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Revista Lusófona de Educação

versión impresa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.11 Lisboa  2008

 

Immanuel Kant (1990-1764)

Observations sur le sentiment du beau et du sublime.

Traductions inédites, notes et présentation de Monique David-Ménard.

Paris: Flammarion, 180pp.

 

 

Kant, filósofo, nascido em Könisberg, revela-se neste breve ensaio de 1764, talvez mais literário do que filosófico, um observador delicado e espiritual, assim como, um analista profundo e subtil. O humor e o engenho que revela nas observações sobre as particularidades da natureza humana são usados nestas páginas de forma magistral.

As imagens subjacentes ao texto, são de tal forma reais, que nos possibilitam uma compreensão e um prazer visual, tangentes a uma quarta dimensão 1.

A obra divide-se em quatro secções: a) Os diferentes objectos b) as qualidades do homem em geral c) a diferença na relação dos sexos d) os vários caracteres nacionais - nas suas relações com os sentimentos do sublime e do belo.

Aponta o belo e o sublime como duas espécies de um mesmo sentimento sensível. 2

Se não possuirmos esses sentimentos estar-nos-á vedada a sublimidade que envolve as sombras nocturnas provocadas pela lua, as altas montanhas ou os grandes precipícios, as violentas tempestades ou os lugares sombrios e solitários num bosque sagrado, espectáculos que causam admiração ou estremecimento, tanto pela sua grandiosidade, como pela sua simplicidade.

O belo e o sublime surgem, nesta obra, de um modo sugestivo, ilustrados através de exemplos, sem que, no entanto, surja uma definição rigorosa quer de um, quer de outro.

A nossa apreciação será feita através da noite e do dia, da comoção e do encantamento, do grande e do pequeno, do simples e do enfeitado, da tristeza e da alegria, da tragédia e da comédia, do homem e da mulher.

Poderemos experimentar as modalidades de sublimidade através do, “sublime terrível” com os heróis de Homero, do “sublime nobre” com os heróis de Virgílio, do “sublime magnífico” com Aquiles na Ilíada ou com a Igreja de S. Pedro em Roma e do “sublime respeitável” através de um Palácio da Antiguidade.

As acções humanas, quanto ao sentimento do belo e do sublime, são devidamente separadas, ocorrendo uma interacção entre ambas, desde que tudo se apoie em princípios prévios. Os vícios e as fraquezas humanas devem ser combatidos. Propõe condutas humanas através de descrições, tentando captar o todo da natureza humana.

Nas fraquezas humanas, Kant classifica como disparates as Metamorfoses de Ovídeo, assim como os contos de fadas franceses, os ossos santos ou as santas madeiras, os votos, as flagelações e outras virtudes da vida monástica, em oposição à imortalidade da alma, à ideia matemática da magnitude do Universo ou às meditações da metafísica sobre a eternidade.

Kant prossegue a sua descrição da alma humana, traçando o caminho que leva ao sublime e degenera no monstruoso, extravagante ou fantástico ou a degeneração do belo, que produz o frívolo, através das debilidades humanas.

Nas qualidades morais, só a verdadeira virtude (sentimento da beleza e dignidade da natureza humana) é sublime e respeitável. A virtude não apoiada em princípios (da benevolência, da dignidade e da estima universal) é uma virtude adoptiva, logo é só bela e atractiva.

Através do carácter, índole e sentimentos, Kant distingue o indivíduo melancólico do sanguíneo, do colérico e do fleumático. O primeiro, aproxima-se da verdadeira virtude; o segundo, do belo e das virtudes adoptivas; o terceiro, acha sublime tudo o que é magnífico e tudo nele é artificial e fictício. Finalmente o quarto carece de tais sentimentos.

