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Revista Lusófona de Educação

versão impressa ISSN 1645-7250

Rev. Lusófona de Educação  no.22 Lisboa  2012

 

Vigotsky, L. S. (2005). Pensamento e linguagem.
São Paulo: Martins Fontes (194 páginas) ( 1ªed. 1987).

 

Isabel Brites *& Roberta de Cássia **

*(CeiEF-ULHT)
misabrites@gmail.com

**(CeiEF-ULHT)
robertacassia2006@hotmail.com

 

Estruturado em sete diferentes áreas temáticas, nas palavras do autor“ … uma estrutura forçosamente complexa e multifacetada…” (p. XX), do livro consta uma introdução redigida por Bruner, que faz uma breve referência à biografia do autor e um resumo das ideias essenciais do seu estudo, e ainda um prefácio à tradução inglesa da obra e suas posteriores reorganizações e reestruturações, sempre no sentido de a tornar mais simples, mais legível e mais acessível. Também Vygotsky a prefacia, apresentando a sua estrutura, a sua problemática e explicando a finalidade dos seus estudos.

Na primeira parte o autor aborda a importância das relações interfuncionais entre pensamento e linguagem, relações essas que, a seu ver, estudos anteriores não conseguiram desenvolver com propriedade por entenderem pensamento e fala como funções isoladas.

Os métodos de análise atomísticos e funcionais, predominantes na última década, trataram os processos psíquicos isoladamente. Métodos de pesquisa foram desenvolvidos e aperfeiçoados com a finalidade de estudar funções isoladas, enquanto sua interdependência e sua organização na estrutura da consciência como um todo permaneceram fora do campo de investigação (p.1).

Impunha-se, então, uma mudança de abordagem, de paradigma, que levasse a Psicologia a assumir essa inter-relação como seu problema central, seu foco de atenção, essencial a um estudo produtivo do pensamento e da linguagem.

Vygotsky propõe que se analise o aspecto intrínseco da palavra, ou seja, o seu significado, pois é no significado da palavra que o pensamento e a fala se unem. O significado é, então, simultaneamente acto de pensamento e lingua-gem, de onde decorre que o método a seguir na exploração da sua natureza seja a análise semântica – estudo do desenvolvimento, do funcionamento e da estrutura dessa unidade em que pensamento e fala estão indissociavelmente interrelacionados.

Um outro aspecto do estudo de Vigotsky, porventura o mais relevante, o mais inovador e o que mais marca o seu pensamento refere-se à comunicação, à interacção social enquanto função primordial da fala. É para comunicar que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem, e é a necessidade de comunicar que impulsiona o seu desenvolvimento. Na ausência de um sistema de signos, linguísticos ou não, a comunicação torna-se limitada e de cariz mais afectivo, já que a transmissão racional e intencional de experiências e de pensamentos requer um sistema mediador – a fala. Ou seja, a verdadeira comunicação requer significado e generalização, tanto quanto requer signos.

Mas as formas mais elevadas da comunicação humana só são possíveis porque o pensamento reflecte realidades conceptualizadas, razão pela qual certos pensamentos só devem ser comunicados às crianças quando estas tiverem os conceitos adquiridos e amadurecidos. O mais difícil do ensino de palavras novas é, exactamente, a apropriação dos conceitos e não a dos sons. Os aspectos afectivos e intelectuais também não podem ser separados enquanto objecto de estudo, pois pensamentos dissociados das necessidades e interesses, das inclinações e dos impulsos daquele que pensa, são desprovidos de significado/ sentido.

Na parte seguinte da obra Vigotsky faz uma análise crítica à teoria de Piaget sobre a linguagem e o pensamento das crianças, bem como à sua ideia de evolução. Para Piaget, a característica específica da lógica das crianças é o egocentrismo do seu pensamento, que relaciona com o realismo intelectual, o sincretismo e a dificuldade de compreender as relações, descrevendo-o como genético, estrutural, e intermediário entre o pensamento autístico e o pensamento dirigido. Este é entendido como o pensamento consciente, inteligente, susceptível de verdade ou de erro, social, que pode ser comunicado através da linguagem e influenciado pela experiência e pela lógica, enquanto o pensamento autístico é subconsciente, ligado à imaginação e ao sonho e, assim, estritamente individual. Já o pensamento sincrético é uma transição da lógica dos sonhos para a lógica dos pensamentos, ocorrendo quando a fala egocêntrica se transforma em fala socializada.

