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Revista Lusófona de Educação

versión impresa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.10 Lisboa  2007

 

Em torno de um novo paradigma sócio-epistemológico

Manuel Tavares conversa com Boaventura de Sousa Santos

 

 

Boaventura de Sousa Santos, Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), é Professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick.

É Director do Centro de Estudos Sociais da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Director do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra e Director da Revista Crítica de Ciência Sociais.

Prémio de Ensaio Pen Club Português 1994; Prémio Gulbenkian de Ciência, 1996; Prémio Bordalo da Imprensa – Ciências, 1997; Prémio Jabuti (Brasil) - Área de Ciências Humanas e Educação, 2001; Prémio Euclides da Cunha da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro, 2004; Prémio “Reconocimiento al Mérito”, concedido pela Universidade Veracruzana, México, 2005; Prémio de Ensaio Ezequiel Martínez Estrada 2006, da Casa de las Américas, Cuba, 2006.

Os seus temas de pesquisa situam-se no âmbito da epistemologia, sociologia do direito, teoria pós-colonial, democracia, interculturalidade, globalização, movimentos sociais, direitos humanos.

Na entrevista concedida à Revista Lusófona de Educação aborda, sobretudo, os temas relacionados com a construção de um novo paradigma sócio-epistemológico, 25 anos depois da publicação da obra emblemática Um Discurso sobre as Ciências.

 

 

Manuel Tavares: Há cerca de vinte anos, em Um Discurso sobre as Ciências, fazia uma análise lúcida e arrojada do paradigma científico dominante. Para além da crítica a esse modelo redutor e excludente de racionalidade, avançava para uma concepção, ainda que especulativa, de um novo modelo de racionalidade, mais holístico, inter e transdisciplinar.

Ao paradigma emergente, para o qual apontou sinais, chamou paradigma pós-moderno.

Que alterações epistemológicas se produziram no movimento científico, ao longo destes 20 anos, que permitam afirmar que o novo paradigma já não é uma mera especulação, mas que está em vias de consolidação?

Boaventura de Sousa Santos: A designação “paradigma pós-moderno” não é talvez muito feliz pelas confusões que gera e por isso decidi abandoná-la. Estou a preparar o Segundo Discurso Sobre as Ciências e aí proporei uma outra designação. A minha concepção de um tal paradigma tem pouco a ver com a concepção mais corrente (tanto francesa como norte-americana). Enquanto esta parte da ideia de que os problemas epistemológicos modernos (verdade ou verdades; representação ou construção; objectividade ou subjectividade; autonomia do saber ou determinação social; racionalidade ou irracionalidade; etc) deixaram de ter consistência, importância ou mesmo validade, eu parto da ideia de que tais problemas continuam válidos e importantes, só que as soluções modernas para eles não nos servem. Daí que, em textos posteriores, tenha chamado à minha concepção “paradigma pós-moderno de oposição”. Acontece que, dada a hegemonia da posição convencional, não consegui que esta designação se impusesse. E, sendo assim, é melhor abandoná-la. Acresce que o pós-modernismo é hoje uma designação usada para caracterizar uma enorme diversidade de temas, da epistemologia à política, à cultura e à arte e, portanto, confunde mais do que esclarece. A prova disto mesmo é o facto de a crítica ao pós-modernismo vir tanto dos sectores da direita conservadora como dos sectores marxistas mais ortodoxos.

As mudanças no paradigma dominante são mais evidentes que a emergência de um novo paradigma. É possível que isto aconteça em todas as transições. Vemos melhor o que vai mudando no que está do que o que de novo vai emergindo nos interstícios das mudanças do que está. Ou seja, a novidade na mudança nem sempre é novidade da mudança, e os sinais num ou noutro sentido são equívocos. Por outro lado, pode ser que o paradigma emergente seja, de facto, um conjunto de paradigmas, ou seja, a coexistência de uma pluralidade de epistemologias irredutíveis a uma epistemologia geral.

