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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.19 Lisboa  2011

 

Pensar a deficiência numa perspetiva inclusiva

 

Charles Gardou*

*Antropólogo, Professor da Universidade Lumière Lyon 2, membro do Observatório Francês de Formação, Investigação e Inovação sobre a Deficiência. charles.gardou@univ-lyon2.fr

 

Resumo

O que há de mais cultural do que definir a deficiência e dar-lhe respostas? A deficiência afecta a pessoa mas também o seu contexto mais alargado, pressionando a ordem cultural reinante. Vem de qualquer modo corromper o ideal enraizado numa cultura. Um ideal que delimita a conformidade, define os “fora da lei”, elabora categorias, vigia o conformismo das pessoas, cria e sustenta processos de interação, de oposição ou de segregação. Este artigo interroga os modos de a conceber e de a tratar na nossa cultura. Questiona de facto o formato estabelecido e as representações culturais comuns. Numa perspetiva inclusiva, convida a uma “desconstrução” e a “Novas Luzes” em relação à deficiência.

Palavras-chave: Inclusão; cultura; reinvenção da ordem social.

 

Thinking of disability in an inclusive perspective

Abstract

What is more cultural than the way to understand disability and to provide answers? Disability affects the person but also its wider environment, by challenging the prevailing cultural order. It is somehow corrupt the vision embedded in a culture. An ideal that defines the compliance, defined “unconventional”, prepares categories, ensuring that people comply, creates and maintains interaction process, opposition or segregation. This article examines the ways to devise and take it into account in our culture. It questions the format developed and the usual cultural representations. In an inclusive perspective, it invites a “deconstruction” and “New Lights” on disability.

Keywords: inclusion; culture; deconstruction; “New Enlightenment”; reinvention of the social order.

 

Numa ótica definitivamente inclusiva, esta contribuição visa interrogar, do ponto de vista antropológico e filosófico, as formas de entender e tomar em consideração a deficiência.

Antes de mais, note-se que a nossa reflexão se alimenta – poderíamos dizer «naturalmente» – do pensamento das Luzes, o movimento filosófico que atravessou a Europa no século XVIII, em particular, o de Diderot e da sua Carta Sobre os Cegos Para Uso Daqueles que Vêem; o de Rousseau e do seu Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens; e, obviamente, o de Kant e do seu lema do Iluminismo: «Sapere aude! Tem coragem de usar o teu próprio entendimento», de pensar por ti próprio, libertando-te dos medos quiméricos, das falsas crenças, dos preconceitos e de outros condicionalismos. Esta referência ao Iluminismo está associada ao que ele teve de luminoso: a sua capacidade de se insurgir contra todos os dogmas.

Ultrapassar os obscurantismos

Na esfera que nos preocupa, o Iluminismo convida a entender a deficiência como aquilo que merece ser pensado diversamente e, ao mesmo tempo, receber a dignidade do pensamento.

Ora, face a esta expressão da diversidade e da fragilidade humanas, em que medida somos, ainda, mulheres e homens das Luzes, no «desfalecimento», na «reflexão protelada», afastados de um pensamento iluminado?

De que obscurantismos persistentes temos ainda de nos libertar no âmbito da escola, do trabalho e em muitos outros: ignorância, superstições, falsas crenças, estereótipos, representações colectivas cristalizadas e outros hábitos de heteronomia, que Kant denuncia na sua Crítica da Faculdade de Julgar?

É como se, no fundo, permanecêssemos aprisionados às categorizações, convenções, preconceitos comuns, desprovidos da capacidade de sentir diversamente, de interrogar de novo e admitir a vida polimorfa à nossa volta.

Na verdade, as nossas sociedades são animadas por dois movimentos divergentes: por um lado, uma febre de modernidade e de futuro, como na área das ciências, da técnica e da comunicação; por outro, uma resistência, até mesmo uma imobilidade nos arcaísmos, quando se trata do olhar que lançamos aos nossos pares em situação de deficiência. Um olhar pesado de incrustações, de depósitos ancestrais que continuam a gerar a sua exclusão. Apesar de nunca termos ido tão longe e tantas vezes ao âmago da inventividade, o espírito humano parece limitado nesta esfera.

