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Revista de Gestão dos Países de Língua Portuguesa

versión impresa ISSN 1645-4464

RGPLP vol.15 no.1 Lisboa mar. 2016

 

ARTIGOS

 

Governança colaborativa na prática: Desafios das parcerias com organizações sociais no Brasil

 

Gobernanza colaborativa en la práctica: Desafíos de las asociaciones con organizaciones sociales en Brasil

 

The practice of collaborative governance: Challenges of social organizations partnerships in Brazil

 

 

Humberto Falcão Martins1

1 Doutorado em Administração, FGV/EBAPE – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas. Fundador e Diretor-Conselheiro do Instituto Publix. Professor extracarreira, FGV/EBAPE, Praia de Botafogo, 190, 5.º, CEP 22250-900 Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: humberto.martins@fgv.br

 

 


RESUMO

O artigo busca relacionar os principais desafios da implementação das organizações sociais, um modelo de parceria entre poder público e entidades da sociedade civil proposto no Brasil na década de 1990. São levantadas questões, que suscitam questões de pesquisa, levando-se em conta tanto o que aponta a literatura contemporânea sobre governança colaborativa, quanto observações de campo. Os principais desafios estão relacionados aos temas: perspectiva de reforma institucional, orientação para resultados, governança mista, parceria e flexibilidade operacional.

Palavras-chave: Governança Colaborativa; Parcerias com Entes de Colaboração; Gestão de Parcerias


RESUMEN

El artículo busca relacionar los principales desafíos de la implementación de las organizaciones sociales, un modelo de asociación entre el poder público y entidades de la sociedad civil propuesto en Brasil en la década de 1990. Surgen preguntas, que suscitan cuestiones de búsqueda, teniendo en cuenta tanto lo que apunta a la literatura contemporánea sobre la gobernanza colaborativa, como observaciones de campo. Los principales desafíos están relacionados con los temas: perspectiva de la reforma institucional, orientación para los resultados, gobernanza mixta, asociación y flexibilidad operativa.

Palabras clave: Gobernanza Colaborativa; Asociaciones con Entes de Colaboración; Gestión de Asociaciones


ABSTRACT

The paper draws upon the main challenges to implement the so called social organizations partnership model, designed in the 1990s to allow the transference of state activities to non-governmental entities in Brazil. Questions regarding the collaborative governance literature and field observations are raised with the aim of elaborating research questions to be further explored. The main challenges are related to the following themes: partnerships and institutional reforms; performance orientation; mixed governance systems; partnerships vs. outsourcing; and operational flexibility.

Key words: Collaborative Governance; Third Sector Partnerships; Partnerships Management


 

 

Governança colaborativa, um dos qualificativos mais atraentes da governanca pública contemporânea, é a governança em rede, multi e pluri-institucional para coprodução de políticas e serviços públicos (Agranof, 2007; Koliba et al., 2011). Formam, na expressão de Agranoff (2007), «colaborarquias» autogeridas, onde a colaboração advém da confiança e da interdependência  e vai além da cooperação (que pode ser esporádica), porque baseia-se em reciprocidade, integração, formalização, alinhamento finalístico e de longo prazo (Agranoff e McGuire, 2003). Nesse contexto, parcerias figuram como formas concretas de implementação de arranjos em rede. A OCDE (1990, p. 18) define parceria como «sistemas formalizados de cooperação, baseados em arranjos legais de relacionamento ou entendimentos informais, de relacionamentos de trabalho cooperativo e de adoção mútua de planos entre instituições; envolvendo entendimentos programáticos, compartilhamento de responsabilidades, recursos, riscos e benefícios em determinados períodos de tempo».

Organizações sociais (OS) são uma forma de parceria entre o poder público e entes de colaboração e cooperação (usualmente sob a forma de associações ou fundações de direito privado) para o provimento de serviços de relevância pública (em áreas tais como saúde, educação, meio ambiente, cultura, esporte, assistência social, ciência e tecnologia, dentre outras), mediante firmatura de um contrato de gestão. As OS não são uma nova figura jurídica, mas uma qualificação que associações e fundações recebem mediante o cumprimento de certos requisitos, dentre eles destacam-se a finalidade não lucrativa, impossibilidade de distribuição de excedentes, conselho de administração como instância decisiva de deliberação com composição de membros do poder público e privados e destinação do patrimônio a outra OS no caso de dissolução. As OS podem receber subvenções orçamentarias, patrimônio (em seção de direito) e servidores do poder público para o alcance dos resultados definidos em contrato de gestão.

