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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.23 Lisboa set. 2009

 

A Rússia, a Europa e o legado de 1989

conflitos de interpretação

Andrey S. Makarychev *

 

Este artigo analisa alguns exemplos notórios das relações conflituosas da Rússia com estados adjacentes pós-soviéticos como a Estónia, a Geórgia e a Ucrânia. A análise será depois alargada às relações controversas com a Grã-Bretanha e a NATO, e termina abordando o caso do oblast de Kaliningrado. Todos estes casos demonstram a dificuldade em ultrapassar a herança soviética na política externa russa e o tipo de choques que a inevitável reactualização desta herança poderá originar.

Palavras-chave: Rússia, URSS, Europa, comunismo

 

Russia, Europe and the legacy of 1989: conflicts of interpretation

In this paper, I will examine a number of most notorious examples of Russia's conflictual relations with adjacent post-Soviet states like Estonia, Georgia, and Ukraine. I will then extend my analysis to Russia's controversial relations with Great Britain and NATO, and conclude by referring to the case of the Kaliningrad oblast. In my judgment, all these cases demonstrate how uneasy is the overcoming of the Soviet heritage in Russia's foreign policy and what kind of collisions the inevitable reactualization of this heritage might entail.

Keywords: Russia, USSR, Europe, communism

 

Na área da investigação académica, conhecida como análise do discurso, existe um argumento que nos ajuda a compreender o modo como os discursos políticos são estruturados. Defende que os acontecimentos que seleccionamos para construir uma narrativa sobre nós próprios são de extrema importância. Cada actor político fundamenta a sua subjectividade em determinadas "histórias" indispensáveis para a sua construção da identidade. Como Judith Butler afirma, se começarmos uma história antes ou depois de um determinado momento, toda a identidade do "sujeito falante" e a sua relação com os outros sujeitos pode ser reconsiderada ou reconstituída1. O tempo é, portanto, uma categoria politicamente contestada, uma vez que a selecção de pontos de referência temporais (momentos formativos) predetermina os significados ligados às entidades dos sujeitos políticos.

É precisamente este ponto de vista que utilizarei como base para o presente ensaio. Por "legado de 1989" entendo a reactualização discursiva do fim da Guerra Fria. As mudanças que ocorreram entre 1989 (a queda do Muro de Berlim) e 1991 (a desagregação da União Soviética) poderiam receber a designação de "evento", termo usado por Alain Badiou; algo que desloca as estruturas estabelecidas de relações de poder e torna possível o que parecia inexequível ou impensável algum tempo antes2. Os eventos são moldadores de identidade e diferenciadores; por isso mesmo, são também contentores de diversidade temporal. O que importa é o modo como as datas históricas são transformadas em símbolos, e o tipo de fronteiras imaginário-mentais que induzem.

À primeira vista a Rússia e a maioria dos países europeus diferem drasticamente na sua respectiva simbolização do legado de 1989. Após a presidência de Gorbachev - conhecido pelos seus conceitos-chave de perestroika e glasnost - a Rússia não voltaria a desfrutar de um acolhimento tão entusiástico por parte do Ocidente. Para a maior parte dos países da Europa Central e de Leste os vinte anos que se seguiram à queda do Muro de Berlim foram duas décadas de experiência democrática recém-adquirida. Na Rússia, contudo, o balanço político dos acontecimentos pós-1989 é muito mais controverso.

Talvez isso possa ser explicado pelo facto de as liberdades do final dos anos 1980 terem dado rédea solta não só a forças liberais/pró-ocidentais, mas também a forças conservadoras/tradicionalistas do nacionalismo e do nativismo que eram - e ainda são - inimigas da abertura da Rússia a uma integração na comunidade internacional. No que diz respeito ao Kremlin, este tira, de forma bastante pragmática, todo o partido possível dos benefícios políticos que a Rússia obteve com a queda do Muro de Berlim (incluindo as relações "especiais" entre Moscovo e Berlim) sem, no entanto, prestar o devido reconhecimento às forças que tornaram possíveis os acontecimentos de 1989.

Mas, a um nível mais profundo de análise, esta assimetria de percepção mais ou menos visível entre a Rússia e as nações europeias levanta dois problemas cruciais para a minha análise. Primeiramente, a discrepância de discurso entre a União Europeia (UE) e a Rússia sintetiza-se em formas drasticamente diferentes de reactualização das questões da identidade. Alguns dos autores liberais russos defendem que é perfeitamente natural para qualquer identidade sã desafiar o seu "não-ser" social, ou uma espécie de estado de barbárie dentro de si própria3. Na Europa esta abordagem foi apresentada através da referência ao conceito de "o passado como outro", radicalmente diferente da percepção holística dominante na Rússia, que vê na sua história algo de divino e axiomaticamente glorioso, que atesta a grandeza da nação.

Esta diferença de percepções só pode ser complementada por disposições mais acentuadamente políticas que tiveram lugar no rescaldo do fim da Guerra Fria. Discutivelmente, a entidade europeia do pós-Guerra Fria assenta implicitamente na ideia de que os europeus foram bem-sucedidos no cumprimento das suas obrigações; portanto, a subjectividade da UE é actualmente construída através de uma espécie de oposição aos perigos emanados do exterior: "A Europa que se costumava definir a si própria através de uma revisão crítica da sua história, vê agora o seu passado em casa dos seus vizinhos mais próximos."4 Escusado será dizer que esta mudança de rumo discursiva só veio alargar o fosso que separa a Rússia da Europa.

Em segundo lugar, a forma como o mundo bipolarizado deixou de existir influenciou enormemente a mentalidade e o comportamento das elites da política externa russa.