Podemos, contudo, medir a amplitude das consequências, senão mesmo dos perigos associados à indiferença, às insuficiências graves, colectivas e individuais, às discriminações e à falta de voluntarismo em relação às pessoas com deficiência. Além das violências concretas, elas sofrem violências simbólicas, silenciosas, de tal forma insidiosas que as ignoram. Têm por nome incompreensão, negligência, marginalização, por vezes desprezo. Nós tratamos, talvez inconscientemente, o problema da deficiência com certas representações que antecederam a época das Luzes, reforçadas por um excesso de certezas. Esforcemo-nos, pois, por sair do impasse a que esta questão por norma conduz.

Há que, claramente, tomar plena consciência de que a deficiência não resulta exclusivamente da deficiência ou da pessoa em si, mas, por um lado, da forma como os espaços de educação, de cultura, de trabalho e, de modo geral, a sociedade a considera e, por outro, as respostas que esses lhe dão. A abordagem médica, que reduz a deficiência a uma dimensão pessoal resultante de uma doença ou de um acidente, exige ser completada pela tomada em consideração do meio físico e social envolvente: os contextos facilitadores atenuam as suas consequências, ao passo que os inibidores, pelo contrário, aumentam-nas. É esta abordagem renovada, resultante da Classificação Internacional do Funcionamento da Deficiência e da Saúde, adoptada em 2001, que inspira a expressão «situação de deficiência» largamente utilizada.

Desconstruir as nossas concepções usuais

Pensar esta questão – que é o próprio fundamento do Iluminismo – não é cortejar, seduzir, nem é provar a complacência para com os poderes públicos, os média e a opinião comum. A mudança necessária consiste, em parte, na audácia de pensarmos contra o conformismo e, seguramente, contra nós próprios; em permitir-nos ser inovadores, criativos, originais; em ousarmos estabelecer novos princípios de vida com e para os mais vulneráveis. Mas, para que algo de novo possa nascer, é preciso que nos permitamos pôr o logos tradicional de pernas para o ar.

Só a custo de um descentramento do eixo das nossas concepções e das nossas práticas é que poderemos conseguir destabilizar a ordem geométrica do nosso universo normativo e dos seus cânones retóricos. Girard (1998) fala da violência da mimesis, da observação da norma, do conformismo. Só uma outra língua que não a do conformismo, uma nova língua, com pronúncias estranhas e desconcertantes, pode permitir redesenhar o lugar que a nossa cultura deve conferir, aqui e agora, à diversidade dos rostos humanos.

Pensamos igualmente em Derrida (1972) que não queria renunciar a nenhuma das Luzes possíveis sobre a consciência, o sujeito, a liberdade. Ele aspirava a uma vida diferente da economia do possível, uma vida impossível sem dúvida, mas a única que vale a pena ser vivida, sem álibi, de uma vez por todas. A sua ideia de desconstrução deve ser, do nosso ponto de vista, colocada no centro da reflexão sobre a deficiência.

Não se trata de destruir o que quer que seja: desconstruir não é destruir. Não é uma atitude negativa, antes a análise de alguma coisa que consideramos construída e que queremos des-cristalizar, des-sedimentar. Qualquer coisa cujo carácter supostamente natural interrogamos: uma tradição, uma instituição, um dispositivo, uma cultura.

A transformação exigida não pode ser desencadeada senão por um processo colectivo, mobilizador de recursos de diferentes actores sociais e não só de pessoas directamente afectadas ou de militantes da causa dos deficientes. Essa supõe que o corpo social aceite deixar-se apreender por abordagens, formas de organização e conceitos renovados.

A terminologia estigmatizante, por exemplo, precisa de dar lugar às palavras e noções que correspondem e remetem para o movimento geral, sem alienar a pessoa nas suas carências. Provavelmente poderemos assim abandonar, num futuro mais ou menos próximo, o termo deficiência, que faz parte seguramente dos conceitos enfraquecidos, senão mesmo esgotados, que continuam a subsistir, alimentando confusões e legitimando algumas exclusões.

Os conceitos mais comuns, mais universais, contribuem para atenuar as separações, mas não apagam as singularidades. Para que uma história comum se possa escrever, para que as ligações se teçam e as palavras ataquem a fronteira, retomando as palavras de Kafka (1954)[1], ele próprio muito vulnerável, devem substituir-se as palavras-fechadas, as palavras vulnerantes, como se diz das armas. Porque, como sabemos, o cerne da questão humana reside num jogo de imagens associadas às palavras, ou seja, naquilo que os psicanalistas chamam simbolização – pôr por palavras.

