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Revista Lusófona de Educação

Print version ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.20 Lisboa  2012

 

Literatura infantil: livros sobre livros

 

Carlos Nogueira*

*Professor da Universidade Nova de Lisboa (FCSH) e investigador do IELT
carlosnogueira1@sapo.pt

 

Saramago, José (2001). A Maior Flor do Mundo. Ilustração de Luís Caetano. Lisboa: Editorial Caminho.

Pedreira, Maria do Rosário (2005). A Biblioteca do Avô. Ilustrações de Joana Quental. Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi.

Letria, José Jorge (2007). O Canteiro dos Livros. Ilustrações de Carla Nazareth. 2.ª ed. Lisboa: Texto Editores.

 

"E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?" (José Saramago, A Maior Flor do Mundo, 2001 [texto da contracapa].

A Biblioteca do Avô e O Canteiro dos Livros são narrativas, dirigidas antes de mais a um público infantil e juvenil, que, como os títulos desde logo sugerem, têm como tema o gosto pelo livro e pela leitura. A Maior Flor do Mundo também trata a questão do livro, das "histórias para crianças"(s/p), mas o que se destaca no título é o "motivo" da narrativa: a flor, "caída" e "murcha", que o "herói menino" encontrou no cimo de uma "inóspita colina redonda", e, de imediato, por ser menino "especial de história", quis salvar.

Nestas três obras joga-se o jogo dos livros, da Literatura. Eduardo Prado Coelho chamou muitas vezes a esta instauração de um real no real, estabelecida no espaço do discurso, do pensamento e do sensorial, o jogo do infinito (Coelho, 2004: 7). Este real do imaginário produz-se, de acordo com a tese defendida nestes textos, a partir do contacto dinâmico entre o sujeito que lê e o objectolivro.

A Maior Flor do Mundo abre com um metatexto que é uma declaração de princípio do narrador sobre as coordenadas essenciais da escrita para a infância: "As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas". Mas o narrador não se limita a notar a especificidade dos textos produzidos para os mais novos; apresenta-se também como autor real. São, aliás, conhecidas estas palavras do autor de O Memorial do Convento: "a figura do narrador não existe"; "só o autor exerce função narrativa real na obra de ficção, qualquer que ela seja, romance, conto ou teatro" (Saramago, 1997: 38).

José Saramago, autor e adulto, é quem pensa e escreve a história, quem comunica as suas vivências e a sua visão do mundo. O seu projecto, contudo, falhou; por isso, num acto de humildade e sinceridade, ele confessa ao leitor que apenas lhe pode dar uma história de pouco valor: "Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena. Além de ser preciso saber escolher as palavras, faz falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e muito explicada, uma paciência muito grande – e a mim falta-me pelo menos a paciência, do que peço desculpa". Estas palavras, esta captatio benevolentia, não são uma mera estratégia retórica; visam aproximar o autor dos leitores e prepará-los para a ideia, formulada no final, de que eles próprios podem vir a escrever histórias.

José Saramago não quer esconder nem ampliar o seu nome e a sua imagem; interessa-lhe apenas contar uma história que ele, a princípio, acreditava que "seria a mais linda de todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas". Isto é já uma instrução de leitura; o leitor, infantil ou adulto, cria expectativas em relação à poética alegadamente pobre de um criador que, um pouco mais à frente, marca mais uma vez a distância entre o valor da experiência vivida pelo menino e a história que a narra: «Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta sem literatura: "Vou ou não vou?" E foi».

Tudo o que o menino faz é da ordem do natural e do inefável: deambular "pelos campos, entre extensos olivais, ladeando misteriosas sebes cobertas de campainhas brancas, e outras vezes metendo por bosques de altos freixos onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule sangrado de fresco como uma veia branca e verde". Esta metáfora e esta comparação provam que o menino não distingue o humano do animal e vegetal; para ele, que se abre ao mundo recriando-o, não há senão o natural do real-e-do-imaginário.

