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Revista Lusófona de Educação

versión impresa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.10 Lisboa  2007

 

A centralidade de Vigiar e Punir. História da violência nas prisões, na obra de Michel Foucault

Isabel Brites*

 

 

No Livro Vigiar e Punir - História da Violência nas Prisões, Michel Foucault (MF), em quatro grandes capítulos (Suplício, Punição, Disciplina, Prisão), dá-nos não só uma perspectiva arqueológica, cronológica, genealógica, antropológica, sociológica, etnológica e histórica da evolução dos castigos, da Idade Média até à Idade Moderna, como, adjacentemente, se interroga e nos interroga sobre a própria modernidade, sobre a questão do poder e sobre a questão do saber.

O capítulo I da obra intitula-se, bem a propósito, “O Corpo dos Condenados”. O primeiro relato, de uma crueza impressionante, é retirado de a “Gazette d’Amsterdam”: um parricida, condenado à morte em 1757, depois de sujeito a alguns preliminares públicos (é exibido nu numa carroça, obrigado a pedir perdão à porta de uma igreja, atenazado em diversas partes do corpo) é esquartejado, e os seus restos são queimados em plena praça, junto ao patíbulo. Era o tempo dos suplícios, entendidos sobretudo como um ritual político, uma função jurídico-política, parte integrante das cerimónias de manifestação do poder. A cerimónia punitiva devia ser aterrorizante. O que estava por detrás não era a economia do exemplo mas a política do medo. O suplício não restabelecia a justiça, apenas reactivava o poder. Assim, a execução pública era mais uma manifestação de força do que um acto de justiça, uma afirmação da correlação de forças que dava poder à lei.

O personagem efectivamente principal nas cerimónias do suplício era, então, o povo, a quem se dirigiam, mas que por vezes assumia uma atitude ambígua: assistia-se frequentemente a como que uma inversão de papéis – os poderes eram ridicularizados e os criminosos transformados em heróis. Daí que o perigo maior desses rituais de suplício, organizados para afirmação de um poder infalível e invencível – o poder real – fosse, então, um perigo político: a manifestação de solidariedade do povo para com os que sofriam a pena, ameaçado, ele também, por uma violência legal sem proporção nem medida.

Esta agitação dos mais pobres, dos que não tinham possibilidade de ser ouvidos na justiça, sobretudo quando se tratava de execuções injustas ou se registava uma diferença de penas segundo as classes sociais, não podia deixar de preocupar a lei. Essa preocupação, partindo de baixo, gerou movimentos que se propagaram e chamaram a atenção dos reformadores dos séculos XVIII e XIX, levando-os a perceber que as execuções, afinal, e ao contrário do que se pretendia, não assustavam o povo, pelo que um dos seus primeiros actos foi exigir a sua suspensão. Na perspectiva de Michel Foucault (MF), não foi qualquer sentimento de humanidade para com os condenados o factor de maior relevância no abandono da liturgia dos suplícios mas, isso sim, da parte do poder, um medo político do efeito desses rituais.

 

A mitigação das penas

Anos mais tarde – segunda metade do séc. XVIII e início do séc. XIX – foi a época de, nos Estados Unidos e na Europa, se repensar o castigo e tudo o que o envolvia, época de inúmeros projectos de reformas: nova teoria da lei e do crime; nova justificação moral ou política do direito de punir; abolição das antigas ordenanças; supressão dos costumes; projecto ou redacção de códigos modernos1. Uma nova era para a justiça penal: grandes transformações institucionais; códigos explícitos e gerais; regras unificadas de procedimento; existência de júris; penas com um carácter essencialmente correctivo.

Esta tendência acentuou-se cada vez mais depois do séc. XIX. Assistimos a “punições cada vez menos físicas, a uma maior discrição na arte de fazer sofrer, ao arranjo de sofrimentos mais subtis, mais velados e despojados de ostentação” (Foucault, 1977, p. 14). Uma coisa é certa: em algumas dezenas de anos desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espectáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.

Entre o final do séc. XVIII e a segunda metade do séc. XIX a punição, pouco a pouco, deixou de ser, então, uma cena, um cerimonial. Transformou-se num acto administrativo ou de procedimento. Tudo o que implicasse espectáculo passava a ter um cunho negativo. A justiça arvora outro rosto e não assume mais, publicamente, a parte da violência que está ligada ao seu exercício. Matar ou ferir já não é mais a glorificação da sua força mas um elemento intrínseco a ela, que ela é obrigada a tolerar e muito lhe custa ter que impor. Existe nesta justiça, a justiça moderna, uma certa vergonha de punir. “ É indecoroso ser passível de punição mas pouco glorioso punir” (Foucault, 1977, p. 15).

Nas primeiras décadas do séc. XIX, na sua evolução, as práticas punitivas tornaram-se pudicas: não tocar mais no corpo, ou o mínimo possível, e para atingir nele algo que não é propriamente o corpo. Este passa a ser instrumento, ou intermediário. Qualquer intervenção sobre ele visa privar o indivíduo da sua liberdade, considerada ao mesmo tempo como um bem e um direito. O corpo é, assim, colocado num sistema de coacção e de privação, de obrigações e de interdições, e os castigos aplicados são a prisão, a reclusão, a deportação ou os trabalhos forçados. Em nenhum dos casos, porém, existia a relação castigo-corpo do tempo dos suplícios.

Também os rituais de execução capital são testemunho desse duplo processo de supressão do espectáculo e de anulação da dor. Ergue-se uma utopia do poder judiciário (tirar a vida evitando que o condenado sinta o mal; privar de todos os direitos sem fazer sofrer; impor penas isentas de dor), ao mesmo tempo que se assiste a um movimento das legislações europeias visando um mesmo objectivo: uma morte igual para todos sem, como antes acontecia, a ostentação da marca específica do crime ou do estatuto social do criminoso; uma morte que dure apenas um instante, sem furores a antecipá-la ou a prolongá-la: “uma execução que atinja a vida mais que o corpo” (Foucault, 1977, p. 17). A guilhotina2, utilizada a partir de 1792 (até essa data a decapitação era a pena dos nobres), veio a revelar-se a máquina adequada a tais princípios. A morte, a execução capital, passou a ser reduzida a um acontecimento visível mas instantâneo. E, grande mudança, ela aplicava a lei já não a um corpo real e susceptível de dor, mas a um sujeito jurídico detentor, de entre outros direitos, do de existir. A guilhotina devia, assim, ter a abstracção da própria lei e ser a máquina das mortes rápidas e discretas, marcando uma nova ética da morte legal.

Em meados do séc. XIX o poder sobre o corpo, a pena, já não se centralizava, então, no suplício como técnica de sofrimento, embora permanecesse um fundo supliciante nos modernos mecanismos de justiça criminal, com um evidente afrouxamento da severidade penal, afrouxamento esse que foi visto, durante muito tempo, como um fenómeno quantitativo: menos crueldade - menos sofrimento - mais suavidade - mais respeito - mais humanidade. “Que o castigo (…) fira mais a alma do que o corpo” (Foucault, 1977, p. 21) significa, claramente, uma mudança de objecto. Já não é ao corpo que se dirige a punição, mas à alma. À expiação sobre o corpo deve suceder um castigo que actue, fundamentalmente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições… E o aparato da justiça punitiva tem que se ater a uma nova realidade, uma realidade incorpórea.

 

A punição generalizada

A definição das infracções, a hierarquia da sua gravidade, as margens de indulgência, o que era tolerado de facto e o que era permitido de direito, modificou-se amplamente nos últimos 200 anos. Alguns crimes deixaram de o ser, nomeadamente os ligados à religião, enquanto outros perderam parte da sua gravidade. Continuaram a ser julgados os crimes e os delitos definidos juridicamente pelo código, mas passaram a julgar-se também “as paixões, as anomalias, as enfermidades, os instintos, as inadaptações, os efeitos do meio ambiente ou da hereditariedade. Punem-se as agressões mas, por meio delas, as agressividades, as violações, os assassinatos que são também impulsos e desejos” (Foucault, 1977, p. 21). É a sombra, o que está por detrás, que é na realidade julgado e punido, com recurso a circunstâncias atenuantes ou a elementos circunstanciais. É julgada uma entidade “juridicamente não codificável: o conhecimento do criminoso, a apreciação que dele se faz, a relação entre o seu passado e o crime, o que se pode esperar dele no futuro” (id., p. 22). E, graças à relação entre medicina e jurisprudência serão julgados, desde o séc. XIX, os monstros, as anomalias psíquicas, os pervertidos, os inadaptados. A ideia era de improcedência judicial pura e simples, em caso de loucura comprovada. No entanto, mesmo os loucos eram frequentemente considerados culpados, se bem que “quanto mais louco, tanto menos culpado” (id., p. 23). Nessa altura, deveria ser enclausurado e tratado, em vez de punido.