Assim, o legado de 1989 é recuperado de cada vez que a Rússia tem de remodelar as suas relações com os seus mais importantes parceiros internacionais, incluindo os seus países vizinhos, e com as instituições internacionais, como a NATO ou a UE. No entanto, o problema-chave é o facto de a interpretação da Rússia acerca do fim da Guerra Fria ser bastante ambígua, e é essa incerteza que desorganiza e divide a identidade internacional daquele país. Este é um dos exemplos mais notórios da inconsistência da narrativa internacional da Rússia: a Guerra Fria é maioritariamente vista como uma confrontação irracional e dispendiosa baseada na ideologia. E, no entanto, o seu fim foi retratado por Vladimir Putin como sendo a maior catástrofe geopolítica do século passado. Entretanto, nas palavras de Sergei Lavrov, o final da confrontação bipolar abriu novas possibilidades para a democratização de todo o sistema de relações internacionais. A ideia da democratização neste contexto tem duas componentes essenciais:

a) a construção da "ordem mundial genuinamente democrática", na perspectiva de Dmitri Medvedev, está intimamente ligada à "desideologização da vida internacional"5; e b) a democratização pressupõe o repúdio do princípio conhecido como "dilema da segurança" ("não devemos construir a nossa segurança às custas dos outros"6). Contudo, tal como alguns diplomatas russos reconhecem, as expectativas causadas pelo fim do conflito bipolar eram largamente infundadas: "Depois da derrocada soviética tínhamos a esperança de entrar num período de paz e prosperidade... Mas seria por pouco tempo, uma vez que os conflitos religiosos, étnicos e geopolíticos substituíram a curta euforia do pós-Guerra Fria"7.

Segundo uma das interpretações "oficiais", a Rússia não só sofreu mais com o regime comunista do que as restantes repúblicas soviéticas, como ainda desempenhou um papel crucial na destruição da URSS, contribuindo assim para evitar o confronto militar e para promover a paz na Europa. "O estabelecimento da democracia nos três estados bálticos foi um resultado directo da democratização da União Soviética. […] Foi a democracia russa que se tornou a garantia da não-aplicação da força militar contra os novos estados independentes"8, defende um académico russo. "A democracia russa não foi seguramente um perdedor na Guerra [Fria]; a sua sensação é de que foi uma vencedora"9, salienta um outro analista.

Como é óbvio, esta versão entra em nítida contradição com a narrativa que interpreta a desintegração da União Soviética como sendo o maior desastre geopolítico do século xx. Assim, a Rússia deseja retratar-se simultaneamente como a destruidora do comunismo e como a herdeira da União Soviética, consoante pretenda substanciar as suas credenciais europeias ou a sua grandiosidade geopolítica. Aparentemente, o papel de sucessora da União Soviética dá à Rússia muito menos vantagens reais, principalmente por duas razões. Em primeiro lugar, a forma como a Rússia inscreve a experiência soviética na sua actual identidade parece ser inconsistente e enganadora. Tal como um grupo de autores suíços observa, os diplomatas russos, por um lado, podem afirmar com orgulho "assinámos a Acta de Helsínquia" e, por outro, insistem que os russos não deveriam ser culpados pelas intervenções soviéticas nos estados bálticos, na Hungria, na Checoslováquia e no Afeganistão10. Em segundo lugar, a solidariedade pós-soviética na arena internacional é muito fraca e episódica. Para além disso, a insistência da Rússia na sua "posse" do legado soviético é interpretada por países como a Ucrânia, a Geórgia ou as repúblicas bálticas como uma prova da sua predisposição para reavivar as políticas imperiais que visavam os seus vizinhos mais próximos.

Neste ensaio ilustrarei este e outros aspectos baseando-me em vários exemplos notórios das relações conflituosas da Rússia com estados adjacentes pós-soviéticos como a Estónia, a Geórgia e a Ucrânia. Alargarei posteriormente a minha análise às relações controversas com a Grã-Bretanha e a NATO, e terminarei abordando o caso do oblast de Kaliningrado. Na minha opinião, todos estes casos são ilustrativos do seguinte: demonstram a dificuldade em ultrapassar a herança soviética na política externa russa e o tipo de choques que a inevitável reactualização desta herança poderá originar.

RÚSSIA-ESTÓNIA: DUAS ENTIDADES POLITIZADAS

Nas relações da Rússia com a Estónia, a questão da selecção de pontos de referência temporal para a construção de narrativas fundacionais é um tema a debater. Por exemplo, segundo um determinado autor, a perspectiva russa dos acontecimentos de 1989-1991 como um "novo" ponto de partida nas relações bilaterais "entrou em choque frontal com a doutrina estónia da continuidade legal, que via no Tratado de Tartu, de 1920, a única base legítima para relações políticas. Enquanto a maioria dos estónios viu no colapso da URSS o momento do regresso à "normalidade" europeia, a maioria dos russos viu tudo menos isso..."11.

O conflito de 2007 com a Estónia, provocado pela trasladação do monumento de homenagem aos soldados soviéticos mortos na II Guerra Mundial da Baixa de Talin para o cemitério militar, veio acentuar ainda mais o mútuo afastamento entre os dois países.

Uma das principais fontes de controvérsia foi a tentativa russa de desempenhar dois papéis simultâneos neste conflito: o de herdeira da URSS e o de país alegadamente empenhado nos valores europeus. Ambos assentam na condenação das tentativas de repensar e reescrever a parte do guião da II Guerra Mundial que acusa explicitamente o fascismo.

Por um lado, a Rússia agiu como sucessora da União Soviética e defensora da sua glória militar. O discurso oficial russo arcou com a responsabilidade de ter questionado o papel libertador do Exército soviético em 1941-1945 e de ter reabilitado a Alemanha fascista para as elites políticas dos três países bálticos. Aparentemente, a Estónia foi a mais censurada pela sua relutância em reconhecer o contributo excepcional da URSS na derrota da Alemanha nazi. Os gestos simbólicos que visavam equiparar os papéis de Hitler e de Estaline ou destruir a interpretação consensual sobre os resultados da II Guerra Mundial foram recebidos em Moscovo com uma irritação ostensiva e foram interpretados como a confirmação das alegadas transgressões da Estónia no plano dos princípios fundamentais da constituição do pós-II Guerra Mundial.