Tudo, para o menino e para o leitor, é estranhamento e estremecimento, descoberta e prazer: "Ó que feliz ia o menino!". O maior está no mínimo, na flor que ele "achou que tinha de salvar" (o leitor infantil competente estabelecerá um paralelismo com a rosa d'O Principezinho); o mínimo pede o desmedido que só a autenticidade da imaginação pode concretizar. A aventura e as vitórias do menino inscrevem-se na linguagem do mito: o elemento água é vida, a saga em demanda de umas escassas gotas é a conquista do impossível: "Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longe estava!... Não importa". A sua viagem significa a dissolução e a metamorfose de todas as leis físicas e biológicas. Ele e o mundo são um; as suas palavras e os seus gestos são uma actividade poética, um fazer:

Desce o menino a montanha,
Atravessa o mundo todo,
Chega ao grande rio Nilo,
No côncavo das mãos recolhe
Quanto de água lá cabia,
Volta o mundo a atravessar,
Pela vertente se arrasta,
Três gotas que lá chegaram,
Bebeu-as a flor sedenta.
Vinte vezes cá e lá,
Cem mil viagens à Lua,
O sangue nos pés descalços,
Mas a flor aprumada
Já dava cheiro no ar,
E como se fosse um carvalho
Deitava sombra no chão.

Esta história constrói-se sobre um projecto ambicioso e revela-se uma obraprima na forma e no conteúdo, apesar de o autor não ver qualquer grandeza no seu texto; ele diz-nos apenas que quis "contar, com pormenores, uma linda história que um dia inventei, mas que, assim como a vão ler, é apenas o resumo de uma história, que em duas palavras se diz...".

Contada a história, o narrador insiste na sua inabilidade enquanto escritor de contos para a infância: "Este era o conto que eu queria contar. Tenho pena de não saber escrever histórias para crianças. Mas ao menos ficaram sabendo como a história seria, e poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais simples do que as minhas, e talvez mais tarde venham a saber escrever histórias para as crianças...". A narrativa assume-se simplesmente como um gesto de cumplicidade e um convite (o leitor é convidado a ser um escritor): "Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?"

José Saramago trata o seu destinatário sem paternalismos. Dá-lhe a ler um texto rico em simbolização e transfiguração mas também reflecte metaliterariamente com ele acerca dos mistérios da imaginação e da escrita: "Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinho. Dali para diante começava o planeta Marte, efeito literário de que ele não tem responsabilidade, mas com que a liberdade do autor acha poder hoje aconchegar a frase". O começo propriamente dito da narrativa, que se segue à informação de que "Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma aldeia", coloca a página como espaço material de criação de palavras e universos, de personagens e sonhos.

O texto de José Saramago é, afinal, exigente. Mas há uma diferença entre exigência e ilegibilidade. José Saramago fala explicitamente sobre "infância" aos seus destinatários infantis; diz-lhes (e diz-nos) que é desse tempo que vem a essência de cada ser humano, e mostra-lhes que de uma página em branco pode nascer um mundo que, criado pelo autor e pelo acto de escrita, existe já em cada criança: "Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo, naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu...".

Mas esta não é apenas a história de uma criança que, salvando uma flor, salva o mundo (leitura metafórica); é a história de todas as crianças que não se vêem privadas da sua infância. Ler este texto pode significar, para o jovem leitor, aprender a viver uma "alegre inconsciência" e a ter "consciência disso" (como escreve Fernando Pessoa no poema "Ela canta, pobre ceifeira"). Viver a infância é, para o menino, salvar o mundo e ser salvo por ele; a família e os vizinhos partem em "busca do menino" e, quando o encontram, levam-no para casa,"rodeado de todo o respeito, como obra de milagre".

As ilustrações desta obra também levantam uma questão pertinente e complexa tanto para os leitores em geral como para a crítica e a teoria literárias: a da relação, a que já aludimos, entre o autor empírico e o sujeito que enuncia o texto. A criança, para nos referirmos apenas ao destinatário directo desta obra, quer um corpo humano adulto que legitime o corpo verbal: o contador e/ou o autor. N'A Maior Flor do Mundo, a encarnação do escritor começa no olhar do menino da história, que, colocado no canto superior esquerdo da primeira página, espreita para o interior do livro.

