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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  n.16 Lisboa  2010

 

Manual escolar: companheiro do jovem na aquisição de competências e na curiosidade pelo saber

 

José B. Duarte

Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias.

Investigador do Centro de Estudos e Intervenção em Educação e Formação (CeIEF)

j.b.duarte@netcabo.pt

 

RESUMO

Parte-se de um confronto entre as orientações curriculares recentes sobre desenvolvimento de competências e a análise dessa problemática por diferentes autores. Conclui-se que o que está em causa para a actual escola e, por conseguinte, também para os manuais, é o desenvolvimento de atividades onde os alunos possam fazer mais do que limitar-se a receber informação sobre factos, isto é, que sejam chamados a agir e a construir o seu conhecimento, a um nível mais exigente, o da descoberta ou criatividade. Em suma, a mobilização dos conhecimentos prévios, o confronto desses conhecimentos com novas solicitações e a sua reconstrução surgem como resultado do desafio lançado por situações problemáticas. Evocam-se depois trabalhos de um projeto sobre análise de manuais em que se constata que, nos manuais analisados, apesar dos propósitos enunciados de uma abordagem por desenvolvimento de competências, as atividades propostas aos estudantes se limitam, em geral, a propor uma repetição da informação contida nas páginas anteriores, a formular relações entre dois fenómenos já descritos ou conceitos apresentados (nos casos menos simples) ou a sugerir experiências cujo resultado é facilmente induzido. Na parte final, o artigo exemplifica com atividades problemáticas desafiadoras da curiosidade. Competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações.

Palavras-Chave: curiosidade epistémica; situações problemáticas; desenvolvimento de competências; motivações para aprendizagem.

 

Textbook: a fellow of the youngster in getting skills and curiosity for learning

ABSTRACT

This article starts with a confrontation between the recent curriculum guidelines on developing skills in problematic situations and the analysis of this problem by various authors. It follows that what is at stake for the current school and therefore also to the manuals, is to develop activities where students can do more than confine themselves to receive information about events, i.e., they are called to act and build their knowledge, at a more demanding point, the discovery or creativity. In short, the mobilization of prior knowledge, the confrontation with new applications of this knowledge and its reconstruction arises as a result of the challenge of problematic situations. It is recalled after the project of a team on analysis of textbooks in which it is realized that, in the textbooks examined, despite the goals set out on an approach to skills development, the proposed activities to students are limited in general to propositions of repetition of information contained in the preceding pages, to formulate relations between two previously described phenomena or concepts presented (in less simple cases) or to suggest experiments whose outcome is easily induced. In the end, the article exemplifies some activities with challenging issues of curiosity.

Keywords: epistemic curiosity; problematic situations; development of skills; motivations for learning.

 

 

Competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações Perrenoud (2000, p.19)

(Os jovens) procuram livros que, por um lado, vão ao essencial e que, por outro, ponham os saberes numa perspetiva geral e os interpelem de modo a fornecerem um sentido de que sentem necessidade Giordan (1998, p.240)

 

Uma controvérsia ou os desafios dos novos currículos portugueses

A investigação atual mostra algum desencanto com a escola e até indisciplina por parte dos alunos, fenómenos que alguns autores associam a um ensino verbalista e desmotivador (Amado & Freire, 2002; Duarte, 2005; Souto-González, 1998). Pode a escola organizar atividades que despertem o interesse e a participação dos jovens? Os manuais, que são repositório das práticas (Astolfi, 1995) mas também instrumento orientador da acção pedagógica (Hummel, 1987), podem contribuir para uma escola diferente? Estas questões têm sido debatidas por uma equipa de investigadores há meia dúzia de anos, através da análise das atividades incluídas nos manuais. Por outras palavras, para alterar a metodologia transmissiva ainda preponderante nas nossas escolas e tendo em conta o papel dos manuais na orientação letiva, o debate sobre a atividade dos alunos propostas pelos manuais parece-nos fundamental, pois, como postula Fabre, ´´c`est en agissant qu`on apprend`` (1999, p. 98).