Tendo isto presente, penso que as mudanças principais nos últimos vinte anos foram as seguintes. Primeiro, o discurso epistemológico deslocou-se da física para as ciências da vida, sobretudo para a genética, e com isso surgiram novos problemas: a relação entre genética, biologia da evolução e biologia do desenvolvimento; os fenómenos biológicos entre a linguagem físico-química da vida e a linguagem da informação; os problemas éticos da investigação genética à regulação desta; a relação entre a indústria da biotecnologia e a investigação científica; o patenteamento de formas de vida ou de processos ligados à vida. Segundo, estes desenvolvimentos deram origem a novas fracturas entre paradigmas reducionistas e paradigmas da complexidade, das quais emergiram novas questões no seguimento das que eu tinha identificado em Um Discurso: o conhecimento como resultado de processos locais e, portanto, situado e contextualizado; valorização epistemológica do pragmatismo. Terceiro, também confirmando as minhas orientações prospectivas, a crescente saliência de áreas de conhecimento em que a distinção entre “ciências naturais” e “ciências sociais” colapsa: ciências do ambiente, ciências cognitivas, biodiversidade, ciências da saúde. Finalmente, o reconhecimento crescente, sobretudo nas duas últimas áreas que acabei de referir, do carácter parcial do conhecimento científico e da necessidade de procurar diálogos entre ele e conhecimentos não científicos, por vezes, incorrectamente, designados como “etno-saberes”. A esse diálogo venho chamando a ecologia dos saberes (Gramática do Tempo).

 

MT: Os movimentos positivistas e neopositivistas são, actualmente, anacrónicos. Todavia, não serão, ainda, os critérios positivistas que, por um lado, servem de fundamento epistemológico às ciências naturais e, por outro, não haverá um certo «positivismo envergonhado» na produção do conhecimento na área das ciências sociais?

BSS: Como acabei de referir, o positivismo (mesmo assumindo que não há uma concepção unívoca de positivismo) é uma epistemologia demasiado estreita para abranger a riqueza e a diversidade das práticas científicas. O caso das ciências sociais é mais complicado porque estas ainda se não redimiram do pecado original de nascerem ao espelho das ciências naturais e de durante muito tempo terem subordinado a sua reflexão epistemológica à reflexão epistemológicas das ciências naturais. Ao interiorizarem o seu “atraso”, não se puderam dar conta — sobretudo nos países cientificamente menos desenvolvidos, como é o nosso — dos contributos únicos que podem dar ao avanço da reflexão epistemológica em geral. Selecciono três: os seres humanos não são exteriores em relação ao mundo e, portanto, estão condenados a auto-reflectirem-se no que observam: o problema do observador de segunda ordem, na formulação de Niklas Luhmann; o mundo não é um conjunto inerte de coisas materiais, de res extensa cartesiana, é antes uma presença activa que antecede e condiciona a nossa interpretação; a complexidade do mundo da vida faz com que o que, de modo relevante, se sabe dele seja sempre uma constelação de saberes. Todo o conhecimento é inter-conhecimento, ecologia de saberes.

 

MT: Estamos longe, ainda, de «um conhecimento prudente para uma vida decente.» A democratização do conhecimento situa-se no âmbito da utopia. O processo hegemónico de globalização é, também ao nível do conhecimento, muito mais poderoso do que o da globalização contra-hegemónica. Como alterar a concepção instrumental e colonizadora do conhecimento numa concepção emancipadora e humanista?

BSS: A referência ao título do livro que organizei para responder aos meus críticos permite-me dizer que aí encontra uma ampla paisagem epistemológica que reflecte a riqueza cognitiva do mundo. Mas como as epistemologias dominantes reflectem os interesses dominantes — que, de modo mais ou menos directo, são os do capitalismo global — é tão difícil a luta por justiça social quanto a luta por justiça cognitiva. O reconhecimento deste facto levou a centrar-me na última década nas questões do colonialismo, pós-colonialismo e interculturalidade (Crítica da Razão Indolente e Gramática do Tempo).