A criatura vê o seu criador. As semelhanças entre a imagem do escritor e José Saramago são evidentes, e serão por certo comentadas pelos adultos que folheiem o livro com uma criança. O autor, em três planos sucessivamente ampliados, sentado a uma mesa apenas com uma caneta e um copo de água, reflecte sobre a sua história e sobre os modos de a dizer. O primeiro quadro é pequeno, difuso e misterioso; o seu conteúdo é perceptível porque os dois quadros seguintes constituem uma aproximação ritmada (o escritor, no terceiro plano, já tem uma caneta na mão mas não escreve; e continua a apoiar a cabeça, agora com a esquerda). Há uma ligação entre este quadro e o da última página, que também é diminuto e enigmático. Este quadro é, aliás, mais ambíguo, apesar de ser também esclarecido por um plano um pouco maior em que é possível distinguir sobretudo a flor no alto da "inóspita colina redonda como uma tigela voltada", segundo a descrição inicial; os dois outros elementos são talvez o escritor na sua secretária e uma casa.

Há, portanto, uma celebração do escritor, que está bem presente em todo o livro: na iconografia e na deixis pronominal e verbal de primeira pessoa do singular. Da relação entre as imagens, as considerações do narrador-escritor e a sua história advêm noções como a procura de domínio técnico e disciplinado da subjectividade e da construção narrativa ou a demanda de uma história de sentido exemplar. Estas questões têm uma origem: o autor, que dedica a sua vida a um ofício árduo e solitário mas ao mesmo tempo recompensador e feliz.

As imagens harmonizam-se com os sentidos do texto. Construídas num traço que tem tanto de representação figurativa como impressionista, evocam o visto, o vivido e o imaginado à maneira infantil. São várias as técnicas que intervêm nesta figuração da realidade-do-maravilhoso: românticas (a preferência pelo cromatismo avermelhado e acastanhado ou a mitificação das figuras populares e do maravilhoso como a fada que se encontra na cortina e os pequenos seres humanos que saem de livros ou olham o escritor a partir de uma estante), modernistas ou surrealistas (a colagem, a intersecção de planos espaciais e de elementos mais ou menos insólitos ou tornados estranhos pelo contexto) e naïfs (os desenhos de flores e da nave espacial com o menino dentro ou a impressão de textura rugosa quer do fundo de página quer de alguns planos-chave como o do rosto do menino sobre o mundo).

A primeira imagem a duas páginas, que, como o texto, nasce literalmente da mão e da caneta do escritor, é uma síntese dessas matrizes. Acrescem, na amplidão deste primeiro grande plano, os ritmos do menino a correr e do pássaro a voar, que imprimem à ilustração mobilidade e versatilidade fílmica; nas duas páginas seguintes, o menino desliza sobre uma ponte, colocada bem acima de vastas extensões de terra que parecem ser países, incluindo uma parte de Portugal com algumas cidades deslocadas da sua posição original.

As mãos do escritor, a caneta, a folha em branco e o copo de água são, não por acaso, os pormenores que mais se repetem. Simbolizam o trabalho do escritor; os três primeiros formam exclusivamente a imagem que ilustra o prelúdio desta história e, por extensão, de qualquer história.

Este polimorfismo principia na capa, no seu verso e na primeira página, e estende-se até à contracapa, ao seu interior e à penúltima página. Mas a verdade é que toda a ilustração propõe leituras metafóricas e simbólicas que convergem em ideias transversais a toda a obra de José Saramago: ética, dignidade, liberdade, humanismo. Por exemplo: a régua que acompanha o caule da flor; o pássaro pousado ao lado de Portugal, mais propriamente acima do "Dist. de Santarém", aqui situado no Sul; o coelho, que, debaixo da ponte, olha a medo para o menino; ou as mãos do menino, que, abertas, deitam uma gota de água sobre a Terra (a imagem é reproduzida três vezes, de modo a abarcar todos os continentes e a transmitir a ideia de que a acção do menino é universal).