Fazer triunfar os direitos humanos

Ora, certamente por causa de uma tradição caritativa, que marca manifestamente a cultura judaico-cristã, persiste a dificuldade em entender que as respostas a dar à deficiência relevam do direito e não de um dever compassivo; que a compreensão das suas repercussões advém menos da emoção e da boa consciência do que da inteligência e dos direitos humanos.

No outro extremo, esbarramos com a sacralização do carácter racional do homem, de onde ele retira a essência da sua dignidade. Esta está unicamente ligada a uma forma de inteligência operativa ou de pensamento instrumental: era a tese de Platão, Aristóteles ou ainda de Santo Agostinho. E, muito mais tarde, a de Descartes: “A razão é a única coisa que nos torna humanos e nos distingue dos animais”[2]

Em nome desta razão todo-poderosa, ainda que ilusória, da euforia do poder face à natureza dominada, à vida manipulada, sacralizamos a aparência e o prazer até à obsessão da perfeição normalizada do corpo; esperamos uma vida sem carências, sem limites, sem rugas, sem velhice e sem morte: uma vida ideal correspondente aos critérios veiculados pelo imaginário social. Nós reconhecemos, como se costuma dizer, as ilusões pelo ruído que elas fazem quando se esfumam.

Nunca a epidemia do auto-centramento e da aparência eclodiu com tanta violência: «Eu penso, logo existo». O individualismo tornou-se a regra. O Homem encheu-se de uma ilusão de auto-suficiência e de uma confiança ilimitada no indivíduo e numa sociedade da felicidade individual. Os feitos científicos, o engenho a dominar a natureza, a matéria, a vida, o universo e a aparente aptidão para realizar tudo o que, até agora, parecia impossível, marcam a nossa cultura do progresso com demasiadas certezas. Verifica-se, pois, um real desequilíbrio relacional devido ao enfraquecimento da ligação entre cidadãos e à consequente dissolução da comunidade. Os mais frágeis são os primeiros a sofrer as ondas de choque de uma sociedade, mais inspirada na exigência da independência do que na consciência do outro, que não consegue dar-se um sentido superior através da ligação ao outro. O culto da excelência e da performance do corpo preside à organização das nossas existências. Nós sonhamos ser mestres e donos da natureza num mundo onde os homens já não sofram as situações mas as dominem. Daí o lugar, cada vez maior, da competição e da concorrência num mundo que se move rapidamente, que não dá tempo. Cada um é intimado a tornar-se o gestor da sua própria vida, a comportar-se como um lutador, um vencedor, um herói, cada vez mais rápido, extraordinário e competitivo. Aqueles que a deficiência fragiliza têm de provar que podem entrar na lógica da lei do mais forte, do combate para existir, ainda que este esteja viciado pelas assimetrias e injustiças.

Mas se eles não conseguem são catalogados, classificados, rotulados em função do diagnóstico inicial, baseado na ideia de que a deficiência é um atributo da pessoa, negando a singularidade e as necessidades específicas de cada um. Este processo de categorização leva à sua estigmatização que resulta, em grande medida, de uma exigência de classificação, criando uma lógica de localização institucional, uma espécie de «prét-à-porter» (uma deficiência = uma estrutura, um lugar predeterminado), quando, ao invés, conviria pensar em termos de trajectória em movimento, de soluções «à medida». Concluímos com uma paradoxal leviandade: tendo em consideração a sua deficiência, eis a estrutura ad hoc onde será colocado. Esta lógica é um entrave ao desenvolvimento e ao acesso às disposições e dispositivos de direito comum. Nós continuamos a rotular, desconhecendo que «toda a determinação é uma negação» (omnis determinatio est negatio), segundo a expressão de Espinosa (1954, p.1231)[3]

Elaborar um questionamento lúcido

É olhando mais a fundo esta realidade que poderemos questioná-la firme e lucidamente, criando fracturas que visam uma espécie de inversão, reinvenção, da nossa ordem social e cultural.

Segue-se, assim, uma re-interrogação, sem complacência, da forma como entendemos e conduzimos a nossa acção, a favor das pessoas em situação de deficiência, nos diferentes domínios: vida autónoma e cidadania; saúde, ética e deontologia; vida afectiva e sexual; vida profissional; vida escolar; vida cultural e artística; vida desportiva e lazer.