O avanço de uma epistemologia de conhecimento-emancipação depende do avanço das lutas sociais contra a opressão, a discriminação e a exclusão social, ainda que esteja sujeito a outras determinações relativamente autónomas que têm a ver com o campo intelectual, a cultura científica dominante, os sistemas de educação, etc.

 

MT: O conhecimento-emancipação, em oposição ao conhecimento-regulação, pressupõe a construção de uma sociologia das ausências. Pressupõe, afinal, «que se dê voz ao silêncio.» Como fazer falar o silêncio com princípios e conceitos epistemológicos colonialistas? Nesta abordagem, há uma dívida para com Foucault. Considera-se herdeiro de M. Foucault?

BSS: As propostas epistemológicas, que tenho vindo a fazer nos últimos vinte anos não apontam, apenas, para novos tipos de conhecimento; apontam, também, para novos modos de produção de conhecimento. Defino-os, em geral, como epistemologias do Sul, entendendo por Sul a metáfora do sofrimento humano, sistematicamente causado pelo capitalismo. Trata-se, pois, de um Sul não imperial (porque há um Sul imperial, que reproduz no Sul os interesses do Norte) que resiste contra a opressão, a exploração e a exclusão. Esse conhecimento pode ser produzido no Norte mas sempre aprendendo com o Sul não imperial. E a vigilância epistemológica tem de ser constante pois, doutro modo, a fala alternativa pode transformar-se, rapidamente, em silenciamento alternativo.

Foucault deu um enorme contributo para desarmar epistemologicamente o Norte, mas não pôde reconhecer os esforços do Sul não imperial para se armar epistemologicamente. É que estavam em causa outros saberes e outras experiências de saber de cuja existência ele não se apercebeu.

 

MT: Do meu ponto de vista, o seu pensamento, apesar das polémicas que tem suscitado, tem contribuído, decisivamente, para um amplo debate e profundas reflexões sobre o conhecimento científico: sobre o que é, como se produz e como deve ser. O modelo de racionalidade que defende conflitua com uma lógica sustentada em princípios que conduziram a uma concepção de verdade algo dogmática, autoritária. No nosso mundo, assente na complexidade, o que se deve entender por verdade?

BSS: O “se” da sua pergunta é decisivo. Quem é que pergunta pela verdade? Quem é que, ao perguntar, assume que há uma e só uma verdade? Há muitos tipos de verdade e devemo-nos perguntar por que razão, em relação a alguns deles, não temos qualquer dúvida. Estou a responder-lhe num computador verdadeiro e se ele não o fosse esta resposta nunca chegaria a si. A verdade que tem em mente é algo menos trivial que isto. O que quer saber é se a verdade é uma representação do real e se tal representação é unívoca. Porquê conceber a verdade em termos de representação? Como os seres humanos não são excêntricos em relação ao mundo, a representação tem de reflectir quem representa no que representa. Assim sendo, a representação não pode ser unívoca, por mais única que seja. Essa unicidade só pode ser o resultado de um consenso mais ou menos provisório. Donde vem esse consenso? Dos modos de intervenção no mundo que se têm como particularmente válidos. Por exemplo, construir uma ponte que não caia. A verdade é sempre o resultado de uma coincidência pragmática entre o que se pensa sobre o mundo e a intervenção concreta que se pretende realizar nele. A verdade é, assim, um acontecimento, como bem a definiu Martin Heidegger. E, como acontecimento, ela tanto revela como oculta. Se a ponte cair alguns anos mais tarde foi verdadeira enquanto esteve de pé ou era falsa desde o início? A verdade é a sucessão de verdades com que vamos intervindo eficazmente no mundo. Os limites dessa eficácia são os limites da verdade. Se a verdade das causas implica a verdade das consequências, porque é que, por vezes, é tão dramática a discrepância entre o que se quis como causa e o que se obteve como consequência? O desastre ecológico é um bom exemplo disso. Tudo se passa como se apenas houvesse graus de verdade, apesar de não sermos capazes de pensar senão em termos binários: verdadeiro ou falso. Ou como se a verdade fosse sempre retrospectiva, mesmo se só sabemos pensar nela como antecipativa.

