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Revista Lusófona de Educação

Print version ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.16 Lisboa  2010

 

Análise de um projeto pedagógico em uma perspectiva semiótica e dialógica

 

Alba Cristhiane Santana* & Maria Cláudia Santos Lopes de Oliveira*,

*Universidade Federal de Góias, Brasil,

albapsico@hotmail.com,

mesloliveira@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo objetiva discutir as potencialidades de um roteiro de análise de documentos em uma perspectiva semiótica e dialógica. Trata-se de uma metodologia em construção, que compõe um estudo maior que tem como objetivo geral compreender as possibilidades que um Programa Alternativo de Licenciatura gera para o desenvolvimento pessoal e profissional de professores em exercício na educação básica. Neste artigo apresentaremos uma discussão sobre o procedimento de análise documental, com a intenção de investigar os significados presentes em um documento e identificar as várias vozes sociais que o atravessam. Em nossa perspectiva, o documento é percebido como um potente mediador semiótico que participa ativamente da construção de significados que vão nortear práticas sociais e processos de desenvolvimento humano. Discutimos o procedimento de análise documental tomando por base uma perspectiva semiótica, apoiada na psicologia histórico-cultural, e uma perspectiva dialógica da linguagem. Em seguida, apresentamos o roteiro de análise de documentos que desenvolvemos e finalizamos a discussão apresentando um exemplo de análise documental semiótica e dialógica, com base no Projeto Pedagógico que é objeto de nosso estudo maior. Os procedimentos adotados propiciaram uma maior compreensão do fenômeno em estudo e contribuíram para aprofundar a discussão acerca da metodologia de análise de documentos como estratégia para a compreensão dos processos de desenvolvimento humano.

Palavras-chave: Análise de documentos; perspectiva semiótica e dialógica; projecto pedagógico; formação de professores.

 

Analisys of a pedagogical project in a semiotic and dialogical aproach

ABSTRACT

This paper intends to discuss the potentialities of a document analysis guide in a semiotic and dialogical approach. This methodology is being built and it is part of a broader study which the general target is to understand how an Alternative Graduation Program generates possibilities of personal and professional growth for those teachers who work in the basic educational program. In this paper we present a discussion about the proceeding of a documental analysis which intends to investigate the present meanings in a document and to identify the several social voices that go through it. In this approach the document is seen as a powerful semiotic mediator which actively participates in the building up of meanings that are going to direct the social practices and the human development processes. The proceeding of the document analysis is discussed taking a semiotic approach as base granted by the historic-cultural psychology and by the dialogical approach of the speech. Next we present the document analysis guide we built up and we end the discussion presenting an example of a semiotic and dialogical documental analysis based on the Pedagogical Project which is the object of our broader study. The proceedings adopted granted us a deeper understanding of the phenomenon in focus and contributed to deepen the discussion about the methodology of the document analysis as a strategy to the understanding of the human development processes.

Keywords: Documents analysis; Semiotic and dialogica.

 

 

Este artigo pretende apresentar uma possibilidade metodológica para a análise de documentos, o qual segue uma perspectiva semiótica e dialógica, inspirada nos estudos de Bakthin (2006), Bakhtin e Voloshinov (1929/2006), Bruner (1997) e Vygotsky (2000a, 2000b). Trata-se de uma metodologia em construção, que teve como ponto de partida uma investigação que busca compreender as várias vozes e posicionamentos que atravessam o Projeto Pedagógico de um Programa Alternativo de Licenciatura, visto como um contexto privilegiado de desenvolvimento humano adulto.

A perspectiva que adotamos entende que o ser humano se constitui como parte de contextos sociais e históricos situados, caracterizados por sistemas semióticos particulares. Estes, por sua vez, são construídos em meio a processos de intensa produção e negociação de significados, nas relações dialógicas entre os sujeitos, contextos e mediadores culturais. Alguns desses significados são extremamente dinâmicos e cambiantes. Outros podem se tornar mais estáveis, na linha do tempo, e são registrados como parte de artefatos culturais que vão, no futuro, atuar como canalizadores das novas significações produzidas. Entendemos que os documentos cumprem esse papel. Em nossa perspectiva, o documento é percebido como um potente mediador semiótico que participa ativamente da construção de significados que vão nortear práticas sociais e processos de desenvolvimento humano.

O Programa Alternativo de Licenciatura investigado envolve vários cursos, entre os quais Letras, História, Matemática, Educação Física, Ciências Biológicas e Pedagogia, e atende a professores em exercício na Educação Básica. Nosso estudo principal focaliza o curso de Pedagogia e considera um conjunto de dimensões que contribuem para configurar o sentido de formação adotado no referido programa, a saber: o projeto pedagógico do curso; interações cotidianas formais e informais; concepções da coordenação, dos docentes[2] e dos professores-em-formação[3] sobre o processo formativo e o desenvolvimento humano; e práticas pedagógicas dos professores-em-formação em seus contextos de atuação profissional.

O objetivo deste artigo é discutir as potencialidades do roteiro de análise de documentos em desenvolvimento na referida pesquisa, ao apresentarmos nosso percurso metodológico, desde o momento de seleção dos documentos até as análises propriamente ditas. Nossa perspectiva é que os procedimentos adotados propiciaram uma maior compreensão do fenômeno em estudo e contribuíram para aprofundar a discussão acerca da metodologia de análise de documentos como estratégia para a compreensão dos processos de desenvolvimento humano.

