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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.13 Lisboa  2009

 

Editorial

Some people say that our economic problems are structural, with no quick cure available; but I believe that the only important structural obstacles to world prosperity are the obsolete doctrines that clutter the minds of men.

- Paul Krugman (2009: 191)

1. A globalização neoliberal, hegemónica desde os anos 1980, assentou na velha ideia de que os governos, todos os governos, deviam deixar livre o caminho às grandes e eficientes empresas nos seus esforços para competir no mercado mundial. Essa velha ideia, ciclicamente na moda, conduziu, segundo Wallerstein (2008), a três ordens de implicações políticas: a primeira, é que (todos) os governos deviam permitir que as corporações tivessem toda a liberdade para atravessar fronteiras com os seus bens e os seus capitais; a segunda, é que (todos) os governos deviam renunciar a qualquer propriedade de meios de produção, privatizando as empresas públicas e criando mercados em sectores onde não existissem (saúde, educação, água); a terceira, (todos) os governos deviam minimizar, se não mesmo eliminar, toda a espécie de bem-estar social assente na redistribuição de rendimentos, desmantelando o Estado Providência.

Nesses anos de 1980, essas velhas ideias da globalização neoliberal foram apresentadas como contraponto às também velhas ideias Keynesianas e socialistas, que prevaleciam em muitos países em diferentes espaços do sistema mundial: que as economias deviam ser mistas, podendo o Estado manter sob o seu controlo empresas e actividades consideradas estratégicas; que os governos deviam proteger os seus cidadãos da depredação das grandes corporações estrangeiras, funcionando em regime de monopólio ou quase-monopólio; que os governos deviam tentar equalizar as oportunidades de uma vida digna, transferindo benefícios para os menos favorecidos (especialmente em educação, saúde e segurança social na velhice), o que requeria uma política de impostos fortemente regressiva, penalizando os maiores rendimentos e os lucros das corporações empresariais (Wallerstein, 2008).

A ofensiva neoliberal verificou-se após as crises económicas dos anos 1970, com problemas graves na balança de pagamentos de muitos países, especialmente do Sul e dos chamados países socialistas, e a diminuição acentuada dos lucros das grandes empresas no Norte. O consenso de Washington, construído sob a direcção e impulso dos governos de Reagan e Thatcher e a activa participação das duas principais agências financeiras intergovernamentais – Fundo Monetário Internacional e Banco Mundial, representa o conjunto de receitas recomendadas (ou impostas) para todos os países, independentemente do seu estádio de desenvolvimento ou localização no sistema mundial. A crise financeira de 2008, antecedida de múltiplos sinais que apontavam já para a necessidade de um pós-consenso de Washington, veio desocultar os resultados desastrosos para as condições de vida dos mais desfavorecidos (países, regiões, classes e grupos sociais marginalizados) desse ciclo hegemonizado pelo neoliberalismo e a sua forma dominante de globalização.

O neoliberalismo não se delimita à actividade económica. Atinge todos os sectores da vida humana e assumiu-se como uma tecnologia de governo. Na educação significou uma mudança radical de prioridades na agenda política: o ideal social-democrata da igualdade de oportunidades, que esteve na base da fortíssima expansão educativa do pós-segunda guerra, foi substituído por um vago conceito de qualidade, ponto de partida da trilogia reformadora das últimas duas décadas – competitividade, accountability e performatividade.

As políticas de educação, sobretudo depois dos anos 1990, foram incluídas como uma questão central da agenda da globalização neoliberal: a consideração do conhecimento como uma commodity transacionável relegou para segundo plano os factores potenciais de emancipação e de mobilidade social inerentes ao acto educativo e ao projecto de uma educação para todos. Muito provavelmente, à agenda global hegemónica no campo da educação imposta a partir desse conceito de qualidade se deva contrapor uma outra assente na palavra-chave da coesão social, o que implicará uma preocupação dominante com a equidade, a inclusão educativa e a celebração de boas práticas.

Tal como nos anos 1970, estamos a viver momentos de bifurcação, onde a intervenção cidadã, nos seus diferentes espaços, da ciência à intervenção política, se apresenta como particularmente determinante. Mas, também aqui, no espaço da educação, a fortuna é de quem a agarrar.

2. Como conclui o Nobel da Economia, Paul Krugman, o que precisamos, nos tempos actuais, é de ultrapassar doutrinas obsoletas que pretenderam reduzir a educação a uma única dimensão, a económica, ou seja, de um espaço difusor de um conhecimento entendido como commodity transacionável, retirando a esse conhecimento a sua mais importante dimensão: a emancipação humana. Daí a importância da crítica e da alternativa, em todos os planos, da ciência à intervenção política cidadã. O presente número da Revista Lusófona de Educação insere-se neste propósito, no seu campo específico, o das ciências da educação.