Assim, a sentença que condena ou absolve deixa de ser um simples julgamento de culpa, passando a implicar uma apreciação de normalidade ou de prescrição técnica para uma normalização possível. O juiz já não julga sozinho. “Pequenas justiças e juízos paralelos multiplicam-se em torno do julgamento principal” (id., p. 24): médicos, psiquiatras, psicólogos, educadores, peritos vários, “juízes anexos, mas juízes de todo o modo” (ibid.). Um saber, técnicas, discursos científicos, formam-se e entrelaçam-se com a prática do poder de punir. E é neste contexto, baseando-se na história dos corpos e das penas feita até então, que MF vem introduzir alguns conceitos novos: a economia política do corpo (o corpo está directamente mergulhado num campo político, é investido como força de produção por relações de poder e de dominação e constitui-se como força de trabalho); a tecnologia política do corpo (saber e controle do corpo, que calcula e organiza tecnicamente a sua submissão por forma a torná-lo força útil e corpo produtivo); a microfísica do poder (disposições, manobras, tácticas, técnicas, estratégias de dominação).

Nada disto seria possível, no entanto, se o saber não estivesse directamente ligado ao poder. “O poder produz saber (…); não há relação de poder sem a constituição correlativa de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (Foucault, 1977, p. 30). Assim, a evolução das técnicas punitivas e a anatomia política do corpo levam ao aparecimento de novos conceitos e campos de análise: o psiquismo, a subjectividade, a personalidade, a consciência… e edificam novas técnicas e discursos científicos.

Na segunda parte da sua obra – Punição – Michel Foucault continua esta linha de pensamento e fala-nos do papel relevante assumido pelos reformadores do séc. XVIII, ao mesmo tempo que desmistifica algumas medidas por eles tomadas ou reivindicadas.

Primeiro interroga-se, e interroga-nos, sobre se o que efectivamente moveu estes reformadores foi a sua humanidade, a sua maior sensibilidade face aos suplícios, o que resultou num afrouxamento da penalidade no decorrer do séc. XVIII. E avança com explicações várias de ordem política, social e económica para nos mostrar que sim, mas não só, nem sobretudo. O que estaria essencialmente em causa, para os reformadores, seria a economia dos castigos, desajustada da nova realidade social, bem como uma justiça paralisada e ineficaz, que exigia mudanças urgentes.

Na realidade, vinham-se registando alterações quer na tipologia dos crimes quer na dos criminosos, quer ainda na sua organização e modus operandi. A uma criminalidade de massas, de vadios, a do séc. XVII, seguiu-se, no séc. XVIII, uma criminalidade de marginais, organizada e a céu aberto, já não furtiva. Uma criminalidade de ataque aos corpos deu lugar a uma de ataque aos bens. Uma criminalidade de sangue transformou-se numa criminalidade de fraude. Uma criminalidade indiferenciada deu lugar a uma criminalidade especializada.

A estas mudanças responderam medidas políticas, económicas e sociais, bem claras e determinadas. Assim, na segunda metade do séc. XVIII assistiu-se a um forte crescimento demográfico, a uma elevação geral do nível de vida com um aumento geral de riqueza, a uma modificação no jogo das pressões económicas. Surgiu uma classe social que se afirmou cada vez mais – a burguesia – que multiplicava as riquezas e as propriedades, começando a sentir, em consequência disso, uma grande necessidade de segurança. Mas, a justiça de então, excessivamente centralizada no super-poder monárquico que identificava o direito de punir com o poder pessoal do soberano, estava, nas palavras proferidas por um reformador francês em 1790, “desnaturada” (Foucault, 1977, p. 73): era onerosa, incerta e irregular, constituída por uma multiplicidade de instâncias que nunca formaram uma pirâmide única e contínua. Exceptuando as jurisdições religiosas, eram muitas as descontinuidades, as sobreposições e os conflitos entre as diferentes justiças.

Esta situação, até então suportada, não servia agora os interesses da burguesia emergente. A passagem a uma agricultura intensiva (a propriedade da terra tornou-se uma propriedade absoluta da burguesia) levou ao aumento da delinquência no campo, principalmente a partir da Revolução Francesa. A propriedade comercial e industrial, com o desenvolvimento dos portos, o aparecimento de grandes armazéns onde se acumulavam mercadorias, a organização de oficinas de grandes dimensões, levou a uma série de reacções em cadeia, cada vez mais ilegais e criminosas, e à montagem de toda uma organização de comércio paralelo ilícito, como a existência de receptadores e o fabrico de dinheiro falso.

 

A composição das forças

A burguesia, até então tolerante com muitas ilegalidades do povo, num jogo de reciprocidade contra “inimigos” comuns (o Rei e a Igreja), não podia pactuar com estas novas ilegalidades e reduziu a sua tolerância a zero, exigindo uma repressão rigorosa. Estava em causa a sua tomada de poder, a sua instalação como classe dominante, lugar que conquistou e soube manter até hoje3.

Se confrontarmos este processo com o discurso crítico dos reformadores, deparamos com uma coincidência estratégica notável. Numa sociedade capitalista em desenvolvimento, com novas formas de acumulação de capital, de relações de produção e de estatuto jurídico da propriedade, era necessário que as infracções fossem definidas e punidas com segurança, da mesma forma que era necessário controlar e codificar todas as práticas ilícitas, com o roubo à cabeça. Mas os reformadores estavam conscientes que a forma, o método, a técnica, a intensidade dos castigos, não podiam ser os mesmos do Antigo Regime. Já antes haviam alertado para o duplo perigo que representava a coexistência da violência do rei e do povo, uma contra a outra. À tirania, segundo eles, opunha-se a revolta, por isso era necessário que a justiça criminal punisse, em vez de se vingar. E que punisse com humanidade, desde logo porque à suavização dos crimes (menos crimes de sangue, mais crimes de violação de bens e propriedades) devia corresponder uma considerável diminuição do arbítrio e uma suavização das penas e das leis. Sobretudo, que fosse “uma justiça mais desembaraçada e mais inteligente, para uma vigilância penal mais atenta do corpo social (...).A má economia do poder, e não tanto a fraqueza ou a crueldade, é o que ressalta da crítica dos reformadores” (Foucault, 1977, pp. 73-74). Assim,

a reforma do direito criminal deve ser lida como uma estratégia para o remanejamento do poder de punir, de acordo com modalidades que o tornem mais regular, mais eficaz, mais constante e mais bem detalhado em seus efeitos; enfim, que aumentem os efeitos diminuindo o seu custo económico e o seu custo político (id., p. 75)

Mudam-se os princípios e definem-se novas estratégias. O criminoso assume, agora, o estatuto de cidadão, e isso vai ser determinante. Qualquer infracção sua será considerada como sendo levada a cabo contra todo o corpo social e não mais contra o soberano. A sociedade tem o direito de se defender, de o punir, mas de uma maneira menos feroz, mais suave, porque o cidadão que faz a lei não comete, ele próprio, crimes. Este aparente recurso à sensibilidade não traduz se não, na perspectiva de MF, um princípio de cálculo. Era preciso moderar e calcular os efeitos de retorno do castigo sobre a instância punitiva e sobre o poder que ela pretendia exercer. “Humanidade é apenas o nome respeitoso dado a toda essa nova economia do poder e aos seus minuciosos cálculos” (id., p. 84).

 

A punição generalizada

Para dotarem o poder de punir de uma economia e de uma eficácia que o tornassem generalizável a todo o corpo social, que pudesse codificar todos os comportamentos e reduzir o domínio das ilegalidades, os reformadores dos sécs. XVIII e XIX procuraram definir algumas regras, nas quais, sem grande dificuldade, poderemos encontrar princípios que enformam ainda hoje os nossos códigos e a nossa jurisprudência. São elas: 1 - a regra da quantidade mínima: a desvantagem decorrente do cometimento do crime deve ser superior à vantagem, por forma a que o cidadão sinta ser preferível evitar a pena do que arriscar o crime; 2 - a regra da idealidade suficiente: o que está em causa, na punição, não é tanto o corpo enquanto sujeito de sofrimento mas a representação simbólica da pena, que deve ser maximizada; 3 - a regra dos efeitos colaterais: a pena deve ter efeitos mais intensos e mais prolongados nos que não cometeram a falta, pela visibilidade da punição do criminoso; 4 - a regra da certeza perfeita: as leis que definem os crimes e prescrevem as penas devem ser perfeitamente claras e precisas, publicadas para conhecimento de todos, e fazendo parte de um corpo legislativo escrito que possa funcionar como um pacto social4; 5 - a regra da verdade comum: a partir de agora há que fazer a verificação do crime e a prova de culpa, para que se possa criar um clima de certeza irrefutável; como uma verdade matemática, a verdade do crime só pode ser admitida quando inteiramente comprovada e, até chegar esse momento de demonstração final, todo o acusado deve ser considerado inocente; 6 - a regra de especificação ideal: é necessário um código, exaustivo e explícito, que defina os crimes fixando as penas (a codificação do sistema delitos-castigos e a modulação do par criminoso-punição).

