a outra parte (pp. 75-94). Este incidente contribuiu para a flexibilização da posição da Frente Sul, que politicamente fragilizada retomou a negociação com o governo senegalês, logo após a libertação do seu líder Augustin D. Senghor, criando condições para o futuro acordo. É neste contexto de negociação que as partes assinaram o segundo acordo de paz, a 8 de julho de 1993, em Ziguinchor, com a mediação da Parte Garante do processo de paz, a Guiné-Bissau, na presença da “Comissão dos Sacerdotes de Casamansa” (Marut, 1994, pp. 228-229).

Este acordo contempla questões que fizeram renascer a esperança da paz, a saber: cessar-fogo imediato; libertação dos detidos; não reforço dos efetivos militares; término das operações dos guerrilheiros; e retorno voluntário dos refugiados à região de Casamansa. Porém, o acordo não reuniu consenso no seio do MFDC, porque foi assinado apenas por Augustin Senghor, a outra fação não aderiu. Considerou as condições deste segundo acordo menos favoráveis aos separatistas, relativamente ao primeiro, na medida em que obrigava o MFDC a aceitar que o exército governamental mantivesse a ordem em Casamansa, o que reduzia a margem de negociações futuras. Confrontado com a situação pelos combatentes do MFDC, Augustin Senghor esclareceu que fora obrigado a assinar o segundo acordo de paz e renunciar à reivindicação pela independência. Portanto, o MFDC continuou a guerra, mas Sidy Badji, comandante de Atika6, braço armado do MFDC criado em 1990 (Tomàs, 2010), abandonou a luta armada, pois entende que o abade Augustin Senghor não tinha documentos de prova exigidos para fundamentar a posição secessionista, baseada na história de que a região de Casamansa teve administração territorial independente do Senegal no período colonial.7

Léopold Sagna, considerado moderado, substituiu Sidy Badji na chefia do Estado-maior do MFDC, mas os guerrilheiros da fação radical não lhe fizeram confiança e agruparam-se sob o comando de Salif Sadio. Segundo os dissidentes, no segundo acordo havia grandes questões para serem discutidas, mas apenas algumas foram tratadas com êxito, como consta no texto. Por isso, foi um acordo parcial e não global e não poderia gerar consenso.

Para clarificar a situação da administração da região de Casamansa na época colonial, Senegal solicitou a colaboração da França, que enviou o seu consultor Jacques Charpy ao Senegal, em dezembro de 1993. Na reunião realizada em Ziguinchor entre o governo senegalês e o MFDC, com a presença de representantes do Estado da Guiné-Bissau na qualidade de Parte Garante do processo de paz, Jacques Charpy apresentou um relatório de 200 páginas sobre a administração colonial francesa de Casamansa, no qual consta que “no período colonial a região de Casamansa pertencia ao território senegalês e nunca foi administrada de forma independente do Senegal”.8 Mas Augustin Senghor discordou do relatório técnico apresentado, denunciou o acordo de paz e a Frente Sul continuou a luta pela independência de Casamansa.

A teoria de resolução do conflito pressupõe a utilização de técnicas pacíficas que visem pôr fim ao conflito tais como: mediação direta entre as partes, arbitragem, conciliação ou mediação por terceira parte neutra. A resolução de conflito é um processo de diversas facetas que requer análises sistemáticas, multidisciplinares e profundas (Miller & King, 2005, p. 26). O quadro 1 tenta demonstrar o comportamento das partes na mediação do conflito de Casamansa.

Quadro 1 Estruturação de comportamentos das partes na mediação do conflito 

Fonte: Adaptação do modelo (Walton & Mckersie, 1991)

Este quadro serve para mostrar o comportamento das partes, isto é, as relações entre o MFDC e o governo senegalês e entre estes e a Parte Garante na mediação do conflito.

Conflito - A relação de conflitualidade entre o MFDC e o governo senegalês tem sido de competição vertical relativa ao poder de cada parte fazer valer os seus interesses, recusando os da outra. O Governo tem recusado reconhecer a legitimidade do MFDC para negociar sua pretensão separatista, colocando-se numa posição de supremacia, enquanto o MFDC recusa aceitar a continuidade da integração de Casamansa na soberania territorial senegalesa. É neste sentido que Boulding (1962) entende que conflito é uma situação de concorrência, em que as partes estão conscientes da divergência de posições. O objetivo principal pretendido por ambas as partes é o desgaste ou enfraquecimento de uma em relação à outra, para afirmação de interesses.