O acesso à autonomia e à cidadania é, ainda frequentemente, encarado na óptica de tornar acessíveis espaços ou serviços, como se a simples co-presença de indivíduos bastasse para garantir entre eles o exercício de uma democracia partilhada. Esta concepção redutora tem de ser eliminada de forma a serem interrogadas as condições de uma cidadania renovada em torno de três dimensões complementares: ser cidadão é, antes de mais, sentir-se autónomo na cidade; é, também, ser actor da sua própria história, capaz de identificar as suas necessidades, de reconhecer os seus desejos, de formular as suas questões, de realizar os seus projectos; é, ainda, sentir-se responsável pela comunidade, capaz de se comprometer em prol do futuro comum. Coloca-se, assim, a questão da representação política e social das pessoas em situação de deficiência.

A nossa cultura continua a designar essas pessoas como «deficientes» e, principalmente, como sendo as que não se podem vergar às exigências de sucesso individual e de produtividade; as que entram em conflito com um ideal democrático, procurando eliminar juridicamente as diferenças ao proclamarem o direito à igualdade dos cidadãos. É urgente inverter esta tendência.

No que respeita à sua vida afectiva, familiar e sexual, há que romper com uma cultura de evasão e de silêncios embaraçados sobre a expressão da sua afectividade e da sua sexualidade; criar condições para que todos possam exercer o direito fundamental de amar e de ser amado, que humaniza o homem; acabar com as representações, os tabus, a privação de direitos ainda tão presentes.

No que se refere à vida profissional, há ainda grandes diferenças entre as vontades colectivas inclusivas, ostentadas de forma recorrente, e as práticas, incluindo as inovadoras, produzidas pelos actores do sector profissional que entram em conflito com a ordem do mundo.

Em matéria de vida escolar, num panorama onde se tende a desvalorizar os percursos atípicos, é a própria cultura do sistema educativo que está globalmente em causa e, em primeiro lugar, a formação dos vários actores.

Tratando-se da cultura e da arte, ostenta-se geralmente a vontade de fazer delas espaços de abertura e de mestiçagem, sem fossos, barreiras ou fronteiras. Mas dificilmente nos conseguimos abstrair da arte para zelar ou da arte adaptada/especializada e evitar dois perigos iminentes: por um lado, as práticas estigmatizantes; por outro, a obrigação de ser um génio, à semelhança de Toulouse-Lautrec ou de Petrucciani.

Por fim, no âmbito do desporto e do lazer, dificilmente se consegue escapar ao tudo ou nada (expectativas de performances de alto nível ou falta de oferta de possibilidades) com vista a reabilitar as noções de bem-estar e de prazer pelo desporto. É igualmente difícil passar das práticas «ao lado de» para as práticas «com».

Agir sobre o modo de vida

Afloremos aqui algumas questões: como inflectir as significações adquiridas e persistentes que veiculamos através do nosso enraizamento cultural? Como modificar as atitudes, condutas e comportamentos comuns que reproduzimos por herança social? Quais os caminhos a tomar para promover as condições de uma real igualdade de tratamento entre cidadãos e de uma aplicação efectiva do direito para aqueles que dele são privados? O que fazer para ajudar os nossos pares a viverem melhor o desconforto radical da sua aventura singular? Quais as alavancas a accionar para suscitar práticas e dispositivos realmente equitativos, inclusivos, e alcançar, para além de uma teoria, uma prática dos direitos do homem?

Utilizámos conscientemente a palavra alavanca, que remete para um meio de acção e, mais precisamente, para o que permite vencer uma resistência.

As alavancas devem ser projectadas segundo o substrato cultural dado, porque a deficiência deve ser concebida, de maneira mais ou menos clara e determinada, a partir do fundo cultural, sem, no entanto, negar, ilusoriamente, a realidade da deficiência. Trata-se de reconhecer que uma situação de deficiência resulta, por vezes, das consequências de uma deficiência revelada e de factores associados ao tecido do meio. Temos ainda algumas dificuldades em admitir e acreditar em Bruner (1990, 2000), ao demonstrar que o homem é único em virtude do seu desenvolvimento, que não depende da história reflectida nos seus genes ou cromossomas, mas da história reflectida da sua cultura. Por conseguinte, este meio não é um dado mas um constructo, urdido de elementos sociais e relacionais, podendo facilitar ou, ao invés, inibir as actividades e a participação. Por conseguinte, nós podemos e devemos agir sobre ele, «trabalhá-lo», fazer cair as barreiras do meio para atenuar os efeitos da deficiência objectiva.