Por outro lado, a Rússia usou esta situação como um exemplo acabado das supostas intenções de alguns dos "novos europeus" representarem de forma errada, ou até de corromperem, a ideia europeia. Com este pano de fundo, é compreensível que no debate russo a Estónia seja comparada em contraste com a União Europeia, a suposta autoridade definitiva que deveria obrigar aquele país báltico a obedecer às normas dos direitos humanos.

Na sua política em relação à Estónia, a Rússia frisou de forma bem clara dois marcos normativos, procurando desse modo representar-se como um país que defende resolutamente os "verdadeiros valores europeus", que Talin alegadamente desafia. Em primeiro lugar, a Rússia aderiu ao princípio da inviolabilidade da condenação internacional do fascismo, tendo em mente aquilo que é visto como uma tentativa por parte da elite política estónia de equiparar os papéis históricos da Alemanha e da União Soviética durante a II Guerra Mundial. Em segundo lugar, a Rússia fez referência a normas de protecção de minorias, um gesto que aponta a insatisfação de Moscovo com o facto de uma parte significativa das comunidades que falam russo nos estados bálticos estar privada de direitos eleitorais.

A maioria dos comentadores russos acredita que a política oficial de Talin de "distanciamento cultural" (para não falarmos em "vingança cultural") relativamente aos residentes de língua russa da Estónia entra em conflito com as normativas europeias. Um representante presidencial, referindo-se à política russa da UE, apresentou o assunto de forma bastante crua: as autoridades estónias

"a pouco e pouco levam os países europeus a repensar completamente as consequências da II Guerra Mundial. As acções levadas a cabo pelas autoridades estónias são um desafio às tradições políticas do pós-guerra estabelecidas na Europa, incluindo as que apontam para a negação do nazismo. Não pretendemos que os chamados neófitos, pessoas com uma sobreavaliação exacerbada e com profundos complexos históricos, afectem negativamente a opinião pública europeia"12.

Acusou assim os recém-entrados na UE ao expor o radicalismo político e "uma russofobia bastante primária". Na sua opinião, estes países estão a tentar, de forma activa, "dificultar o diálogo entre a Rússia e a UE", o que parece contradizer os interesses dos "velhos residentes" da UE13.

A Rússia recorda de forma directa à UE que é suposto, de acordo com a percepção russa, ela assumir a responsabilidade pelo comportamento dos seus novos estados-membros.

Em 2004, a Duma declarou que na sequência da entrada da Letónia e da Estónia na UE estes dois países reforçaram as suas atitudes anti-Rússia ao promulgarem um conjunto de iniciativas que visavam fazer reivindicações materiais e políticas à Rússia, e ao reconsiderarem os resultados da II Guerra Mundial (querendo com isto referir-se a uma alegada tendência de reabilitação dos combatentes nazis)14. Com base neste cenário, as controvérsias estónio-russas têm de ser inseridas no meio de dois contextos discursivos mais amplos: os da dicotomia de uma "Nova - Velha Europa" e o seu respectivo "Europa falsa - verdadeira". A "Europa falsa" inclui países com fortes sentimentos anti-russos, que perderam os "genuínos valores europeus", ao passo que a "verdadeira Europa" é discutivelmente povoada de nações amigas da Rússia que estão ligadas ao que a Rússia considera "o espírito original da Europa". O que é significativo é um nexo lógico entre os dois parâmetros diferentes, identificáveis na visão russa através da dicotomia "verdadeiro-falso": presumivelmente é esta evaporação do espírito nacional que faz com que certos países sejam incluídos na "lista negra" da Rússia. Por outras palavras, algumas nações poderiam ser colocadas na categoria "falsa" justamente porque se desviaram daquilo que a Rússia considera ser a corrente normativa europeia.

A estratégia discursiva russa para delimitar fronteiras pode manifestar-se sob a forma de atribuição aos estados bálticos do epíteto de "Europa falsa", o que implica que aos olhos da Rússia, eles não coincidem com os critérios da "verdadeira" Europa no que toca ao tratamento das minorias e à protecção dos direitos humanos. Um dos resultados indirectos das duras polémicas da Rússia com a Estónia foi a clara integração do tratamento dos monumentos da II Guerra Mundial por parte das autoridades leste e centro-europeias num conjunto de critérios que a Rússia se comprometeu a usar no futuro como forma de avaliar o estado das relações bilaterais. Por exemplo, em contraste com os estados bálticos, a Áustria e a Eslováquia poderiam ser mencionadas entre os países que, aos olhos do entendimento russo, demonstram a necessária sensibilidade relativamente às campas dos soldados soviéticos mortos durante a II Guerra Mundial; como tal, esses países são designados como europeus "bons" e/ou "construtivos".

Depois de espancar os "recém-chegados", a Rússia tenta dirigir-se à UE como um definidor de normas. A "nova Europa" é representada como um grupo de arruaceiros que perturbam tanto a Rússia como a própria UE. Através da ideia de uma "verdadeira Europa", a Rússia tenta não só exibir a sua identidade europeia mas procura também definir o seu "círculo de amigos". Poder-se-ia argumentar que esta "complexa estrutura do mundo tal como é encarada desde a Rússia permite sempre descartar determinadas posições políticas como sendo "falsamente europeias" e insistir no papel do Estado russo como defensor dos "verdadeiros" valores europeus"15. De certa forma, as reflexões acerca de uma Europa "verdadeira" e "falsa" fazem parte de batalhas discursivas mais vastas para definir a essência da Europa, sendo que cada parte envolvida afirma representar a "Europa genuína". Este discurso salienta a presumível capacidade da Rússia para se tornar um país capaz de cuidar da "verdadeira europeidade".