Contenção da agressão - Durante as negociações e assinaturas dos acordos de paz e de cessar-fogo, as partes tendem a conter atos de agressões, através de moderação. Verifica-se uma relativa acalmia, contudo a desconfiança se mantém pela relutância em reconhecer a legitimidade mútua.

Mediação - A terceira parte, ou seja, a Parte Garante do processo de paz assume uma posição diplomática de neutralidade no conflito, para facilitar a aproximação das partes na tentativa de solução pacífica. Porém, quando a Guiné-Bissau adotou uma posição ambígua, com uma intervenção que beneficiou o governo senegalês, o MFDC não poderia continuar a depositar confiança plena na sua mediação.

Cooperação - A cooperação é uma atitude colaborativa das partes que procuram entendimento mútuo, através de comportamentos positivos como o diálogo e a negociação. Mas a cooperação entre o MFDC e o Governo na procura de solução consensual para o conflito tem sido parcial, porque o diálogo nem sempre envolveu todas as fações. Por isso, os efeitos práticos não têm sido duradouros.

Conluio - É manifestação de comportamentos negativos de uma ou mais partes envolvidas no processo de resolução do conflito. As partes através do reconhecimento de legitimidades, formas de coligação, alargam a agenda de negociações a outros pontos não convencionados.

Estas análises devem ser individualizadas e direcionadas às causas do conflito para se chegar à questão fundamental, a fim de se estabelecer uma cooperação específica sobre os principais problemas, com vista à solução pacífica.

As autoridades guineenses tiveram atitudes de conluio durante a intervenção no processo de paz, quando em coligação com o governo senegalês colaboraram na prisão do abade Augustin Diamacoune Senghor, em Bissau para Ziguinchor, em 1993. Nestas circunstâncias, a Guiné-Bissau agiu como parte implicada, ou que tenha algum interesse no conflito, e não como terceira parte neutra. Esta implicação demonstra a conflitualidade do papel atribuído à Guiné-Bissau como garante do processo de paz, ao envolver-se em benefício de uma das partes.

A divisão do Movimento das Forças Democráticas de Casamansa e os acordos de paz

Desde a primeira divisão do MFDC, após o primeiro acordo de paz em 1991, as alas militar e civil passaram a não se entender. As tensões continuaram no seio da Frente Sul, quando Léopold Sagna, substituto de Sidy Badji, foi retirado na chefia do estado-maior do MFDC. Porém, foi reinstalado por Augustin Senghor, em julho de 1999, mas isso não conseguiu amenizar o clima de desconfiança existente entre as diferentes alas do movimento (Foucher, 2003) e os confrontos continuaram. Foi nesse contexto de grandes divisões no seio do MFDC que foi assinado outro acordo de paz, numa reunião em Banjul, a 26 de dezembro de 1999, com patrocínio do então Presidente da Gâmbia, Yahya Jammeh (Gomes, 2016). A negociação do acordo de paz foi previamente preparada pela reunião do MFDC, sob o lema “Jornada de reflexão para a paz em Casamansa”, realizada em Banjul de 22 a 25 de junho de 1999.

A Guiné-Bissau garante do processo de paz, não tomou parte nessa reunião porque o país estava no período de transição política, após o conflito político-militar (1998-99), em que as Forças Armadas senegalesas e da Guiné foram apoiar o então presidente da República da Guiné-Bissau, João Bernardo Vieira e o Governo.9 Por outro lado, a fação do MFDC sob o comando de Salif Sadio apoiou a Junta Militar sob o comando do então brigadeiro Ansumane Mané.

Este acordo incide nos principais pontos dos acordos anteriores, mas pretendia-se igualmente a reestruturação e coesão interna do MFDC, para facilitar as futuras negociações, aprovar o projeto de estatutos e o regulamento interno do MFDC. Porém, estes objetivos não foram alcançados, devido a divergências de pontos de vista sobre a agenda, que não contemplava o estatuto a atribuir a Casamansa.