A mediação do manual entre os currículos oficiais e as práticas escolares é reconhecida pela Lei de Bases do Sistema Educativo (1986) que o considera o primeiro dos «recursos educativos privilegiados». Mas sublinhe-se que esse reconhecimentoé partilhado pelos investigadores (Richaudeau, 1986; Chopin, 1992; Gerard and Roegiers, 2003) e, como sugeri acima, a obra coordenada por Hummel e patrocinada pela Unesco, sobre manuais usados em 3 países (EUA, RU, Singapura), conclui:´´school textbooks determine in large measure what goes on in class`` (1988, p.14).

Ora, desde 2001, em Portugal o Currículo do Ensino Básico propõe o desenvolvimento de «competências essenciais», subdivididas em gerais e específicas, em que os conteúdos sejam abordados «com base em situações e problemas» (ME, 2001, p.17). Para o ensino secundário, o documento orientador da revisão curricular recomenda um equilíbrio entre a «aquisição de conhecimento» e «o desenvolvimento de competências vocacionais e a capacidade de pensar cientificamente os problemas» (ME, 2003, p.5).

Mas há controvérsia na literatura pedagógica francesa e portuguesa sobre o conceito de competência. Crahay (2006) e Schneider-Gilot (2006) dizem que é uma noção demasiado simples, por não permitir aos professores a possibilidade de distinguir noções relativas a conhecimento, prática, atitudes, capacidades e esquemas operativos. Pensamos que esta controvérsia pode ser ultrapassada pela articulação de competências com outras dimensões da aprendizagem, como sugere Perrenoud citado em epígrafe. Também, referindo-se aos manuais escolares, Gérard e Roegiers (2003) sublinham que, se a sua primeira função é a transmissão de conhecimento, a segunda é o desenvolvimento de capacidades e competências (p.84), propondo a situação problemática, a colocar sobretudo no princípio de um processo, como uma maneira pertinente de desenvolver competências, ao permitirem «explorar e mobilizar diferentes conhecimentos e práticas» (p.68).

De um modo mais geral, pode pensar-se que os capítulos dos manuais ou as aulas devem começar por situações de desafio, problemáticas ou de algum modo motivadoras. Trata-se da motivação por curiosidade, alargando o conceito de curiosidade epistémica de Berlyne, como a curiosidade que emerge de uma discrepância entre uma situação estimulante e o conhecimento anterior de um indivíduo: «ao despertar-se a curiosidade epistémica, um indivíduo é motivado a procurar mais informação para resolver essa discrepância» (Flemming e Levie, 1993, p.3). O projeto «Manuais escolares e atividades dos alunos» procura avaliar ´´até que ponto`` os manuais escolares portugueses privilegiam uma função expositiva ou, de modo diferente, a fazem interagir com situações problemáticas ou motivadoras numa ´´nova`` dinâmica de aprendizagem, já que Hummel e col.s (1988) propõem que os manuais devem «envolver os estudantes num processo ativo de aprendizagem» (p.114). Num quadro teórico mais complexo, esse envolvimento pode ser entendido sob o conceito de cognitivismo operante de Minder (2007) ao ligar as propostas da ´´didáctica funcional`` de Claparède, às do cognitivismo e às do behaviorismo.

Neste projecto, tendo presente uma amostra representativa de disciplinas de várias áreas (Português, História, Geografia, Físico-química e Ciências Naturais e esperando incluir posteriormente Inglês e Matemática) dos 7º e 10º anos (primeiros anos do 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário, níveis de transição entre ciclos), temos vindo a analisar os manuais que ocupem o primeiro, segundo e quinto lugares da distribuição comercial (o quinto lugar e não o terceiro, porque bons manuais poderão ser esquecidos pela promoção comercial ou rejeitados pelos docentes pela sua inovação). Pretendemos avaliar de que forma as orientações dos programas daquelas disciplinas dos dois anos mencionados e o enquadramento teórico que fundamenta essas orientações são, efectivamente, assumidas por alguns dos manuais mais divulgados e, num segundo momento, observar como essas orientações são desenvolvidas nas escolas.