Sem as mãos, a caneta e a folha de papel não há a nomeação e a revitalização do comum e do inominável, não há escrita. No final, o escritor, com uma mão sobre o copo da água, olha sorridente para a flor; esse sorriso, acompanhado pelas palavras que dirige aos seus destinatários, é outro sinal de cumplicidade (que convoca e prolonga o contacto inicial); o livro, corpo animizado pelos signos linguísticos e pictóricos que transporta, confirma-se como palavra e imagem, voz e olhar. A realidade que existe para lá do texto não é apagada mas o texto também não se reduz a uma directa e previsível transposição da realidade.

Há uma "moral da história", como declara o narrador-escritor. Uma moral que constitui uma realidade completa, não um complemento da realidade; de tal modo que é possível dizer que a realidade exterior ao texto passará a incorporar a marca desta história: "Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos".

N'A Biblioteca do Avô, de Maria do Rosário Pedreira, fala-se do antes e do depois do contacto com o livro. O antes não é um momento pré-verbal, de desconhecimento da palavra literária ou desinteresse pelas histórias de que os livros se alimentam; é um tempo preenchido pelas histórias que Nimbo ouve ao avô e que ele próprio, "que parece que não vive neste mundo"(s/p), recria.

O tempo sem livros é já, para o jovem protagonista, tempo-espaço de desejo do livro: "Em todo o caso, ao contrário do que o avô tinha previsto (o avô às vezes também se enganava), aprender a ler não fez com que Nimbo deixasse de andar com a cabeça nas nuvens. Pelo contrário: os textos que lia na escola falavam de mundos que ele não conhecia, mundos muito diferentes da sua aldeia; e Nimbo, quando chegava a casa, sentava-se num canto a sonhar com esses mundos e nem ouvia quando os pais o chamavam para vir para a mesa". O movimento definitivo para a realidade "feliz" e integral do imaginário dá-se com a descoberta da biblioteca do avô, revelada a Nimbo pela irmã. Sublinhamos o adjectivo "feliz" porque, sem livros, ou apenas com os textos da escola, "O tempo foi passando com Nimbo a ficar cada vez mais sonhador e tristonho com o seu pequeno mundo; mas o pior de tudo foi quando as aulas chegaram ao fim e começaram as férias grandes".

A viagem à biblioteca do avô, guardada numa "arca velha", é a primeira de um ciclo sem fim de viagens que se constroem na verticalidade do imaginário. É através desses "livros onde havia centenas de histórias sobre o mar, e uma colina onde os rebanhos se entretinham a pastar na Primavera, e uma montanha mágica que tocava a Lua, e muitas muitas cidades que o silêncio não se atrevia a visitar", que Nimbo se liberta da horizontalidade da "planície amarela que teimava em estender-se diante dos seus olhos: o sol era amarelo, o trigo era amarelo, o feno era amarelo; as casas tinham todas uma risca amarela; e até os cabelos das pessoas, em vindo o Verão, tomavam aquela cor loira das espigas quando a luz lhes batia...".

Nimbo não é um ensimesmado ou um melancólico, um alienado ou um desesperado que não sabe rir nem apreciar a realidade circundante: simplesmente, "o seu coração", perante a perspectiva de umas férias intermináveis e monótonas, "ficou muito apertado dentro do peito quando percebeu que, para além de ter de ficar numa aldeia que conhecia de cor e salteado – que tinha as casas mais bonitas do mundo mas que eram todas iguais –, também iria ter de ficar dois meses praticamente sozinho: sem os amigos, que já estavam a fazer as malas para partir; e, sobretudo, sem o avô, que durante tantos anos tinha enchido os seus verões com as histórias fantásticas das suas viagens".O livro desencadeará a ligação entre a temporalidade e a salvação; salvação de Nimbo enquanto ser no tempo e enquanto pessoa numa realidade finalmente sublimada pelo discurso, enquanto corpo e ser que se reconhecem num tempo e num espaço de deslumbramento.

