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Revista Lusófona de Educação

versión impresa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.9 Lisboa  2007

 

L’invention des sciences modernes

Isabelle Stengers (1995), Paris: Flammarion

 

 

As condicionantes sociais da ciência

Stengers começa por lembrar que a sociologia das ciências “põe em causa” a tradicional separação entre ciências e sociedade. Esta inquietação do campo científico repete uma outra inquietação, de 1962, quando Thomas Kuhn propôs a categoria de “ciência normal”: o cientista prático não é a ilustração gloriosa do espírito crítico e do racionalismo lúcido, cada paradigma determina as questões legítimas e os critérios com que devem ser reconhecidas as respostas aceitáveis. Porquê então o escândalo actual acerca da sociologia das ciências? Kuhn não sublinhou “a dimensão social das ciências” ao mostrar que o cientista deve ser descrito como um membro de uma comunidade e não como “um indivíduo racional e lúcido”? (pp.11 e 12).

Kuhn e o conjunto dos historiadores “internos” desenvolvem o tema da grande diferença dos últimos “quatro séculos europeus”, em que se criou a ciência moderna. Segundo Kuhn, foi aqui que se realizou a condição da possibilidade da ciência, ou seja, a existência de sociedades que dão às comunidades científicas os meios de existir e de trabalhar sem interferência nos seus debates. Mas os historiadores “externos” sublinham que outras condições singulares marcaram esses quatro séculos, perguntando: “a indústria, o estado, o exército, o comércio, não entram verdadeiramente na história das comunidades científicas senão apenas no duplo título de fontes de financiamento e de beneficiários da produção?” (p.18).

 

Vulnerabiblidade da ciência e o debate com terceiros

Uma condição da ciência moderna é a sua artificialidade. Por exemplo, ”a velocidade dos corpos galileanos – que é definida pela dinâmica clássica – é inseparável dos móveis que ela definiu, pertence unicamente aos corpos galileanos”, pois esses corpos, definidos pela existência dum dispositivo experimental, permitem sustentar, face à multiplicidade de proposições rivais, que essa velocidade é apenas uma maneira entre outras de definir o comportamento desses corpos. Assim a abstracção é relativa à invenção duma prática experimental ou “artefacto de laboratório” (p.99) que a distingue de uma ficção entre outras ao “criar” um facto que “singulariza uma classe de fenómenos entre os outros” (p.101). Repare-se no sublinhado da autora na referência à invenção de uma prática experimental, que delimita uma certa classe de fenómenos.

Mas a autora analisa as complicadas relações da ciência com os interesses económico-sociais que actualmente a podem impulsionar: “Entre a constituição de um território disciplinar e a construção social de um mundo que permite aos produtos da disciplina “fazer história” com os interesses sociais, económicos políticos e industriais, a relação é ao mesmo tempo intensa e mascarada”. A sua vulnerabilidade situa-se assim face a uma multiplicidade de factores de influência: “as ciências não são, por destino, aliadas do poder, mas são, por definição, vulneráveis a todos aqueles que podem contribuir para a criação de diferenças, para a estabilização de interesses, para a desqualificação das questões incómodas, para a facilitação da promoção dos laboratórios. Esta singularidade põe o problema da sua coexistência com a de outros actores (…) num mundo concebido como campo de manobra” (p.144).

Daí também o risco do individualismo: o cientista escolhido pelo poder, aliás “mobilizado” (ou “seleccionado como representante legítimo de um problema”, linhas acima) “ficará feliz e orgulhoso por se ver chamado como especialista por um poder que o reconhece como único representante legítimo de um problema”. Poderá considerar que o essencial é que “o valor da sua pesquisa seja reconhecido e receba (enfim) o financiamento que merece” (p.147).

Mas a discussão dos problemas com terceiros, numa postura clássica de distinção entre sujeito(s) e objecto(s), aparece como processo de independência face ao poder: “O desafio que me proponho, o de desligar ciência e poder sem por isso desligar ciência e polémica, pode ser posto em termos de distinção entre sujeito e objecto”, divisão “clássica” mas “polémica” (p.150). Ora, para a autora, “a singularidade das ciências modernas mantém essa distinção, porque é dessa distinção que nasce o risco. Assim, já não se trata de superar o poder da ficção ou invenção inerente às ciências modernas, trata-se sempre de o pôr à prova, de submeter as razões inventadas “a um terceiro susceptível de as pôr em risco” (p.151).