O que está em causa para a actual escola e, por conseguinte, também para os manuais, é o desenvolvimento de actividades onde os alunos possam fazer mais do que limitar-se a receber informação sobre factos, isto é, que sejam chamados a agir, a construir o seu conhecimento, a um nível mais exigente, o da descoberta ou criatividade. Fabre sublinha, justamente, «uma ênfase sobre o problema e não o teorema, sobre a invenção mais do que o já encontrado» (1999, p. 87), podendo generalizar-se a outras disciplinas o que este autor, na esteira de Vigostky, afirma sobre uma aprendizagem da Matemática a partir de situações problemáticas (em francês, ´´situations-problèmes``):

a) O aluno deve ser capaz de intervir na resolução de problemas, poder imaginar o que o problema necessita como tipo de solução possível (…), o problema deve permanecer na zona de desenvolvimento próximo do aluno. Nem demasiado perto nem longe demais daquilo que já sabem. (p. 90);

b) Os conhecimentos dos estudantes normalmente são insuficientes para resolver o problema de imediato. Isto reflecte as características de um verdadeiro problema (p. 90).

Fabre sublinha depois: «Todos os autores insistem em três dimensões da situação problemática: permitir aos estudantes investirem o seu anterior conhecimento; fazer-lhes tomar consciência da insuficiência deste conhecimento, e ajudá-los a construir novos procedimentos» (1999, p. 92). ´´Tomar consciência da insuficiência do conhecimento`` faz lembrar a curiosidade epistémica, acima mencionada, provocada pela discrepância entre uma situação estimulante e o conhecimento anterior. Em suma, a mobilização dos conhecimentos prévios, o confronto desses conhecimentos com novas solicitações e a sua reconstrução surgem como resultado do desafio lançado pelas referidas situações problemáticas. Mas Fabre acentua o que outros autores deixam implícito, ao definirem competência como capacidade de mobilização de conhecimentos para um conjunto de situações ou para novas situações, pois explicitamente declara que ´´os conhecimentos dos estudantes normalmente são insuficientes para resolver o problema de imediato``. Por outras palavras, na nova situação problemática pode (deve?) haver aspetos inovadores que obriguem o jovem a refletir e procurar informação. É a ´´curiosidade epistémica``, mencionada acima.

Com base nos quadros teóricos mencionados sobre uma aprendizagem activa e propiciadora da autonomia do estudante, construímos uma série de quatro categorias para análise das actividades dos manuais mais adoptados pelas escolas portuguesas, segundo explicámos anteriormente. As primeiras dessas categorias são de tipo convergente com as actividades ou exposições enunciadas pelo manual (também provavelmente pelo professor) e as últimas duas, de feição divergente, incentivam a autonomia do estudante:

1 - Memorização e/ou Transposição 2 - Exploração e elaboração de documentos (interpretação de textos, gráficos, esquemas e resolução de problemas com base num modelo apresentado) 3 - Reformulação (justificação, relacionamento, resumos, sínteses, paráfrases, outras) 4 - Situações Problemáticas/ Produção de Conhecimentos

Para as diferentes categorias, exemplifiquemos com perguntas de um manual de História para o 7º ano. Para a categoria 1: ´´Que civilização vais estudar nesta unidade?`` Para a categoria 2: ´´Caracteriza a economia romana a partir do documento A``. Para a categoria 3: ´´Define os conceitos de Democracia e de Democracia Directa``. Para a categoria 4: ´´Pesquisa as diferenças entre o atual regime português e o regime de Atenas``.

A equipa do projeto expôs noutros lugares (Duarte, J., Claudino, S., Silva, C., Santo, E., Carvalho, L., 2009; Claudino, 2009) os resultados da atual fase da investigação. Tanto para os manuais do 7º ano como para os manuais do 10º ano, descobrimos que, após a exposição dos conteúdos, se fazem propostas de actividades não muito diferentes daquelas incluídas nos manuais anteriores à reorganização curricular de 2001, que, como vimos, determinou uma aprendizagem por competências com base no desenvolvimento de situações e problemas. Com efeito, nos manuais analisados as questões limitam-se em geral a propor uma repetição da informação contida nas páginas anteriores do manual, a formular relações entre dois fenómenos já descritos ou conceitos apresentados (nos casos menos simples) ou a sugerir experiências cujo resultado é facilmente induzido. Em suma, os manuais contemplam, no máximo, competências demasiado simples, pois localizadas em níveis ´´elementares`` das taxonomias, quando muito num nível de ´´aplicação de conhecimentos``. Encontra-se, é certo, nos manuais uma preocupação dos autores com o tema das competências, com insistência até quanto a competências de ´´investigação`` a desenvolver nos alunos. Mas a proposta de investigação mais frequente nos manuais analisados é a de pesquisa na Internet, sem qualquer orientação metodológica.