Esta individualização das penas representou um grande passo em frente em toda a história do direito penal moderno. É aí que reside a sua fundamentação. Antes, na jurisprudência antiga, julgava-se o acto em si mesmo. Agora, começa a julgar-se o próprio infractor, a sua natureza, o seu modo de vida e de pensar, o seu passado, a qualidade da sua vontade (um século ou dois depois será exactamente aqui que o saber psicológico virá substituir a jurisprudência). E surge a noção de reincidência, que tende a tornar-se uma qualificação do próprio delinquente, susceptível de alterar, no sentido do seu agravamento, a pena pronunciada.

O ponto de partida da reforma foi, então, o projecto político de classificar as ilegalidades, de generalizar a função punitiva, e de delimitar, para o controlar, o poder de punir. Definem-se duas linhas de objectivação: a do crime, como facto a estabelecer segundo normas comuns; e a do criminoso, como indivíduo a conhecer segundo critérios específicos. O criminoso passa a ser designado como inimigo de todos, é desqualificado enquanto cidadão, como se transportasse um segmento selvagem da natureza. Aparece como o celerado, o monstro, o louco, o doente e, logo, o anormal. “Será necessário esperar muito tempo para que o homo criminalis se torne um objecto definido no campo do conhecimento” (Foucault, 1977, p. 92). O pensamento dos ideólogos acerca do exercício do poder sobre os homens entendia, assim, o espírito como superfície de inscrição desse poder, e a submissão dos corpos como efeito do controle das ideias. Este pensamento, que não significou apenas uma nova teoria do indivíduo e da sociedade, desenvolveu-se rapidamente como uma tecnologia dos poderes subtis, eficazes e económicos. Assistia-se a mais um desvio do objecto de julgar e punir: agora, em vez do crime, ou do criminoso, é a criminalidade que se torna o objecto da intervenção penal. A objectivação do crime, enquanto isso, teve efeitos mais rápidos e decisivos, na medida em que estava mais directamente ligada à reorganização do poder de punir: codificação, definição dos papéis, aplicação das penas, regras de procedimento, definição do papel dos magistrados.

Michel Foucault termina esta parte da obra deixando-nos uma questão para reflexão: teremos entrado, verdadeiramente, na era dos castigos incorpóreos? E uma convicção/certeza: esta técnica das punições, este poder ideológico, “vai ficar em suspenso e será substituído por uma nova anatomia política em que o corpo, novamente, mas de uma forma inédita, será o personagem principal” (p. 93). Assistiremos uma vez mais, segundo ele, a uma nova política do corpo.

 

A sanção normalizadora

No contexto histórico de suavização das penas generaliza-se a ideia de utilizar a prisão para cumprimento de praticamente todas as penas e castigos. Os reformadores não a aceitavam porque aparecia marcada pelos abusos do poder despótico do soberano, e chegam mesmo a pedir a sua supressão: “pensamos que as cadeias devem ser arrasadas” (Foucault, 1977, p. 107). Mas, surpreendentemente, em menos de 20 anos a prisão mudou de estatuto. O Império decidiu-se pelo encarceramento como medida óptima e programou um grande edifício carceral, ajustado aos patamares da divisão administrativa, uma grande arquitectura, complexa e hierarquizada, integrada no corpo do aparelho do Estado. O patíbulo e o cadafalso do corpo do supliciado cedem lugar a uma materialidade totalmente diferente, a uma física do poder totalmente diferente, a uma maneira totalmente diferente de investir o corpo do homem. Os muros altos da prisão passam a simbolizar os novos castelos da ordem civil, em França e por toda a Europa.

Neste contexto, na época clássica foram construídos alguns dos que viriam a ser considerados os grandes modelos do encarceramento punitivo. O objecto da pena não eram já representações, mas de novo o corpo e a alma do indivíduo. Os instrumentos utilizados não eram mais os discursos, os sinais, as mensagens implícitas, como na época dos suplícios, mas formas de coerção, esquemas de limitação, exercícios repetidos. A finalidade já não era reconstruir o sujeito de direito, o cidadão preso ao pacto social, mas de novo o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras e ordens, e que interiorizaria uma autoridade exterior a si. Tratando-se de formar indivíduos submissos, o encarceramento trazia consigo um novo factor, claramente facilitador: o segredo. Porque a dimensão do espectáculo, ou da partilha da pena por terceiros, era totalmente excluída, o poder era total, como o era a autonomia de quem aplicava a punição. E este segredo, e esta autonomia no exercício do poder de punir, vinham pôr em causa toda a teoria política da penalidade proposta pelos reformadores: a sua clareza, a sua transparência, a negação do arbítrio…

Castigos secretos e não codificados pela legislação, um poder de punir que se exerce na sombra, de acordo com critérios e instrumentos que escapam ao controle – é toda a estratégia da reforma que corre o risco de ser comprometida. Depois da sentença, é constituído um poder que lembra o que era exercido no antigo sistema. O poder que se aplica às penas ameaça ser tão arbitrário, tão despótico, quanto aquele que antigamente as decidia (Foucault, 1977, p.115).

A questão era: o que se pretendia, afinal? Uma cidade punitiva, com um poder penal repartido por todo o espaço social, legível como um livro aberto? Ou uma instituição coerciva, com um funcionamento compacto do poder de punir, e um sistema de autoridade e de saber que apostava na sua gestão autónoma e isolada, na correcção individual, na sua separação do poder judicial propriamente dito?  Como se conseguiria melhorar a institucionalização do poder de punir, tal como ele era entendido no final do séc. XVIII? Para MF não estamos perante teorias do direito que derivam de escolhas morais, mas sim de modalidades do direito de punir. De tecnologias do poder.  Porque é que a prisão se impôs?

 

A disciplina e a docilidade dos corpos

Na época clássica registava-se já um grande interesse pelo corpo, enquanto objecto e alvo do poder. Exemplos disso são a publicação do livro Homem-máquina, escrito em dois registos: o anátomo-metafísico e o técnico-político. Um, abordaria a submissão e utilização do corpo; o outro o seu funcionamento, explicando-o. Tratava-se do ressurgimento, anunciado por MF, do interesse pelo corpo, na perspectiva da sua utilidade e da sua inteligibilidade. Assistia-se a mecanismos de adestramento do corpo e a esquemas de docilidade, nomeadamente nos conventos, nas escolas, nos exércitos e, de certa forma, nas oficinas, que se foram tornando mais refinados, sob a forma de disciplinas, que surgem no momento em que nasce uma arte do corpo humano e mecanismos para o tornar mais obediente e útil. “A disciplina fabrica, assim, corpos submissos e exercitados, corpos dóceis” (1977, p. 127). “A disciplina é uma anatomia política do detalhe” (1977, p. 128). Surge, desta maneira, com as técnicas minuciosas, muitas vezes íntimas, que definem um certo modo de investimento político e detalhado do corpo, uma nova microfísica do poder.

Em algumas dezenas de anos, apenas, vão impor-se e imperar a minúcia, o olhar esmiuçante, o controle das mínimas parcelas da vida e do corpo, o ínfimo, o infinito… que atravessam a pedagogia, a medicina, a táctica militar e a economia, levando à mutação do regime punitivo no limiar da época contemporânea, bem como ao nascimento do homem do humanismo moderno. A disciplina acelerou-se e mudou a sua escala, criou todo um conjunto de técnicas, um corpo de processos e de saberes, de descrições, de receitas e de dados. Só que, para que se exercesse eficazmente, a condição primeira era a da distribuição eficiente dos indivíduos no espaço: o encarceramento, numa cerca heterogénea, de vagabundos e miseráveis; os colégios com internato, segundo o modelo do convento; os quartéis, que fixavam o exército, evitando deserções e conflitos com as populações e autoridades civis; os hospitais, onde todos estes mecanismos tiveram início, por necessidade do controle e vigilância médica das doenças e perigo de contágios.