Em 2000, Abdoulaye Wade venceu as eleições presidenciais no Senegal, e prometeu retomar as negociações com o MFDC para a paz em Casamansa. Nesta sequência, mandou cessar todas as atividades das associações e organizações não governamentais para a paz em Casamansa. Adotou uma estratégia diferente do seu antecessor, o presidente Abdou Diouf, privilegiou a negociação direta com os dirigentes do MFDC, prescindindo da intervenção de terceira parte. Excluiu desta forma a possibilidade de intervenção da Guiné-Bissau e da Gâmbia, sob o argumento de que o conflito é um problema interno do Senegal e a solução tinha que ser nacional (Foucher, 2003, p. 102). Em março de 2001, o presidente Wade assinou um acordo de paz com o líder do MFDC, Augustin Senghor, em Ziguinchor, sem envolvimento da Guiné-Bissau ou da Gâmbia. Este acordo retomou alguns pontos dos acordos anteriores, e acrescentou outros, a saber: garantia da liberdade de circulação de pessoas e bens; abertura das ruas e estradas bloqueadas devido aos ataques que mataram mais de 20 civis, provocando greve dos transportadores; fim das prisões arbitrárias, torturas e mortes; libertação dos prisioneiros; retorno dos refugiados e das pessoas deslocadas; elaboração de programas de integração e implementação dos projetos de construção de infraestruturas sociais; desarmamento, destruição de armas e acantonamento das Forças Democráticas de Casamansa e o retorno dos militares às casernas. Augustin Senghor assumiu-se como um interlocutor legítimo, não implicando Salif Sadio e Sidy Badji e a Frente Norte (Foucher, 2003, p. 112). Esta situação provocou a reação dos excluídos e a radicalização de posições contra as decisões de Augustin Senghor. Perante a falta de consenso no seio do MFDC, os objetivos do novo acordo de paz não foram alcançados e as fações discordantes multiplicaram comunicados agressivos contra a atuação do governo senegalês e de Augustin Senghor.

O naufrágio do barco Joola a 26 de setembro de 2002, ao largo da Gâmbia, a 40 km da costa, no qual morreram 1863 pessoas, de acordo com as informações oficiais, fez aumentar as tensões entre o MFDC e o Governo. Os guerrilheiros radicais acusaram o Governo de ser responsável por esse maior naufrágio marítimo do Senegal. Foi considerado um dos maiores naufrágios deste século, que fez mais vítimas mortais que o Titanic.10 O Joola era um grande barco de passageiros com capacidade para 550 pessoas, assegurava a ligação entre Dakar e Casamansa fazendo o percurso Dakar - Carabane - Ziguinchor.

Por consequência do ambiente de tensão, em 2003 retomaram-se os confrontos entre os guerrilheiros do MFDC e as Forças Armadas, provocando mais deslocações de pessoas. A morte de Sidy Badji, a 22 de maio de 2003, agudizou a crise e deu lugar à luta interna pela sucessão no comando da Frente Norte, sendo o seu sucessor Kamougaye Diatta. Porém, este não gozava de legitimidade da ala militar, que contestou sua chefia, e Magne Diémé, seu antigo aliado, criou uma nova fação. O MFDC realizou uma Conferência em que os líderes moderados declararam que a guerra terminaria, mas esta declaração não foi partilhada pela fação dura, que não desistiu da via armada. Esta situação fez reacender confrontos entre os guerrilheiros do MFDC e as forças governamentais, o que impunha a necessidade de cessar-fogo. Por consequência, foi retomada a negociação, o Governo esteve representado pelo então ministro do Interior, Ousmane Ngom e o MFDC por Augustin Senghor. Assinaram um acordo de paz sem intervenção de terceira parte, em 30 de dezembro de 2004, sendo este o último até à data presente, em que constam os seguintes pontos:

Cessar-fogo e de todas as hostilidades pelas partes; renúncia pelo MFDC da luta armada; amnistia geral dos combatentes do MFDC; acantonamento dos guerrilheiros do MFDC, num total de mais de 5.000 homens; desmobilização e reintegração dos combatentes na vida civil e no exército senegalês; desminagem em Casamansa; reconstrução e desenvolvimento de Casamansa através de um programa específico. Para implementação de algumas medidas do acordo, o Governo anunciou a criação de uma Agência Nacional para a Reconstrução da Província Sul do Senegal (Casamansa) e de um Fundo de Garantia, correspondente a quase 94.000.000 € (Noventa e quatro milhões de euros) para financiar as despesas de reconstrução. A verba destinava-se concretamente ao realojamento de quase sessenta mil refugiados retornados das aldeias limítrofes da Guiné-Bissau e da Gâmbia e a construção de infraestruturas sociais. Este parecia ser o mais completo acordo de paz assinado entre as partes, embora à semelhança dos outros também não foi cumprido.