E quais são as maiores contradições consequentes, guardadas no seio destes dois papéis que a Rússia procurar desempenhar? No que diz respeito ao primeiro, o Kremlin queixa-se de que a Estónia vê (de forma errada, segundo eles) na Rússia a extensão directa da URSS, um derrotado da Guerra Fria e um país que ainda carrega a culpa histórica da ocupação dos estados bálticos. Esta percepção entra presumivelmente em conflito com a autopercepção da Rússia como um país que se livrou do comunismo exactamente da mesma forma que a Estónia. Segundo esta interpretação da identidade russa, todos os países pós-soviéticos foram vítimas da tirania comunista, e a Rússia merece o reconhecimento pelo seu contributo decisivo para a destruição do regime soviético. Escusado será dizer que este ponto de vista contradiz não só a narrativa estónia dominante mas - paradoxalmente - também a narrativa da interpretação da identidade russa como genealogicamente derivada das práticas da era soviética.

O segundo papel também não está isento de conflitos internos. Na sua reacção ao que é considerado anti-russo discriminatório por parte das autoridades estónias, a Rússia parece fazer referência/apelo de forma explícita às normas europeias e, de certa forma, dá desesperadamente as boas-vindas à interferência da UE de uma maneira ou de outra.

No entanto, tal como Viacheslav Morozov sugeriu, "no entanto, o facto de os comentadores russos se arrogarem o direito de fazer julgamentos acerca dos estados bálticos desde o ponto de vista de uma "Europa verdadeira" não quer dizer necessariamente que o discurso da política externa russa se estruture em termos europeus. A Rússia faz valer as normas da Europa mas estaca no momento de aplicar essas mesmas normas à sua própria política"16, o que torna a posição da Rússia muito pouco convincente.

A estratégia russa de comparar pela negativa a Estónia com o resto da UE tem uma outra falha importante, competentemente revelada por Alexandr Astrov17. Na sua perspectiva, na verdade, o Governo estónio não desafiou as normas europeias. Pelo contrário, agiu em plena conformidade com a lógica da europeização assente na construção gradual de uma leitura consensual das memórias do passado através da despolitização das narrativas assentes na história e da deslocação das interpretações alternativas para a esfera da "vida privada". O paradoxo é que foi a suposta despolitização que desencadeou um dos mais agudos conflitos políticos entre os estados pós-soviéticos.

Tendo desempenhado dois papéis em simultâneo - o de herdeira da União Soviética e o de "verdadeira" nação europeia - a Rússia não conseguiu alcançar resultados palpáveis: o estado das relações políticas entre Moscovo e Talin é marcado pelo afastamento, a posição da UE foi mais favorável ao Governo estónio e a Rússia não foi capaz de obter qualquer apoio significativo por parte de outros países da CEI, embora houvesse soldados de diferentes origens étnicas entre as tropas soviéticas. O facto de nenhum dos países da antiga URSS se ter posto ao lado da Rússia é um bom indicador do isolamento político da Rússia e da fragilidade da sua capacidade de apelo normativo, mesmo entre as nações do "estrangeiro próximo".

RÚSSIA-GEÓRGIA: UM ECO DA DERROCADA DA URSS

O conflito Rússia-Geórgia, que culminou na guerra de Agosto de 2008, relaciona-se com o legado de 1989 em dois sentidos. Primeiramente, a Rússia tratou os confrontos militares entre a Geórgia, por um lado, e a Abcásia e a Ossétia do Sul, por outro, como resquícios dos tempos da dissolução espontânea da União Soviética. Mais uma vez, o Kremlin tentou fazer dois jogos em simultâneo: recorreu a uma leitura "catastrófica" do desmantelamento da URSS e tentou jogar a cartada do anticomunismo. Assim, não foi só Mikhail Saakashvili que recebeu o epíteto pejorativo de "herdeiro de Estaline e de Beria"; segundo Putin, "aqueles que insistem que a Abcásia e a Ossétia do Sul devem pertencer à Geórgia são estalinistas, uma vez que apoiam a decisão tomada por Estaline"18. Este tipo de analogias políticas, extrapolado à Ucrânia, só pode reforçar a narrativa anticomunista, uma vez que é sobejamente sabido que foi Kruschev que tomou a decisão autoritária de transferir a Crimeia - uma península do mar Negro povoada principalmente por falantes de russo e que estava em conflito com as autoridades centrais de Kiev - para a possessão formal da Ucrânia.

Em segundo lugar, a operação vitoriosa contra a Geórgia foi implicitamente retratada na Rússia como uma vingança por quase duas décadas de humilhação e retirada geopolítica iniciada com a queda do Muro de Berlim. Explica em parte as razões por trás das declarações de Medvedev sobre uma esfera de interesses privilegiados da Rússia em Agosto de 2008. Um dos manipuladores de opinião do Kremlin reconheceu abertamente que "ao termos cruzado a linha vermelha dos desejos de segurança colectiva entrámos no mundo dos adultos e começámos a falar a sua linguagem de idade madura"19. Numa declaração mais radical, um jornalista político afirmou que para a Rússia não há qualquer benefício em jogar de acordo com as regras, já que neste caso parecemos "idiotas sorridentes pró-americanos. […] Não há qualquer vantagem em ser simpático. O que é que eles [o Ocidente] nos deram em troca por termos sido dóceis?"20

Em locuções destas é muito nítida a referência óbvia ao legado de 1989.

Segundo a interpretação oficial russa, a guerra com a Geórgia de Agosto de 2008 foi um acontecimento que serviu de marco para dividir o tempo entre o que foi o "antes" e o que vem "depois". A Rússia interpretou esta guerra como uma continuação lógica das suas tentativas desesperadas de se posicionar como uma entidade internacional "normal". O entendimento russo de "normalidade" surge (pelo menos) em três versões interligadas:

· anda a par com a capacidade de se defender de criminosos externos;

· considera uma imitação do comportamento de outras potências (nas palavras do Presidente Medvedev, "na Ossétia do Sul fizemos o que outros fizeram no Kosovo"21);

· pressupõe o poder de "normalizar" ("disciplinar e punir") os vizinhos que causem problemas de segurança.