Esta distribuição disciplinar do espaço passou a revestir-se de um carácter de utilidade quando começaram a surgir as oficinas, as manufacturas e as fábricas, já na segunda metade do séc. XVIII. Era “preciso ligar a distribuição dos corpos, a arrumação espacial do aparelho de produção e as diversas formas de actividade na distribuição dos postos” (Foucault, 1977, p. 132), surgindo, assim, o princípio da economia dos espaços, da localização imediata, a que MF chamou quadriculamento: cada indivíduo no seu lugar e em cada lugar um indivíduo, dispostos em fila, em posições hierarquizadas, segundo a sua habilidade e rapidez, por forma a que, percorrendo-se o corredor central da oficina, fosse possível realizar uma vigilância ao mesmo tempo individual e geral. Ponto-chave desta organização: a repartição do espaço disciplinar da força do trabalho dá origem à divisão do processo de produção e ao nascimento da grande indústria. Na escola, o problema colocava-se da mesma maneira. Havia que organizar e disciplinar a grande heterogeneidade, pôr o espaço escolar a funcionar como uma máquina de ensinar, organizando uma nova economia do tempo de aprendizagem5. Os colégios dos jesuítas foram pioneiros, avançando para uma disposição espacial inspirada na hierarquia e na vigilância piramidal, por forma a tirar dela o maior número possível de efeitos. Organizar o múltiplo, percorrê-lo e dominá-lo, impor-lhe uma ordem é, ao mesmo tempo, como se vê, uma técnica de poder e um processo de saber.

Outro aspecto importante da disciplina e docilidade dos corpos é o do tempo e do seu uso. A imposição e a sujeição a horários não tiveram grande dificuldade em se impor, porque se integravam nos antigos esquemas, na velha herança das comunidades monásticas. Aliás, já mesmo no séc. XIX as congregações religiosas tinham dado uma preciosa ajuda quando foi necessário utilizar populações rurais na indústria e acostumá-las ao trabalho em oficinas, nas chamadas fábricas-conventos.

Também nas escolas elementares a divisão do tempo se tornou cada vez mais esmiuçante, as actividades cada vez mais subjugadas a ordens que exigem uma resposta imediata:

No começo do séc. XIX serão propostos para a escola mútua horários como o seguinte: 8h45 - entrada do monitor; 8h52 - chamada do monitor; 8h56 -entrada das crianças e oração; 9h - entrada nos bancos; 9h04 - primeira lousa; 9h08 - fim do ditado; 9h12 - segunda lousa … (p.137).

No entanto, não se tratava apenas de cumprir horários. Tinha também de se garantir a qualidade do tempo utilizado, através de um controle ininterrupto e da eliminação de tudo o que pudesse perturbar e distrair. Impunha-se construir um tempo integralmente útil, sem impureza nem defeito, um tempo de boa qualidade. A exactidão, a aplicação e a regularidade eram as virtudes fundamentais do tempo disciplinar. A elaboração temporal do acto era um aspecto muito importante da disciplina. Assim, na segunda metade do séc. XVIII, começa a ser dada uma particular atenção ao grau de precisão dos movimentos, à decomposição dos gestos, à maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais. A esta programação da elaboração do acto, imposta do exterior mas controlada do interior, viria MF a chamar esquema anátomo-cronológico do comportamento. A melhor relação entre um gesto e a atitude global do corpo era condição de eficácia e de rapidez: na escola, no desenho da caligrafia; nos quartéis, no simples acto de marchar; na fábrica, na produção produzida. “Um corpo disciplinado é a base de um gesto eficiente” (Foucault, 1977, p. 139). Por isso, através de prescrições explícitas e coercivas, o poder vai-se introduzindo e amarrando o corpo ao objecto. A disciplina corporal vem, deste modo, criar uma nova economia do tempo, e o tempo disciplinar começa a impor-se na prática pedagógica, na organização militar, nas oficinas.

Ainda na época clássica, em grande parte por razões de ordem económica, vem colocar-se uma questão nova: a da relação entre o indivíduo e o colectivo, entre a parte e o todo. Para que fosse mais rentável, mais eficiente, mais útil, mais produtivo, o todo teria de ter um efeito superior à soma das forças elementares que o compunham, o que implicava que houvesse combinação e cooperação. Nasce, assim, a força do trabalho social tal como ainda hoje é entendida no Ocidente, e com ela uma nova ideia de disciplina e de corpo. “O corpo singular torna-se um elemento que se pode colocar, mover, articular com outros (…), [constituindo-se] como peça de uma máquina multissegmentar” (Foucault, 1977, pp. 147-148), o que leva a que MF atribua à disciplina quatro características: é celular, é orgânica, é genética e é combinatória. E outras tantas funções: constrói quadros, prescreve manobras, impõe exercícios, organiza tácticas.

 

A vigilância hierárquica

O sonho de uma sociedade perfeita é atribuído, historicamente, aos filósofos e juristas das Luzes. Mas Foucault, céptico quanto à bondade das suas intenções, considera que havia sobretudo um sonho de militarizar a sociedade, tendo como referências fundamentais as engrenagens de uma máquina, as coerções permanentes, os treinos indefinidamente progressivos, a docilidade automática. Enfim, uma espécie de disciplina nacional, o que implicava a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame, como formas por excelência de adestramento dos corpos e das mentes. Começa por afirmar que, na época clássica, a par das grandes descobertas científicas, se desenvolveram técnicas de vigilância, olhares que viam sem ser vistos, verdadeiros observatórios da multiplicidade humana que almejavam um saber novo sobre o homem, através de técnicas e de processos que o submetessem e permitissem a sua utilização. E o paradigma desses observatórios seria o acampamento militar, com a sua geometria, as suas filas, as suas colunas, a distribuição espacial das tendas.

O acampamento tornava-se, assim, “o diagrama de um poder que age pelo efeito de uma visibilidade geral (...), o encaixamento espacial das vigilâncias hierarquizadas (...), o princípio do encastramento” (Foucault, 1977, p. 154). De tal forma isto se revelou eficaz que, durante muito tempo, o urbanismo, a arquitectura em geral, nomeadamente a construção das cidades operárias, dos hospitais, dos asilos, das prisões, das casas de educação, tentaram copiar o seu modelo e adoptaram o seu princípio: a transformação dos indivíduos através dos olhares. Surgem, assim, o hospital-edifício, a escola-edifício e a oficina-edifício, concebidos com uma geometria exacta e uma arquitectura inicialmente circular, que permitiam uma vigilância cada vez mais detalhada dos comportamentos individuais, e funcionavam como uma espécie de microscópios do comportamento, aparelhos disciplinares perfeitos. Mas depressa esta vigilância se revelou insuficiente. Com o desenvolvimento do processo produtivo e a necessidade de um trabalho cada vez mais especializado, as fábricas já não podiam viver com um sistema de vigilância corporativo, os operários vigiando-se uns aos outros. Houve necessidade de constituir um sistema piramidal, ao mesmo tempo peça interna do aparelho de produção e engrenagem específica do poder disciplinar, mas sempre um operador económico decisivo.

Esta organização piramidal, esta vigilância hierarquizada, contínua e funcional, que é uma invenção técnica do séc. XVIII, vem afectar, de alto a baixo, a rede de relações sociais. A disciplina faz funcionar um poder relacional que se auto-sustenta pelos seus próprios mecanismos, um poder aparentemente menos corporal mas cientificamente mais físico. Para além de uma microfísica, uma macrofísica do poder. “Na essência de todos os sistemas disciplinares funciona um pequeno mecanismo penal” (Foucault, 1977, p. 159). O importante é que cada indivíduo compreenda, interiorize e integre a função punitiva, ao ponto de se sentir simultaneamente punidor e punível.

O castigo disciplinar, assim generalizado, começa a perder o seu carácter penalizador e a assumir um carácter essencialmente correctivo, uma função de correcção de desvios. Deve-se “evitar, tanto quanto possível, usar castigos (…) e tornar as recompensas mais frequentes que as penas” (Foucault, 1977, p. 161). Mudança profunda na filosofia dos castigos: “os aparelhos disciplinares hierarquizam (…) os bons e os maus indivíduos” (p. 162), ou seja, a penalidade deixa de se reportar aos “actos, mas [passa a reportar-se] aos próprios indivíduos, à sua natureza, às suas virtualidades, ao seu nível ou valor” (ibid.). Na escola, essa penalidade hierarquizante tem como objectivos classificar os alunos segundo as suas aptidões e o seu comportamento, e exercer sobre eles uma pressão constante para que sigam todos o mesmo modelo, se sujeitem à subordinação, sejam dóceis e disciplinados. Para que todos se pareçam. Ou seja, a penalidade, que atravessa e controla todos os instantes das instituições disciplinares, compara, diferencia, hierarquiza, homogeneíza, exclui. Numa palavra, normaliza.