Como exemplo significativo a autora refere o campo da “artificial life” que “congrega uma multidão de cientistas muito diferentes, todos aqueles que conseguem, através de técnicas recentes (robótica, simulação em computador) capturar e reproduzir um traço de um ser vivo” (p.155). Não se trata de reduzir as alianças, mas de fazê-las proliferar e, correlativamente, tais alianças não se passam “no cume”: “nenhuma disciplina é rainha, lugar prometido onde a vida se tornará objecto de ciência”. Assim “robóticos e simuladores interessam-se apaixonadamente por tudo o que os etólogos sabem sobre tal traço do comportamento, próprio de tal espécie, em tais condições” (…) (p.156)

 

Da ciência de laboratório à ciência de terreno: a controvérsia

Mas a autora sublinha que actualmente algo de diferente se passa por comparação com o estudo do movimento por Galileu: “entramos numa problemática própria das ciências de terreno, que as distingue das ciências de laboratório. Não se encontram aqui os dispositivos experimentais no sentido galileano, que dão ao cientista o poder de pôr em cena a sua própria questão, isto é, de purificar um fenómeno e de lhe dar o poder de testemunhar a esse respeito; os instrumentos do naturalista ou do cientista de terreno dão-lhe a possibilidade de coligir indícios que o guiarão na tentativa de reconstituir uma situação concreta, de identificar relações, não de representar um fenómeno como uma função munida das sua variáveis independentes”. Além disso: “nenhum terreno vale por todos (…) aquilo que um terreno permite afirmar, pode um outro terreno contradizê-lo” (pp.156 a 159).

Em vez de juízos individualizados em laboratório, a análise é essencialmente colectiva, os cientistas já não juízes, mas investigadores, as suas “ficções” implicam “intrigas” cada vez mais inesperadas: “verdade, realidade e pesquisa entrelaçam-se mutuamente numa operação que cria narrativas onde antes compreendíamos por discernimento” (p.161).

Daí a controvérsia como condição da ciência moderna: é como cientistas que aqueles que hoje tentam modelizar o efeito estufa, as consequências da desflorestação, os efeitos da poluição, contribuem para incomodar os cálculos político-económicos, pois os “novos dados”, apresentados pelos cientistas, já não são “provas” estáveis, mas incertezas” (p.163).

 

O homem e as suas paixões, medida de todas as coisas

O enunciado sofista de que o “homem é a medida de todas as coisas” é, assim, “uma caracterização da aventura humana que liga verdade e ficção, enraiza ambas na paixão que nos torna capazes tanto da ficção como de pôr à prova essas ficções” (p.187). “A invenção das ciências modernas exigiu um estilo de paixão que faz do autor científico um híbrido singular, entre juiz e poeta. O cientista-poeta “cria” o seu objecto, “fabrica” uma realidade que não existe tal e qual no mundo, mas que é antes da ordem da ficção. O cientista-juiz tem de conseguir fazer admitir que a realidade que ele fabricou é susceptível de conter um testemunho fiável.

Por isso, os historiadores da ciência têm como princípio fundamental o de que o conhecimento humano é constantemente transformado, são narradores que assumem a evolução como condição essencial da ciência: “A paixão dos narradores darwinistas não faz deles nem poetas, no sentido de fabricantes, nem juízes, nem profetas, mas torna-os vulneráveis à ironia, porque a medida das histórias da Terra que eles aprendem a contar exige deles uma estética da contingência”. Assim, o historiador de ciência vive no inter-face da contingência da vida humana e da exigência de rigor: “o humor do narrador darwinista reside na maneira como ele pode ao mesmo tempo dizer a contingência e a exigência não contingente que o faz existir e o liga à aventura humana”.

Finalmente, o humor não tem de ser somente muro protector das paixões científicas, mas pode ser constitutivo dessas paixões. Assim, os cientistas poderiam tornar-se “medida” de um devir que não autorize a separação entre produção de saber e produção de existência. Porque é sem dúvida aqui que convergem os dois sentidos do enunciado sofista, o que conjuga medida e política e o que conjuga medida e devir. Nos dois casos, a ficção torna-se vector de devir, e a diferenciação entre representação legítima e opinião, o poder atribuído à verdade de vencer a ficção, torna-se o “hábito de pensamento” que nós temos de aprender a pôr em risco. Nos dois casos, a nossa paixão ocidental pela verdade exigirá dela que saiba separar verdade e poder, e saiba ligar verdade e devir” (p.189).

 

A qualidade democrática do debate científico

O cientista é, correntemente, “mobilizado” pelos poderes. A proposta da autora é a de que a ciência actual deverá procurar “desligar ciência e poder, sem por isso desligar ciência e polémica”, o que pode ser posto “em termos de distinção entre sujeito e objecto”, como vimos. É que a invenção actual da ciência é de base interdisciplinar e congrega uma diversidade de cientistas muito diferentes, onde “nenhuma disciplina é rainha” e onde a relação “entre representação legítima e opinião” é vista como “um hábito de pensamento”.

Essa tensão entre os pólos da representação especializada e o da opinião, que se vive no âmbito de ciências de terreno como são fundamentalmente as actuais, torna-se a proposta fundamental da autora, vista como um risco a assumir. Por isso, sublinha uma inseparabilidade de princípio entre a qualidade “democrática” do processo de decisão política e a qualidade “racional” da controvérsia especializada (p.180). Por fim, lembremos que esta obra de Stengers prenuncia a temática de uma outra obra posterior, de Latour (2004), que recentemente recenseámos nesta revista: “Politiques de la nature. Comment faire entrer les sciences en démocratie”.

 

 

José B. Duarte

j.b.duarte@netcabo.pt