As OS e seus derivados vêm proliferando com muitas experiências que demonstram que o modelo está rodando e se constitui uma alternativa viável para proporcionar a expansão do Estado por fora da administração pública. Este movimento é irreversível e irresistível no Brasil, no sentido de que tende a ser adotado de uma forma ou de outra pela União, Estados e municípios. E aí reside o desafio: buscar disciplinar a aplicação do modelo de tal forma que não se percam suas características seminais e sirvam à geração de boas experiências e resultados. A sustentabilidade e irreversibilidade do modelo OS estão na capacidade de as experiências de aplicação do modelo  manterem suas características estruturais; e não deformarem o modelo.

Este artigo busca relacionar os principais desafios da implementação das OS, levando-se em conta tanto o que aponta a literatura contemporânea sobre governança colaborativa, quanto observações de campo ao longo de 18 anos de implementações de OS em distintos níveis federativos no Brasil. Os principais desafios estão relacionados aos temas: perspectiva de reforma institucional, orientação para resultados, governança mista, parceria e flexibilidade operacional.

 

Perspectiva de reforma institucional

Ativa ou passivamente, explícita ou implicitamente, instantânea ou sequenciadamente, abrangente ou seletivamente, parcerias envolvem rearranjos institucionais, permitindo que os modelos de direito público se ocupem do que é exclusivo e que agentes privados possam servir de prepostos confiáveis da atuação estatal de forma descentralizada para o terceiro setor. Assim sendo, as questões que se colocam são: em que extensão a aplicação do modelo é parte de uma estratégia de reforma institucional – ou parte de soluções fragmentadas que buscam acudir situações pontuais de inoperância? Em que extensão os modelos estão sendo geridos nesta direção – transformadora?

A experiência brasileira revela que, num momento pré-decisional, as motivações iniciais são mais episódicas que sistemicamente encartadas numa perspectiva abrangente de reforma institucional; a adoção do modelo possui um forte componente mimético; o momento decisional prescinde de modelagem que permita antever vantagens comparativas de distintas opções; e, num momento pós-decisional, a gestão do modelo falha em prover a devida regulamentação e direcionamento do bom uso do modelo.

O momento pré-decisional envolve a percepção de problemas e oportunidades que motivam a adoção do modelo OS e sua indicação como solução. A experiência nacional revela distintas motivações para adoção do modelo OS e congêneres: flexibilização para melhorar o volume e qualidade dos serviços prestados; aumento de demanda por serviços e impossibilidade de prestá-los ao abrigo direto do Estado, tendo em conta, principalmente, os limites de gastos com servidores da Lei de Responsabilidade Fiscal; melhor controle de recursos já alocados em parcerias firmadas por meio de modelos anteriores (convênios e assemelhados), por conta do foco em resultados; maior possibilidade de alavancar a captação de recursos próprios e privados para expansão e melhoria dos serviços. Sejam quais foram as motivações, em apenas dois casos, os Estados de Minas Gerais e Pernambuco, os modelos de parceria eram elementos centrais de um processo mais amplo de reforma institucional[1].

Embora a legislação-matriz preconize um programa de publicização, este jamais existiu. Em todo caso, as decisões sobre a criação de modelos de parceria semelhantes ao modelo OS se deram muito mais em razão de efeitos miméticos, nos quais os municípios tendem a imitar as legislações estaduais muito mais do que estas tendem a imitar a legislação federal, embora a legislação federal sempre se firme, preponderantemente, como paradigma. Trata-se, portanto, de um processo de natureza incremental e sedimentar, sem diferenciações radicais.

Além de mimético-incremental, a maior parte dos processos de decisão de adesão ao modelo OS foi setorizada e oportunista no sentido estratégico do termo. A implementação setorizada revela, por seu turno, uma faceta fragmentária: muitos setores, destacadamente saúde e assistência, lograram avanços na implementação do modelo à mercê de lideranças setoriais de governo, não a partir de uma decisão de cúpula, a partir de uma clara opção do executivo principal (seja um prefeito ou governador) ou com amplo suporte de outras autoridades governamentais. O padrão predominante está baseado na determinação setorial e no convencimento governamental de baixo-para-cima em situações onde não houve espaço ou tempo para se discutirem estratégias de reforma institucional nem políticas de descentralização e parcerias – em alguns casos nota-se a existência de instâncias colegiadas de decisão sobre serviços a serem parcerizados, mas, na prática, apenas para referendar decisões centrais ou setoriais, sem políticas e/ou estudos de modelagem que deem o devido embasamento às propostas.