Salif Sadio, que lidera a fação dura, recusou assinar o referido acordo de paz, sentiu-se pressionado e foi instalar sua base militar em Barraca Mandioca, na Guiné-Bissau, em 2005, e foi expulso do território guineense em 2006. Outras vozes discordantes no seio do MFDC, como a de César Atoute Badiate, que era chefe de estado-maior, associaram-se à contestação do referido acordo de paz. Exigiram a deslocação de Augustin Diamacoune Senghor à floresta de Casamansa, para debater com os guerrilheiros e conhecer as suas preocupações e posições, e de Mamadou N’Krumah Sané, na época secretário-geral adjunto, residente em Paris, dizendo que esse acordo era uma declaração de guerra. Os mesmos afirmaram que, na época da assinatura do acordo de paz em dezembro de 2004, Augustin D. Senghor era apenas presidente honorário do MFDC, porque foi afastado da chefia deste movimento sob o fundamento de “incapacidade objetiva” e foi substituído por Jean-Marie Biagui durante a assembleia geral organizada pelo MFDC em setembro de 2004. Portanto, assim sendo, com estatuto de honorabilidade e sem poderes na ala militar, Augustin Senghor não tinha legitimidade para assinar um acordo de paz que vinculasse o movimento secessionista. A divergência no seio do MFDC continuou produzindo efeitos prejudiciais à maximização de benefícios dos acordos de paz.

Após a morte de Augustin Senghor, em 2007,11 a luta interna para o controlo do poder agudizou-se, e três dirigentes se autoproclamaram secretário-geral do MFDC: Jean-Marie François Biagui, residente em Lyon, na França, Mamadou N’Krumah Sané, residente em Paris,12 e Ansoumana Badji, em Dakar. Mamadou N’Krumah Sané, um dos fundadores do MFDC, figura com legitimidade histórica (Marut, 2010), era considerado o mais indicado para assumir o secretariado-geral do movimento secessionista em crise de liderança, e poderia contribuir para a coesão interna do MFDC (Ndiaye, 2015). Dentre as várias fações do MFDC, destacam-se duas: uma sob o comando de Salif Sadio, considerada radical, em Bajagar junto à fronteira da Gâmbia, e outra sob o comando de César Atoute Badiate, considerada moderada, em Cassolol, perto da fronteira da Guiné-Bissau.

Abertura das partes ao diálogo

Nos meados de 2012, a Comunidade de Sant’Egídio aceitou o convite do então presidente do Senegal, Abdoulaye Wade, para mediar o conflito, mas o resultado obtido foi a resolução de uma situação pontual. Foi no âmbito dessa mediação que foi assinado um acordo com a fação do MFDC sob o comando de Salif Sadio, para libertação de alguns militares das Forças Armadas senegalesas que se encontravam detidos pelo MFDC.13 Por conseguinte, em 2013, as partes prepararam uma agenda de trabalho para negociação futura, tendo como primeira condição o cessar-fogo. Mas a partir daí não houve mais progressos.

O MFDC através do seu então porta-voz em Ziguinchor, Abdou Elinkine Diatta, afirmou estar aberto ao diálogo para a paz definitiva e o desenvolvimento.14 Porém, entendia que o diálogo para a paz não deveria envolver apenas a fação de Salif Sadio, que esteve em negociação com o governo senegalês, sob a mediação da Comunidade de Sant’Egídio em Roma e Dakar, mas também as outras fações, porque aquela fação não é um interlocutor do movimento. Neste sentido, é de salientar que César Atoute Badiate, líder da fação com base em Cassolol, também manifestou-se aberto a uma mediação da Comunidade de Sant’Egídio que envolvesse todas as fações do MFDC.

Após a sua eleição em 2014, presidente do Senegal, Macky Sall elegeu a paz em Casamansa como uma prioridade da sua política e uma realidade a atingir através do diálogo. Ao propor uma paz sem vencedores nem vencidos: “paix des braves, sans vainqueurs ni vaincus, mais dans le respect de l’intégrité territorial du Sénégal”, afastou a hipótese de uma solução militar, manifestando-se favorável à resolução pacífica.15 Contudo, afastou a discussão sobre o secessionismo defendido pelo MFDC, ou seja, nenhum acordo de paz poderá pôr em causa a integridade territorial do Senegal.

Reagindo ao discurso do presidente Macky Sall, Salif Sadio aceitou o diálogo para a paz, e avançou com a proposta de o Governo investir na área da saúde em Casamansa, concretamente no hospital regional de Ziguinchor, e César Atoute Badiate também não se opôs à proposta.

Nos últimos anos, a partir de 2016, os Estados Unidos têm demonstrado interesse na resolução do conflito em Casamansa e, através do seu embaixador em Dakar, assumiram o papel de facilitador do diálogo entre o MFDC e o governo senegalês. Contudo, não se pode falar de resultado concreto em termos de acordo de paz, senão de ausência de confrontos armados e acalmia.