Apresentamos, inicialmente, considerações sobre o procedimento de análise de documentos tal como utilizado de modo corrente na pesquisa social, a fim de contrapor essa orientação à fundamentação teórica que sustenta nossa proposta; em seguida, expomos o roteiro de análise de documentos que desenvolvemos; finalizamos a discussão apresentando um exemplo de análise documental semiótica e dialógica, com base no Projeto Pedagógico que é objeto de nosso estudo maior.

 

O procedimento de análise de documentos

A análise documental é um procedimento de pesquisa que propicia a identificação dos conteúdos temáticos de um documento, uma vez que favorece o seu desmembramento em unidades de análise que contribuem para a compreensão dos significados que permeiam sua produção e interpretação. Diferentes áreas do conhecimento trabalham com a análise de documentos, promovendo a organização de um arcabouço teórico-metodológico variado, o qual contribui com conhecimentos acerca dessa prática investigativa e imprime um caráter interdisciplinar aos estudos.

Calado e Ferreira (2004) discutem que a análise de documentos constitui um procedimento que pode compor o método de pesquisa em duas situações: ao participar de um conjunto de estratégias, que visam ampliar as possibilidades de construção de informações acerca do objeto em estudo; e ao caracterizar o método principal, quando o estudo focaliza-se na análise de fontes documentais. Corsetti (2006) complementa essa discussão, afirmando que pesquisas de cunho etnográfico costumam fazer uma triangulação da análise documental com a entrevista e a observação, e as de caráter historiográfico utilizam com frequência tal procedimento como método central das pesquisas. Ludke e André (1986) assinalam que esta é ´´uma técnica importante na pesquisa qualitativa, seja complementando informações obtidas por outras técnicas, seja desvelando aspectos novos de um tema ou problema`` (p.38).

Em todas as situações, a análise documental configura-se como um procedimento que fornece informações sobre o fenômeno de forma contextualizada, por meio de registros que apresentam histórias, normas, regras e descrições de práticas sociais, conforme salienta May (2004). Tais registros se tornam fontes relevantes para uma compreensão dos fenômenos em foco, de modo situado histórica e geograficamente. Segundo Borrione e Chaves (2004), o documento escrito é uma representação social de contextos sócio-políticos e históricos, que abrange acordos, tensões e perturbações sociais, podendo, assim, contribuir para a compreensão de questões e saberes, considerados pertinentes a determinados contextos sociais e históricos.

Nesse sentido, Spink (2003) afirma que trabalhar com documentos requer o reconhecimento das regras segundo as quais os textos foram gerados, considerando que ´´muitos elementos e vozes se entrelaçam de formas diferentes`` nessa produção (p.131). Esse autor concebe os documentos em uma perspectiva dialética, na qual representam aspectos da ação social e, simultaneamente, são a própria ação social. Swain (1999) contribui com essa concepção ao argumentar que a materialização do discurso em textos promove ação ao atualizar, criar e fazer circularem sentidos dentro de um contexto específico de significações. Dessa maneira, os documentos não apenas refletem a realidade, mas a constroem, quando são interpretados e aplicados pelos sujeitos.

Hodder (2002) destaca que os documentos são importantes recursos em uma pesquisa qualitativa, em estudos que visam explorar as múltiplas e conflitantes vozes que constituem os contextos ideológicos. De acordo com o autor, um texto escrito tem um importante papel de legitimação do poder de determinados grupos sociais, e seu estudo pode propiciar a compreensão sobre os princípios e normas que orientam as relações de troca, evidenciando os significados políticos envolvidos em sua produção.

Um dado texto escrito pode assumir significados diferentes em contextos diferentes. Nesse sentido, conforme Hodder (2002), sua interpretação deve considerar seus cenários históricos e sociais e suas condições de produção e de análise. Esse autor ainda afirma que os textos têm papel ativo nos contextos, e instalam um contínuo estado de tensão, no interior do qual, textos e contextos são construídos e reconstruídos mutuamente, por meio de ações que interpretam e produzem significados através do tempo histórico. Assim, os documentos são percebidos como construções sócio-históricas que orientam e sustentam crenças, concepções e práticas sociais.

Pimentel (2001) e Corsetti (2006) assinalam que os procedimentos utilizados na análise de documentos dependem das questões propostas pelo estudo, que devem contribuir para a problematização das informações contidas no material escrito. Desse modo, o pesquisador, fundamentado na literatura pertinente ao assunto, deve propor e checar questões e reformulá-las, caso necessário, em uma ação contínua de produção de conhecimento. Spink (2003) considera que existe uma variedade de maneiras de produzir sentido acerca de um documento, orientadas pelos objetivos da pesquisa, pelos conhecimentos e crenças do pesquisador, pelas características tanto do documento quanto de seu contexto de produção, bem como pela interlocução com outras áreas de conhecimento.

Nosso estudo compreende a metodologia como um processo cíclico, segundo Branco e Rocha (1998) e Valsiner (2007), que envolve elementos que se constituem mutuamente, abrangendo: o fenômeno a ser estudado; as crenças e concepções sustentadas pelos pesquisadores; a relação entre o método e os dados que alimentam a construção da informação e, permeando todo o processo, a experiência intuitiva do pesquisador. Nessa direção, apresentaremos algumas considerações sobre os pressupostos epistemológicos que sustentaram a construção de nosso roteiro de análise de documentos.