Se as rampas de acesso, os pictogramas de sinalização, as novas tecnologias sociais (informação, comunicação, serviços online), os suportes apropriados e as técnicas especializadas (secretariado, descrição áudio, interpretação em linguagem gestual, etc.) não eliminam a deficiência, reduzem, pelo menos, as suas ressonâncias. É o princípio de conversão do obstáculo, a acessibilidade na sua acepção mais aberta.

Não deveríamos pensar o outro a partir do que lhe falta, das suas lacunas, das suas carências, nem negar, por ignorância ou por comodidade, o impacto do meio. Como Perec (2000, p. 13), gosto de dizer que “viver é passar de um espaço ao outro, tentando o mais possível não esbarrar em nada”. A recusa de proceder às adaptações necessárias não só cria desvantagens reais, como também constitui, por si mesma, uma discriminação. É o que acontece com a falta de acessibilidades aos lugares culturais. Convém não nos esquecermos que esta preocupação inclusiva é para benefício de todos, pois não se trata de pensar e agir em termos específicos somente para os grupos considerados particulares, mas de tornar as acessibilidades mais confortáveis, de as humanizar para todos, segundo o princípio universal de acessibilidade e do conceito de qualidade de vida.

O que importa é consciencializarmo-nos de que nós somos feitos para vivermos em grupo: o que é facilitador para uns é benéfico para outros. Sejam arquitecturais, educativos, sociais, artísticos ou culturais, os planos inclinados universais são universalmente úteis.

Abrir a singularidade ao universal

Contudo, entre as características marcantes da nossa cultura – e está longe de ser a única – há uma tendência para «marginalizar» a problemática da deficiência. Em relação aos especialistas e outros entendidos na matéria, bem como aos militantes da causa diz-se: «é um problema deles, não é nosso. Não nos diz directamente respeito: não é da nossa competência».

Pelas mesmas razões, tendemos a relegar a deficiência para segundo plano. Como uma vergonha a esconder, uma mácula a apagar. Como se quiséssemos esquecer que a nossa história e que cada uma das nossas histórias estão pejadas de imperfeições e urdidas de anomalias. Como se a deficiência fosse de uma dimensão extraordinária, em vez de a considerarmos normal cada vez que pensamos o homem e os seus direitos, que o educamos ou formamos, que elaboramos as regras e leis, que concebemos a habitabilidade social ou que criamos espaços educativos, culturais e de cidadania. Somos tentados a instalar «algures» os que são afectados: a «insularizá-los». Irredutíveis à sua deficiência e ao seu significante que os designa como «deficientes», eles não fazem mais que trazer à luz os universais antropológicos: a infinita diversidade humana, a sua polifonia, o movimento das suas aparências, a sua inconstância, a vulnerabilidade como sua essência. Ecce homo!

Nós queremos sublinhar que o que caracteriza a problemática da deficiência, da qual falámos em particular, é precisamente esta significação da universalidade, na medida em que encerra em si a forma integral da condição humana, não deixando nada de fora. Os estudos e as respectivas investigações não podem ser feitas por um sistema de pensamento fechado, dobrado sobre si mesmo, dogmático. Trata-se de abrir a singularidade – por mais radical que seja – ao universal, bebendo na fonte de referências culturais comuns. Se uma reflexão original ou assumida com originalidade é desejável, ela é tanto mais legítima quanto mais tomar como princípio a sua recusa de confinar os problemas ligados à deficiência a uma categoria de «questões particulares». Ameaçada de ser subjugada cada vez que ela se encerra nas fronteiras, exige uma mistura cultural, uma permeabilidade a outras possibilidades: não um pensamento do sistema mas um pensamento de arquipélago, como defende Glissant (1996).

O universal está no âmago do particular: o homem na sua sociedade, na sua cultura, no seu mundo; em relação a si próprio e aos «seus outros». Ele é o espelho ampliador, a amplificação das grandes inquietudes humanas. A propósito das exclusões a que induz, Foucault diz precisamente que estas revelam «a forma como as sociedades se desembaraçam, não dos mortos, mas dos vivos»[4]. Faz eco, de certo modo, da afirmação de Montesquieu, filósofo do Iluminismo e um dos fundadores da sociologia: «Nós fechamos alguns doidos em casas para provar que os que estão cá fora não o são»[5]. Para além das pessoas em situação de deficiência, particularmente ameaçadas, os fenómenos de exclusão que conhecemos retratam bem a dificuldade do nosso mundo em ser tolerante.