Uma mediação pode ter êxito?

Tendo em conta os falhanços dos acordos de paz obtidos com a mediação da Guiné-Bissau, e da mediação da Comunidade de Sant’Egídio que ainda não surtiu efeitos concretos, torna-se pertinente a seguinte pergunta: “Uma mediação pode ter êxito?” Desde logo, a resposta é positiva, porque a mediação de qualquer conflito, seja ele armado ou não, pode ter êxito desde que sejam observados alguns princípios, a saber:

Isenção - o mediador deve ser parte não implicada no conflito;

Imparcialidade - o mediador deve agir sem tomar partido de uma parte;

Confiança - as partes devem ter confiança no mediador que indigitaram, porque é um elo de comunicação entre elas na procura da paz.

No passado, não obstante a Guiné-Bissau, na qualidade de Parte Garante do processo de paz, ter estado envolvida numa atuação que favoreceu o governo senegalês, o MFDC não lhe retirou a confiança. Continuou a intervir no processo de paz até não ter condições de o fazer após o conflito político-militar na Guiné-Bissau (1998-1999), em que as partes beligerantes do conflito de Casamansa tomaram partido, cada uma do lado oposto da outra. Portanto, antes de se falar de insucesso aqui, há que falar de descontinuidade da mediação. Contudo, a Guiné-Bissau pode retomar a mediação por sua iniciativa reativando o seu papel de garante do processo de paz, ou pela vontade expressamente manifestada pelas partes em conflito. É expectável que a mediação do conflito de Casamansa pela Guiné-Bissau ou outra entidade possa vir a ter êxito que resulte em acordo de paz duradouro, desde que sejam observadas as condições já assinaladas. Neste sentido, é necessário que sejam identificadas as causas de fracasso dos anteriores acordos de paz obtidos sob mediação, para evitar os erros do passado, assim como analisar as dificuldades atuais de consenso.

No nosso entender, as causas do fracasso dos acordos de paz obtidos sob a mediação da terceira parte estiveram ligadas à falta de coesão interna do MFDC, a ausência de debate entre as partes beligerantes sobre as raízes profundas do conflito, a inflexibilidade da fação dura do MFDC em continuar com a estratégia da reivindicação armada para a independência e a ausência de debate público sobre o problema. Pois, se o MFDC insiste no separatismo, e o Estado senegalês defende a integridade territorial do Senegal que inclui Casamansa, isto é divergência profunda.

Neste difícil processo de paz, as fações do MFDC entraram quase numa espécie de competição, assumindo posições diferentes no envolvimento das negociações e acordos de paz. Por consequência, os guerrilheiros deixaram de cumprir as orientações políticas dos dirigentes e violam sistematicamente o cessar-fogo constante dos acordos de paz. A falta de uma coordenação política eficaz tem resultado em divergências entre os civis e entre estes e os guerrilheiros. Por consequência, dividiram-se em duros e moderados, sendo estes os que admitiram a possibilidade de desistência da opção armada, e aqueles são os que optaram pela continuidade da via armada como meio mais adequado para atingir o objetivo secessionista. Para o Estado senegalês, a independência não é discutível, porque Casamansa sempre fez parte do território do Senegal, mas o MFDC continua a dizer que foi ilegalmente anexada. A divisão do MFDC em termos ideológicos em duros e moderados, e uma estrutura organizacional complexa em que não se verifica a subordinação total da ala militar à ala política têm facilitado o surgimento de várias lideranças políticas e militares e a continuidade da guerra. Apesar do apelo à coesão do MFDC para falar a uma só voz, a dialética do antagonismo permanece no movimento, impedindo o cumprimento dos acordos de paz, que se revelaram pouco duradouros. Esses tipos de acordos, segundo Richmond (2011), enquadram-se no conceito de “paz liberal” (pp. 4-13), porque reduzem a violência no curto espaço de tempo, mas não proporcionam as condições para uma paz sustentável entre a comunidade em causa e o Estado que a representa. Mas o idealismo político defendido por Carrr (1981) incentiva processos de cooperação na resolução de conflitos e tende a obter resultados construtivos; ou seja, pode conduzir aquilo que o sociólogo e investigador norueguês Johan Galtung (1990) designa de “paz positiva”. Para Galtung, paz positiva é ausência de violência direta ou física como um facto, violência estrutural como um processo resultante de desigualdades de poder e da injustiça social e violência cultural permanente, em que os aspetos culturais como a língua, a ideologia, a religião e a arte podem ser utilizados para legitimar socialmente as duas violências anteriores (pp. 291-305). O autor distingue a “paz negativa”, que é ausência da guerra e da violência física materializada na peacekeeping, da “paz positiva” alcançada na peacebuilding reunindo-as na peacemaking (Pureza, 2011, p. 6). A peacekeeping, a peacemaking e a peacebuilding são instrumentos utilizados pelas Nações Unidas nos esforços e missões de manutenção, construção e consolidação da paz, em vários países em conflitos armados ou recém-saídos de conflitos.