Para Vigotsky, porém, ambas as falas de Piaget são sociais, embora com funções diferentes e, por isso, propõe que a fala “socializada” de Piaget seja substituída pelo termo “comunicativa”. Embora na fala egocêntrica o indivíduo não verbalize, não interaja socialmente, ele está a interiorizar ideias e pensamentos, a falar consigo próprio. E enquanto que para Piaget esta desaparece à medida que se manifesta nas crianças o desejo de trabalhar, à medida que se vão socializando e interagindo, para Vigotsky a fala egocêntrica das crianças transforma-se na fala interior dos adultos, no pensar para si próprio, na reflexão silenciosa, uma mudança qualitativa de vulto. A função primordial da fala é, então, para Vigostsky, nunca é demais repeti-lo, a comunicação, o contacto social, que se desenvolve à medida que o indivíduo interage, sempre influenciado pelo meio social e cultural em que se insere.

Ainda segundo Piaget, o pensamento aparece antes da linguagem, que lhe é subordinada e apenas uma das suas formas de expressão. E a formação do pensamento depende, basicamente, da coordenação dos esquemas sensoriomotores, pelo que só ocorre depois de a criança ter alcançado um determinado nível de habilidades mentais, que pode mobilizar na evocação de um objecto ou acontecimento ausente, ou seja, na formação de conceitos. Já para Vigotsky, pensamento e linguagem são processos interdependentes desde o início da vida. A aquisição da linguagem pela criança modifica as suas funções mentais superiores, dá forma definida ao pensamento, possibilita o aparecimento da imaginação, o uso da memória e o planeamento da acção. Neste sentido a linguagem, diferentemente daquilo que Piaget postula, sistematiza a experiência directa da criança e, por isso, adquire uma função central no seu desenvolvimento cognitivo, reorganizando os processos em desenvolvimento.

A parte III da obra debruça-se sobre a teoria de Stern acerca do desenvolvimento da linguagem. Este autor desenvolveu uma concepção intelectualista do desenvolvimento da fala na criança, de um ponto de vista genético-personalista, em que distingue três raízes: a (tendência) expressiva, a social e a intencional. E enquanto as duas primeiras são também observadas entre os animais, a terceira é específica e exclusivamente humana, reflectindo uma intencionalidade que se desenvolve a partir de uma força motriz inata, quase um impulso. Para Stern a criança, por volta dos dois anos, descobre o significado da linguagem de uma vez por todas, experiência que considera ser fruto da genética, não levando em conta os estudos experimentais que indicam que só mais tarde a criança aprende a relação entre signo e significado, e ignorando a relação entre as complexas transformações funcionais e estruturais do pensamento que ocorrem com o desenvolvimento da fala. Vigotsky, criticando esta premissa, reconhece haver um momento de descoberta que à primeira vista parece ser repentino, mas que se trata, de facto, de um desenvolvimento linguístico, cultural e intelectual relacionado com as vivências, trocas e experiências da criança, que assim aprende e apreende novos conceitos e cria novas competências, pelo que não se trata apenas de genética.

O quarto tema da obra trata exactamente disso, das raízes genéticas do pensamento e da linguagem. Considerando estudos anteriores realizados por Koehler e Yerkes com macacos antílopes, Vigotsky chega à conclusão que, embora haja nesses animais, em certos aspectos, um intelecto parecido com o do homem e uma linguagem rudimentar, isso não significa que tenham a capacidade de desenvolver um raciocínio e uma linguagem igual à humana, porque a correspondência estreita entre pensamento e fala, característica do homem, não existe nos animais. Os seus estudos comprovaram que o pensamento e a fala têm raízes genéticas diferentes, e que o progresso de ambas não é paralelo: as funções do pensamento e da fala desenvolvem-se ao longo de trajectórias diferentes e independentes, não havendo qualquer relação clara e constante entre elas, embora essas linhas se encontrem no pensamento verbal e na fala racional. Procurando esclarecer essa relação Vigotsky aborda o estudo da fala interior, que considera importante para a compreensão entre pensamento e linguagem. Para ele, a linguagem interior não consiste na ausência de som, nem tão pouco na reprodução da fala na memória. É o contrário da fala exterior e consiste na tradução do pensamento em palavras, invertendo-se o processo: a fala interioriza-se no pensamento.