Para Nimbo, o livro é uma interrogação e uma reconstrução do real, um mundo de experiência, conhecimento, frustração, alegria e dor. Cada página, no seu múltiplo e interminável desejo de dizer, é lugar de lugares, assombro e movimento para nova procura, preenchimento de um vazio ontológico, e resistência à mediocridade e à voragem do quotidiano. Por isso, "até ser muito grande – tão grande que as pessoas não tiveram outro remédio senão puxar pela cabeça e começar a tratá-lo pelo seu nome verdadeiro –, nunca mais se esqueceu de que aquelas férias cheias de livros foram as melhores férias da sua vida". Este final trará a muitos leitores adultos uma memória: um lugar e um tempo já longínquos em que para eles começou a concretizar-se o milagre antropológico que é a existência da linguagem literária; e antecipará, nos leitores mais novos, a consciência de um sentimento e de um pensamento futuros ou confirmará um sentimento e um pensamento já interiorizados.

O efeito que este texto provoca no leitor não vem apenas da profundidade do tema. Decorre também da linguagem que, elaborada mas límpida, tanto incorpora expressões da linguagem mais comum e quotidiana ("Em todo o caso, ao contrário do que o avô tinha previsto (o avô às vezes também se enganava), aprender a ler não fez com que Nimbo deixasse de andar com a cabeça nas nuvens"), como inclui imagens e sinestesias muito sugestivas: da "música a sério, [d]essa de que o avô lhe falara", pensa Nimbo, que nunca a ouvira, que "devia parecer-se com o assobio do vento entre as duas tábuas frouxas do celeiro; ou com a chuva, no princípio do Outono, quando caía ao de leve na areia e fazia poças pequeninas"; ou: "Levantou o rosto e procurou a linha do horizonte, mas o sol encandeou os seus olhos cinzentos. E, de olhos fechados, Nimbo via apenas uma mancha densa e amarelada, como se o sol tivesse entrado inteirinho para dentro dos seus olhos".

Os sentimentos estéticos que esta obra desencadeia resultam ainda, em grande parte, de um uso particularmente criativo do signo linguístico enquanto materialidade tipográfica (que prolonga a qualidade da imagem, que estiliza o traço típico do desenho infantil, e a diversidade e riqueza da mancha cromática). A esteticidade da mancha gráfica, concretizada a partir de um emprego muito variado do tamanho, do estilo e da cor dos caracteres, abrange toda a sintagmática narrativa e reflecte-se na tradução de ritmos, medidas e significados que uma apresentação convencional não suportaria. Ler em silêncio é aqui praticamente ler em voz alta: a escrita, dinamizada gráfica e esteticamente, é visual e por isso sonora; a objectualidade de palavras, expressões ou frases é reconversão fono-semântica.

O tipo de letra, que, embora submetido a constantes variações de volume e luz, se mantém invariável da primeira à última palavra, também comunica uma impressão de naturalidade. O grafismo singelo dos caracteres complementa bem a desafectação do discurso; sugere uma voz viva e descontraída, solta e ágil, mas nem por isso desligada de uma vocação escritural; referimo-nos não só ao efeito de caligrafia bem desenhada mas também ao protocolo de correcção e rigor linguísticos que caracteriza as melhores obras para a infância e a juventude.

O acto de contar uma história é sempre atravessado por uma tensão: o enunciador sabe que só poderá prolongar a sua voz se for capaz de monumentalizar o discurso. Daí o recurso, n'A Biblioteca do Avô, a uma linguagem plurivocal e melódica em que se articulam harmoniosamente a oralidade e a escrita. Esta convergência deve-se à alternância de frases com medidas muito distintas, incluindo a frase relativamente longa e desdobrada em orações ora coordenadas ora subordinadas (com, por vezes, orações explicativas assinaladas por parêntesis ou por travessões).