A paz negativa enquadra-se na situação que alguns investigadores designam de “ni guerre ni paix” em Casamansa, isto é, quando não existem confrontos armados entre as partes. Os períodos de acalmia onde não se tem verificado violência física ou confrontos armados entre as partes em conflito demonstraram ser períodos de paz negativa, na medida em que as raízes do conflito permanecem baseadas no sentimento casamancês das desigualdades económicas e sociais. Por isso, continua a existir um potencial de conflito que reacende periodicamente por diversas razões.

A partir dos anos 90, muitos investigadores sociais questionaram a eficácia das teorias de resolução de conflitos por causa de métodos muitas vezes desenquadrados das realidades da cultura local. Mas como explica Ferreira (2014), essa crítica está ligada em parte às teorias “realistas” das Relações Internacionais, que encaram o conflito como um acontecimento objetivo normal da sociedade e a paz como ausência de guerra. Por consequência, priorizam “negociação objetiva de ganhos, controlo racional das políticas e dos processos de tomada de decisão e de técnicas de gestão de crises, que permitam atingir a meta principal, que é a obtenção de um acordo entre as partes” (p. 63). Esta abordagem se contrapõe à teoria idealista, segundo a qual as causas do conflito podem ser derivadas de situações de discriminação, desigualdades económicas, injustiça social e outras. Nesta perspetiva, a solução passa por um diálogo construtivo, que permita analisar as causas profundas do surgimento do conflito que as partes assumem e têm interesse em resolver.

Na abordagem idealista, o papel da terceira parte mediadora centra-se em ajudar à aproximação entre as partes para uma cooperação reduzindo as diferenças, para uma resolução duradoura do conflito, também denominada paradigma da resolução, ou resolução de conflitos interativa (Burton, 1987). Pois, os conflitos são decorrentes de processos intersociais centrados sobretudo em interesses divergentes, que podem compreender as relações de poder.

No conflito de Casamansa priorizou-se a técnica de mediação para obtenção de acordos de paz, sem que as partes tenham ultrapassado as causas que estiveram na base do conflito. Embora o objetivo seja resolver o problema, o efeito tem sido reduzir o antagonismo entre as partes e minimizar os danos, o que para alguns autores é uma forma de “gestão de conflitos” diferente da resolução de conflitos (Wilde & Gailbrois, 2003, p. 56). O conflito prossegue, mas os excessos de violência são evitados ou mitigados, e pode haver períodos relativamente longos sem ocorrência de atos de violência, como tem acontecido no conflito em Casamansa.

No processo de paz deste conflito várias entidades e figuras públicas têm participado, destacando-se as organizações da sociedade civil, os líderes religiosos e tradicionais e as personalidades políticas. Porém, antes da mediação por parte da Guiné-Bissau, destaca-se a iniciativa primária dos quadros casamanceses nos anos de 1990, em tentarem a aproximação entre o MFDC e o Governo para o diálogo; contudo, não houve a concretização de nenhum acordo de paz. A Igreja Católica e as organizações da sociedade civil passaram a ter papel interventivo nas iniciativas para a paz em Casamansa. As associações e as organizações não governamentais (ONG) locais contaram com os apoios da Embaixada da França, da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID) e de algumas ONG internacionais como a Catholic Relief Service que têm contribuído para a construção da paz através de projetos de reintegração dos deslocados e reabilitação de infraestruturas sociais (Foucher, 2009, p. 151). Do final da década de 1990 a esta parte, muitas organizações não governamentais lideradas por mulheres têm estado muito ativas em plaidoyer e ações de sensibilização junto às populações para a paz, sobretudo em Ziguinchor e Kolda, e na desmobilização de combatentes do Movimento das Forças Democráticas de Casamansa. Citam-se como exemplos o Comité Regional de Solidariedade das Mulheres para a Paz em Casamansa (CRSFPC/Usoforal), a Kabunketoor (perdoemo-nos) e a Plataforma das Mulheres para a Paz em Casamansa.