Do melancólico refere que tem um sentimento do sublime perfeito, que odeia todas as correntes: “Toutes les chaînes, des chaînes dorées qu´on porte à la cour aux lourds fers des galériens, lui sont odieuses” (p.106) e demonstra uma devoção ao fanatismo, uma ânsia pela liberdade, não tendo medo de enfrentar qualquer perigo, numa antevisão profética de um romântico ou de um revolucionário dos tempos vindouros. “L´amour de la liberté à l´enthousiasme. Il défie le danger et méprise la mort.” (p.107)

Quase em oposição, apresenta-nos o fleumático, que representa um ser de espírito demasiado voltado para coisas pequenas, não tendo por hábito o sentir perante as coisas belas e nobres. “Puisque dans le mé-“Puisque dans le mélange du caractère flegmatique, il n´entre en général aucun élément de sublime ni de beau, en tout cas en proportion remarquable, ce tempérament n´appartient pas au champ de nos considérations.» (p.112)

Kant elabora toda uma reflexão partindo dos sentimentos do belo e do sublime para explicar as diferenças de géneros, propondo que as características exclusivamente femininas se reúnam na categoria do belo e que as do masculino se unifiquem no sublime que, de tais caracterizações, surjam expectativas de comportamentos apropriados a cada um na vida social

Na comparação entre o homem e a mulher é curioso notar as diferenças entre inteligência e espírito, atrevimento e astúcia, rectidão e honradez, veracidade e afabilidade, atracção erótica e amizade. Os homens são sinceros, constantes, melancólicos e verdadeiros e as mulheres, alegres, amáveis, graciosas e sedutoras.

Kant diz-nos que uma mulher bela e inteligente pode despertar admiração e respeito, mas não desejo e amor pois a inteligência arruína os atractivos femininos dando como exemplos mulheres do seu tempo: Anne Dacier e Gabrielle Emilie, Marquesa de Chatelet.

Para Kant, as principais diferenças entre os sexos são estéticas e relativas à virtude.

A sublimidade do homem inspira respeito e a beleza da mulher o amor. Quando, em última análise, desperta o instinto sexual, o pudor funciona como o contrapeso a este instinto.

Só quando envelhece, deve a mulher procurar alcançar a sublimidade.

No matrimónio, há o encontro do sublime e do belo ou, por outras palavras, o homem deverá personificar o entendimento e a mulher a sensibilidade.

Car, ce n´est pas seulement parce qu´on peut présumer que l´un a plus d´intelligence fondée sur l´expérience, et l´autre plus de liberté et de justesse dans ses sensations, mais aussi parce qu´un caractère, en s´approchant plus du sublime, devient plus enclin à consacrer l´essentiel de ses efforts dans la satisfaction appétée à l´objet chéri. (p.149)

E, de seguida, vemos como este processo explicativo se estende às diferentes sociedades do seu tempo de forma que sejam compreensíveis as diferentes formas de ser de povos, como o inglês, o alemão, o holandês, o francês, entre outros.

Kant estabelece uma classificação dos caracteres dos povos a partir dos conceitos do belo e do sublime. Assim, destaca pelo belo os arrebatadores italianos e os alegres franceses e pelo sublime os magníficos alemães, os terríveis espanhóis e os nobres ingleses. Dos holandeses, diz serem fleumáticos, ou seja, pouco valor dão a estes dois sentimentos.

No amor, o alemão e o inglês são bons e verdadeiros, o italiano é refinado, o espanhol fantástico e o francês curioso.

A Itália é associada às Belas Artes. A poesia na França é bela e em Inglaterra é sublime. A Alemanha prima pela beleza e sublimidade, enquanto a Espanha e a Holanda são extravagantes.

Fora da Europa, considera os negros de África como insignificantes e chama a atenção para a sublimidade que é alcançada pelos povos selvagens da América do Norte, assim como a sinceridade e correcção dos do Canadá, local onde as mulheres gozam de muita consideração, ultrapassando, inclusive, o nosso mundo civilizado, ou ainda, os Orientais que as maltratam.