Nisso, a disciplina e a penalidade disciplinar opunham-se à penalidade judiciária. Esta não tinha por função julgar os indivíduos mas os seus actos, num sistema normativo de igualdade formal, onde a homogeneidade era a regra, e que por isso não reconhecia nenhuma gradação das diferenças individuais. Foi então que as disciplinas inventaram um novo funcionamento punitivo, tendo por base o poder da norma e, consequentemente, inventaram também novos mecanismos de sanção normalizadora. É disto que MF fala quando refere “o funcionamento jurídico-antropológico (…) da história da penalidade moderna” (1977, p. 164). A norma, o normal, juntamente com a vigilância, tem um poder que obriga à homogeneidade, à existência de um corpo social homogéneo, onde o exame é eleito como o exemplo, por excelência, da combinação óptima das técnicas de hierarquia vigilante e da sanção normalizadora. Trata-se de uma invenção da era clássica que os historiadores injustamente deixaram na sombra, equiparando-se a sua importância, para Foucault, às experiências realizadas com cegos de nascença, com a hipnose ou com os meninos-lobo. “A sobreposição das relações de poder e das de saber assume, no exame, todo o seu brilho visível” (1977, p. 165).

 

O exame

O exame, em Foucault, é um conceito muito mais abrangente que um mero jogo de perguntas e respostas, um sistema de notas ou classificações. O exame é válido para todas as ciências humanas, da psiquiatria à pedagogia e ao diagnóstico clínico, passando pelo simples acto de contratação de mão-de-obra. E tão importante é, que MF considera mesmo que uma das condições essenciais para a libertação epistemológica da medicina, no final do séc. XVIII, foi a organização do hospital como aparelho de examinar. As inspecções e visitas médicas de antes, irregulares, rápidas e descontínuas, transformaram-se numa observação regular, que punha o doente em situação de exame quase permanente. Quanto ao hospital em si, de local de assistência vai passar, por força do exame, a local de formação e aperfeiçoamento científico, de constituição de um saber, de afirmação da disciplina médica. O mesmo processo e o mesmo tipo de modificações atravessam a escola, tornada uma espécie de aparelho de exame ininterrupto que, para além de medir, classificar e sancionar, força uma comparação permanente de cada um com todos. Representando uma verdadeira e constante troca de conhecimentos e saberes do mestre para o aluno, a escola torna-se no local de elaboração da pedagogia, e marca o nascimento desta como ciência. No exército, por seu turno, em função de constantes inspecções e de manobras indefinidamente repetidas, desenvolveu-se um imenso saber táctico.

Para Foucault, porém, a mais relevante consequência do exame situa-se ao nível da individualidade do indivíduo. No exército, nos hospitais e nos estabelecimentos de ensino, foram criadas e desenvolvidas técnicas e inovações importantes (registos e anotações escritas) relativas à identificação, à descrição, à evolução dos corpos e das mentes, consubstanciadas numa série de códigos homogeneizantes: código físico, código médico, código escolar, código militar que, ainda que bastante rudimentares na sua forma qualitativa e na sua forma quantitativa, marcam o momento de uma primeira formalização do individual dentro das relações do poder, “o momento em que se efectua o que se poderia chamar a troca do eixo-político da individualização” (1977, p.171).

Essa escrita disciplinar de anotação, de registo, de constituição de processos, de correlação de elementos, de organização de campos comparativos, de classificação, de categorização, de estabelecimento de médias, de fixação de normas, realizada essencialmente nos hospitais e nas escolas, não só permite a “constituição do indivíduo como objecto descritivo e analisável” (1977, p. 171), como permite também “a libertação epistemológica das ciências do indivíduo” (ibid.), o nascimento das ciências do homem, cuja génese se encontra no “jogo moderno das coerções sobre os corpos, os gestos e os comportamentos” (1977, p. 170).

O exame, acompanhado de toda a sua parafernália documental, traz ainda uma outra, e talvez maior, novidade: cada indivíduo passa a ser um caso. Um caso que não é mais um acto ou um conjunto de circunstâncias, como era entendido na casuística  ou na jurisprudência, mas um indivíduo tal como pode ser descrito, mensurado, medido, comparado a outros na sua própria individualidade. É também o indivíduo que tem de ser treinado ou retreinado, classificado, normalizado, excluído. Cada um tem, então, o seu próprio status, a sua própria individualidade, e quanto mais marcado e estrito for o seu enquadramento disciplinar, mais estudado e descrito será. Não surpreende, então, que seja em direcção das crianças, dos doentes, dos loucos e dos condenados que, a partir do séc. XVIII, se viram todos os mecanismos individualizantes. Mais que para o adulto, o homem são, o normal, o não delinquente.

Todas as ciências, análises ou práticas com radical psico, têm o seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos de mecanismos histórico-rituais de formação da individualidade, a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral e a medida o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo. (Foucault, 1977, p. 172)

 

A austeridade das instituições

Como já antes vimos, o processo histórico, pelo qual a burguesia se tornou, durante o séc. XVIII, a classe politicamente dominante, refugiou-se por detrás de um quadro jurídico explícito, codificado, formalmente igualitário, e da organização de um regime de tipo parlamentar representativo. No entanto, o desenvolvimento e a generalização dos dispositivos disciplinares constituíam a outra vertente, obscura, destes processos. A forma jurídica geral que garantia um sistema de direitos, em princípio igualitários, era sustentada por mecanismos minúsculos, quotidianos e físicos, por sistemas de micro-poder essencialmente inegualitários e dessimétricos, constituídos pelas disciplinas. As disciplinas reais e corporais formavam o subsolo das liberdades formais e jurídicas. Não esqueçamos que, no final do século, a ordem e a disciplina se impunham através de um policiamento espacial estrito, de uma vigilância constante, de um esquadrinhamento que ia até ao pormenor mais ínfimo, de um olhar alerta por toda a parte, que penetrava até aos mais finos detalhes da existência de cada um, criando uma rede capilar do poder, “onde os menores movimentos eram controlados, todos os acontecimentos eram registados e um trabalho ininterrupto de escrita ligava o centro e a periferia” (Foucault, 1977, p.174). Era aquilo que MF denominou o modelo da peste, da cidade pestilenta, magistralmente descrito em Vigiar e Punir.

Mas outro dispositivo disciplinar existia na mesma época que suscitou exclusões: era o, também para MF, modelo da lepra. “O leproso era visto dentro de uma prática de rejeição, do exílio-cerca (…), uma massa que não tinha muita importância diferenciar” (1977, p. 175). Aí, tratava-se de uma força disciplinar que existia “para destacar mais do que para combinar e compor, para repartir massas mais que para recortar detalhes, para exilar mais que para esquadrinhar” (Deleuze, p. 179).

O exílio do leproso e a prisão domiciliária da peste não trazem consigo, portanto, o mesmo sonho político. O primeiro, representa o ideal de uma comunidade pura. O segundo, o de uma sociedade disciplinada, exclusiva, segregadora. Esquemas diferentes, mas nem por isso incompatíveis. Lentamente eles vão-se aproximando, e o séc. XIX acaba por aplicar ao espaço de exclusão de que o leproso era o habitante simbólico, a técnica de poder própria do quadriculamento disciplinar. O mesmo fez relativamente aos mendigos, aos vagabundos, aos loucos, aos violentos, pelo que surge, no início do século, o asilo psiquiátrico, a penitenciária, a casa de correcção, o estabelecimento de educação vigiada, os hospitais, e a divisão binária louco/não louco, perigoso/inofensivo, normal/anormal. Punir passa, então, a ser uma função formalizada, como o são tratar, educar, disciplinar, fazer trabalhar, na prisão, no hospital, na escola, na caserna, na oficina.