As autoridades tradicionais, apesar de não terem exercido papel de mediador, estiveram envolvidas nos atos de pacificação através de suas orações e cultos para a paz em Casamansa. Por exemplo, o rei de Oussouye, uma autoridade tradicional e religiosa, teve contactos diretos com o então líder religioso e espiritual do MFDC, Augustin Senghor, para a realização de atividades em favor da paz. Ele e os líderes religiosos tradicionais de awaseena têm feito muitas orações para a paz através dos santuários, e alguns líderes têm-se deslocado até às florestas para convencer os jovens do MFDC a entregarem as armas e regressarem para as suas aldeias. Desta forma, conseguiram desmobilizar muitos jovens rebeldes. Embora o poder do rei é local, porque não se estende a toda a região de Casamansa como autoridade tradicional e religiosa, a população reconhece a importância do seu papel no processo de paz.

Os mecanismos de resolução de conflitos com base na cultura e tradições locais surgidos nos anos de 1990 compreendem a noção de empowerment (empoderamento), segundo a qual as pessoas de uma comunidade onde se desenvolve o conflito adquiriram conhecimento profundo e possuem capacidades para desenvolver estratégias adequadas à resolução desse conflito (Lederach, 1997). Essas capacidades podem ser reforçadas ou complementadas com a formação. O objetivo deste procedimento é envolver o cidadão e a sua comunidade na solução das divergências reforçando a sua capacidade.

É convicção geral que os guerrilheiros são apoiados pelas populações, e nessa base os líderes das ONG entendem que as ações de formação devem ser no sentido de fazê-las entender que “a guerra não faz sentido e a independência é uma falsa ideia” e aos guerrilheiros “fazer-lhes compreender que Casamansa não pode ser independente” (Marut, 2010, p. 278), porque integra o território do Senegal.

A partir do último acordo de paz, em 2004, todas as iniciativas tradicionais para a paz tinham por finalidade a reintegração dos combatentes na vida social; a reconciliação entre os casamanceses; a reabilitação e construção de habitações para os deslocados e os refugiados retornados; e a construção de infraestruturas económicas e sociais em Casamansa. Porém, a dissuasão da violência por todos os meios, para desencorajar a continuidade da guerra, não convenceu ainda todos os combatentes e civis do MFDC, que continuaram na dinâmica da guerrilha e subversão. A subversão tem por finalidade a subtração de uma população à autoridade administrativa e moral de um poder estabelecido e integrá-la às outras entidades políticas ou militares, por vezes para a luta (Aron, 1962, p. 173). Embora as partes não estejam em confrontos armados diretos, não vivem uma situação de paz, senão de interregno, e enquanto existirem homens armados, continua a violência psicológica e social.

O conflito de Casamansa, pesar de ser considerado de baixa intensidade, porque os confrontos armados entre as partes beligerantes têm sido esporádicos e não constitui ameaça à paz internacional, não deixa de ser mortífero. Tornou-se um círculo vicioso de ação e reação entre as partes, com atos de violência que reduzem os esforços de sua resolução. As causas da violência são na maioria das vezes decorrentes de situações de frustração que incluem discriminação e desigualdades económicas, injustiça social, entre outras (Ferreira, 2014; Nye Jr., 2002). Por isso, só podem ser banidas com abordagens construtivas que tomem em conta as causas profundas do conflito, considerando-as como um problema comum que as partes têm interesse em resolver. Só assim será possível a resolução do problema ou transformação do conflito.

Para a mediação futura ter êxito, é necessário em primeiro lugar, que o MFDC tenha um único interlocutor, que as partes beligerantes estabeleçam uma agenda consensual para a negociação e que o mediador seja neutro e exerça com imparcialidade o seu papel. É entendimento quase unânime dos investigadores sobre o conflito de Casamansa, que o Estado da Guiné-Bissau deve ser envolvido na busca de solução para a paz, por ser vizinho muito próximo da zona do conflito. As autoridades tradicionais e religiosas, as organizações da sociedade civil e as mulheres devem assumir papel relevante na sensibilização das populações para a paz, elaboração e realização de projetos que visem suprir carências sociais dos casamanceses.

Considerações finais

O Estado da Guiné-Bissau foi nomeado consensualmente pelas partes beligerantes como Parte Garante do processo de paz, após o fracasso das negociações diretas entre o governo senegalês e o Movimento das Forças Democráticas de Casamansa, em 1990. A partir daí, passou a desempenhar o papel de mediador, e influenciou a assinatura de dois acordos de paz. Porém, deixou voluntariamente de mediar o conflito a partir de 1998, por causa do conflito político-militar na Guiné-Bissau, em que estiveram envolvidos o governo senegalês e os elementos do MFDC. Mas poderá retomar esse papel, porque não foi expressamente renunciado nem lhe foi retirado pelas partes em conflito.