O primeiro artigo, Nem tudo o que conta em educação é mensurável ou comparável. Crítica à accountability baseada em testes estandardizados e rankings escolares, de Almerindo J. Afonso, constitui uma densa e vigorosa análise crítica de um dos dogmas do pensamento neoliberal (e neoconservador) contemporâneo: de que os testes estandartizados constituem o principal instrumento de accountability (prestação de contas) em educação. O autor conclui por um apelo à comunidade académica e científica para que se envolva na construção de modelos alternativos democráticos de prestação de contas, que possam responder à complexidade do acto educativo.

No segundo artigo, O outro lado da implementação do LMD em França: um novo quadro para pensar as políticas de educação e de formação, Jean-Louis Derouet procede a uma análise crítica da “implementação suave” da estrutura License- Master-Doctorat (LMD) no ensino superior em França. O autor defende que, à boleia do processo de Bolonha, em cuja origem aliás esteve o Ministro francês da Educação, Claude Allègre, o que se verifica é uma mudança do modo de formação das elites, fruto da substituição de um quadro de referência nacional por um internacional. “Não se trata tanto da reprodução da cultura clássica como de uma integração precoce em redes internacionais”, conclui em síntese Derouet.

Vasco Graça, no terceiro artigo, Sobre o financiamento da Educação: condicionantes globais e realidades nacionais, desconstrói e desmistifica a retórica dos discursos políticos dos grandes investimentos no sector da educação, bem como os supostos fracos resultados dos alunos portugueses apresentados pelo PISA. Efectivamente, desde meados do Século XIX até ao final do Século XX, período decisivo na construção dos sistemas educativos europeus, Portugal é um dos países europeus com o mais baixo índice de investimento na educação. Através de um estudo rigoroso, fundamentado em estatísticas nacionais e internacionais das despesas com a educação, contraria a tese, persistentemente defendida, dos elevados investimentos de Portugal nesse sector. Relativamente aos resultados dos alunos portugueses no PISA, e tendo em consideração que Portugal é um dos países onde a desigualdade é mais acentuada, apenas ultrapassada pela Turquia e pelo México, o autor afirma que «os dados do PISA parecem indicar que, dentro dos condicionalismos sócio-culturais existentes em Portugal, a escola portuguesa realiza uma acção meritória designadamente na sua capacidade de valorizar a aprendizagem dos alunos, sobretudo quando estes têm um estatuto sócio-económico e cultural mais desfavorável.» No quadro de uma política neo-liberal e tendo em conta as exigências internacionais no domínio das políticas educativas e o sub-investimento histórico de Portugal na educação, o autor defende que não é possível corresponder às orientações e metas globalmente traçadas para o país pela UE e OCDE sem proceder a um aumento de investimento na educação.

No quarto artigo, As explicações em estudo de caso: alguns dados da cidade de Aquarela, de autoria de Jorge Adelino Costa, António Neto Mendes e Alexandre Ventura, discute-se e problematiza-se, a partir de um estudo empírico, a globalização do fenómeno das explicações. Os autores defendem que este fenómeno se repercute nas políticas educativas e tem inúmeras implicações nos resultados escolares dos alunos. As investigações efectuadas revelam que são os alunos que pertencem aos grupos sociais mais favorecidos que usufruem desta mais-valia na sua aprendizagem. Estamos, assim, perante “novos herdeiros” que, para além da detenção do capital cultural que lhes permite adaptarem-se mais facilmente às exigências escolares do que os alunos provenientes de grupos sociais desfavorecidos, usufruem de mais aprendizagens, de outro capital cultural que funciona como vantagem competitiva na concorrência com os seus colegas menos favorecidos.

O quinto artigo, Educação e transformação social hoje: Alguns desafios político-pedagógicos, de Danilo R. Streck, tem como quadro de fundo a crise das utopias e a reconfiguração dos tempos e dos lugares de aprendizagem; discute as possibilidades e limites de uma pedagogia transformadora. Partindo do princípio de que o conceito de transformação social sofreu deslocamentos semânticos, o autor problematiza o papel tradicional da escola numa época de conflito e transição paradigmática a partir de múltiplas referências teóricas do âmbito das pedagogias emancipatórias. Um dos desafios que se coloca à Educação em tempos de mudança, afirma o autor, é ouvir as vozes do dissenso que se manifestam como resistência, como insurgência ou, simplesmente, como estratégias de sobrevivência. A Educação é um lugar de encontro onde o sonho é ainda possível.

Os saberes e poderes da Reforma de 1905, de José Brás e Maria Neves Gonçalves, constitui o sexto artigo. A Reforma do ensino liceal de 1905 correspondia aos anseios e expectativas da opinião especializada. Dada a necessidade de alteração do regime de instrução secundária que vigorava desde 1895, não só ao nível curricular como das metodologias, bem como da abolição do livro único, os autores centram a sua análise nas múltiplas manifestações de apoio ao Projecto de Decreto-Lei, nos novos mecanismos de regulação introduzidos pela proposta de lei, nas novas relações entre as famílias e os liceus através da introdução do caderno escolar, no desenvolvimento do ensino das línguas modernas, sobretudo da inglesa, e das ciências naturais e na introdução da Educação Física nos currículos. Os autores defendem a tese de que a Reforma de 1905 surge como um novo saber e poder. Para além dos argumentos apoiados em inúmeras manifestações de apoio vindas dos mais diversos quadrantes, o argumento mais forte a favor da reforma reside no estado de decadência a que tinham chegado a sociedade e o próprio ensino, vozes silenciosas que reclamaram a necessidade de se introduzirem alterações na formação das futuras elites.