Os mais vulneráveis pagam, aliás pagamos todos, um pesado tributo a esta divisão que aniquila a partilha, a troca recíproca de benefícios. É a própria concepção de que a sociedade deve existir como um conjunto de (dis)semelhantes que está errada.

Pôr fim aos privilégios

O actual recurso a termos, como o de inclusão, traduz claramente uma dupla rejeição: de uma sociedade, de uma escola, de um universo profissional, de espaços de cultura, de desporto, de lazer, dos quais os saudáveis se considerariam proprietários, apropriando-se deles como seus «privilégios exclusivos» ou seus «prazeres exclusivos», segundo a de Rousseau (1985); bem como de uma forma de exílio dos que consideramos incómodos, estrangeiros, incompatíveis. Há inclusão quando uma organização social se torna flexível e modifica o seu funcionamento. O que sobressai é a acção no contexto, de forma a fazer sentido para cada um em concreto: o que constitui a tua unicidade (a tua pertença cultural, a tua identidade sexual, as tuas potencialidades, as tuas dificuldades) não te pode privar do teu direito de acesso ao património comum, a todos os bens sociais: educação, trabalho, arte e cultura, desporto e lazer, etc. Não são exclusivos de ninguém. A inclusão não é uma necessidade apenas do âmbito da deficiência: ela decorre do investimento global e convida a «trabalhar» em profundidade a massa cultural.

Enfim, perpetua-se a crença numa incapacidade global e numa rigidez que está irremediavelmente associada à deficiência: Uma vez deficiente, deficiente para sempre. Esta tendência para uma leitura negativista, centrada nas carências, aniquila a vontade de agir, de se projectar; ela domina sob a forma dum sentimento desprezível, o que resulta num corte com a cidade, num enclausuramento no pathos, na transferência da deficiência para a tutela económica e, às vezes, num estatuto de menoridade para a vida. Mas quem pode calcular a «produtividade» dos que entendemos serem «improdutivos»? Quem pode prever o que pode «produzir-se» quando lhes concedemos o direito de usarem as suas mãos e o seu intelecto?

A polarização das suas inaptidões, directamente deduzidas de um diagnóstico médico e associadas a preconceitos recorrentes, gera um fenómeno de descrédito quase endémico. Sempre os mesmos motivos em causa: reduzimos a pessoa a alguns aspectos negativos. Um pouco como se não víssemos numa aguarela nada mais que as suas pinceladas escuras; como se as isolássemos, para observar, à parte, as peças menos claras de um quebra-cabeças.

Isso parece dar razão a Le Blanc (2007, p. 133) afirmando que “quanto mais um indivíduo é vulnerável, menos é apoiado nas suas próprias formas de vida e mais a provação da exclusão o expõe à negação da sua humanidade”.

Para concluir

As pessoas em situação de deficiência esperam uma sociedade menos exclusiva, menos normativa, sem masmorras nem grades. Elas esperam curvas e caminhos ondulantes, não um espaço social quadrado, cristalizado, fechado. É possível traçar, com elas, outros horizontes, contrariar o seu destino, tornar a sua vida uma «aventura». Utopia? Não, na condição, por um lado, de aprender a contestar o poder das normas que nos governam; e, por outro, de desenvolver uma vontade profundamente reformadora, alheia ao miserabilismo ou ao heroísmo.

As nossas últimas palavras pretendem sublinhar que a transformação cultural, aqui esboçada, subentende a ambição de desenhar a matriz de um universo social unido, reconhecendo a fragilidade como condição humana e dando lugar às suas diversas expressões e aos direitos que dela emanam. A única ligação inata entre os homens é a sua vulnerabilidade.

Esta transformação passa pela restauração duma simetria e duma estética da relação. Numa perspectiva inclusiva, estas são as novas Luzes às quais resta dar forma.

 

Referências bibliográficas

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Notas

Tradução do original em francês de Sandra Escobar

Revisão científica de Isabel Sanches

1A partir da expressão de Franz Kafka: «Toute littérature est assaut contre la frontière», presente ao longo da sua obra.

2Expressão usada ao longo da sua obra.

3Esta expressão aparece, embora de forma diferente, na carta de Spinoza a Jelles, em 2 de Junho de 1674 (cf Spinoza, B. (1954). Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, colecção «Bibliothèque de la Pléiade»).

4Expressão usada ao longo da sua obra.

5Expressão usada ao longo da sua obra.