Em suma, raros problemas do tipo 4 da nossa categorização, acima descrita, aparecem nos manuais analisados. Ainda assim, tendo exemplificado acima situações para o 7º ano, seguem agora, para o 10º ano, duas situações problemáticas que esperamos poderem contribuir para a reflexão dos leitores. Num manual de Geografia: ´´Sugira medidas que se podem tomar no quotidiano, tendo em conta a estrutura do consumo da água (num quadro junto), para racionalizar o seu consumo em casa e na escola``. E num manual de Física: ´´Projecte um escorrega para a diversão das crianças, de modo que permita que deslizem com facilidade, mas por outro lado, que as faça diminuir o valor da velocidade na parte final``. Pede-se aqui um estudo do movimento, que engloba conceitos de forças e dos efeitos que estas produzem, bem como considerações energéticas. Deste modo procura-se motivar o aluno apresentando novas situações problemáticas, utilizando considerações energéticas (energia potencial, energia cinética), ao invés dos tradicionais exercícios envolvendo apenas definições. Finalmente, e de modo mais desenvolvido, exemplifico a seguir o que poderia ser feito num manual de Matemática a propósito de casos de semelhança de triângulos. E depois apresento um manual de Inglês, como exemplo interessante de concepção do trabalho dos alunos.

Das situações problemáticas, às competências, aos conceitos: sem molhar os pés… calcular a largura de um rio

Sem molhar os pés, calcular a largura de um rio - aí está um problema capaz de entusiasmar os jovens! Trata-se de um problema incluído num manual do 8º ano, a meio de uma série de outros problemas, algo de habitual nos manuais e nas…aulas. Aliás esse problema parece mais complicado que um outro, também motivador, incluído depois, já que este pede que se calcule a altura de um tronco de árvore, cuja sombra mede 2 metros, confrontando-a com a altura de uma haste ou cabode vassoura de 1,20 cuja sombra mede 0,40 m. Ou seja, em esquema.

 

 

Nas páginas anteriores, o manual expõe os diferentes ´´casos de semelhança de triângulos`` (proporcionalidade de dois lados e igualdade do ângulo por eles formado; proporcionalidade dos três lados desses triângulos; igualdade de dois ângulos). Esta ordem de apresentação é aliás habitual na pedagogia corrente: primeiro a teoria e depois as aplicações ou exemplos. Ora, antes de entrar nesses conceitos de modo expositivo, parece interessante a situação problemática de conhecer a altura de uma árvore… sem ter que subir nela. Depois será fundamental levar os alunos a perceberem que a sombra do tronco da árvore aumenta mais rapidamente que a da haste da vassoura e que esse aumento é proporcional aos respectivos tamanhos. Admito que essa reflexão leve a conhecer a altura do tronco da árvore através de uma regra de três simples. Assim, se a sombra da haste tiver 0,40 m como vimos, a haste 1,20 e sombra da árvore tiver 2 metros, calcular-se-á que a altura da árvore será de 6 metros.

Deste modo, se concretizaria, mas em modo de descoberta ou curiosidade epistémica, um objetivo programático de ´´resolução de problemas da vida corrente que envolvam proporcionalidade direta`` que o manual explicitamente evoca. Mas não só. Trata-se de dois lados proporcionais entre dois ângulos e de um triângulo igual formado por esses dois lados (que neste caso é uma ângulo reto mas que poderia ser agudo ou obtuso). Tal situação constitui um caso de ´´semelhança de triângulos`` dos programas de Matemática, como vimos, conceito a que, na situação aqui descrita, se chegaria através da resolução de uma situação problemática extraída da observação quotidiana.

Vejamos agora o interessante desafio de tentar medir a largura de um rio sem molhar os pés que, por ser mais difícil, como disse, deveria, no manual, vir depois do problema da árvore.