O momento pós-decisional da implantação da OS inclui a gestão do modelo – que não se confunde com as gestões das parcerias sob seu abrigo, questão que será tratada logo a seguir. A gestão do modelo inclui sua regulamentação, sua promoção e avaliação, de modo a proporcionar seu bom uso e atualização, por meio de divulgação, assistência na implantação e nos seus processos de operacionalização, capacitação, desenvolvimento e aperfeiçoamento de instrumentos gerenciais e legais. Usualmente, a gestão do modelo deve ser uma responsabilidade central dos governos, afeita às áreas de melhoria da gestão ou às unidades de coordenação governamental próximas à cúpula, com equipe devidamente qualificada e dedicada e status hierárquico para respaldar decisões de aplicação do modelo intra e extrapoder Executivo – o Estado de Pernambuco chegou a constituir uma Agência Gestora de Parcerias.

A experiência nacional revela que poucos casos possuem uma gestão mais sistemática dos modelos de parceria, prevalecendo nenhuma ou insuficiente regulamentação, instruções processuais, divulgação e apoio sistemático à implantação, de modo que muitos aspectos operacionais relativos ao funcionamento das parcerias acaba sujeito a tratamento casuísta e/ou se sujeita a regulamentações restritivas dos órgãos de controle.

Outra consequência, é a transferência da gestão do modelo para as unidades setoriais gestoras das parcerias, sobrecarregando-as e drenando-lhes a energia, além de enredar os modelos em perspectivas setoriais que às vezes são muito específicas. Mas também, por exceção, o oposto ocorre: áreas centrais gestoras dos modelos assumem a gestão das parcerias em múltiplos setores, gerando dificuldades decorrentes da falta de conhecimento técnico e gerencial setorial para bem gerir distintas parcerias.

Este quadro revela, na experiência brasileira, uma implementação pautada por urgências e emergências, sem uma visão clara de reforma institucional por detrás – embora as implementações tenham, por outro lado, gerado efeito transformador nas instituições e, em muitos casos, gerado visões de reforma, ainda que por meios tortuosos. O que se advoga é a necessidade de que tal processo seja mais abrangente, planejado e sistemático. Acudir situações pontuais de inoperância gerencial estatal não diminui a utilidade do modelo, apenas limita seu potencial.

 

Orientação para resultados

Outra característica estrutural do modelo OS é que a experiência de parcerização deve ser pautada por resultados. O contrato de gestão é o instrumento de direcionamento e controle para e por resultados – sem prejuízo do controle dos meios, que também deve existir. Parcerias envolvem contratos complexos e, por definição, imperfeitos – sujeitos aos múltiplos problemas de agência e gaming[2]: conflitos de interesse, desalinhamento de preferências em relação a riscos, assimetrias informacionais, manipulação e transmissão intencional de informações incompletas ou distorcidas, etc.

Um contrato de gestão possui múltiplos objetos de pactuação e controle (monitoramento e avaliação e fiscalização), além de múltiplos atores envolvidos (as partes contratante e contratada, além de intervenientes e outras partes envolvidas no M&A – no processo de fusões e aquisições –, fiscalização, gestão do modelo, etc.).

Em que extensão as parcerias estão de fato baseadas mais em resultados que em esforços? Os resultados (ou esforços) pactuados são coerentes (focados e alinhados com os resultados de governo e com as políticas públicas), realistas, desafiadores e legítimos? As formas de mensuração e pontuação são adequadas? A estrutura de incentivos para a geração de resultados é adequada? Como mitigar o gaming (defensivo e ofensivo) e pactuar metas crescentemente realistas e desafiadoras? Em que extensão há um equilíbrio entre o controle de meios e fins?

Estas questões serão abordadas na sequência.

A experiência nacional revela: a predominância da pactuação mista de esforços e resultados, com ênfase nos primeiros; claros sinais da modalidade mais comum de gaming, a subestimação de metas; monitoramento e avaliação excessivamente centrada em esforços; e controle predominante dos meios.