Neste contexto, o Presidente Medvedev apareceu para "reparar" a ineficaz (na perspectiva russa) arquitectura de segurança europeia. Medvedev e Putin questionaram os principais elementos institucionais da sociedade internacional: o G8 foi apelidado de "organização deficiente", a Organização Mundial do Comércio (OMC) não era tão instrumental como parecia, a NATO passou de "parceiro" a "inimigo", etc. Contudo, em vez de fornecer um pano de fundo para uma nova e mais coerente compreensão da identidade russa, a guerra tornou difusas as linhas de identificação e levantou um conjunto de questões que ainda permanecem em aberto. Quando analisada de perto, a Rússia auto-assertiva do pós-guerra parece encontrar-se num impasse. Uma observação mais cuidada da narrativa de guerra nos meios de comunicação social russos e no discurso político dá-nos uma visão de um país em pedaços, dividido por múltiplas controvérsias, tanto conceptuais como práticas.

Tal como nos tempos da União Soviética, a Rússia reactualizou uma longa tradição de utilização do conceito de "Ocidente" enquanto o Outro constitutivo da Rússia, perfeitamente dominado e manipulado pelos Estados Unidos. "A Europa tem falta de vontade política - essa encontra-se apenas na posse da América"22, segundo considera um analista russo. Aos olhos de Putin, por vezes a Europa age de forma demasiado branda na gestão de questões de segurança, e "alguns dos países europeus desejam ardentemente servir os interesses externos (não europeus)"23. Nas palavras de um jornalista russo, a Europa não se atreve a contrariar os Estados Unidos, não tem uma voz própria internacional, não consegue levar a cabo acções autónomas e demonstra incapacidade e até paralisia24.

E no entanto não é claro se a suposta unipolaridade que emanou do final da Guerra Fria realmente existe aos olhos do Kremlin. Lavrov afirmou que o mundo unipolar deixou de existir imediatamente a seguir a Agosto de 2008, presumivelmente como consequência directa da vitória da Rússia contra a Geórgia. Desta forma, a Rússia emerge da "realidade do mundo multipolar"25, que, de acordo com esta versão, já é um facto e como tal não necessita de ser defendido. Portanto, o problema-chave não é a demolição da "hegemonia americana" que presumivelmente terá amadurecido depois de 1989, mas sim qual o tipo de ordem internacional que terá de substituí-la. Como o director do Instituto de Avaliações Estratégicas, sediado em Moscovo, muito bem defendeu, a resistência aos ditames de um poder isolado e o desejo de um "mundo multipolar" são duas estratégias diferentes.

O que vem dificultar o entendimento do discurso do Kremlin é o facto de Medvedev tender a encontrar as causas das actuais falhas da segurança internacional quer nas "abordagens por blocos" quer na unipolaridade26. O problema lógico que começa a surgir nesta conjuntura é que se trata de dois conceitos diferentes que dificilmente podem ser equiparados entre si num único enquadramento de análise. Em certa medida, aquilo a que Medvedev chama "abordagem por blocos" - que necessita de pelo menos dois grupos de estados aliados em competição e que representa uma forma elementar de multipolaridade - contraria o modelo de mundo unipolar (ou seja, dominado pelos Estados Unidos).

O Kremlin tenta evitar a abordagem puramente geopolítica e, desse modo, introduz um certo toque normativo na sua concepção da sociedade internacional, ao ligar de forma lógica "multipolaridade" e "democracia". Esta última, à luz dessa interpretação, é infelizmente reduzida à mera pluralidade de estados poderosos, independentemente da natureza dos seus regimes políticos. Poder-se-ia entender que o ponto de vista russo sugere que é a multipolaridade que gera o desenvolvimento das "instituições democráticas" na arena internacional, e não o contrário. Não por acaso, a Rússia recorre à retórica da "multipolaridade democrática" basicamente nas comunicações com países como a China, a Bielorrússia, o Irão, a Venezuela, Cuba, entre outros, todos eles sem experiência de governação democrática convincente.

Por outro lado, o discurso da multipolaridade não parece funcionar nas comunicações da Rússia com a UE. Ao lidar com a UE, a Rússia prefere empregar conceitos como "espaço comum euro-atlântico" e "Europa mais ampla". No rescaldo da guerra de Agosto de 2008 as relações Rússia-Europa ganharam alguma força, tal como demonstraram as conversações Medvedev-Sarkozy, apesar da decisão de Bruxelas de terminar as negociações acerca do novo tratado bilateral com Moscovo. Explica por que motivo o Presidente russo sublinhou que "é exactamente a UE que se tornou um parceiro para nós, com recursos, responsável, e, o que é da maior importância, pragmático"27.

"A Europa é para a NATO ou a NATO é para a Europa?", perguntou de modo patético o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, salientando depois que cabe à UE encontrar a "solução europeia" para os problemas do Cáucaso, em vez de "respeitar os conselhos vindos de longe". Na opinião de um dos influentes manipuladores de opinião do Kremlin, o verdadeiro problema para a Rússia é concentrar-se de forma dogmática nas relações com os Estados Unidos em questões de segurança, o que só vem justificar a necessidade de se encontrar uma nova agenda política com a UE ("talvez seja difícil lidar com a Europa enquanto império de várias cabeças, mas não há alternativa viável à orientação em direcção à Europa"28, segundo sugeriu um analista político russo).