 

Uma perspectiva semiótica e dialógica para análise de documentos

A proposta de análise de documentos que passamos a apresentar tem por base dois eixos teórico-epistemológicos, apoiados em uma perspectiva semiótica, de base histórico-cultural (Bruner, 1997; Valsiner, 2007; Vygotsky, 2000a, 2000b) e em uma perspectiva dialógica, que se origina das reflexões do círculo de Bakhtin (Bakhtin, 2006; Bakthin & Voloshinov, 1929/2006). Nosso ponto de partida situa os documentos como ´´um agregado de relações sociais`` (Vygotsky, 2000a, p.35) cristalizadas e que resultam em um texto em que falam distintas vozes e posicionamentos. Tais características expressam as tensões em meio às quais este texto se produziu e as ideologias que orientam sua inserção como mediador de práticas em contextos socioculturais específicos.

O primeiro eixo, histórico-cultural, percebe o desenvolvimento humano como um processo de mudanças, que ocorre ao longo de toda a trajetória de vida das pessoas (Valsiner, 2007). Segundo Vygotsky (2000b), tal processo é mediado pela linguagem, concebida como uma importante ferramenta semiótica no desenvolvimento dos sujeitos e dos contextos, ao propiciar a constituição dos sistemas se mióticos que compõem a cultura e orientam os processos de significação. Bruner (1997) discute que a constituição dos sistemas semióticos e dos sujeitos é um processo que se configura em situações interativas, nas quais ocorrem produção e negociação de significados. Para esse autor, os significados se referem às interpretações que os sujeitos em interação fazem constantemente, e por meio das quais produzem sua compreensão acerca do mundo e de si próprios.

Valsiner (2007) destaca que a relação entre o sujeito e os sistemas semióticos ocorre por meio de um movimento bidirecional, em que todos os participantes atuam ativamente na negociação de significados. Os significados construídos contra o quadro referencial da cultura diferenciam-se dela e servem de matéria para a transformação cultural, em constante looping. Esta dinâmica de negociação ocorre em relações dialógicas que promovem mudanças nos sujeitos e nos sistemas semióticos que compõem os contextos.

O segundo eixo, uma perspectiva dialógica da linguagem, considera o conceito de dialogismo como fundamental para o entendimento dos processos comunicativos. Nessa perspectiva, o dialogismo diz respeito ao princípio constitutivo da linguagem, e é concebido como um processo essencialmente comunicacional e relacional, desenvolvido por relações de diálogo estabelecidas entre as pessoas e entre estas e os contextos. Bakhtin (2006) discute que as relações dialógicas são relações de sentido entre diferentes enunciados. Enquanto ato de produção do discurso oral e do discurso escrito, o enunciado é a unidade real de comunicação e representa ´´um conjunto de sentidos`` (p.329).

Para Bakhtin (2006), as relações dialógicas comportam sempre mais de uma significação. Ele se utiliza do conceito de polifonia para explicar os contextos que são constituídos pelas relações dialógicas, ressaltando a coexistência de múltiplas vozes em diálogo, oriundas de diferentes formas autorais do próprio sujeito que enuncia, as quais configuram diferentes posicionamentos em relação a si mesmo e ao outro. E ainda de vozes originadas do outro, as quais condensam variados contextos espaciais e temporais. Lopes de Oliveira (2003) define que a voz é uma atividade onde ´´... uma consciência falante se atualiza em enunciado, contra o pano de fundo de outras mentes e do ambiente social, carregando as marcas relativas dos diferentes grupos sociais, mais ou menos hierarquicamente estruturados, em que ela se insere`` (p. 46).

Os dois eixos teórico-epistemológicos se aproximam, sobretudo, pela centralidade da linguagem em seus sistemas teóricos, que é vista como uma ferramenta que organiza e planeja a ação humana. Para Bakthin e Voloshinov (1929/2006, p.51), ´´a palavra se revela como o material semiótico privilegiado do psiquismo``, e para Vygotsky (2000b, p.190) ´´as palavras desempenham um papel central não só no desenvolvimento do pensamento, mas também na evolução histórica da consciência como um todo``. Esses autores discutem que a linguagem desenvolvida no curso das relações dialógicas engendra a consciência humana e os contextos sócio-históricos.

O aspecto da linguagem, e especificamente, do dialogismo a ser considerado de modo mais pregnante na análise de documentos é a noção de diálogo. Um documento é a interação entre muitos textos da cultura, ressaltando-se que um texto ´´realiza confrontos dialógicos entre enunciados, opiniões e pontos de vista`` (Bakthin, 2006, p. 331). Então, os documentos são vistos como sistemas semióticos, constituídos por diferentes vozes sociais que se entrecruzam e podem ser reconhecidas no interior do texto.

Segundo Bakhtin e Voloshinov (1929/2006), ´´toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal`` (p. 98); e, como um elo, faz parte de uma cadeia que compõe o processo comunicativo, abrangendo informações anteriores que participaram de sua construção e expectativas geradas pelo texto. Sendo assim, todo texto abrange uma resposta a algo que já foi dito, e uma antecipação a algo que pode ser dito, isto é, encontra-se dialogicamente articulado a outros textos.