O contrato de gestão é um contrato de resultados, esforços (para o alcance dos resultados) e meios (para consecução dos esforços), embora a coerência entre eles nem sempre esteja clara e embora predominem especificações sobre esforços e meios. A definição de resultados não é uma questão trivial na literatura e nas práticas gerenciais[3]. Os contratos de gestão não fogem à regra e revelam mais pactuação de esforços que de resultados, ou seja, uma pactuação mais baseada em ações (coisas a fazer) que em produtos (sejam bens ou serviços, tangíveis ou não) e impactos – embora haja honrosas exceções setoriais, caso da saúde, por exemplo, cujos contratos de gestão são mais baseados principalmente em indicadores de produção.

É muito raro ver contratos de gestão com indicadores de eficiência (a relação entre recursos e produtos) e efetividade (impacto gerado no contexto de atuação).

Em todo caso, ainda que de forma incompleta, tais definições representam um grande avanço em relação à logica dos convênios: de alocação de recursos em ações e prestação de contas da conformidade da execução dos recursos, predominantemente.

Não obstante, em muitos casos, a ausência de indicadores de resultados e a firmatura de contratos de gestão integralmente baseados em ações também pode ser explicada como efeito de gaming – situação na qual os indicadores de resultados são deliberadamente suprimidos para desonerar a contratada, restringindo seu escopo de responsabilidade à mera consecução de ações.

Mas esta não é única situação de gaming que se encontra subjacente a muitas experiências, mas a subestimação das metas segue sendo a principal. Metas devem ser realistas (factíveis) e desafiadoras (empurrando o contratante para além da zona de conforto e gerando uma situação de superação). É muito comum experiências contratuais resultarem em 100% de alcance das metas de forma contumaz. Em parte, a subestimação das metas é uma jogada defensiva para atenuar efeitos de problemas no fluxo de recursos, além de efeitos disfuncionais do controle e da gestão da parceria que possam trazer dificuldades operacionais e comprometer os resultados, tais como ingerências e imposição de regras publicistas. E isto independe do porte da organização contratada e de sua reputação.

Há casos de gaming tão intensos, associados a gestões tão débeis das parcerias, que as contratadas dominam a relação e ditam as regras. Boa parte do gaming é simplesmente permitida ou tolerada pelo contratante porque aceita uma fixação frouxa de resultados, com metas irrealistas e pouco desafiadoras, e/ou porque concentra seus controles nos meios e esforços com altas doses de ingerência, dispondo de mecanismos punitivos contundentes, caso julgue que a situação está fora de controle.

Entretanto, há casos em que mecanismos de inteligência antigaming são aplicados e rendem resultados animadores, tais como comitês técnicos ou especialistas para o suporte à negociação, monitoramento e avaliação, por meio de análises factuais e evidências comparativas; transparência negocial; e competição administrada.

Em síntese, o gaming é uma condição crítica que faz parte da relação contratual, tendencialmente maior em duas situações opostas: quando a parte contratante é excessivamente lasciva e leniente ou quando é extremamente dura, inflexível, insensível ao aprendizado e baseada na imposição de metas. Uma questão de trabalho de qualquer relação contratual é minimizar o gaming.

Outro elemento central da geração de resultados em qualquer relação contratual é a forma como o monitoramento e avaliação são definidos e conduzidos. Esforços e meios também são objetos de controle. Analogamente à pactuação, predominam os controles das ações e dos meios em detrimento do controle dos resultados, gerando-se um disfuncional desbalanço. O foco no controle dos resultados não pode se dar às custas da desatenção ao aproveitamento ótimo dos recursos públicos, nem ao cumprimento de exigências que se aplicam aos parceiros, mas também não se admite que um foco em controles processuais e de aplicação de recursos imponha desempenho em níveis inferiores.

Tudo isto é agravado pela pluralidade de agentes públicos envolvidos nas parcerias (grupos técnicos, comitês de acompanhamento e avaliação, órgãos regionais setoriais, órgãos supervisores, órgãos de controle, auditorias internas e auditorias independentes), agentes públicos excessivamente zelosos e atentos a riscos de responsabilização. A consequência é a predominância dos controles dos meios sobre os fins de forma restritiva e confusa, com prejuízos para o desempenho da parceria e para o aprendizado.