Quanto mais divergirmos sobre as intervenções no mundo, menos consenso haverá sobre o que é a verdade, o que não significa que haja várias verdades. Alternativamente, podemos pensar que há vários caminhos e várias aproximações, que a verdade é sempre heterogénea (internamente instável e diversa) e que quando acontece começa logo a desacontecer. A obsessão com a verdade unívoca e absoluta é uma herança da religião.

 

MT: Na obra Introdução a uma Ciência pós-moderna defende que «todas as ciências são ciências sociais» enveredando por uma hermenêutica crítica para dissolver aquilo a que chama «etnocentrismo epistemológico.» Defende a supremacia das ciências sociais, invertendo a dicotomia tradicional, ou, pelo contrário, pretende sugerir um diálogo e comunicação entre os diversos discursos científicos?

BSS: Hoje estou muito mais consciente da pluralidade interna e externa das ciências, graças às epistemologias feministas e pós-coloniais (sobre aquela distinção, veja o livro organizado por mim Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais, Afrontamento. 2004). Não faria sentido descentrar a epistemologia do universo das ciências naturais para a recentrar no universo das ciências sociais concebido como o oposto do primeiro. O importante, é repensar o conhecimento científico em toda a sua diversidade à luz das suas possíveis relações com outros saberes não científicos que orientam a vida quotidiana das pessoas. As hierarquias entre conhecimentos não podem ser estabelecidas em abstracto, mas sim em concreto, isto é, em função das intervenções concretas no mundo. Se eu quero ir à lua, necessito de conhecimento científico; mas se eu quero preservar a biodiversidade, preciso do conhecimento indígena e camponês. As epistemologias dominantes tendem a salientar a incomensurabilidade ou incompatibilidade entre conhecimentos. O importante é salientar a incompletude de todos os conhecimentos e o potencial que existe nos diálogos entre eles. O conhecimento prudente decorre sempre desses diálogos e das constelações de saberes que permitem construir. Alguns dos conceitos por mim desenvolvidos depois de Um Discurso,pretendem dar conta desse objectivo: hermenêutica diatópica, ecologia de saberes, tradução intercultural.

 

MT: Há alguns sectores da “intelectualidade” portuguesa que o acusam de excesso de relativismo, isto é, afirmam que coloca ao mesmo nível os vários saberes, sejam eles científicos ou não. Aceita esta crítica? Subscreve a afirmação aristotélica de que «a verdade se diz de várias maneiras e nenhuma delas tem supremacia em relação às outras»?

BSS: Sempre afirmei que o pensamento crítico, orientado para a transformação social emancipatória, não pode ser relativista. O importante é, pois, não confundir pluralismo epistemológico com relativismo epistemológico. A ecologia dos saberes não é possível sem pluralismo epistemológico, e seria um exercício inútil no marco do relativismo epistemológico. Como afirmei na resposta à pergunta anterior, as hierarquias entre saberes são necessárias mas devem ser contextuais e pragmáticas.

 

MT: Nas Escolas portuguesas e em algumas Universidades continua a ensinar-se a ciência do Século XIX. É difícil contrariar uma mentalidade positivista muito enraizada. Como perspectiva o ensino das ciências?

BSS: Está muito em voga a tentativa de tornar a ciência atractiva pedagogicamente, transformando-a numa mágica secular, difícil para quem está fora e simples para quem está dentro. Ao contrário, penso que o ensino da ciência devia assentar na complexidade: os limites do rigor, o carácter retrospectivo da coerência, a verdade que acontece e que desacontece, as situações de bifurcação, o que se desaprende no processo de aprendizagem de um dado conhecimento, o real concebido como uma entidade activa que se oferece ou que resiste a ser conhecido por um certo tipo de conhecimento, etc.