Bakthin (2006) postula que as relações dialógicas podem materializar-se em texto de duas formas: entre dois ou mais textos, de modo que um se relaciona dialogicamente com outro já existente; e, dentro de um mesmo texto, situação em que duas ou mais vozes dialogam no seu interior (p. 309). Fiorin (2008) assinala que os estudiosos de Bakhtin nomearam esses fenômenos de intertextualidade, quando se trata de dois textos; e intratextualidade, quando se refere a um mesmo texto. Ele explica que as vozes podem ser demarcadas por fronteiras linguísticas precisas, de forma explícita, por meio do recurso ao discurso direto e indireto, citações, alusão, etc.; e, de forma implícita, situação em que não existe uma demarcação nítida entre as vozes, que só podem ser reconhecidas no contexto da obra por meio de um trabalho analítico ou interpretativo.

Acreditamos que a análise de documentos norteada por uma perspectiva semiótica e dialógica tem como objetivo investigar os significados que permeiam o texto, propiciando uma compreensão acerca das diferentes vozes nele presentes. Tal compreensão deve ainda considerar as forças políticas e ideológicas que apoiaram sua produção. Para tanto, é necessário entender as regras e as concepções que orientaram o contexto de produção do documento, incluindo demandas sociais, crenças e valores sociais arraigados, aspectos econômicos e até normativos, oriundas da legislação relativa ao tema em estudo. Não podemos perder de vista o fato de que um documento carrega normas e concepções que canalizam os processos de produção e negociação de significados. De acordo com Vygotsky (2000b), ´´o pensamento não é simplesmente expresso em palavras; é por meio delas que ele passa a existir`` (p.157), destarte, um documento participa ativamente na construção do pensamento e do desenvolvimento humano, assim como das práticas sociais.

Denzin e Lincoln (2006) assinalam que a complexidade envolvida em uma perspectiva qualitativa e construtivo-interpretativa de pesquisa demanda o desenvolvimento de um método que responda às questões propostas pelos objetivos do estudo e pela fundamentação teórica e seja sensível às características do contexto, dos participantes e do pesquisador. Branco e Rocha (1998) sublinham que o desafio posto ao pesquisador é de usar sua criatividade e experiência intuitiva na elaboração de uma metodologia que seja flexível e adaptável a cada etapa do processo investigativo, visando responder adequadamente às questões propostas pelos objetivos do estudo. Sendo nosso objetivo alcançar uma compreensão semiótica e dialógica de documentos, apresentamos na próxima seção os passos e procedimentos para a análise de documentos nessa perspectiva.

 

Um roteiro para uma análise semiótica e dialógica de documentos

Fundamentados nas discussões teórico-metodológicas apresentadas anteriormente, elaboramos um roteiro para análise semiótica e dialógica de documentos. Em nosso processo investigativo, o objeto da análise foi o Projeto Pedagógico de um curso de Licenciatura, no entanto almejamos ter desenvolvido uma metodologia com potencial de propiciar resultados férteis quando aplicada a documentos de qualquer natureza.

Nossa proposta é trabalhar com unidades de significação que são concebidas, a partir dos estudos de Vygotsky (2000b), como ´´um produto de análise que, ao contrário dos elementos, conserva todas as propriedades básicas do todo, não podendo ser dividido sem que as perca`` (p. 5). A compreensão da complexidade da trama de significados que constituem a linguagem, nesse caso, concretizada em um documento escrito, implica a busca por unidades que, de forma simples e dinâmica, carregam significados que favorecem a compreensão do todo.

Pretendemos trabalhar com unidades de significação que abarquem as diferentes vozes presentes no documento, visando compreender o dialogismo que o permeia, por meio da identificação das relações entre tais vozes e destas com os contextos que produzem, atualizam e fazem circularem os significados.

O roteiro para análise semiótica e dialógica de documentos que vimos sistematizando, envolve procedimentos de construção e análise de informações, constituído pelos seguintes passos: (a) seleção dos documentos; (b) leituras iniciais do texto; (c) elaboração de eixos descritivos; (d) listagem de contextos e significados relacionados ao documento; (e) elaboração de questões de análise do documento; (f) construção de eixos interpretativos; (g) realização de microanálise dos eixos interpretativos; e, (h) produção de conhecimento sobre o fenômeno em estudo. A seguir, discutiremos cada passo do roteiro.

A seleção dos documentos a serem submetidos à análise é um momento sensível no processo de investigação, pois o tipo de material selecionado pode não contribuir para as questões propostas pelo estudo e não apresentar relevância para o fenômeno em foco. Dessa forma, é importante que o pesquisador esteja atento para a escolha do material, que pode partir de uma análise inicial do contexto da pesquisa e também da revisão de literatura relativa ao assunto em questão. A seleção dos documentos deve priorizar os objetivos do estudo e considerar as características do contexto de pesquisa e dos materiais disponíveis para análise.

Após a seleção dos documentos, realizam-se leituras iniciais do material selecionado, visando construir ampla familiaridade com o texto, tendo claro o fato de que são as perguntas relativas aos objetivos do estudo que conferem sentido ao processo de análise dos documentos, e elas orientam o foco de todo o procedimento. Bakhtin (2006) afirma que toda compreensão de um enunciado é ativamente responsiva, o leitor sempre reage concordando ou discordando, completando, aplicando, negando, enfim, o leitor sempre atribui sentido ao texto.