RÚSSIA-UCRÂNIA: UMA VIDA EM COMUM MAS EM SEPARAÇÃO

A política da Rússia relativamente aos países das "revoluções coloridas" (e, antes de mais, no que respeita à Ucrânia) pode dar-nos um exemplo interessante da transformação da síndrome soviética do big brother, ao passar de fenómeno principalmente ideológico para um fenómeno geopolítico e geoeconómico. Aqui assistimos a um dos maiores fossos discursivos entre a UE e a Rússia: a primeira prefere enquadrar a sua política em relação às "revoluções coloridas" em termos normativos de continuidade da promoção da democracia e das liberdades civis iniciadas há quase duas décadas, ao passo que a segunda está convencida de que o cerne da interferência externa, independentemente da retórica normativa, acaba sempre por dar lugar à Realpolitik. De facto, a Rússia rejeita a vertente normativa do fenómeno das "revoluções coloridas", reduzindo-o a uma série de questões pragmáticas e de busca de poder. E no caso particular da Ucrânia, a Rússia ainda trata aquele país como um estado-satélite que se revoltou contra o seu centro imperial. A feroz reacção da Rússia à Revolução Laranja na Ucrânia também poderia ser explicada através da referência à crença anterior de Moscovo de que na sequência do 11 de Setembro a Rússia seria vista como um país muito mais próximo do Ocidente em geral e da Europa em particular do que outros países pós-soviéticos. Nesse sentido, a Revolução Laranja demonstrou o falhanço da Rússia enquanto autoproclamado "representante dos valores europeus através de todo o espaço ex-soviético"29.

Na sua política em relação à Ucrânia a Rússia persegue dois objectivos políticos: evitar a chegada ao poder de regimes anti-russos nos seus países vizinhos, e impedir quaisquer possibilidades de a experiência das "revoluções coloridas" se projectar no próprio país.

O Kremlin designa as chamadas "revoluções coloridas" como "uma trama ocidental para instalar regimes pró-americanos na periferia da Rússia e para procurar engendrar uma mudança de regime na própria Rússia"30.

É por isso que para a Rússia os países das "revoluções coloridas" são vistos como agitadores. A evolução após a revolução não é vista de forma alguma como sendo radicalmente diferente dos padrões russos. Aliás, o sistema político da Ucrânia sob o governo do Presidente Yuschenko é frequentemente apresentado como sendo inferior ao russo.

Segundo a interpretação prevalecente na Rússia, a Ucrânia está a atravessar um período de instabilidade e enfrenta a fragmentação e a desintegração, que a Rússia já conseguiu ultrapassar com sucesso.

A Rússia está a utilizar a pressão política para forçar Kiev a fazer concessões em, pelo menos, duas áreas importantes. A primeira é o reconhecimento do estatuto oficial da língua russa na Ucrânia. Neste aspecto, a Rússia detém um bom trunfo, uma vez que a maioria dos ucranianos são falantes de russo. A outra exigência importante é a interrupção do processo de integração da Ucrânia na NATO. Esta questão é importante no que diz respeito aos planos estratégicos de a Rússia manter a sua presença militar em Sebastopol, que poderia ser posta em causa com a pertença da Ucrânia à NATO. A dura resistência que a Rússia oferece a uma hipotética integração da Ucrânia na NATO deve-se em grande parte ao receio de que neste caso a frota russa do mar Negro, estacionada na Crimeia, não possa lá permanecer. Embora tenha reconhecido a Ucrânia como Estado independente, a Rússia tentou repetidamente jogar a "carta da Crimeia", ou seja, estimular sentimentos anti-Ucrânia nessa península. Um representante russo perante a NATO assumiu que é pouco provável que a Ucrânia venha a manter as suas fronteiras actuais caso entre na Aliança. Este tipo de discurso revisionista revela a insatisfação da Rússia acerca do modo como algumas questões territoriais foram resolvidas no tempo da queda da União Soviética. Isso explica o motivo pelo qual Moscovo ameaça os ucranianos afirmando que a sua entrada na NATO acabará com a adopção de um regime de vistos entre os dois países e com a quebra da vasta cooperação russo-ucraniana nos domínios da indústria da defesa e dos projectos de alta tecnologia.

A posição de Realpolitik da Rússia - motivada pela intenção de manter os países vizinhos dentro da sua órbita geopolítica - provocou um tipo de reacção normativa por parte do Ocidente e dos próprios países das "revoluções coloridas". Mais especificamente, o estabelecimento da Comunidade da Escolha Democrática, assim como a maior inclusão dos "governos coloridos" nas esferas institucionais sob influência da UE e da NATO poderiam ser bons indicadores desta tendência.

Entretanto, ao ir gradualmente perdendo influência política sobre países que tradicionalmente se incluíam no seu "estrangeiro próximo", a Rússia faz alguns esforços para se ver livre do passado soviético e tenta reenquadrar a sua identidade nacional de uma forma mais objectiva. Assim, deu-se uma viragem significativa na política russa relativamente à Ucrânia entre 2004 (o ano da Revolução Laranja) e 2007 (quando as eleições parlamentares de Setembro reintegraram a coligação laranja no Parlamento). Um dos exemplos mais reveladores foi a declaração do Presidente Putin: "se o Ocidente pretende apoiar os movimentos laranja, deve pagar as suas consequências. Caso contrário, ficamos com a impressão de que querem apoiá-los e ao mesmo tempo querem que nós paguemos as consequências"31. Esta intervenção denota uma intenção por parte do Kremlin de contextualizar a situação em termos muito pragmáticos - cínicos, até - e sem conotações ideológicas. A afirmação de Putin é um bom indicador da mudança gradual das atitudes russas perante a Ucrânia, que é cada vez mais reconhecida como um país de pleno direito, uma entidade política cujas relações com a Rússia já não encaixam no tipo de relacionamento protector-cliente.

RÚSSIA-NATO: OS PERIGOS DA MARGINALIZAÇÃO

No âmbito das relações Rússia-NATO o legado da Guerra Fria foi o mais difícil de ultrapassar. O conflito da Rússia com a NATO teve origem na queda do Muro de Berlim.

Na sua oposição ao alargamento territorial da NATO, a Rússia recorreu à promessa supostamente feita pelos oficiais da NATO a Mikhail Gorbachev de que não alargariam a sua área de influência às esferas de interesses de Moscovo. Portanto, segundo a história russa, Moscovo pôs em prática as suas obrigações, incluindo a retirada de tropas da Europa Oriental e dos estados bálticos, mas os países da NATO não mantiveram a sua palavra.