É exactamente a propósito da loucura, quando confrontado com a existência de instituições de segregação e trabalhos forçados que desde o séc. XVIII se vinham expandindo um pouco por toda a Europa, que MF se confronta com duas perspectivas do poder: uma, social, da relação dos indivíduos com o Estado; outra, de formas de poder individual. Na primeira, os loucos, os pobres, os desempregados e deserdados de toda a espécie, são considerados problemas sociais que o Estado chama a si, assumindo a construção de hospitais, casas de trabalho, etc. Na segunda, é criado um conjunto de técnicas de poder orientadas para os indivíduos, que se destinam a dirigi-los de forma contínua e permanente. Nesta, pretendia-se que o poder, mesmo tendo uma multiplicidade de homens a geri-lo, fosse tão eficaz como se se exercesse por um só, através de formas sofisticadas de controle social e psicológico, mais direccionadas para a mente que para o corpo, tendo em vista a moralização e a homogeneização da população em geral. Para a burguesia de então era como que a imposição, pela força, do bem, a todos que era suposto pertencerem ao mal. Assim, em Michel Foucault, através dos seus estudos sobre a instituição médica (o nascimento da clínica) e a instituição prisional, vai-se consolidando a ideia de que a supervisão e a intervenção no domínio social são a principal característica das sociedades modernas.

 

O panoptismo

Foi quando estudava as origens da medicina clínica e a arquitectura hospitalar da segunda metade do séc. XVIII, época do grande movimento de reforma das instituições médicas, que MF descobriu o Panóptico do jurista inglês Jeremy Bentham. A arquitectura começara a espacializar-se, a articular-se com os problemas da população, da saúde, do urbanismo, e os médicos tiveram nisso uma participação social considerável, desempenhando um papel de organizadores do espaço (foram, juntamente com os militares, os primeiros administradores do espaço colectivo). A higiene social nasce nesta época. Em nome da limpeza e da saúde controla-se a colocação espacial de uns e de outros. Os médicos estão entre os mais sensibilizados para os problemas do ambiente, do lugar, da temperatura, e debruçam a sua investigação essencialmente sobre as prisões e os hospitais.

Mas para Foucault, o problema dos espaços não é senão um problema histórico-político, e a fixação espacial uma forma económico-política. Importava, por isso, fazer uma história dos espaços que fosse ao mesmo tempo uma história dos poderes, que estudasse desde as grandes estratégias da geopolítica até às pequenas tácticas do habitat, da arquitectura institucional, da sala de aula, da organização hospitalar, da organização penitenciária, da oficina e da caserna, mas também das prisões. Foi o que se propôs fazer, elegendo como elemento de estudo e principal instrumento de análise o Panóptico6.

Foucault apresenta o Panoptismo (visão de conjunto, possibilidade de tudo ver à sua volta, se possível com um só olhar) não meramente como uma imagem de um novo sistema prisional mas como o paradigma do esquema geral de funcionamento do poder no mundo moderno. No projecto arquitectónico do Panóptico identifica os elementos constituintes fundamentais desse poder: a centralização, a moralização, a eficácia e, de todos o mais relevante, a individualização. Em suma, a estrutura unilateral e monolítica do poder dos nossos dias: centralizado, anónimo, disseminado e altamente eficaz.

Quando um único observador, como sucede no Panóptico, posicionado numa torre central, vigia a totalidade dos indivíduos, isolados e separados entre si, estes, porque não têm acesso ao acto de vigilância a que estão sujeitos, interiorizam o sentimento de permanente observação e são levados a transformar-se nos agentes mais zelosos da sua própria vigilância, bem como nos da vigilância dos outros. Em cada camarada, um vigia, podia bem ser o lema. O mero dispositivo geométrico e arquitectónico faz cada indivíduo interiorizar os constrangimentos que lhe chegam do exterior, sob a forma de um controle meticuloso, tanto do seu corpo como da sua mente. Era um poder omnipresente, omnividente e ubíquo. Daí Foucault considerar a invenção do Panóptico como um acontecimento na história do espírito humano, e um tipo de ovo de Colombo na ordem da política. Aquilo que médicos, penalistas, industriais e educadores procuravam, Bentham ofereceu-lhes: um poder contínuo e de custo irrisório, por não necessitar de armas, violências físicas ou coações materiais. Apenas de um olhar.

As técnicas do poder no interior do Panóptico eram realmente surpreendentes. Embora se tratasse essencialmente do olhar, também a palavra era importante (os famosos tubos de aço que ligavam o inspector principal a cada cela onde se encontravam pequenos grupos de prisioneiros) para os dissuadir de fazerem o mal e perderem a vontade de o querer fazer. Ou seja, não poder e não querer fazê-lo. A impressão que se tinha era a de se estar num mundo infernal do qual ninguém podia escapar, tanto os que olhavam como os que eram olhados. O espaço estava organizado de tal forma que podia ser utilizado e visitado por qualquer um, em qualquer momento, para além de quem estava na torre central. Era uma máquina que não se circunscrevia a alguém isoladamente mas a toda a gente, tanto àqueles que exerciam o poder como àqueles sobre os quais era exercido (afinal, a máquina de vigilância perfeita, a utopia-programa, era também um aparelho de desconfiança total). De custo político igualmente irrisório, criava a ilusão de um poder que se exercia pela transparência e pela iluminação, o que levou a que a Revolução só encontrasse no Panóptico objectivos humanitários. E, uma vez mais, a burguesia fez não só uma revolução política, como também soube instaurar uma hegemonia social que nunca mais perdeu.

Pelo descrito, concluímos que uma das ideias principais de Vigiar e Punir é, precisamente, a de que as sociedades modernas podem ser definidas como sociedades disciplinares, mas que a disciplina não pode ser identificada com uma instituição ou com um aparelho. É, antes, um tipo de poder, uma tecnologia que atravessa toda a espécie de aparelhos e de instituições para os ligar uns aos outros, os prolongar, os fazer convergir, os obrigar a exercerem-se de um modo novo. Isto, ainda que se trate de peças ou de engrenagens que pertençam ao Estado de uma forma tão evidente como a polícia e a prisão.

A formação da sociedade disciplinar está ligada a um certo número de amplos processos históricos, no interior dos quais ela tem lugar: económicos, jurídico-políticos, científicos (p. 191). As disciplinas atravessam, então, o limiar tecnológico (...). O hospital, primeiro, depois a escola, mais tarde ainda a oficina (…) foram aparelhos e instrumentos de sujeição. Foi a partir desse laço, próprio dos sistemas tecnológicos, que se puderam formar no elemento disciplinar a medicina clínica, a psiquiatria, a psicologia da criança, a psicopedagogia, a racionalização do trabalho (…). (Foucaul, 1977, p. 196).

Para Michel Foucault as sociedades modernas são, então, sociedades essencialmente disciplinares, constituídas por disciplinas corporais e por um formidável crescimento do poder e da coerção. Mostra-se céptico relativamente à modernidade, da mesma maneira que o faz em relação às ciências sociais e humanas. Se se pensava, no séc. XIX, que as ciências do homem contribuiriam para a libertação do ser humano na sua plenitude, bem depressa, em sua opinião, a experiência mostrou que, ao desenvolverem-se, conduziam bem mais depressa ao desaparecimento do homem que à sua apoteose. Tornaram-se, segundo ele, funcionalistas, e simultaneamente produto e instrumento da acção do biopoder, já que são elas que intervêm sobre os corpos por processos de individualização sempre mais sofisticados, acutilantes e penetrantes, da mesma forma que são elas que disponibilizam as imensas técnicas de pesquisa e de registo de dados sobre os indivíduos, os seus corpos, as suas vidas, as suas paixões. São um efeito não visível da nova forma subtil do poder que, imperceptivelmente, opera ao nível dos hábitos inculcados e das normas de vida quotidiana, tanto dos grupos sociais como dos indivíduos isolados. São os dispositivos eleitos por um poder que mobiliza e põe em prática novos instrumentos científicos de cálculo, estatística, medida, generalização, abstracção, destinados ao conhecimento dos corpos humanos, e que permitem que o controle e a dominação se tornem cada dia mais eficazes (já tínhamos encontrado esta ideia antes, embora formulada de outra maneira, aquando da descrição da cidade pestilenta). É o domínio da biopolítica, a ideia da sociedade disciplinar enquanto panoptismo generalizado. Então, o processo civilizacional culmina nas organizações votadas à dominação, que têm o poder de controlar e de regular inteiramente a vida social. A estabilidade das sociedades altamente desenvolvidas não é senão o resultado de operações reguladoras, conduzidas por organizações de uma grande perfeição administrativa, que se manifestam por meio do exercício da disciplina e do controle, por meio da manipulação e da domesticação, no espaço de vida de cada indivíduo, para fazer dele um colaborador social dócil.