 

MT: Na sua obra O Fórum Social Mundial: manual de uso apresenta 15 teses para o aprofundamento da democracia. A 6ª tese refere que «estão a emergir formas contra-hegemónicas de democracia de alta intensidade». Todavia, parece que essas formas se verificam mais nos países em vias de desenvolvimento do que nos países Ocidentais, ditos desenvolvidos. Aqui, parece haver um certo anestesiamento e adormecimento das populações que se vão alimentando passivamente da globalização neo-liberal. Será correcto este ponto de vista?

BSS: Nos nossos dias o grande problema do pensamento crítico e das políticas de esquerda que decorrem dele é a relação fantasmagórica entre teoria e prática. Esta relação assenta no facto de que, enquanto o pensamento crítico foi desenvolvido em cinco ou seis países do Norte global, as práticas de esquerda mais inovadoras têm vindo a surgir no Sul global. Este desencontro está a produzir teorias cegas e práticas invisíveis. O impacto do neoliberalismo foi devastador e os seus efeitos negativos começam hoje a ser mais visíveis à medida que se aprofunda a sua crise. O problema é que, por mais repugnantes que sejam os seus efeitos (desigualdade social, belicismo, catástrofe ecológica, etc), a leitura politizada e de resistência que se deve fazer deles só é possível na medida em que existir a alternativa realista de uma sociedade mais justa, de um futuro pós-capitalista. Ora, o pensamento crítico e a esquerda no Norte global deixaram de acreditar em tal alternativa e, por isso, acabaram por render-se às evidências neoliberais, como, por exemplo, a necessidade de destruir o serviço nacional de saúde, o sistema público de segurança social, ou os direitos dos trabalhadores. As populações não estão adormecidas. Estão, pelo contrário, a sofrer em silêncio.

 

MT: Finalmente, gostava que me falasse das potencialidades do FSM. Não será, apenas, «uma fábrica de ideias», ou será mesmo uma «máquina de propostas»?

Como transformar, do interior do paradigma neo-liberal, essas ideias e propostas em acções concretas de modo a que, efectivamente, o FSM se afirme, não como um movimento folclórico, mas como um movimento de globalização contra-hegemónica de grande amplitude, nos vários planos de acção: económico, social, político, cultural, ambiental...

BSS: A resposta cabal a esta pergunta exigiria uma reflexão mais detalhada. No espírito desta entrevista, saliento os aspectos epistemológicos do FSM, pois penso que sem uma nova epistemologia não serão possíveis novas políticas transformadoras. O FSM é o primeiro movimento internacionalista do século XXI, originário do Sul global e segundo premissas culturais e políticas que desafiam as tradições hegemónicas da esquerda. A sua novidade, fortalecida com a mudança de Porto Alegre para Mumbai e mais tarde para Nairobi, reside no facto de as tradições hegemónicas de esquerda, em lugar de serem descartadas, terem sido convidadas a estar presentes, ainda que não nos seus termos, ou seja, como únicas tradições legítimas. Junto com elas foram convidadas muitas outras tradições de conhecimentos críticos, de práticas transformadoras e concepções de uma sociedade melhor. O facto de movimentos e organizações provenientes de tradições críticas díspares — unidos pelo propósito, muito genericamente definido, de lutar contra a globalização neoliberal e pela aspiração, ainda mais genérica, por “um outro mundo possível” — poderem interagir durante diversos dias e planear acções conjuntas teve um impacto profundo e multifacetado na relação entre a teoria e a prática.

Primeiro, tornou claro que o mundo, no seu todo, está repleto de experiências e de actores transformadores que não correspondem aos parâmetros estabelecidos pela esquerda ocidental. Tornou igualmente claro que a discrepância entre a teoria (esquerda nos livros) e a prática (esquerda em acção) é acima de tudo um problema ocidental. Noutras partes do mundo e mesmo no ocidente entre as populações não-ocidentais (como os povos indígenas) existem outros entendimentos de acção colectiva para os quais esta discrepância não faz muito sentido.