Durante as leituras iniciais orientadas para a familiarização com o texto, são organizados eixos descritivos com a intenção de desmembrar o documento em unidades que favoreçam uma visualização geral das informações que o compõem, ao destacar seus objetivos e as partes específicas que o constituem. A organização de tais eixos depende das especificidades e características do documento a ser analisado, considerando a complexidade de sua estrutura e a forma de distribuição de suas informações. Os eixos descritivos possibilitam uma preparação do material para o processo interpretativo, destacando trechos do documento que se configuram em unidades de significação e que poderão contribuir com a produção do conhecimento.

Esses três primeiros passos do roteiro são relativamente gerais, comuns a diferentes propostas teórico-metodológicas, pois visam a uma aproximação inicial com o documento. O avanço do processo de análise, que envolve os próximos passos, leva a uma particularização dos procedimentos, contando com a sustentação da perspectiva semiótica e dialógica, além da sensibilidade e do discernimento do pesquisador.

Assinalamos que o objetivo de identificar as vozes presentes nos textos implica a necessidade de serem mobilizados conhecimentos acerca do documento selecionado, relativos à sua produção e aos seus objetivos e conhecimentos sobre os significados que circulam nos seus contextos de produção e execução, sejam eles contextos sociais, culturais, econômicos, políticos, históricos, entre outros. São conhecimentos que podem ser adquiridos por meio da revisão de literatura e da base teórica do pesquisador sobre o fenômeno em estudo. Fiorin (2006) destaca que investigar a dialogia presente em textos envolve um conhecimento amplo sobre a sociedade que cerca o texto e Brait (2005) trata da avaliação social da linguagem, relativa à análise da situação, que interfere diretamente na organização do texto e deixa marcas no enunciado.

Propomos que tais conhecimentos sejam sistematizados e organizados por meio da elaboração de uma listagem dos contextos sócio-institucionais, culturais e históricos envolvidos com a produção e a execução do documento. Tal listagem deve ser elaborada a partir de uma seleção de contextos pertinentes; considerando as diferentes possibilidades existentes, o pesquisador precisa investigar sobre a influência que determinados espaços têm sobre os documentos selecionados. Assim, é necessário ter clareza em relação aos critérios de seleção de cada contexto, considerando a situação histórica e social do documento e os objetivos da investigação.

A análise dos contextos tem a intenção de destacar as vozes que podem representar cada espaço, considerando sua recorrência e a relação que mantêm com o documento. O objetivo final desse passo é buscar os significados atribuídos por cada voz ao fenômeno em estudo, os quais podem ter orientado o processo de produção do documento, ou, as interpretações das quais ele é alvo. Essa listagem pode contribuir com a identificação dos significados que são comuns a todas as vozes, os significados comuns a algumas vozes e os que são específicos a cada voz.

A listagem dos contextos orienta um novo turno de leituras do material empírico, focalizando, nesse momento, os eixos descritivos. Tal etapa contribui para a elaboração de questões de análise a serem feitas ao documento, a fim de manterse um diálogo entre os objetivos do estudo e o texto selecionado. A elaboração de tais questões também envolve a participação ativa do pesquisador, com suas concepções e crenças, pois, conforme Crawford e Valsiner (2002), a construção e análise das informações de pesquisa é um processo interativo que envolve os posicionamentos do pesquisador frente ao fenômeno estudado, abrangendo sua visão de mundo e seus pressupostos teórico-metodológicos.

Para responder às questões de análise, são construídos eixos interpretativos que objetivam a compreensão acerca da cadeia comunicativa formada em torno do documento analisado. A proposta é buscar os elos da cadeia comunicativa, observando a correlação entre as várias vozes presentes no texto, a partir do conhecimento propiciado pela listagem dos contextos e de inúmeras leituras e releituras do documento.

Os eixos interpretativos são construídos por meio da organização de indicadores[4], que representam articulações entre unidades de significação do texto, os significados identificados nas vozes dos contextos, os objetivos da investigação, os pressupostos teóricos que sustentam o estudo e a voz da pesquisadora. Essa estratégia envolve a associação e o agrupamento de trechos do documento que se aproximam dos significados observados nos contextos listados e a identificação das marcações linguísticas das diferentes vozes, como: temas e conceitos recorrentes, padrões e contradições presentes, afirmação e negação, repetição ou reformulação, citação e alusão.

O último passo é a realização da etapa que se caracteriza como a microanálise dos eixos interpretativos. Esta etapa objetiva investigar os detalhes, as minúcias e as sutilezas que constituem o texto, por meio do trabalho com unidades de significação específicas. O processo implica a seleção de algumas unidades de significação que compõem os eixos interpretativos, considerando as possibilidades que tais unidades carregam para representar o todo.

Nesse momento, os trechos do documento são recortados em unidades mínimas, buscando o significado das palavras, o que, segundo Vygotsky, é o componente indispensável da palavra e, segundo Bakhtin e Voloshinov (1929/2006), uma arena onde se debatem diferentes ideologias. O primeiro autor ressalta que, ´´dependendo do contexto, uma palavra pode significar mais ou menos do que significaria se considerada isoladamente: mais, porque adquire um novo conteúdo; menos, porque o contexto limita e restringe o seu significado`` (Vygotsky, 2000b, p. 181). Seguindo essa perspectiva, visamos investigar o significado da palavra a partir dos contextos que a cercam e considerando a influência de sua ação na produção de crenças e concepções.