Na Antiguidade Grega e Romana, o sentimento do belo e do sublime estavam presentes na poesia, na escultura, na arquitectura, na legislação e nos costumes.

Para este filósofo alemão, a última parcela de bom gosto extingue-se com a queda do Império Romano.

Considera o Gótico, introduzido pelos bárbaros, como um estilo depravado tanto nas artes como nas ciências e costumes.

Termina este ensaio desviando-se para a política, fazendo breves referências sobre religião e deixando uma mensagem de esperança, no renascer do belo e do nobre no espírito humano, apresentando como proposta, que a educação dos jovens, futuros cidadãos do mundo, os conduza a uma maior delicadeza de espírito, através do estímulo de novos sentimentos morais.

 

Mais surtout il faut souhaiter que le secret non encore découvert de l´éducation soit arraché à l´ancienne folie, afin qu´il élève de bonne heure le sens moral dans le cœur de tout jeune citoyen du monde et le forme à une sensibilité active.» (p. 174)

 

Na actualidade, a ideia de beleza está enraizada num aspecto da teoria de Kant que se mantém válido: A beleza é uma propriedade contextual, profundamente conotada com crenças e atitudes morais do sujeito. Desde a Antiguidade até ao Barroco, critérios como a proporção, a ordem e a simetria determinavam uma objectividade do Belo que cederia lugar à subjectividade do Iluminismo na Europa do século XVIII.

É essa mensagem nos deixa F. Schiller, herdeiro do pensamento kantiano, nas suas Cartas sobre a Educação Estética do Homem, onde enobrece o carácter humano, só alcançado através da educação para a liberdade.

Relembremos que foi na arte da tragédia de Sófocles, poeta grego, “ …que pela primeira vez se manifesta a consciência desperta da educação humana.” (Jaeger, 1995)

Creio que, para Kant, apesar de os sentimentos não serem determinantes da moral no indivíduo, numa sociedade ou mesmo na Humanidade, encontram-se representados pelo sublime, que suscita em nós a contemplação do ser humano como fim em si mesmo e não como um meio para alcançar um fim. 4

Se bem que nestas observações, e jamais a obra de qualquer filósofo deve ser vista fora de um contexto, algumas terão deixado de ser verdadeiras e outras se apresentem como pequenas e mesquinhas, no entanto, na sua grande maioria, revelam um olhar penetrante e inteligente da natureza humana.

Kant fala da mulher com delicadeza e respeito, fazendo especial referência às suas qualidades próprias e ao género de educação particular que lhe convém. Para ele, é o aspecto sensível e não o intelectual, que determina o critério pelo qual se deve guiar a educação feminina, ajudando a aumentar o atractivo e as vantagens da sociedade, para com elas.

Foi com os gregos, que pela primeira vez ”a mulher aparece como representante do humano, ao lado do homem, com idêntica dignidade.” (Jaeger, 1995)

No século XVIII, apesar de ser uma época de revolução intelectual, as ciências médicas corroboravam a percepção da Igreja Católica de que a mulher era um “mal sobre a terra.3 No entanto, é a partir de meados desse século que a mulher acede à educação e à escrita mas “ muitos eram os problemas que se colocavam às mulheres que começavam a fazer ouvir a sua voz, tantas vezes estrangulada, nas harpas longas do silêncio” (Barroso, 2005)

A parte mais notável é, sem dúvida, aquela em que Kant trata do belo e do sublime, nas suas relações com os dois sexos.

Kant refere:

… elles ont le sentiment de ce qui est noble, en le rencontrant chez les hommes. L´homme, au contraire, …s´il se tourne vers le beau, c´est dans la mesure où il trouve la beauté chez la femme. (p.144,145)

 

Esta distribuição dos papéis entre feminino e masculino, assunto muito controverso no Século da Luzes, foi retratada também, de forma magistral, por Schiller, no seu poema, A Dignidade das Mulheres. Nele, em oposição à imagem do homem, conduzido pelas suas ambições intelectuais e o seu espírito bélico, surge a mulher, promovendo a harmonia dos costumes, a comunhão com o divino e a felicidade do amor.