Piaget foi o primeiro a prestar atenção à fala egocêntrica da criança, mas os resultados dos seus estudos teriam sido mais profícuos se tivesse considerado a sua característica mais importante – a relação com a fala interior. Com efeito, se a fala egocêntrica é um estágio da fala interior, e a primeira desaparece na idade escolar, quando a segunda surge, uma transforma-se na outra, como conclui Vigotsky. Dizer que a fala egocêntrica desaparece equivale a dizer que a criança para de contar quando não usa mais os dedos, quando o que na realidade sucede é que com a decrescente vocalização da fala egocêntrica a criança adquire uma nova capacidade: a de pensar as palavras, ao invés de as pronunciar.

Para Vigotsky, a fala é interiorizada psicologicamente antes de o ser fisicamente, e está ligada à organização do desenvolvimento da criança. A fala interioriza-se porque a sua função muda, e desenvolve-se mediante um lento acumular de mudanças estruturais e funcionais - as estruturas da fala que a criança domina tornam-se estruturas básicas do pensamento. Assim, o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, pelos instrumentos linguísticos, mas também pela experiência social e cultural da criança – o seu crescimento intelectual depende do domínio que tem sobre os meios sociais do pensamento. Com o desenvolvimento da fala interior e do pensamento verbal é a natureza do próprio desenvolvimento que se transforma.

A parte V apresenta um estudo experimental sobre a formação de conceitos (a compreensão do processo da formação de conceitos pelo sujeito, como já vimos, é uma das preocupações de Vigotsky). Analisando criticamente os estudos de Ach, Rimat e Usnadze o autor leva a cabo experiências que revelam que a formação de conceitos é um processo criativo, orientado para a solução de problemas. O desenvolvimento destes processos tem início na infância, mas as funções intelectuais básicas só se desenvolvem na adolescência, e não apenas em função da idade. Também em função da experiência, do contexto histórico-cultural do indivíduo, das vivências do sujeito, já que é na relação entre o indivíduo e o contexto que ocorre a apropriação de significados que vão ajudar a formar novos conceitos. E neste processo distingue três fases: à primeira chama um “conglomerado vago e sincrético de objectos isolados”(p. 74); na segunda, que denomina “pensamento por complexos”(p.76) os objectos isolados associam-se na mente da criança devido às suas impressões subjectivas e “às relações que de facto existem entre esses objectos”(p.76). É uma fase importante, porque há nela aquilo que considera pseudoconceito, que vai ajudar na formação deste. A terceira fase é já de “formação efectiva de conceitos” (p. 95) e Vigostky distingue-a da fase do pensamento por complexos afirmando que para formar conceitos é necessário abstrair, isolar elementos, examinar os pensamentos abstractos separados da totalidade de que fazem parte.

Na parte VI da obra o autor retoma esta questão, descrevendo o desenvolvimento dos conceitos científicos na infância e questionando-se sobre o que acontece na mente da criança relativamente aos conceitos que lhe são ensinados na escola, na sua experiência quotidiana ou em situação de sala de aula, bem como sobre a relação entre a assimilação e a interiorização dos conceitos científicos na consciência da criança. E refere dois tipos de conceitos que se relacionam e se influenciam: os espontâneos e os não espontâneos, criticando aqui o que considera ser um dos pontos fracos da teoria de Piaget, para quem os conceitos espontâneos, que constituem as ideias da criança acerca da realidade, são independentes dos conceitos não espontâneos, decisivamente influenciados pelos adultos e que vão gradualmente substituindo os primeiros.