Assim, e devido à sua concepção de dominação, talvez possamos dizer que, para Foucault, as sociedades modernas são também, um pouco, sociedades totalitárias. Da mesma maneira, o indivíduo moderno não passa de uma ficção realizada. Assiste-se a uma desconstrução do sujeito: o sujeito, enquanto produto histórico de um processo civilizacional que remonta ao início da história do género humano, é condicionável, de uma forma quase behaviorista, o que parece pôr em causa também, a ideia de subjectividade humana.

 

A prisão

Numa escrita de avanços e recuos temáticos ou conjunturais, de permanentes retornos, MF retoma o tema das prisões. Para ele, a prisão é menos recente do que se pensa, e não decorre do nascimento dos códigos penais. Pré-existe-lhe. Já antes funcionavam modelos de detenção penal nos quais, sem se usar a denominação e a forma – prisão, os indivíduos eram repartidos e fixados espacialmente, por forma a melhor poderem ser observados, controlados e treinados. Então, que novidade representou o surgimento da prisão? Supostamente, a do sentido de humanidade, de justiça social. A burguesia, classe dominante na passagem dos dois séculos, pretendeu dar uma imagem de civilização e humanidade, criando “uma justiça que se diz igual, um aparelho judiciário que se diz autónomo” (Foucault, 1977, p.207). A prisão como pena das sociedades civilizadas.

Desde os primeiros anos do séc. XIX a prisão tornou-se, então, uma coisa tão óbvia que se impôs sem alternativas e fez esquecer todas as outras punições imaginadas pelos reformadores do séc. XVIII. Este carácter óbvio da prisão, Foucault situa-o a vários níveis: era óbvio que se tratava de um castigo igualitário, que correspondia a uma clareza jurídica; era óbvio que a privação da liberdade tinha uma função de reparação económico-moral, já que permitia quantificar exactamente a pena segundo a variável do tempo; era óbvia a sua aceitação enquanto aparelho transformador dos indivíduos, já que os mecanismos que impunha ao corpo social pré-existiam-lhe no quartel, na escola, na oficina; era óbvia, finalmente, porque aparecia como a forma mais imediata e mais civilizada de todas as penas. Mas em pouco mais de um século este clima tornou óbvios, também, todos os inconvenientes da prisão, que se poderia tornar perigosa se fosse inútil. Para o evitar, havia que tomar medidas, nomeadamente no que respeitava ao isolamento e à ocupação dos detidos, bem como ao seu objectivo último: reformar o mau. Uma vez operada essa reforma, o criminoso devia voltar à sociedade. Não podiam ser as instâncias judiciárias, as mesmas que julgaram e condenaram, a decidir pela modulação das penas. Assim, o sistema penitenciário, constituído pelo director da prisão e seus vigias, bem como eventualmente por fiscais, sacerdotes, professores, começou a ganhar uma certa autonomia relativamente ao tribunal de aplicação das penas, reivindicando para si uma parte da soberania punitiva. Naturalmente que, em pleno séc. XIX, esta mudança não aconteceu de forma pacífica. Mesmo no séc. XX, podemos dizer que ela não ficou completamente resolvida: na perspectiva de Foucault, os juízes nunca aceitaram de bom grado a apropriação do controle desse suplemento penitenciário que lhes retirava poderes sobre o detido e o sistema. E se o sistema penitenciário ganhou esta contenda, foi porque conseguiu introduzir na justiça criminal relações de saber, um saber clínico sobre os condenados, o tratamento das doenças morais. Porque se exigia à prisão que regenerasse o detido – recebia das mãos da justiça um condenado e devia devolver à sociedade um cidadão útil – surge um novo personagem no lugar do infractor: o delinquente, que se tornou num indivíduo a conhecer.

“o delinquente distingue-se do infractor pelo facto de não ser tanto o seu acto quanto a sua vida o que mais o caracteriza. A operação penitenciária, para ser uma verdadeira reeducação, deve totalizar a existência do delinquente (…). O castigo legal refere-se a um acto; a técnica punitiva a uma vida... (Foucault, 1977, p. .223).

A este novo personagem segue-se novo conceito: o da biografia do infractor, o do seu conhecimento biográfico, passo extremamente importante na história da penalidade. Já não interessam só as circunstâncias mas as causas do crime, e estas devem ser procuradas na história da sua vida, na sua educação, na sua posição social. O criminoso existe antes do crime e até fora deste. Começam a estabelecer-se causalidades psicológicas, os discursos penal e psiquiátrico começam a confundir-se e, na perspectiva de MF, entra-se num labirinto criminológico do qual ainda hoje não conseguimos sair. Surge um novo saber científico – a criminologia – que tem por objectivo o indivíduo enquanto delinquente e o delinquente enquanto indivíduo. A delinquência passa a ser considerada uma síndrome mórbida, um desvio patológico da espécie humana, e é elaborada uma tipologia sintomática dos delinquentes: os que são dotados de inteligência e recursos intelectuais superiores à média, que se tornaram perversos por predisposição inata ou questões morais e sociais que lhes são exógenas; os viciosos, limitados, embrutecidos ou passivos, que se deixaram arrastar por más incitações; os inaptos ou incapazes, levados ao crime pelos seus instintos pessoais e incapacidades próprias.

Esta tipologia vem pôr em causa não só a categorização etnográfica em vigor na primeira metade do séc. XIX, pela qual os condenados são outro povo no mesmo povo, que tem hábitos, instintos e costumes à parte, como o posterior diagnóstico criminológico, psicológico ou médico da loucura, que apagava, ou visava apagar, o carácter delituoso do acto praticado. Em suma, a justiça penal ocupa-se do infractor, enquanto o aparelho penitenciário se ocupa de outra pessoa – o delinquente – considerado como unidade biográfica, núcleo de perigosidade, representante de um tipo de anomalia. A técnica penitenciária e o delinquente são, então, indissociáveis, e impuseram-se aos tribunais e às leis. Agora, é a delinquência que tem de ser conhecida, avaliada, medida, diagnosticada, tratada, quando se proferem sentenças, e é essa anomalia, esse desvio, esse perigo inexorável, essa doença, essa forma de existência, que deverão ser considerados na reelaboração dos códigos. No dizer de Foucault, a delinquência é a vingança da prisão contra a justiça.

Mas não se fica por aqui sem antes, de uma forma consequente e coerente, denunciar a prisão como “o grande fracasso da justiça penal” (1977, p. 234), elencando uma série de críticas que lhe foram feitas logo na altura da sua implantação, e que se repetem hoje: as prisões não diminuem a taxa de criminalidade, funcionando mesmo como quartéis do crime; a detenção provoca a reincidência e, como tal, fabrica delinquentes; vigora uma administração arbitrária, a corrupção, o medo e a incapacidade dos guardas; assiste-se à exploração do trabalho penal, sem carácter educativo. A prisão é, assim, um duplo erro económico: directamente, pelo custo intrínseco da sua organização; indirectamente, pelo custo da delinquência que ela não reprime. Palavra por palavra, de um século a outro, repetem-se as mesmas proposições fundamentais.

 

A sanção normalizadora e a emergência das ciências humanas

Na parte final de Vigiar e Punir, Michel Foucault retoma, quase em jeito de síntese, os temas da disciplina, do adestramento, da docilidade dos corpos, bem como a sua relação com os cinco modelos de referência: família, exército, oficina, escola, poder judiciário. Cita o exemplo de Mettray, colónia penal para jovens, como o paradigma da técnica disciplinar. Para ele, é aqui que nasce uma nova categoria de vigilantes, a que chama “técnicos do comportamento, engenheiros da conduta, ortopedistas da individualidade” (1977, p. 258), e que não são juízes, professores, contramestres, oficiais ou pais, mas um pouco disso tudo. Agora, o adestramento dos corpos já não é apenas observação, é também avaliação contínua do comportamento, um conhecimento de técnicas organizado num saber apoiado na medicina, na educação, na direcção religiosa, e aprendido em escolas especializadas. A arte das relações do poder e a técnica disciplinar tornam-se “uma disciplina que também tem a sua escola” (id., p. 259). Daí, Foucault considerar que a abertura oficial de Mettray, em 1840, é a data que melhor marca o completamento da formação do sistema carcerário e, mais importante do que isso, marca o nascimento da psicologia científica.