Em segundo lugar, o FSM mostrou que o conhecimento científico, a que sempre foi concedida prioridade absoluta no cânone da esquerda ocidental é, no espaço aberto do FSM, uma forma de conhecimento entre muitas outras. Para certos movimentos e causas, é mais importante do que para outros e, em muitas instâncias, é utilizado em articulação com outros conhecimentos: leigos, populares, urbanos, camponeses, femininos, religiosos, artísticos etc. Deste modo, o FSM coloca uma nova questão epistemológica: se as práticas sociais e os actores colectivos recorrem a diferentes tipos de conhecimento, uma avaliação adequada da sua utilidade para a emancipação social só pode ser fundada numa epistemologia, que, ao contrário das epistemologias hegemónicas do Ocidente, não conceda supremacia a priori ao conhecimento científico (produzido sobretudo no Norte) e permita assim um relacionamento mais justo entre as diferentes formas de conhecimento. Por outras palavras, não existe justiça global sem justiça cognitiva global. Assim, para captar a variedade imensa de discursos e práticas críticas e valorizar e maximizar o seu potencial transformador, é necessária uma reconstrução epistemológica. Isto significa que não precisamos tanto de alternativas como de um pensamento alternativo de alternativas.

Esta reconstrução epistemológica deve partir da ideia de que o pensamento hegemónico de esquerda e a tradição crítica hegemónica, além de norte-cêntricos, são colonialistas, imperialistas, racistas e também sexistas. Para ultrapassar esta condição epistemológica, e assim descolonizar o pensamento e a prática de esquerda, é imperativo ir para o Sul e aprender com Sul, o que designei acima por epistemologia do Sul. Esta epistemologia de modo algum sugere que o conhecimento científico, o pensamento crítico e as políticas de esquerda nortecêntricas sejam descartados como parte do lixo da história. O seu passado é, sob muitos aspectos, um passado honroso com um contributo significativo na libertação do mundo e, portanto, também do Sul global. Em vez disso, é imperativo iniciar um diálogo e uma tradução intercultural entre os diferentes conhecimentos e práticas: sulcêntricos e nortecêntricos, populares e científicos, religiosos e seculares, femininos e masculinos, urbanos e rurais, etc., etc. Designo acima este vasto processo de tradução intercultural como ecologia dos saberes.

O terceiro impacto do FSM no relacionamento entre a teoria e a prática, e provavelmente o mais decisivo para o seu sucesso, é a forma como valoriza a diversidade de filosofias, discursos, estilos de acção e objectivos políticos presentes nas suas reuniões. Neste domínio, dois aspectos merecem ser salientados. Por um lado, o FSM tem até agora resistido à redução da sua abertura em nome da eficácia ou da coerência política. Como menciono mais abaixo, existe um intenso debate dentro do FSM sobre este assunto, mas, do meu ponto de vista, a ideia de que não existe uma teoria geral da transformação social capaz de captar e classificar a imensa diversidade das ideias e práticas oposicionistas presentes no FSM tem sido uma das ideias mais inovadoras e produtivas. Por outro lado, esta inclusividade potencialmente incondicional tem vindo a contribuir para criar uma nova cultura política que privilegia as semelhanças em detrimento das diferenças, e promove a acção comum mesmo na presença de diferenças ideológicas, desde que os objectivos, não importa quão limitado o seu alcance, sejam claros e adoptados por consenso.

Nos antípodas da ideia de uma teoria geral abrangente ou de uma linha correcta vinda de cima, as coligações e articulações possibilitadas entre os movimentos sociais são geradas de baixo para cima, tendem a ser pragmáticas e a durar enquanto for necessário para os objectivos de cada movimento. Por outras palavras, enquanto na tradição da esquerda convencional, especialmente no Norte global, politizar uma questão era equivalente a polarizá-la, o que conduziu frequentemente ao fraccionismo e ao facciosismo, no FSM parece estar a emergir uma outra cultura política, onde a politização vai de mãos dadas com a despolarização, com a busca de terrenos comuns e de limites consensualmente assumidos para a pureza ou impureza ideológicas. Do meu ponto de vista, a possibilidade de uma acção colectiva global assenta no desenvolvimento de uma cultura política deste tipo.

 

Madison, 8 de Dezembro de 2007