Dessa maneira, a intenção da microanálise é compreender as palavras inseridas nos contextos dialógicos, enfatizando o processo de produção e negociação de significados, realizado por meio do diálogo estabelecido entre os contextos e o documento. Com base na crença da relação constitutiva entre os sistemas semióticos e o processo de desenvolvimento humano, o entendimento dos processos de significação que compõe um documento propiciará uma maior compreensão sobre as possibilidades que tal ferramenta semiótica gera para as transformações sociais e para o desenvolvimento dos sujeitos.

A título de exemplo, e a fim de tornar mais claros nossos argumentos, apresentaremos as possibilidades de aplicação do roteiro de análise semiótica e dialógica, acima delineado à compreensão microanalítica do Projeto Pedagógico de um Programa Alternativo de Licenciatura, o que faz parte do estudo maior realizado pela primeira autora. O objetivo geral do estudo maior é compreender as possibilidades que tal processo formativo proporciona para o desenvolvimento pessoal e profissional de professores em exercício na educação básica.

 

Aplicando a metodologia de análise semiótica e dialógica ao Projeto Pedagógico de um Programa Alternativo de Licenciatura

Nosso objetivo é apresentar todo o percurso investigativo desenvolvido na análise do Projeto Pedagógico, desde a seleção do documento até as microanálises, favorecendo a exemplificação do roteiro utilizado. Ao longo da descrição do percurso, serão assinaladas as possibilidades que o roteiro ofereceu para a produção do conhecimento.

Após uma análise inicial do contexto da pesquisa, escolhemos analisar o Projeto Pedagógico, considerando a sua importância na organização de um curso superior, visto como o documento que define os princípios e as regras que conduzem as práticas pedagógicas do processo formativo, de acordo com Veiga (2004). Conforme informações obtidas nos contatos iniciais com o contexto de pesquisa, identificamos que o Projeto foi produzido por um grupo de assessoria técnicoacadêmica e depois foi enviado para as diferentes unidades universitárias que compõem a Instituição de Ensino Superior, foco do estudo.

Nosso objetivo foi identificar os significados que orientam o processo de formação docente, proporcionando condições para reflexões sobre as condições que a proposta do curso cria para o desenvolvimento de sujeitos adultos que já possuem uma trajetória profissional na docência. Assim, o Projeto Pedagógico se configurou como um mediador semiótico de suma importância na operacionalização do curso observado, pois, além de organizar todas as atividades desenvolvidas pelos coordenadores de curso e docentes, ainda torna possível a circulação de significados que orientam a (re)construção de concepções acerca da docência e da educação.

Selecionamos dois documentos para análise, a saber: uma versão A do Projeto, apresentada de forma detalhada; e uma versão B, apresentada de forma mais resumida e específica para a unidade universitária que foi objeto da investigação. As duas versões se estruturam em partes que abrangem: (a) Justificativa; (b) Operacionalização (instituições gestoras; vagas; corpo docente; avaliação do curso; frequência; rendimento escolar e transferência do professor-em-formação e calendário escolar); (c) Currículos dos cursos (diretrizes básicas; perfil profissional; objetivos; dependências e reprovações; calendário anual; matriz curricular e ementário).

As leituras iniciais levaram à elaboração dos eixos descritivos, nos quais agrupamos informações relacionadas às concepções sobre formação de professores, às propostas pedagógicas e aos procedimentos que visavam operacionalizá-las. Observamos que as concepções a respeito do desenvolvimento humano adulto apareciam no texto de forma estreitamente vinculada às concepções sobre formação docente e desenvolvimento profissional.

Elaboramos três eixos descritivos, que foram organizados em quadros contendo: (a) informações sobre o Projeto; (b) trechos do documento que foram considerados como unidades de significação com características que representavam todo o texto. Os eixos descritivos elaborados foram:

1. Informações que caracterizam o Projeto Pedagógico. Nesse eixo, evidenciamos informações sobre: o caráter das instituições gestoras do Programa Alternativo de Licenciatura; as particularidades dos professores-em-formação; o espaço físico a ser oferecido; as características do tempo pedagógico; os procedimentos de avaliação e promoção dos professores-em-formação.

2. Informações sobre a Matriz Curricular. Aqui, focalizamos informações sobre: a distribuição da carga horária entre as disciplinas; as propostas alternativas de disciplinas e de práticas pedagógicas; o ementário e suas referências bibliográficas.

3. Objetivos do Projeto para atender à Legislação Educacional. O objetivo desse eixo foi listar os itens do Projeto que atendiam às determinações e orientações da legislação. Os itens listados foram: a exigência de formação de nível superior para os professores (artigos 62 e 87 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394 - LDB/1996); a orientação de associação entre teoria e prática e aproveitamento da formação e experiências anteriores dos discentes (artigo 61 da LDB/1996); o desenvolvimento de competências e de um perfil de professor crítico-reflexivo (artigos 3º e 5º das Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores da Educação Básica); a definição do sistema de promoção dos discentes (artigo 47 da LDB/1996).

A organização dos eixos descritivos favoreceu a identificação de questões gerais e específicas a respeito da proposta pedagógica e a observação de contradições e consensos em relação às concepções sobre formação docente e desenvolvimento humano. Essa estratégia propiciou a seleção de informações que tinham relação com os objetivos do estudo, ajudando-nos a focar nossa análise. Não descartamos, porém, o documento para trabalhar somente com os eixos descritivos, pois, ao longo do processo investigativo, outras questões poderiam emergir.