 

 

O esquema reproduz uma figura do manual mencionado, em que X significa a largura do rio que se pretende conhecer (… sem molhar os pés). Como se vê, no triângulo retângulo mais pequeno, desenhado ao lado do rio, indica-se a medida dos dois catetos e no triângulo maior indica-se apenas a medida de um cateto (coincidente com a margem do rio) pois o outro cateto desse triângulo retângulo constitui a largura do rio, que se pretende descobrir. Também aqui a reflexão sobre uma proporcionalidade direta levará os alunos a encontrarem a solução, através de uma regra de três simples, sem conhecerem em pormenor a informação teórica das páginas anteriores sobre semelhança de triângulos. O que será tanto mais acessível se o problema do cálculo da altura da árvore preceder o da largura do rio. Um professor na aula poderia até, ao passar do problema da árvore para este, convidar os alunos a lembrarem os dois triângulos imaginados na primeira situação mas invertendo agora um deles, como é o caso do problema do rio. Esta possibilidade de transferência para novas situações é o cerne do conceito de competência (como acentua Perrenoud, citado em epígrafe). Por fim faço notar que, como para o caso do tronco da árvore, de novo se observa que se consideram ´´semelhantes`` dois triângulos com dois lados proporcionais e em que é igual o ângulo formado por esses dois lados, numa articulação progressiva de situações problemáticas iniciais com conceitos teóricos que surgem da tentativa de solução dessas situações.

Mas vale a pena refletir na problemática da linguagem, já que no Brasil é corrente o termo de ´´congruência`` em vez do de ´´semelhança de triângulos``. Pergunto: o triângulo formado pela árvore, sombra e respectiva hipotenusa é semelhante ao formado pela haste da vassoura, sombra e hipotenusa? Então um não é maior que o outro? Não seria preferível dizê-los ´´proporcionais``? E parece mais adequado o termo de congruente, preferido na cultura brasileira, como sinónimo de relação harmoniosa entre dois objetos. Mas o adjetivo proporcional não seria o mais ´´realista``? Como exemplifico também noutros momentos deste trabalho e noutro lugar (Duarte, 2002), a questão da linguagem não é despicienda.

O que a minha experiência com este manual me mostra (e imagino que isso se poderá passar com muitos alunos) é que com base na curiosidade e intuição se podem constituir momentos fundamentais da aprendizagem (momentos relacionados com o habitualmente chamado método de descoberta) e que a partir daí se pode utilizar o método expositivo, mas de função dialógica, para chegar a noções como a de triângulos ´´semelhantes`` ou ´´congruentes`` ou ´´proporcionais`` e aos critérios de semelhança. A marcha da aula de Matemática não poderia/deveria partir da observação de problemas da vida real para chegar aos conceitos matemáticos? Pelo menos, na nossa opinião, essa dinâmica deve acontecer com alguma frequência, para que o interesse dos alunos seja despoletado. Ora, como disse, no manual analisado, estes problemas aparecem depois de toda a teorização sobre ´´casos de semelhança`` de triângulos. E aliás o primeiro problema aí incluído é o célebre problema em que Tales de Mileto, a pedido de um faraó, calcula a altura de uma pirâmide, um problema que, embora interessante, parece mais complicado e menos diretamente motivador que o de descobrir a altura da árvore… sem ter de nela subir.

Uma precaução clara me foi lançada por uma simpática professora universitária de Matemática, que analisou este artigo, ao afirmar que importa «despertar da curiosidade com problemas simples``, como os que sugiro, pois «as ideias abstractas constroem-se a partir da realidade, sobretudo em certas idades», mas deixando implícito não dever abusar-se de tal procedimento que deve ser um impulso para trabalhar os conceitos incluídos nos programas. Em suma, a exposição de conceitos e princípios será sempre necessária da parte do professor, mas importa renovar a pedagogia com situações problemáticas que despertem a curiosidade dos jovens e que sirvam incentivo à tarefa expositiva. Ou como diz Astolfi (meu mestre recentemente falecido e que aqui homenageio), o que torna ineficaz o método transmissivo não é a sua ineficácia mas a sua exclusividade, pois se «em certos momentos é bom viver a experiência da maneira como se elabora, se transforma e se enriquece o saber» (1995, p.130), isso dará mais sentido a outros momentos em que o saber é apresentadao de «forma acabada».