A partir desta data assiste-se, efectivamente, a um novo tipo de controle que é ao mesmo tempo conhecimento e poder: o controle da normalidade sobre os indivíduos que resistem à homogeneização e à normalização disciplinar, e que é exercido pelos profissionais da disciplina, da normalidade e da sujeição, fortemente enquadrados pela medicina ou pela psiquiatria, o que lhes garante cientificidade, e apoiados num aparelho judiciário, o que lhes dá caução legal. Essa técnica de controle das normas foi estendendo os seus suportes institucionais e específicos aos hospitais, às escolas, às repartições públicas, às empresas privadas. Tratava-se, em suma, de normalizar o poder da normalização, de difundir as técnicas penitenciárias às disciplinas mais inocentes, de montar uma rede carcerária subtil, com instituições e com procedimentos parcelares e difusos, de reunir todos os dispositivos disciplinares disseminados pela sociedade e, por último, de os transmitir a todo o corpo social. Esta nova economia do poder arrasta, segundo MF, um “desejo furioso, da parte dos juízes de medir, avaliar, diagnosticar, reconhecer o normal e o anormal” (1977, p. 259). Como se tivessem vergonha de condenar, reivindicam a cura ou a readaptação.

Esta multiplicação do poder normalizador fez surgir, então, juízes da normalidade por toda a parte. Vivemos na sociedade do professor-juiz, do médico-juiz, do educador-juiz, do assistente social-juiz, fazendo todos reinar a universalidade do normativo e do poder normalizador na sociedade moderna. Isto, considera Foucault, é o funcionamento panóptico da sociedade actual. O aparelho de punição, outra vez, mas agora de acordo com a nova economia do poder. Também o melhor instrumento para a formação do saber de que essa mesma economia tem necessidade. O exame, que veio objectivar o comportamento humano, levou, então, a que se passasse da

era da justiça inquisitória à da justiça examinatória [ao mesmo tempo que deu] lugar às ciências do homem (...). Não quer dizer que da prisão saíram as ciências humanas. Mas se elas puderam formar-se (…) é porque foram levadas por uma modalidade específica e nova de poder: uma certa política do corpo, uma certa maneira de tornar dócil e útil a acumulação dos homens (…) o que incluía novos procedimentos de individualização (...). A rede carcerária constitui uma das armaduras desse poder-saber que tornou historicamente possível as ciências humanas (Foucault, 1977, pp. 266-267).

Foucault termina interrogando-se, e interrogando-nos, sobre se o desafio político actual estará na alternativa-prisão ou em algo de diferente. E adianta a sua convicção: a prisão, tal como funciona, num regime panóptico e numa sociedade como a nossa, não só deve ser modificada como é, definitivamente, dispensável.

 

Em jeito de resumo

Michel Foucault centra no corpo do homem (homem-indivíduo, homem-ser histórico e homem-actor social) todas as formas de domínio e de manifestação do poder, bem como a essência das relações sociais. É através da sua subjugação – física, psicológica e moral – através da disciplina de que é alvo – disciplina espacial, temporal, corporal no sentido estrito do termo – que o corpo enforma a mente, disciplinando e uniformizando os comportamentos e os pensamentos, o que torna mais fácil o domínio por parte de quem detém o poder.

Alma sã em corpo são, objectivo já perseguido na Antiguidade Clássica pelos gregos continua a ser, através dos séculos e dos diferentes modelos políticos, aquilo que se efectivamente se pretende: chegar à alma, ou à mente do homem, através da disciplina/subjugação do seu corpo, disciplinando-a e subjugando-a também: controlar a mente através do controle do corpo.

Dependendo das épocas e dos regimes em vigor, bem como das tradições, dos usos e dos costumes dos povos, assim essa tentativa de subjugação usou tácticas, estratégias e técnicas mais ou menos violentas (os suplícios), mais ou menos “viris” (o encarceramento), mais ou menos refinadas (a separação, o isolamento). Com todas se pretendia castigar ou, numa perspectiva mais humanizada, tratar o diferente até que se rendesse e acabasse por se tornar igual. A uniformização, a homogeneização, foram e são utopias de qualquer poder, político, económico, corporativo, social....

As leis, os códigos, as regras, consubstanciam o poder judicial e ditam as penas. Podem ser mais ou menos violentas ou mais ou menos eficazes. Não serão nunca, porém, alheias às pretensões e aos interesses do poder dominante, e serão sempre enformadas por valores ético-filosóficos. Se assim não acontecer, o seu pontualismo ditará o seu anacronismo, acabando por ditar a sua falência e a mudança de regime, como vimos acontecer na Europa num passado recente.

É neste contexto, de tentativa de domínio da individuação do indivíduo que, para Foucault, surgem as ciências sociais e humanas: a psicologia, com as suas medições e categorizações; a sociologia, com as suas classificações; a antropologia, com a divulgação oportuna dos estudos que interessam ao poder; a filosofia, com a imposição das ideias e teorias mais convenientes; a psiquiatria, com as suas separações e isolamentos; a política, através da definição do interesse e do bem comuns… são para ele exemplos do refinamento a que chegaram os mecanismos do poder na tentativa de dominar os homens. Ao contrário da ideia corrente e da que se pretende fazer passar, a emergência destas disciplinas, na sua perspectiva, não representa uma maior humanização e preocupação com o homem, no sentido da sua libertação individual e colectiva, mas o apurar de estratégias de dominação. Por isso, entende que aquilo que parecia e podia ser libertador – a modernidade e as ciências humanas – não passa de um prolongamento mais “civilizado”, porventura mais eficaz, dos espectáculos supliciantes do Antigo Regime e dos encarceramentos do passado.

 

 

Notas

1 Rússia – 1769; Prússia – 1780; Pensilvânia e Toscana – 1786; Áustria – 1788; França – 1791, 1808 e 1810. (p.13).

2 Proposta de Guillotin, a 1 de Dezembro de 1789: “A experiência e a razão demonstram que o modo em uso no passado para decepar a cabeça de um criminoso leva a um suplício mais horrendo que a simples privação da vida, que é a intenção formal da lei. Para que a execução seja feita num só instante e de uma só vez (...) é preciso necessariamente, para a certeza do processo, que ele dependa de meios mecânicos invariáveis, cuja força e efeito possam ser igualmente determinados. A decapitação será feita num instante, de acordo com a nova lei. Tal aparelho, embora necessário, não causaria nenhuma sensação e mal seria percebido” (p. 18).

3 Na verdade, a passagem de uma criminalidade de sangue para uma criminalidade de fraude, faz parte de todo um mecanismo complexo onde figuram o desenvolvimento da produção, o aumento das riquezas, uma maior valorização jurídica e moral das relações de propriedade, métodos de vigilância mais rigorosos, um policiamento mais estreito da população, técnicas mais ajustadas de descoberta, de captura, de informação: o deslocamento das práticas ilegais é correlativo de uma extensão e de um afinamento das práticas punitivas” (Foucault, 1977, p.72).

4 “Que o magistrado pronuncie em voz alta a sua opinião, que seja obrigado a reproduzir, no seu julgamento, o texto da lei que condena o culpado (...) que os processos que se ocultam misteriosamente na escuridão dos cartórios sejam abertos a todos os cidadãos que se interessam pelo destino dos condenados” (p. 88).

5 Haverá em todas as salas de aula lugares determinados para todos os escolares de todas as classes, de maneira que todos os da mesma classe sejam colocados num mesmo lugar e sempre fixo. Os escolares das lições mais adiantadas serão colocados nos bancos mais próximos da parede e em seguida os outros segundo a ordem das lições avançando para o meio da sala... Cada um dos alunos terá seu lugar marcado e nenhum o deixará nem trocará sem a ordem e o consentimento do inspector das escolas. Será preciso fazer com que aqueles cujos pais são negligentes e têm piolhos fiquem separados dos que são limpos e não os têm; que um escolar leviano e distraído seja colocado entre dois bem comportados e ajuizados, que o libertino ou fique sozinho ou entre dois piedosos.” (p. 135).

6 O Panóptico consistia numa construção em anel, dividida em celas, na periferia, cada uma ocupando toda a largura da construção. Ao centro, uma torre envidraçada, com grandes janelas que se abriam para a parte interior do anel. As celas tinham duas janelas: uma, abrindo para o interior, correspondia às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permitia que a luz atravessasse a cela de um lado ao outro. Bastava colocar um vigia na torre central para que, devido ao efeito de contra-luz, os detidos (loucos, doentes, condenados...) fossem vistos sem verem. Em Lisboa encontramos ainda em funcionamento dois exemplos deste modelo arquitectónico: a Penitenciária, famosa estrela de seis pontas, e o hospital psiquiátrico Miguel Bombarda.

 

 

* Investigadora da UI&D Observatório de Políticas de Educação e Contextos Educativos. Doutoranda em Educação na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.