No sétimo artigo, Avaliação e fracasso escolar: questões para debate sobre a democratização da escola, Maria Teresa Esteban discute as relações entre a consolidação de um sistema nacional de avaliação, baseado em exames estandardizados, e uma escola pública brasileira marcada por tensões e conflitos. Os resultados dos exames nacionais e internacionais revelam o fracasso da escola pública brasileira, resultados que expressam, simultaneamente, a incapacidade social de produzir uma escola favorável a uma parcela substancial da população que a frequenta. A autora defende, em nome de uma verdadeira democratização do sistema de ensino, uma profunda reflexão sobre o que é a educação, as suas bases e finalidades e sobre o que historicamente tem sido negado e deverá ser incorporado nas dinâmicas pedagógicas. Neste sentido, urge repensar a avaliação da aprendizagem tendo em consideração as múltiplas acções quotidianas, procurando captar, não os lugares fixos, mas os diferentes sentidos, conhecimentos, processos e culturas que se entrelaçam nos encontros e desencontros que a escola promove.

O oitavo artigo, Da exclusão à inclusão: concepções e práticas. Breve perspectiva histórica, de Maria Odete Emygdio Silva, é uma reflexão sobre a necessidade de formação de professores como factor fundamental para uma verdadeira educação inclusiva. Depois de apresentar uma perspectiva histórica sobre as diversas formas de exclusão e de segregação, a autora centra a sua reflexão no percurso que vai da integração à inclusão, sustentado num conjunto de decisões e medidas tomadas no seio de organizações e agências internacionais, como as Nações Unidas e a UNESCO. O movimento a favor da inclusão foi fortemente impulsionado pela Declaração de Salamanca, de 1994, que defende a inclusão de todas as crianças com necessidades educativas especiais na escola regular, devendo esta ajustar-se a todas as crianças, independentemente das suas diferenças. Fundamentando-se em diversos estudos empíricos, a autora conclui que uma verdadeira educação inclusiva supõe e implica uma formação contínua dos professores, dado que os professores sem formação adequada se sentem profundamente inconfortáveis e inseguros em lidar com as diferenças.

No nono artigo, Serão realmente especiais as necessidades educativas dos alunos e alunas? A intencionalidade do discurso, Jesús Molina Saorín discute o conceito de necessidade educativa especial aplicado, apenas, a uma parte dos alunos que frequentam o ensino regular. Defende, afinal, que todos os alunos, porque são diferentes, têm necessidades educativas especiais e que o conceito, aplicado apenas a alguns alunos, aqueles que são portadores de algum tipo de deficiência, é um conceito excluente.

A direcção da Revista Lusófona de Educação decidiu cumprir o acordo ortográfico a partir do próximo número. Neste sentido, Maria Manuel Calvet Ricardo apresenta na secção Documentos uma perspectiva histórica sobre as alterações que se foram produzindo no léxico português e das novidades do actual acordo ortográfico.

Na Secção Recensões, Manuel Tavares faz uma recensão crítica de Epistemologias do Sul, última obra organizada por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes. Ao longo da modernidade assistiu-se a uma espécie de epistemicídio, ou seja, à destruição de algumas formas de saber locais, à inferiorização de outros, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presente na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por elas protagonizadas. Trata-se, pois, de propor, a partir da diversidade do mundo, um pluralismo epistemológico que reconheça a existência de múltiplas visões que contribuam para o alargamento dos horizontes da mundaneidade, de experiências e práticas sociais e políticas alternativas.

Na continuidade do compromisso de apresentar aos leitores da Revista Lusófona de Educação diversas propostas de percursos de investigação on line, Vasco Graça, em Sítios Digitais, descobre profícuos caminhos para o aprofundamento da pesquisa científica na área da Educação.

Em Notícias dá-se conta de alguma da actividade científica desenvolvida no âmbito da UID-Observatório de Políticas de Educação e dos Contextos Educativos.

Por último, na secção Dissertações, para além dos resumos das dissertações defendidas nos mestrados de Educação e Educação Especial – domínio cognitivo e motor -, apresenta-se o resumo da primeira tese de doutoramento defendida na Universidade Lusófona.

 

António Teodoro & Manuel Tavares

Lisboa, Maio de 2009

 

Referências

Krugman, P. (2009). The Return of Depression on Economic and the Crisis of 2008. New York: Norton.

Wallerstein, I. (2008). 2008: The Demise of Neoliberal Globalization. Commentary No. 226, Feb.1, 2008. Disponível em http://www.binghamton.edu/fbc/226en.htm, em 17.11.2008.