Há com frequência uma precipitação expressiva da linguagem que se organiza à volta de um operador de pontuação muito funcional: o ponto e vírgula, que permite a escansão da frase e do pensamento sem quebrar a elegância do raciocínio ponderado e alargado: «No dia em que a professora Mariana se despediu de Nimbo à porta da escola e prometeu voltar em Setembro, o rapaz fez todo o caminho de regresso a casa com os olhos cheios de lágrimas; e, por razões que agora não importa explicar (porque só uma pessoa com a sabedoria do avô do Nimbo conseguiria fazê-lo, e ele já cá não está), a professora, ao virar-se, viu que sobre a cabeça do rapazinho havia uma nuvem cinzenta e espessa e achou isso esquisito; até que se lembrou de que essas nuvens se chamavam precisamente"nimbos" e então sorriu e foi embora mais descansada».

O incipit desta obra anuncia já que na textualização haverá procedimentos temáticos e estilísticos da tradição literária e pelo menos algumas inovações ao nível da linguagem; é, neste aspecto, muito visível a reduplicação de um adjectivo sem uma vírgula a separar os dois termos, que, no fundo, constituem assim uma única palavra, uma palavra em eco: "Era uma vez um menino a quem chamavam Nimbo, que vivia com os pais e a irmã numa aldeia que ficava no meio de uma planície grande grande"; "Rochinha era a irmã de Nimbo, um bocadinho mais velha do que ele e com os mesmos olhos cinzentos lindos lindos"; ou "– Viagens?! – admirou-se o pai de Nimbo, quando Rochinha lhe foi contar por que motivo o irmão andava triste triste".

O Canteiro dos Livros, de José Jorge Letria, abre com um episódio que aponta para uma das dimensões exploradas na narrativa: a do maravilhoso, que, curiosamente, não coincide em absoluto com o fenómeno apresentado na segunda frase: "Francisco nem queria acreditar no que os seus olhos viam. No canteiro das hortênsias, ao fundo do quintal, tinham começado a sair da terra moles pedaços de folhas com pedaços de folhas de palavras impressas e mesmo algumas lombadas de livros" (p. 3).

Há uma explicação mais ou menos lógica para um acontecimento tão estranho: os livros saem da terra, não porque haja leis físicas e biológicas desconhecidas a interferir directamente com o funcionamento do mundo natural, mas sim porque há no jardim de uma criança que gosta de livros um ser do universo sobrenatural e maravilhoso que se desloca entre o mundo real e o território do maravilhoso.

O Canteiro dos Livros é portanto uma narrativa que podemos designar como maravilhosa ou um texto que integra elementos maravilhosos. Esta asserção parece-nos, no essencial, verdadeira, mesmo se nesta obra o maravilhoso não impõe propriamente a sua ordem e as suas leis ao universo dito real. Contudo, os livros que Francisco acolhe no seu quarto falam: têm, literalmente, voz, o que, sendo apenas enquadrável num universo de regras diferentes das do real empírico, é aceite sem dificuldade por todos os leitores, sobretudo pelos destinatários mais novos.

Esta narrativa lê-se como uma fábula, que é o mundo por excelência do natural não-natural: o espaço sem tempo nem lugar onde é natural verificar-se o não-natural. Não é pois por acaso que o "pequeno duende de barrete vermelho na cabeça" suscita no protagonista uma reacção normal: "– Ah, com que então és tu que estás por detrás de tudo isto!". O duende, ser do maravilhoso que povoa desde tempos imemoriais o nosso imaginário colectivo, é tão real quanto o texto em que vive; através dele, os livros que o tio de Francisco o incumbiu de entregar ao sobrinho como um tesouro são reinvestidos de uma energia que é já sua.