 

Governança mista

Um modelo de governança compreende o conjunto de regras, instâncias e processos de direcionamento (planejamento, metas, etc.), controles (de resultados e procedimentais, auditoria) e incentivos (sistema de induzimentos e retribuições) para que o interesse do «dono» prevaleça sobre outros interesses[4]. Governança no modelo OS suscita questões relativas à natureza da organização OS, seu grau de autonomia, assim como a natureza de uma parceria na qual o parceiro público é, ao mesmo tempo, «dono».

Organizações não governamentais (ONG) – uma pluralidade de formas associativas e fundacionais - possuem, dentre seus stakeholders primários, a categoria de «dono». Numa empresa, o dono é investidor cotista ou acionista cujo interesse principal é o retorno do seu investimento. No caso de uma ONG, há instituidores que investem capital simbólico (reputação, prestígio, poder, tempo, entusiasmo) e detêm algum controle sobre a instituição movidos por interesses relacionados à causas, mas também buscando retorno do capital simbólico investido. Numa ONG não há «direitos de propriedade» a priori, o «dono» se faz dono ao exercer o poder de mando e satisfazer seus interesses. Integrar uma parte interessada na estrutura de comando de uma ONG equivale à torná-la «sócia». Logo, numa OS, o parceiro público torna-se sócio, suscitando problemas de equilíbrio associativo e autonomia.

Problemas de equilíbrio associativo ocorrem quando um associado torna-se mais preponderante, usualmente por possuir mais poder mas também urgência e legitimidade[5]. Ora, o capital de uma ONG é integralizado muito mais à base de legitimidade e urgência do que de poder. A questão é até que ponto um associado com muito mais poder pode se sobrepor à legitimidade e urgência dos demais, de modo a tornar-se um associado dominante com poder de direcionamento e controle sobre os demais.

No caso das OS, há um maior risco de que isto aconteça porque o parceiro público tem uma tendência ao comando, fruto do seu caráter hierárquico e regulatório, arriscando aviltar o caráter de «vamos combinar» da parceria. Já as OS possuem, por requisito legal, um sistema misto de governança no qual a instância máxima de deliberação é um conselho de administração (CA) composto por integrantes do poder público (limitada à 40%, mas preponderante porque influencia na escolha dos demais) e da sociedade. Ocorre que o parceiro público é aportador determinante de recursos. Logo, este risco converte-se em tendência, na medida em que a dependência do poder público for maior e em que os demais associados não tiverem legitimidade e urgência em alta conta. Apenas uma alta dose de legitimidade é capaz de contra-arrestar a alta dose de poder que o associado poder público possui, em prol do equilíbrio associativo. A experiência brasileira revela que a preponderância do poder público gera desequilíbrios associativos, embotando a atuação dos demais atores.

Ademais, é necessário que o CA como um todo orgânico cumpra o seu papel adequadamente,  que é o de estabelecer uma relação contratual com a direção na qual aquele delibera e estabelece limites (principalmente sobre o que não fazer) e dá ampla margem de autonomia para que esta opere dentro dos limites. Conselhos não devem se meter em questões do dia a dia nem interferir em assuntos operacionais. Caberá ao CA deliberar sobre a estratégia de atuação da entidade, se mais restrita ou não às parcerias que vier a firmar com o poder público, e como as parcerias se encaixam numa atuação mais ampla – essencial para evitar o deslocamento de missão e mercantilização. A experiência brasileira revela, nesse sentido, ingerências do CA em questões e minúcias diuturnas e, também, a relativa grande força das direções frente aos conselhos – aparentemente o poder público acaba preferindo exercer seu mando diretamente sobre uma direção mais fortalecida do que como parte de um conselho.

 

Parceria e fomento

Parceiro é uma parte interessada que faz parte de uma intervenção, ou seja, que faz com e faz junto, buscando satisfazer um conjunto de beneficiários.

Fomento não é um ato isolado; é o processo de apoiar, estimular, induzir parceiros a gerar bens ou serviços a certos beneficiários. Fomento não é prestação de serviços. Esta última é mais uma relação comercial episódica, e menos um processo, é do tipo «fazer para», onde uma parte tem interesse de lucro, e outra de contraprestação de um serviço ou fornecimento de um bem para si.

Parcerias se concretizam por meio de múltiplos instrumentos de ajustes baseados na convergência de interesses, segundo ritos e requisitos específicos de aproximação e seleção. A prestação de serviços se concretiza por meio de contratos administrativos, regidos pela lei de licitações. A Figura 1 ilustra esta diferenciação.