 

Exemplos de outras matérias

As reflexões anteriores levam-nos à proposta de que momentos de descoberta funcionem em alternância e em relação com momentos expositivos. Esses problemas podem ser de origem escolar, vindos dos laboratórios, vindos dos manuais ou problemas extra-escola - que são os mais motivadores…Nas aulas de Língua Portuguesa não será interessante discutir o que há de ´´sentimental, irrealista``ou de´´análise social realista`` numa telenovela e daí chegar aos conceitos relacionados com dois diferentes movimentos literários, o romantismo e o realismo, consignados nos programas? Por outro lado, nas aulas tradicionais de português insiste-se demasiado no texto narrativo e menos no texto argumentativo, bem necessário na vida cívica e cultural. Uma situação problemática consistirá em apresentar diferentes textos e de diferentes origens com argumentações divergentes, expressas ou implícitas, sobre uma problemática (literária, cultural, ou científica) e estimular a realização de um texto em que cada aluno assuma a sua própria argumentação.

Numa entrevista de que dou conta noutra obra (2005), perguntava um aluno por que razão não se deveria partir da observação da Ponte 25 de Abril[1] para depois estudar os conceitos de força em Física. Sobre essa pergunta, alguns professores dessa disciplina responderam que isso envolveria muitas variáveis difíceis de analisar e afastadas do programa, o que obrigaria os professores a uma preparação complexa, mas um deles respondeu que tais questões poderiam ser analisadas pelo menos através de um esquema qualitativo de modo a satisfazer a curiosidade dos jovens e passar depois a questões mais abstratas.

Ainda quanto ao ensino da Física, assisti mais recentemente a um diálogo de uma professora com jovens mostrando-lhes uma moeda no fundo de um recipiente, pedindo para se afastarem e pararem logo que as paredes em alumínio do recipiente não deixassem ver a moeda. Ao juntar água a pouco e pouco e estando os jovens imóveis, num dado momento a moeda começava a ver-se. Porquê? - perguntava a professora. A água serve de lente? - perguntava um dos jovens. De algum modo, dizia a professora. E explicava que os raios de luz, que a moeda recebe do Sol e que nos ´´envia``, e que afinal nos fazem ver a moeda são… refratados pelaágua. Refratados? Quê? - perguntava um dos jovens. A professora pensou um pouco e sugeriu o termo ´´dobrado`` como equivalente a ´´refratado`` (ao ouvir isso, pensei que «refratado» poderia também ser explicado a partir de «fratura», pois os raios luminosos são, neste fenómeno, de algum modo «fraturados» ou «dobrados» ao passarem pela água). Em conclusão, os raios de luz permitiam neste momento aos alunos ver a moeda pois eram «dobrados em ângulo» pela água, como dizia a professora. Em suma, uma palavra da linguagem corrente (´´dobrar``) , para introduzir o conceito de ´´refração``, a partir de uma curiosa situação problemática, que os ajudará a reter esse conceito.

Robert Yin (2005) insere um interessante texto sobre uma escola japonesa (p.38). O autor do texto ficara surpreendido com o ruído nas salas de aula mas essa surpresa desapareceu ao verificar, por exemplo, a introdução do conceito de cubo. Antes de tudo o mais, o professor pediu aos alunos que escrevessem nos cadernos diários o que sabiam sobre esse conceito. Depois pediu-lhe que em grupos construíssem cubos em papel e outros materiais. Um grupo decidiu fazer um cubo de um metro cúbico, mas depressa se lamentou da grandeza da tarefa. Logo outros se entusiasmaram, perguntando quantos alunos caberiam dentro. O professor confirmou a dificuldade do trabalho e deu-lhes o resto da aula para o concluírem, o que aconteceria só no dia seguinte. Aquela situação problemática iria levar os alunos a, digamos, verem bem um cubo por dentro, a compreenderem intimamente um dado conceito… e a compará-lo com as primeiras noções escritas inicialmente nos seus cadernos. Lembrando-me desta leitura, perguntei quantas faces ou lados tem um cubo a um jovem português de 12 anos, que hesitou, disse primeiro quatro, depois cinco. Com aquela metodologia de trabalho pedagógico, não teria hesitado...