Na listagem dos contextos envolvidos com o documento, usamos como critério a participação do contexto tanto na produção como na execução do Projeto, fundamentando-nos em conhecimentos oriundos da revisão de literatura e dos contatos iniciais com o contexto de pesquisa. Inicialmente, procuramos as vozes que se destacavam em cada contexto e que poderiam caracterizá-lo; em seguida, buscamos os significados atribuídos por cada voz à formação de professores e que estavam relacionados com os objetivos de nosso estudo e com os eixos descritivos elaborados. Os contextos selecionados foram:

a) o Contexto Normativo, no qual se destacava a voz da lei que normatiza e regula as práticas sociais e pedagógicas, envolvendo a LDB/1996, as Diretrizes Curriculares para a Formação de Professores da Educação Básica, Resolução CNE/ CP n° 1, de 18 de fevereiro de 2002, e as Diretrizes Curriculares para o curso de Pedagogia, Resolução CNE/CP n° 1, de 15 de maio de 2006. A escolha dessa legislação deu-se por ser citada literalmente no Projeto Pedagógico investigado, além de considerar sua importância na atualidade, por serem essas orientações legais, referências nacionais para a organização de cursos de licenciatura no país.

b) o Contexto Teórico-Acadêmico, cuja voz discute, propõe e denuncia questões sobre a formação docente, abrangeu os autores que foram identificados nas referências bibliográficas de diferentes disciplinas da matriz curricular apresentada no Projeto Pedagógico, assim como as teorias e pesquisas educacionais que circulam nessa área de conhecimento, identificadas na revisão de literatura.

c) o Contexto Institucional, que apresentou uma voz que define regras para serem seguidas com rigor, envolvendo os documentos que regem a Instituição de Ensino Superior (IES) que foi objeto de investigação. Tais documentos foram: o Estatuto da IES; o Projeto de Desenvolvimento Institucional (PDI) e o Manual do aluno, selecionados por serem representativos das propostas da IES para a formação docente.

Nos três contextos listados, observamos significados recorrentes que evidenciam a necessidade de reformulação do processo de formação docente no país. Identificamos propostas repetidas sobre a necessidade de articular teoria e prática, por meio da aproximação entre os conteúdos curriculares e os contextos da educação básica. Além disso, todas as vozes defendem o desenvolvimento de competências e de um profissional crítico-reflexivo, que atenda às variadas demandas do cenário contemporâneo.

Os contextos normativo e institucional ainda apresentam preocupações com o controle de frequência dos discentes, evidenciando uma concepção que privilegia os momentos presenciais nas aulas realizadas ao longo do processo formativo. É importante destacar que o contexto normativo orienta que a formação docente deve priorizar o nível superior, propiciando condições para atender aos profissionais em exercício e desenvolvendo projetos pedagógicos inovadores. A investigação dos contextos envolvidos com o Projeto proporcionou conhecimentos sobre as condições e as regras que orientaram sua produção, revelando um cenário caracterizado por cobranças de qualidade aos processos de formação docente e por definições de padrões de ação.

Após a elaboração dos eixos descritivos e a análise dos contextos, e a fim de atender aos objetivos do estudo, construímos duas questões a serem feitas ao Projeto, a saber: (a) Como o Projeto responde às demandas dos contextos em relação à reformulação nas propostas de formação docente? (b) Como o Projeto se propõe a contribuir com o desenvolvimento dos professores-em-formação? Para responder a tais questões, voltamos o foco para o diálogo estabelecido entre o documento e os contextos, buscando as marcações que sinalizassem a intertextualidade e a intratextualidade, destacando as situações de afirmação, negação, contradição, reformulação, etc.

Nesse momento, construímos dois eixos interpretativos, com base na organização de indicadores que deram sentido ao diálogo entre as vozes do Projeto e dos contextos. Primeiro eixo: o novo e o tradicional tecendo a trama de significados que constitui uma proposta de formação docente, composto pelos indicadores: (a) a experiência profissional dos professores-em-formação como um componente curricular; (b) a articulação entre teoria e prática; (c) as características do tempo pedagógico. Segundo eixo: uma proposta de formação docente que pretende desenvolver contextos sócio-econômicos e professores críticos-reflexivos e competentes, constituído pelos seguintes indicadores: (a) transformação social e melhoria na qualidade de vida das regiões do interior do Estado; (b) o desenvolvimento de competências; (c) o desenvolvimento de um professor crítico-reflexivo.

O próximo passo foi a realização de uma microanálise dos eixos interpretativos. Neste trabalho, considerando o espaço disponível, exemplificaremos a etapa de microanálise expondo a discussão realizada a partir de um dos indicadores do primeiro eixo.

Observamos, a partir do primeiro eixo, que o Projeto Pedagógico responde ao contexto normativo de forma afirmativa, aceitando as proposições legais como determinações, sem qualquer avanço, invenção ou criação que ultrapasse o texto da lei. Essa exagerada coerência com a legislação é sustentada pela alusão à lei, conforme podemos observar nos trechos a seguir:

Trecho 1 - ´´... caracterizando-se na modalidade de curso de graduação em atendimento ao disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional n° 9.394 de 20 de dezembro de 1996 que em seu artigo n° 62 estabelece que a formação de professores de Educação Básica far-se-á em nível superior e o artigo n° 87 § 4° estabelece que até o fim da Década da Educação, iniciada após a publicação da referida lei, ano de 1997, somente será admitidos professores habilitados em nível superior ou formados em serviço`` (Doc.A[5], p.8)