Parceria e fomento formam um binômio elementar do modelo OS. Primeiramente, intentou-se revigorar formas de fomento e parceria que se desgastaram ao longo do tempo, tais como títulos de utilidade pública, filantropia e a modalidade convenial, que se se perderam em múltiplos mau usos e descaracterizações. Depois, buscou-se firmar um conceito de parceria para transferência de atividades que fosse distinto da ideia de terceirização, que é uma prestação de serviços, e de privatização, que envolve a venda de ativos e a perda de controle. E, finalmente, pretendeu-se impedir a reprodução do conceito de «fundação de apoio», no qual constituía-se uma instituição prestadora de serviços para outra instituição, em vez de um público beneficiário.

Na experiência brasileira de implantação de OS, os problemas relacionados à parceria e fomento são vários: combinação da relação de parceria com elementos hierárquicos e de prestação de serviços; solidez dos parceiros privados; seleção de parceiros privados; e gestão da parceria.

Na prática, o que tem prevalecido são formas híbridas de parceria onde a interdependência é permeada por questões hierárquicas e elementos de prestação de serviços. Parceiros públicos tendem a tratar OS como extensões de seus aparatos, impondo, mais que negociando, condições, requisitos, prazos – embora haja freios e limites não raramente impostos pelo CA e pela postura dos dirigentes. Há também traços de prestação de serviços: seleção do parceiro com caráter licitatório (frequentemente emulando uma modalidade de técnica e preço); e relação de supervisão e pagamento baseada na atestação de serviços prestados. Por outro lado, o controle vai muito além da verificação das entregas e adentra atos de gestão do parceiro, sua conformidade, regularidade e características organizacionais. Adicione-se excessos de zelos motivados pelas condutas rigorosas dos controles interno e externo, exigindo obediência à parâmetros gerenciais do setor público. É um cabresto que dissipa energia e diminui o proveito do modelo OS.

A escolha de parceiros deve se pautar pelo princípio da vantagem da complementaridade de capacidades: o efeito sinérgico da combinação das partes potencializa capacidades que, isoladamente, gerariam efeitos inferiores. Isto requer afinidade, vocação, reputação, qualidade e maturidade gerencial. Estes devem ser os critérios de seleção. Há dois principais tipos de risco na seleção de parceiros privados: incapacidade e oportunismo. Uma boa seleção requer uma boa modelagem, de modo a tornar claro o interesse do poder público e os «diferenciais competitivos» do modelo OS, ou o que se espera que os parceiros sejam ou façam em termos de capacidades requeridas.

É essencial ter em mente que a seleção em questão, de uma parceria, é uma seleção de parceiros, não dos objetos da parceria em razão de qualidade ou preço – diferentemente de um processo licitatório para um contrato administrativo, no qual se escolhe um fornecedor em função do objeto conforme especificado de acordo com o menor preço. A experiência brasileira revela que as parcerias mais estáveis e exitosas são aquelas que se estabelecem com organizações com atuação já consolidada, com reconhecimento, boa reputação e condições operacionais maduras. São mais exitosos os casos nos quais as entidades privadas parceiras são maiores que as parcerias, promovendo menor dependência em relação ao poder público e tornando a relação de parceria mais equilibrada.

Por fim, outra questão que frequentemente desequilibra a relação de parceria é a gestão da parceria no seu duplo caráter: programático e econômico-financeiro. O caráter programático da parceria é basicamente a gestão do contrato de gestão no sentido da formulação, monitoramento e avaliação dos resultados e iniciativas pactuados. O que levanta duas principais questões: a coerência programática (o alinhamento de resultados e iniciativas com as políticas públicas) e a qualidade e capacidade institucional do parceiro público (um locus institucional bem posicionado, dimensionado e instrumentado para gerir bem a parceria). Há casos de flagrantes despreparo e subdimensionamento de equipes e recursos gerenciais, e outros de sistemas e equipes muito bem qualificadas e empoderadas para operar a formulação/negociação e o monitoramento e avaliação dos contratos de gestão. Em todo caso, a grande questão da gestão programática do contrato de gestão é sua interface com o controle, o risco de se assumir uma postura fiscalizatória e «policialesca» – frequentemente sob pressão das áreas de controle.