A divisão no seio do MFDC tem obstruído o envolvimento pleno deste movimento nas negociações para a paz, e o seu engajamento no cumprimento escrupuloso dos acordos de paz resultantes da negociação direta ou da mediação por terceira parte. Por consequência, os esforços para a paz têm encontrado obstáculos que impediram a maximização de benefícios.

Analisando a situação de facto, à partida pode-se dizer que a Guiné-Bissau não é parte e não tem interesse particular no conflito de Casamansa. Mas este conflito tem sido um fator desestabilizador da sua fronteira ao norte. A pertença partilhada do grupo étnico Felupe da Guiné-Bissau, em São Domingos, e Jola do Senegal, em Casamansa, ao contrário do que alguns analistas dizem, não condiciona a posição oficial de neutralidade da Guiné-Bissau em relação ao conflito. Esta situação deve constituir motivação para um contributo para a paz. Pois, se outras entidades ou países fora da sub-região oeste-africana podem mediar este conflito, os países vizinhos do Senegal, como são os casos da Guiné-Bissau e Gâmbia, à partida estão em melhores condições de o fazer, porque conhecem bem o problema e sofrem as consequências do conflito.

A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental - CEDEAO, sendo uma organização sub-regional de que faz parte o Senegal, e porque dispõe de mecanismos de defesa e paz, pode igualmente ser um facilitador na procura de solução para a paz definitiva em Casamansa. Para o êxito da mediação, neste caso concreto, impõe-se a necessidade de o MFDC ter apenas um interlocutor.

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1 Tradução da autora: “A mediação é a intervenção de um terceiro neutro num conflito com o objetivo de oferecer soluções para a resolução pacífica do conflito”.

2 Conforme o manuscrito intitulado République de Guinée-Bissau - Partie Garante, Procès-Verbal. Consultations avec les Parties sur le conflit de Casamance. Ziguinchor, 8-9 avril 1992.

3 A divergência deve-se à acusação de que Sidy Badji recebeu de Marcel Bassène um suborno de 50 milhões de Francos CFA para desengajar-se da luta armada, acusação refutada por Badji.

4 Declarações do embaixador guineense, Ensa Djandy, em entrevista concedida à autora, na sua residência no Bairro de Ajuda, em Bissau, a 28 de maio de 2011, no âmbito do trabalho de campo da tese de doutoramento.

5 Declarações de Ensa Djandy durante a entrevista concedida à autora, em Bissau, a 28 de maio de 2011.

6Atika, em jola, significa combatente, flecha.

7 Excertos da entrevista concedida à autora por Seynabou Male Cissé, presidente da Usoforal, em Ziguinchor, a 2 de julho de 2011, no âmbito do trabalho de campo da tese de doutoramento.

8 Esclarecimentos do embaixador guineense Ensa Djandy prestados à autora, a 28 de maio de 2011, em Bissau, pois ele fez parte da delegação da Guiné-Bissau nessa reunião em Ziguinchor.

9 Mas o brigadeiro Ansumane Mané tomou parte da reunião em Banjul.

10 Fontes não oficiais falam de um número superior a 1900 vítimas mortais. Consultar: “Le Joola et le Titanic” (Acedido em 15 dezembro de 2019 de http://marine-inconnue.blogspot.com/2009/02/joola.html)

11 O abade Augustin Diamacoune Senghor morreu vítima de doença, com 78 anos, a 14 de janeiro de 2007, no hospital militar Val-de-Grâce, em Paris.

12 N’Krumah Sané exilou-se em Paris há mais de duas décadas, após ter sido libertado da prisão em Dakar, em 1993.

13 Sob a mediação da Comunidade de Sant’Egídio e o apoio da Gâmbia, oito militares senegaleses foram libertados pelo MFDC, a 3 de dezembro de 2012, após um ano de prisão, conforme a RFI.

14 Abdou Elinkine Diatta, nomeado secretário-geral do MFDC em 2017, foi assassinado em Ziguinchor, em 27 de outubro de 2019, conforme BBC News Afrique (https://www.bbc.com/afrique/region-50199847).

15 Discurso do presidente Macky Sall, em Ziguinchor, a 17 de março de 2014, conforme a RFI.

Recebido: 12 de Junho de 2020; Aceito: 16 de Dezembro de 2021

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