Para Vigotsky, uns e outros não conflituam, ainda que se formem e desenvolvam sob condições externas e internas diferentes, envolvam experiências e atitudes diferentes por parte das crianças, e se desenvolvam por caminhos também diferentes. A ausência de um sistema é a diferença principal que distingue os conceitos espontâneos dos científicos (um conceito espontâneo define-se pela ausência de uma organização consistente e sistemática, enquanto o conceito científico é sempre mediado por outros conceitos). E é o conceito científico o meio no qual a consciência reflexiva se desenvolve (nas suas experiências quotidianas a criança centra-se nos objectos sem ter consciência dos conceitos). São os conceitos que aprende na escola, com o adulto, que usa para resolver os problemas que implicam o seu uso consciente. Os estudos do autor confirmam esta hipótese: os conceitos, espontâneos e científicos, inicialmente afastados por se desenvolverem em direcções contrárias, acabam por se encontrar.

Pensamento e palavra são as questões abordadas na parte VII e última do livro. Nela Vigotsky revisita o tema central da obra, apresenta o resultado das suas pesquisas, investigações e experiências sobre as relações entre pensamento e linguagem, revê os temas que veio debatendo, e sublinha algumas das suas conclusões: 1 – tal como no reino animal, também no ser humano pensamento e linguagem têm origens diferentes; 2- inicialmente o pensamento não é verbal, a linguagem não é intelectual, e as suas trajectórias não são paralelas, embora se cruzem em dado momento, dando início a uma nova forma de pensamento; 3 – é a partir desse ponto que o pensamento se começa a tornar verbal e a linguagem se começa a tornar racional; 4 – de início, a linguagem usada pela criança parece servir apenas para interacção superficial, para convívio, mas a certa altura penetra no subconsciente e passa a constituir a estrutura do pensamento da criança; 5 – a partir do momento que a criança descobre que tudo tem um nome, cada objecto que surge representa um problema só solucionado quando lhe atribui esse nome; 6 – quando lhe falta a palavra para nomear esse objecto, a criança recorre à ajuda do adulto para solucionar o problema; 7 – os novos significados das novas palavras servem como embriões de novos e complexos conceitos.

Como já vimos, para Vigotsky todas as actividades cognitivas básicas do indivíduo ocorrem e decorrem de acordo com a sua história social, acabando por contribuir, e fazer parte integrante, do desenvolvimento histórico-social da sua comunidade. Logo, as habilidades cognitivas e as formas de estruturar o pensamento do indivíduo não são determinadas por factores genéticos, antes são o resultado das experiências e dos hábitos sociais da cultura em que o sujeito se insere. Assim, a história da sociedade na qual a criança se desenvolve, e a história pessoal dessa criança, são factores cruciais para a sua forma de pensar. E nesse processo de desenvolvimento cognitivo a linguagem tem um papel determinante na forma como a criança vai aprender a pensar, uma vez que as formas mais avançadas do pensamento são transmitidas à criança através de palavras. Então, é necessário um claro entendimento das relações entre pensamento e linguagem para se entender o processo do desenvolvimento intelectual. A linguagem não é apenas uma expressão do conhecimento adquirido pela criança, mas existe uma inter-relação entre pensamento e linguagem, que se proporcionam mutuamente recursos.

Em síntese, o livro de Vigotsky ora recenseado procura analisar a relação entre pensamento e linguagem. Fazendo uma análise crítica de estudos anteriores e das teorias de outros autores, aponta a necessidade de se olhar para a criança como um ser social, que apreende e aprende ao longo da vida com as suas vivências, na relação e interação com o outro, e que constrói significados à medida que vai tendo experiências e contatos com a cultura em que se insere. A criança não deve ser vista como um adulto em miniatura mas como ela própria, um ser social único, singular e particular, que ao longo da sua história se vai construindo e reconstruindo. Daí a necessidade de a observar, escutar e compreender na fase real em que se encontra, tentando perceber o significado do pensamento e da linguagem que lhe são próprios.