O outro lado da gestão da parceria é a gestão econômico-financeira dos contratos de gestão, envolvendo questões de dimensionamento de recursos e a manutenção do fluxo de repasses pactuado. Esta questão tem suscitado interesse dos órgãos de controle, no sentido de exigir do gestor da parceria a economicidade, a racional aplicação dos recursos. Não obstante, o poder público tem se revelado um parceiro não cumpridor de suas obrigações de repasse e as organizações parceiras mais dependentes passam por situações que as colocam à beira do colapso operacional – fazendo-as incorrer em maiores custos relativos com indesejável frequência.

Em suma, a relação de parceria e fomento não é uma relação tão simples quanto uma relação de prestação de serviços. Fazer junto não é fazer para e isto envolve aportes, em termos financeiros e outros recursos, suportes e benefícios mútuos. Parceria é um processo simbiótico, ou protocooperativo porque não é obrigatório, que é vantajoso para dois ou mais organismos de espécies diferentes.

 

Flexibilidade

Este é um dos pontos mais polêmicos das parcerias: lidar com um parceiro que dispõe de maior autonomia gerencial – regras de gestão de direito privado para alavancar desempenho, muito mais flexíveis do que o regramento publicista.

Por detrás da flexibilidade está a questão mais ampla da autonomia. Em princípio, os parceiros privados são entes autônomos. A parceria é uma forma de direcionamento e regulação da autonomia da OS, não uma forma de restringi-la. Analogamente, a flexibilidade é inerente à natureza de direito privado. Logo, não pode ser considerada um bônus à pactuação mas uma condição necessária, uma «vantagem comparativa», que deve ser revertida em ganhos estruturais de eficiência.

Há uma questão cultural (o mito de que «qualquer ganho de autonomia e flexibilidade é uma porta aberta à corrupção») e outra histórica (de que quando há problemas decorrentes da não regulação e não direcionamento da autonomia, opta-se por cassá-la, em vez de melhor regulá-la e direcioná-la) subjacentes a esta questão. E os atores que a tratam tão mal são, principalmente, os órgãos de controle. É no exercício do controle – bem entendido de forma ampla como os processos de verificação e transparência do alcance de resultados, execução das iniciativas e aplicação dos recursos, que usualmente compreendem desde o monitoramento e avaliação do contrato de gestão até a prestação de contas e a disponibilização de dados e informações sobre atos e fatos de gestão – que a flexibilidade é sistematicamente mal compreendida e restringida.

O controle de uma OS é com efeito algo complexo. Há uma multiplicidade de objetos: resultados, por meio de indicadores e metas; iniciativas, por meio da execução de ações; e recursos, sejam financeiros, humanos, patrimônio. Há uma multiplicidade de atores: Comissão de Acompanhamento e Avaliação, que, por sua vez, é usualmente composta por representantes da gestão do modelo, da parceria e de intervenientes; Conselho de Administração e/ou Conselho Fiscal; e órgãos de controle interno e externo, em sentido amplo, incluindo Procuradorias, auditorias, controladorias, tribunais de contas (da União, Estados e municípios) e Ministério Público. Há também uma multiplicidade de processos e regulamentos definidos pelos distintos atores conforme suas perspectivas e conveniências.

A questão é que o controle das OS é mais que abrangente - é exorbitante, confuso e excessivamente custoso, basicamente por conta das posturas restritivas dos assim chamados órgãos de controle. Trata-se de órgãos cujas equipes constituem comunidades epistêmicas com forte cultura jurídica e contábil e possuem grande dificuldade de pensar o modelo OS, algo que se posiciona do lado de fora da administração pública e tendem a imputar-lhes uma grande carga de obrigações publicistas em razão da proximidade que a parceria enseja. Prevalece também uma postura «policialesca» e um excessivo rigor com minúcias procedimentais e formalidades. As determinações extrapolam as parcerias e adentram os parceiros mediante um tratamento que muitas vezes beira a ingerência. Uma das consequências é a limitação da flexibilidade, ou sua subutilização por meio da adoção de regras inferiores, mais afeitas à regulamentação publicista. Exemplos variam da adoção de procedimentos de compras e contratos espelhados na lei de licitações públicas, embora de forma mais leve, ao  regime CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) com procedimentos seletivos espelhados nos tradicionais concursos públicos.