Há certamente algumas inconsistências na atitude em relação à NATO no seio das elites russas, o que pode gerar equívocos no Ocidente. A nível operacional, os oficiais russos reconhecem a importância da cooperação militar com a NATO. Alguns autores acham inclusive que "a Rússia quer ter uma palavra a dizer nas deliberações da NATO e, na medida do possível, gostaria de ter influência nas decisões da NATO"32. Contudo, no terreno político, as atitudes russas são significativamente menos cooperantes: de aliado a NATO passou a ser uma das mais importantes referências na construção mental do "Ocidente hostil", e como tal é integrada num contexto discursivo altamente negativo.

No entanto, é pouco provável que a estratégia de tratar a NATO como a maior fonte de insegurança da Rússia venha a surtir efeito a longo prazo. Sob diversos aspectos, o papel de inimigo da Rússia não parece muito apropriado para a NATO: só uma pequena minoria de russos entende com clareza que tipo de entidade se encontra por trás daquele acrónimo; mas o que ainda é mais difícil de explicar é porque é que se atribuem características ostensivamente negativas a um grupo de países com os quais Moscovo mantém relações de trabalho normais, quer bilateralmente quer no âmbito de corpos internacionais como o G8, quando se reúnem sob o título de NATO.

Todo o processo de transformar a NATO e os países que desejam fazer parte da Aliança no Outro peca por falta de coerência lógica, uma vez que a Rússia parece recorrer a dois argumentos que se excluem mutuamente. Por um lado, a NATO é representada como um bloco militar hostil e perigosamente poderoso (se não omnipotente) que ameaça os interesses da Rússia. Por outro, a NATO é representada como um resquício da Guerra Fria, o que supostamente faz salientar a sua irrelevância para fornecer segurança num contexto internacional que já não é o mesmo. No Fórum Económico de São Petersburgo em Junho de 2008 o ministro russo das Finanças Igor Kudrin afirmou que a NATO terá, mais cedo ou mais tarde, de passar à história. E foi neste momento que se formulou um dos argumentos-chave russos: a NATO é vista como uma organização que reage de forma errada a novos desafios de segurança que já não estão circunscritos a um determinado território. Em particular, segundo Putin e Medvedev, o chamado "pensamento por blocos" e a expansão territorial que lhe está associada não é uma solução adequada contra ameaças não territoriais. Paradoxalmente, nesta circunstância a Rússia - frequentemente descrita como um agente internacional ao estilo Realpolitik - recorre a um argumento que se baseia em abordagens transnacionalistas e em ideias desenvolvidas no contexto da procura da paz e das escolas europeias de pensamento do novo regionalismo.

A Cimeira de Bucareste da NATO, realizada em Abril de 2008, pareceu alargar ainda mais os fossos de percepção que dividem a Rússia e a NATO. A maioria dos oficiais da Aliança exprimiu publicamente o seu optimismo e a esperança de desenvolver uma interacção construtiva entre Moscovo e Bruxelas, ao passo que a maioria dos comentários russos ficaram marcados pelo pessimismo explícito e por uma total falta de entusiasmo. No entanto, só depois da Cimeira de Bucareste é que se tornaram mais ou menos aparentes certos contornos da estratégia russa em relação à NATO. O que é evidente é que a Rússia tenta utilizar uma série de argumentos em conjunto.

Em primeiro lugar, a Rússia defende que as candidaturas da Ucrânia e da Geórgia são a justificação perfeita para os movimentos secessionistas na Crimeia e para o afastamento dos territórios da Abcásia e da Ossétia do Sul. O Kremlin sempre insistiu em que nenhum deles votou a sua pertença à NATO. De facto, a Rússia ameaça Kiev - tal como ameaçou Tbilissi - com a possibilidade de vir a apoiar a derrocada dos dois países, uma estratégia no mínimo controversa, especialmente à luz da oposição russa à independência do Kosovo.

Em segundo lugar, a Rússia utiliza um raciocínio normativo ao argumentar que a vasta maioria dos ucranianos estão contra a integração na NATO. Claro que este argumento não funciona no caso da Geórgia, onde o referendo acerca deste assunto deu a vitória ao sim; contudo, a Rússia persiste na exploração da retórica normativa ao salientar repetidamente que a Geórgia não está à altura dos padrões ocidentais de democracia. Se continuar a seguir esta linha de argumentação, Moscovo poderá ver-se encurralada numa contradição lógica: por um lado, parece estar interessada em recorrer a argumentos normativos contra a inclusão da Ucrânia e da Geórgia na NATO; mas, por outro, algumas das afirmações públicas de Putin podem ser vistas como uma tentativa de contrariar a inter-relação conceptual entre democracia e segurança (a este respeito é muito significativa a observação de Putin quando afirma que seria absurdo ver na pertença à NATO uma prova da qualidade democrática de um país).

Em terceiro lugar, existe um debate relacionado com as fronteiras no arsenal da Rússia, que parece, uma vez mais, constituir um desafio para o próprio país. Por um lado, a Rússia pretende desempenhar o papel de defensor das fronteiras abertas com os seus vizinhos do "estrangeiro próximo", o que explica que segundo a interpretação do vice-primeiro-ministro Sergei Ivanov será a NATO que acabará por forçar a adopção do regime de vistos entre a Ucrânia e a Rússia. Esta jogada poderá ser sobretudo prejudicial para a própria Ucrânia, que perderá turistas russos nas estâncias do mar Negro; para além disso, a empregabilidade de imigrantes ucranianos na Rússia será mais complicada. Mas, por outro lado, sabemos bem que há alguns anos a própria Rússia introduziu o regime de vistos com a Geórgia e inclusive cortou relações económicas com aquela república.