Trecho 2 - ´´a atuação do acadêmico no local onde trabalha poderá ser computada como parte de suas atividades discentes, conforme o art. 61 da nova LDBEN`` (Doc.A, p.40);

Trecho 3 - ´´O cerne da proposta curricular é a formação do profissional da Educação, sob uma concepção teórico-prática que o permita atuar na docência...`` (Doc.B, p.11)

Nos trechos 1 e 2 observamos a relação intertextual entre o Projeto e a Lei, por meio de marcações nítidas no texto, como citação e alusão. E o trecho 3 mostra a relação intratextual entre a voz do Projeto, que assume como cerne de sua proposta curricular uma concepção teórico-prática, e a voz da LDB/1996, que define em seu artigo 61a associação entre teoria e prática como um dos fundamentos da formação de professores. Tais relações evidenciam o tipo de responsividade do Projeto perante a lei, cuja proposta é a reformulação da formação docente. É necessário investigar, porém, quais os procedimentos que o Projeto cria para o efetivo desenvolvimento de tal proposta.

Analisando os procedimentos que o Projeto apresenta para operacionalizar sua proposta, observamos que não são oferecidas descrições suficientes para orientar os profissionais do curso (coordenadores e docentes). A título de exemplo, citamos a disciplina Prática Pedagógica, criada para atender às idéias apresentadas nos trechos 2 e 3 do Projeto, citados anteriormente. A descrição dessa disciplinaé apresentada no trecho a seguir:

Trecho 4 - ´´consiste no momento de reflexão sobre e na Prática Educativo- Pedagógica, onde o professor-aluno, sob orientação contínua do professor formador e da participação coletiva (socialização de saberes diversos), realizará estudos e análises crítico-reflexivas relativas à (. . . ) sua prática pedagógica`` (Doc.A, p.44).

Percebemos que essa descrição, que deveria orientar professores acerca de um procedimento formativo particular, não esclarece de forma suficiente como deve ser o seu desenvolvimento. Por essa razão, questionamos sobre as estratégias que serão usadas para a ´´orientação contínua``, em uma disciplina que tem uma carga horária de 50 h/a anuais: as orientações serão coletivas? O professor-em-formação será acompanhado pelo ´´professor-formador`` nas escolas onde atua? E de que modo este orientará os planejamentos de aula do professor-em-formação? A falta de amplos esclarecimentos acerca dos procedimentos pode comprometer o desenvolvimento do Projeto.

Nessa direção, analisamos por meio da identificação de relações intertextual e intratextual entre as vozes do contexto normativo e do Projeto, que é privilegiada a voz da lei que regula, e o fato de seu texto não ser esclarecedor vislumbra que seus autores não se comprometeram com as práticas concretas de operacionalização de suas propostas. Essa situação não garante que o Projeto Pedagógico possa mediar a realização de um processo formativo que possibilite condições para a promoção de desenvolvimento profissional de sujeitos adultos.

 

Considerações Finais

É necessário pontuar que nosso objetivo foi demonstrar uma possibilidade de roteiro de análise de documentos, e para ilustrar nossa proposta apresentamos uma breve amostra do procedimento em desenvolvimento com o Projeto Pedagógico de um Programa Alternativo de Licenciatura. Enfatizamos que ultrapassa os limites desse trabalho proceder a uma análise mais detalhada do referido Projeto Pedagógico. É suficiente destacar que essa prática investigativa favoreceu o entendimento sobre os significados ali produzidos, em especial, os significados relativos à formação docente, que contribuem com desenvolvimento profissional dos professores-em-formação. Por essa razão, pensamos que é necessário atentar para a direção que apontam, pois podem contribuir ou não com a promoção de desenvolvimento humano e com melhorias nas práticas pedagógicas.

Acreditamos que o roteiro elaborado para uma análise semiótica e dialógica de um documento contribuiu com a compreensão acerca do Projeto Pedagógico investigado, possibilitando conhecimentos sobre: as relações dialógicas estabelecidas com os seus contextos de produção; as vozes presentes no texto e que regulam o seu formato e os compromissos que o documento assume (ou deixa de assumir) com o processo de formação docente. Ressaltamos que, ao socializar o presente roteiro, visamos contribuir com a discussão sobre a relevância do procedimento de análise de documento, em uma pesquisa que tem por foco o processo de desenvolvimento humano, uma vez que a ampla compreensão desse processo implica o entendimento de seu contexto semiótico e dialógico. Por outro lado, ao cristalizar concepções e valores sobre o desenvolvimento profissional, a compreensão do documento oferece pontos de contato com as práticas de formação, vistas como significados em ação.

 

Notas

1 Trabalho de pesquisa financiado pela CAPES.

2 Os docentes do Programa Alternativo de Licenciatura, considerados, no Projeto Pedagógico dos cursos, professores-formadores, receberão, neste texto, a nomenclatura de docentes.

3 Os discentes do curso, doravante, serão denominados professores-em-formação, considerando sua condição de profissionais em exercício e em formação acadêmica concomitantemente.

4 González Rey (1997) define indicadores como articulações de diferentes expressões do fenômeno estudado que adquirem sentido no processo interpretativo-construtivo desenvolvido pelo pesquisador.

5 As duas versões do Projeto que foram analisadas serão identificadas como Doc.A e Doc.B, cujas especificidades foram descritas anteriormente.

 

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