 

Considerações finais

A experiência da implementação das OS no Brasil revela um curso exitoso de uma inovação, embora tenha trilhado caminhos tortuosos. Não obstante limitações, dificuldades e ameaças diversas, as características estruturais do modelo vêm sendo submetidas a fortes pressões, mas resistindo na sua essência.

Isto demonstra que a governança colaborativa, embora frequentemente celebrada como a forma ideal para se processar a complexidade dos problemas públicos contemporâneos, não é algo simples de se implementar. Em particular, as parcerias tão propagadas como soluções para aliviar a incapacidade gerencial ou fiscal dos poderes públicos, requerem, por seu turno, requisitos de qualidade gerencial e solidez fiscal de parceiros públicos que são condições sine qua non.

Além disso, no terreno dos desafios práticos inexistem condições ideais. O mérito das inovações, para além das concepções, é fazer acontecer. E criar condições favoráveis ou desviar de condições desfavoráveis é o verdadeiro desafio. E é sempre possível otimizar, errar menos e fazer melhor com base na experiência dos outros.

Vencer os desafios apresentados é essencial para a implementação de experiências exitosas de parcerias entre Estado e terceiro setor, facilitando sua funcionalidade em prol da criação de valor público. Este artigo pretendeu, nesse sentido, oferecer um roteiro de questões críticas de implementação de parcerias entre poder público e terceiro setor, questões estas que também podem suscitar interesses de pesquisas.

Sobretudo, espera-se que a experiência brasileira possa gerar elementos que permitam ampliar o conhecimento e o aprendizado de outros países para tornar mais efetivas experiências de parcerização com o terceiro setor.

 

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YOUNG, M. N.; PenG, M. W.; Ahlstrom, D.; Bruton, G. D. e Jiang, Y. (2008), «Corporate governance in emerging economies: A review of the principal–principal perspective». Journal of Management Studies, 45(1), pp. 196-220.         [ Links ]

 

 

Recebido e aceite em março de 2016.
Recibido y aceptado en marzo de 2016.
Received and accepted in March 2016.

 

 

Notas

[1] Veja-se, a este respeito, Governo do Estado de Minas Gerais e Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais, «Do Choque de Gestão à Gestão para a Cidadania – 10 anos de desenvolvimento em Minas Gerais», 2014; e Marini, C. e Martins, H. «Todos por Pernambuco em tempos de Governança: Conquistas e desafios», Publix, 2014.

[2] Práticas de gaming, de manipulação de dados ou indicadores. N. E.

[3] Em meio a múltiplas abordagens que abundam na literatura gerencial sobre desempenho e que possuem alguns entendimentos e muitas diferenças e divergências semânticas e conceituais, é útil propor o entendimento denominado 6Es do desempenho, constante do Guia Referencial Para Medição de Desempenho e Manual para Construção de Indicadores do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (em http://www.gespublica.gov.br/Tecnologias/pasta.2010-05-24.1806203210/guia_indicadores_jun2010.pdf). Veja-se também Martins, H. e Marini, C., «Governança pública contemporânea – uma tentativa de dissecação conceitual», Revista do Tribunal de Contas da União, n.º 130, maio-agosto, 2014. Não obstante o apelo de diversos dispositivos regulamentares no sentido de que os contratos de gestão disponham de indicadores de eficiência e economicidade, justamente estes, juntamente com os de efetividade, são os mais complexos de serem modelados, tendo em conta a qualidade de dados, parâmetros de comparação, temporalidade e graus de controle.

[4] Trata-se aqui do conceito de governança corporativa. A governança corporativa preocupa-se em constituir instâncias (conselhos, por exemplo) e instrumentos (de planejamento, monitoramento e avaliação) no sentido de estabelecer o devido direcionamento e controle estratégico da empresa, certificando-se de que seu corpo executivo a gere prioritariamente em benefício dos interesses de seus proprietários (Pound, 1995; Stout, 2012; Young et al., 2008).

[5] Segundo a proposta de Mitchell et al. (1997), stakeholders são atores (internos ou externos) que afetam ou são afetados pelos objetivos ou resultados de uma dada organização em diferentes extensões, na medida em que reúnem entre um a três atributos básicos: poder, legitimidade e urgência. Atores que não reúnem ao menos um destes atributos (não afetam os resultados e/ou não são afetados pelos resultados) não são stakeholders. Veja-se Martins, H. e Fontes Filho, J. R. (1999).

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