Em suma, concluamos que através de situações problemáticas poderão desencadear- se processos de desenvolvimento de competências numa perspetiva de ´´saber em acção`` e de autonomia na procura dos conceitos relacionados com essas e outras situações problemáticas, numa dinâmica de transferência para outras situações (como propõe Perrenoud na epígrafe, que relembro) ou pelo menos numa esperada curiosidade pelo saber face à problematização de situações contra as dádivas da pedagogia tradicionalista. Um tema a complementar com análise de um manual exemplar, precedida de uma nova reflexão pedagógica.

 

Voltando à controvérsia

Em língua inglesa, uma interessante contribuição para a problemática de um ensino por desenvolvimento de competências é da corrente ligada especialmente ao ensino das línguas, designada por task based learning, na procura de «incorporate skills directly or indirectly into the task design» (Nunan, 1992, p.45), e logicamente prevendo «graded activities for the four macroskills» (p.196). Aqui macroskill equivale ao que na literatura francesa e portuguesa designa por competência, e, por outro lado, ´´competency`` e ´´competence`` começam a aparecer na literatura pedagógica de língua inglesa, pois, como vemos, skill aproxima-se do conceito de capacidade. Por outro lado, ainda em língua inglesa, a problemática do trabalho do aluno e da autoaprendizagem aparece contextualizada em campos de investigação de designações diferentes mas de objetivos afins. Entre outros, o já referido ´´taskbased learning``, ou o de ´´self-instruction`` e ´´self-assessment`` (Hummel, 1988) com ênfase nas capacidades de resolução de problemas e de pensamento crítico ou o do critical teaching (Arends, 1995). Esses campos de investigação situam-se explícita ou implicitamente no rasto de Dewey, com o objetivo de desenvolverem o pensamento reflexivo e ajudar os alunos a adquirir competências e processos de pensamento produtivo.

Numa visão prospetiva, tendo em conta os exemplos propostos e o enquadramento teórico aduzido, digamos com Giordan (1998) que, para que resulte a transição para uma ´´sociedade de aprendizagem``, será prioridade a introdução dos alunos numa abertura pessoal aos saberes, num dispositivo de condições materiais e humanas de uma autoaprendizagem, a prosseguir ao longo da vida. A metodologia da aprendizagem por situações problemáticas visa precisamente o desenvolvimento da invenção e distingue-se da solução tradicional de problemas, ou seja,«problemas ou exercícios de aplicação que têm por objectivo accionar uma noção adquirida» (Fabre, 1999, p.86). O pensamento deste autor francês coincide com o do norte-americano Arends que faz depender a exploração das situações problemáticas, de novas tarefas do professor: «ajudar os alunos a aprender a formular questões e a procurar respostas e soluções para a sua curiosidade» (1995, p.396). Por isso Fabre situa o uso da situação problemática entre a gestão pedagógica e a gestão didática (p.138).

 

Atividades diferenciadas num manual escolar

Vimos que uma interessante contribuição para a problemática do ensino por competências é da corrente ligada ao ensino das línguas, designada por task based learning, proposta pelo Conselho da Europa. É o caso de um manual de inglês atualmente em utilização nalgumas escolas secundárias portuguesas, que deixo em anonimato, mas certamente conhecido de alguns leitores. Este manual insere-se numa orientação pedagógica que privilegia o ´´fazer`` e não o ´´ouvir``, pois está organizado segundo a metodologia de task-based learning, que evoquei acima. Por isso, ao lado das atividades que pede para serem realizadas, inclui uma breve descrição de situações relacionadas com essas atividades. E está organizado em tarefas ´´macro`` (language, listening, speakimg, reading e writing) e actividades ´´micro``, que servem de percurso de competências necessárias para a execução daquelas tarefas ´´macro``.

Notemos aliás que os exercícios de avaliação previstos por este manual permitem um percurso diferenciado escolhido por opção dos alunos, e para isso um símbolo indica perguntas mais acessíveis que as acompanhadas de outro símbolo. A valorização das perguntas com os dois símbolos é também diferente mas permite ao aluno entre optar por tarefas mais fáceis, mas que conhece melhor, a correr o risco de responder a perguntas mais valorizadas mas em que pode não obter pontuação.