Mas, como diz Borges, serão, actualmente, atributos “eróticos” a inteligência e o poder no homem e a beleza e juventude na mulher?

A antropóloga americana Helen Fisher apresenta uma razão neurológica, para a atracção entre os sexos, através dos centros de prazer, visuais e acústicos, sediada no cérebro. No homem, o amor por estar ligado ao erótico, começa pelo visual e na mulher começa pela conversa interessante e inteligente. E refere: “sempre considerei que o amor romântico é uma das mais originais, excitantes e dolorosas experiências do ser humano. Procurei saber por que se vive, canta e mata por amor e se morre para vivê-lo. Conclui que tinha que ser algo bem imbricado no cérebro humano” 4

Não poderia deixar de fazer referência a um poeta alemão do séc. XVIII, Friedrich Rückert,por revelar num poema, a dicotomia ideal, tão idêntica às comparações apresentadas por Kant, ao longo deste ensaio.

 

A casa do coração

O coração tem dois quartos: Moram ali, sem se ver, Num a Dor, noutro o Prazer.

Quando o Prazer no seu quarto Acorda cheio de ardor, No seu, adormece a Dor...

Cuidado, Prazer! Cautela, Canta e ri mais devagar... Não vá a Dor acordar.

Friedrich Rückert  (Tradução de Antero de Quental) 5

 

Este ensaio envolve, com destreza, o leitor através de uma serie de observações certeiras, de críticas agudas, mas sem o aparato de uma exposição didáctica, abordando temas interessantes escritos num estilo fácil e com uma simplicidade encantadora.

E, numa época em que a educação tem por objectivo a eficácia focada directamente na economia de mercado, lembremo-nos que o ser humano, antes de cidadão ou trabalhador, é pessoa e terá que superar esta herança do materialismo do século XIX, com uma filosofia que não menospreze as Artes e as Humanidades. Assim, redescobrir Kant, é importante, pois através dele, poderemos fazer cumprir uma formação estética, sem a qual toda a educação permanecerá redutora.

Termino dizendo que todos os juízos, gostos e sensibilidades estéticas analisados nesta obra, me conduziram através de uma experiencia estética em tensão, consequência destes dois modos de ver:

O encanto do belo e

O tumulto do sublime.

 

Adriana Tenreiro

atenreiro03@gmail.com

 

 

Notas

1A quarta dimensão poderia ser identificada com o tempo (ou dimensão temporal) Exemplo - cubismo quadridimensional, o “Nu Descendo uma Escadaria, N.2 “ de Marcel Duchamp. Há uma figura um tanto robótica mostrada em várias fases de descida, como se nós víssemos múltiplas exposições. Neste quadro, Duchamp (que era o maior defensor da quarta dimensão no mundo da arte) considera a quarta dimensão como tempo.

2 A sensibilidade será o poder que o nosso espírito tem em receber impressões do mundo externo e do mundo interior. A sensibilidade é constituída por um espaço e um tempo prévios, que determinam o modo como percepcionamos a realidade.

3 Apenas as coisas, tendo um valor relativo, devem ser vistas como meio; o ser humano, tendo um valor absoluto, deve ser um fim em si mesmo.

4 “Siempre he considerado que el amor romántico es una de la más curiosa, excitante y dolorosa experiencia del ser humano. Quise saber por qué la gente vive, canta y mata por amor, y muere para vivirlo. Tenía que ser algo profundamente imbricado en el cerebro humano.”Fisher, H. (2005)

5 Brito, Ferreira de (1992). Projecções europeias de Antero de Quental / Ferreira de Brito. In: Revista Colóquio/Letras. Ensaio, 123/124, 223-233.