O maravilhoso deste livro é metáfora da substância significante dos livros que contam boas histórias; vem lembrar-nos que é conveniente suster um certo positivismo e o culto do audiovisual que às vezes se apropriam da nossa mente e da nossa vida. O livro, tal como o ser humano, nasce (quase) literalmente da terra. O leitor que estabelece com ele uma relação sensorial, que o toca, o olha e o cheira, que porventura adormece e acorda a pensar nele, activa o que no livro é da ordem da situação de infinito (Eduardo Prado Coelho): a expressão de uma ordem alternativa à do dia-a-dia, menos discricionária e mais profunda, a criação de um mundo que acrescenta ao mundo visível novas perspectivas e experiências, a instauração de um real do sonho (de que Alice no País das Maravilhas é uma das expressões mais inovadoras e conhecidas).

A nomeação, nesta narrativa, de obras da literatura universal significa a convocação do leitor para um círculo de eleitos que conhecem um código raro: "Quando se deitou, levou mais tempo do que era habitual a adormecer e, como seria de prever, sonhou com livros a nascerem espontaneamente da terra. Como gostava muito de ler, conseguiu mesmo ver, em sonhos, alguns dos títulos impressos nas capas com letras de saltar à vista. Lá estavam As Aventuras de Pinóquio, As Fábulas de La Fontaine, Peter Pan, Os Contos de Andersen e O Principezinho" (p. 6). Este convite à leitura é alargado a um convite à escrita; formula-o, no final, um dos livros-personagem que Francisco passou a guardar no seu quarto: "E houve ainda um livro cujo título Francisco não conseguiu descobrir que lhe disse com a voz pausada e sábia dos livros tornados clássicos: – E quem sabe se um dia não vais tornar-te escritor para poderes contar esta história do canteiro dos livros aos leitores mais novos" (p. 28).

O parágrafo seguinte, o último da obra, é a síntese de uma reflexão metaliterária que não incorre num excesso de boa consciência e zelo pedagógico. O enunciador (o protagonista) apresenta-se-nos já com a maturidade de quem lê e ao mesmo tempo com a inocência estético-ontológica de quem, por ser muito novo, tem ainda muito para ler e viver: «Francisco deixou-o na dúvida, nada lhe respondendo, mas disse para consigo: "Se eu um dia quiser tornar-me escritor, terei de ser, antes de mais nada, um grande leitor, porque um escritor é sempre um leitor de muitos, muitos livros, e se deixar de o ser, acabará também por deixar de escrever, mais tarde ou mais cedo" (p. 28). Particularmente interessante e inovadora é esta estratégia de activar o jogo metaliterário numa história que contém tanto de real como de maravilhoso: entre os seres humanos comuns (Francisco e o seu tio), um ser sobrenatural e os seres dos seres (os livros) desenvolve-se um diálogo só possível dentro das regras do real e do maravilhoso.

Se pudesse haver a figura do livro para crianças de "leitura obrigatória para os adultos", A Maior Flor do Mundo, A Biblioteca do Avô e O Canteiro dos Livros permitir-nos-iam por certo responder afirmativamente à pergunta de José Saramago (já transcrita em epígrafe, mas que não é de mais repetir): "E se as histórias para crianças passassem a ser de leitura obrigatória para os adultos? Seriam eles capazes de aprender realmente o que há tanto tempo têm andado a ensinar?"

Adiantamos uma resposta tão arriscada porque acreditamos numa das funções da literatura: aquela que, "ainda que seja só por momentos, confirma no indivíduo a consciência concreta de ser" e que o leva "a recuperar a própria pessoa, isto é, a apropriar-se de si mesmo, depois de a ordem totalitária dele se ter apropriado através do adestramento linguístico" (Pimenta, 1978: 82. Sublinhados nossos). Na sua dimensão humana do aqui e agora e enquanto construção histórica, o corpo da criança que lê articula-se, num pacto (in)visível, com o corpo do Livro enquanto lugar de representação, conhecimento e construção de identidade na alteridade.

 

Bibliografia

Coelho, E. P. (2004). Situações de infinito. Porto: Campo das Letras.         [ Links ]

Pimenta, A. (1978). O silêncio dos poetas. Lisboa: A Regra do Jogo.         [ Links ]

Saramago, J. (1997). O autor como narrador. Ler, 38, 36-41.         [ Links ]