Vejamos um exemplo do Student`s book, em que se pode optar por uma de duas tarefas. Uma primeira tarefa pede, num inglês simples, para se escolher de uma lista de ´´prefixos`` (un, dis, in, il, ir, im, less) alguns desses prefixos e juntá-los a uma lista de adjectivos (proper, convenient, etc). A segunda tarefa consiste em completar, num primeiro momento, frases com palavras derivadas de outras palavras indicadas ao lado de cada frase, e de, num segundo momento, explicar a escolha. A primeira tarefa é evidentemente mais fácil mas também uma tarefa de base sem a qual não se poderá avançar em termos de competência linguística. No Workbook consolida-se esta tarefa mantendo os dois níveis de dificuldade.

Em suma, o aluno não fica abandonado na obrigação de responder a perguntas de nível mais abstrato, tendo de recorrer apenas à sua memória, mas é convidado a compreender ou lembrar os recursos apresentados ao lado e a saber optar por alguns de entre eles. Pode assim, segundo as suas possibilidades, executar efetivamente uma tarefa (propiciadora do desenvolvimento de competências) e ... aprender os conceitos em causa.

 

Reflexões conclusivas. O jovem face aos manuais e outros recursos

Para lá da controvérsia do papel das competências num ensino mais eficaz, parece evidente que a escola tem tido uma função demasiado verbalista e que «entre o fazer e o conhecer, as relações são de natureza dialéctica e é assim que é preciso concretizá-las na escola», como sublinha Crahay (2006, p.106). Ora se o professoré um mediador indispensável para uma mudança no ensino, o manual escolar tem nessa mediação um papel relevante. Por outro lado, o manual é um «veículo ideológico e cultural» (Choppin, 1992, p.164) ou uma forma de «tornar legítimos» os conhecimentos que «geralmente são os dos grupos dominantes» a que importará responder com resistência e adaptação pessoal (Apple, 2002, p.14). Por isso Richaudeau (1986) sublinha que o manual tenderá a funcionar entre duas tendências, ou seja, entre uma concepção de aprendizagem indutora de repetição e imitação ou, pelo contrário, uma concepção promotora de actividades autonomizadoras.

E, por isso, se muitos manuais se tornaram puzzles cujas chaves são detidas pelos professores a quem cabe a seleção face às opções do mercado (Claudino, 2001), e se tendem a um formalismo de função meramente escolar (Duarte, 2005), Giordan propõe justamente que «este produto pedagógico pode tornar-se um formidável instrumento de autodidaxia se se tornar um livro de referência», pois num tempo em que os alunos se perdem face à multiplicidade de informação dos diferentes média, eles «procuram livros que, por um lado, vão ao essencial e que, por outro, ponham os saberes numa perspetiva geral e os interpelem de modo a fornecerem um sentido de que sentem necessidade» (1998, p.240). Assim, o manual (de modo algo semelhante ao professor) pode tornar-se um companheiro do aluno.

Nessa linha de reflexão, Gerard e Roegiers advertem (2003) e com justa razão que o aluno actual, utilizador principal do manual escolar, não é o mesmo de há alguns anos atrás, banhado por uma sociedade de imagem, em que a utilização do computador e de outros multimédia se faz mais numa lógica de aprendizagem e de descoberta que numa lógica de ensino e que essa lógica deve ser assumida pelos manuais. Concordando, concluamos que isso constitui mais uma razão para adoptar uma estratégia de curiosidade e de trabalho nas aulas e fora delas, com recurso aos manuais e a outros instrumentos educativos, numa pedagogia atenta à diversidade cultural dos jovens. Uma pedagogia de ´´curiosidade epistémica`` ou curiosidade pelo saber e de trabalho motivado por essa curiosidade trará às nossas escolas uma outra atmosfera e organização. E lembro Freinet: ´´uma disciplina racional emana naturalmente do trabalho organizado`` (1973, p.27).

 

Notas

1 Para quem não conhece Lisboa se explica que se trata de uma comprida ponte situada entre as duas margens do Rio Tejo.

 

Referências bibliográficas

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