De que modo se podem explicar todas estas inconsistências enraizadas na posição russa? Em primeiro lugar, a atitude irregular em relação à NATO assenta em parte nas dificuldades que a Rússia está a enfrentar na construção da sua identidade internacional. O cerne da controvérsia na construção da identidade russa é o choque entre duas tendências em competição. Por um lado, a Rússia procura redefinir-se como um tipo de sujeito pragmático, individualista e despolitizado que joga de acordo com as regras e reage basicamente a desafios ou incentivos de ordem económica ou financeira. Mas, por outro, existe uma forte herança soviética que se reactualiza em determinados casos para constranger as jogadas despolitizadas da Rússia. É por isso que o auto-entendimento russo se baseia de forma tão inerente em narrativas históricas e se encontra tão intimamente ligado a um passado glorificado e acarinhado. As observações de Putin carregadas de emotividade acerca da impossibilidade de se "pensar sequer" na hipotética localização de navios da NATO em Sebastopol foram uma das muitas expressões do legado soviético russo que ainda persiste.

Em segundo lugar, a Rússia tem alguma dificuldade em compreender a que conceito de segurança a NATO vai aderir. Em especial, Moscovo parece ter ficado obviamente irritada ao descobrir que a NATO inclui questões de transporte de energia na sua agenda de segurança. As desconfianças russas são exacerbadas por algumas declarações de oficiais georgianos (como, por exemplo, o ministro da Administração Interna, Vano Merabishvili33) segundo os quais a integração deste país na NATO dará lugar a novas rotas de transporte de recursos energéticos, que evitarão o território russo.

Contudo, não devemos deixar de reparar num vislumbre de promessa: apesar da óbvia oposição ao alargamento da NATO, na Cimeira de Bucareste Putin assumiu que se a NATO pretender desenvolver de forma consistente uma parceria estratégica aprofundada com a Rússia, a reacção de Moscovo não será tão negativa às actividades da Aliança nos seus países vizinhos. Outro ponto de partida positivo no âmbito do discurso russo de segurança é a abertura de Medvedev à ideia de uma segurança comum euro-atlântica, que deveria assentar, na sua opinião, numa parceria trilateral Estados Unidos-UE-Rússia.

RÚSSIA-GRÃ-BRETANHA: UMA NOVA GUERRA FRIA?

A deterioração crítica das relações russo-britânicas em resultado do homicídio de Alexander Litvinenko em Londres em 200634 poderia servir como um bom lembrete de que o regresso aos tempos da Guerra Fria não deve ser completamente posto de lado.

Moscovo pareceu muito interessada em encenar uma demonstração do poder florescente da Rússia, da sua auto-assertividade e da sua soberania plenamente desenvolvida.

Existem dois objectivos tácticos e uma estratégia na política russa. No que se refere ao objectivo estratégico, Moscovo rapidamente encenou uma demonstração do poder florescente da Rússia, da sua auto-assertividade e da sua soberania madura. Entre os objectivos tácticos, primeiro a Rússia pretendia desmentir as acusações generalizadas de que tinha patrocinado o homicídio contratual de um antigo agente do KGB em Londres. Em segundo lugar, a Rússia queria reorientar o caso contra um magnata fugitivo, Boris Berezovski, e, por fim, pretendia que a Grã-Bretanha o extraditasse para a Rússia. O Caso Litvinenko-Lugovoi ficou profundamente inscrito na agenda política doméstica russa, que incluía figuras como Boris Berezovski, Akhmed Zakayev e outros emigrados. Assim, o Governo russo acusa Berezovski - um "oligarca" com residência em Londres - de "patrocinar o terrorismo" dentro da Rússia (mais especificamente, no apoio à guerrilha da Tchetchénia) e de estar por trás do assassínio de Litvinenko em Londres. Não é por acaso que a população russa viu no Caso Litvinenko-Lugovoi uma interessante história de espiões. Estas impressões foram exploradas em várias tentativas de fazer de Andrei Lugovoi uma personalidade de destaque nos media e até uma figura política (ele era segundo candidato no LDPR - Partido Liberal Democrático da Rússia - dirigido por Zhirinovski nas eleições de 2 de Dezembro de 2007 para a Duma, de que é membro actualmente).

Oficialmente, a Rússia enquadrou a questão no plano legal, preferindo não prestar atenção a quaisquer justificações sérias para a sua politização. Foi a Grã-Bretanha que, aos olhos da Rússia, politizou o problema, primeiro, ao aludir à necessidade de mudar a legislação russa que impossibilitava a extradição de Andrei Lugovoi. Em segundo lugar, era o lado britânico que se referia a uma "boa vontade" que Lugovoi pudesse vir a demonstrar para, de forma voluntária, aceitar o julgamento no Reino Unido de modo a provar a sua inocência. A introdução do conceito de "boa vontade", aos olhos da Rússia, atestava a insuficiência de um contexto puramente legal para lidar com a controvérsia, o que orienta o caso na direcção da política. Em terceiro lugar, afirma Andrei Lugovoi, os serviços secretos britânicos estavam ao mesmo tempo a abordá-lo com uma proposta para reunir informação acerca das políticas russas em geral e o Presidente Putin em particular, por forma a "desacreditar tudo o que se passa na Rússia". Esta declaração também nos retrata o lado britânico em tons explicitamente políticos. Em contrapartida, o próprio Lugovoi descreve-se a si próprio como um "simples homem de negócios", que constrói as suas relações profissionais em termos contratuais e de gestão.

Moscovo parece sentir-se bastante à vontade no papel auto-atribuído de sujeito apolítico, e no entanto é exactamente esse papel que é desafiado por toda a Europa. O que, na verdade, está escondido nas entrelinhas dos argumentos russos é um discurso de soberania, exemplificado por afirmações antibritânicas de opinion makers na Rússia. "Tenho orgulho em viver num grande país" - esta confissão reveladora de Lugovoi35 veio realçar a articulação entre afirmações relacionadas com o poder e afirmações centradas no Estado.

Os efeitos deste conflito foram amplamente anormativos. No Caso Litvinenko-Lugovoi, o contexto internacional foi explicitamente contrário à Rússia. Moscovo não conseguiu obter nenhum apoio significativo por parte dos governos estrangeiros e acabou por ficar isolada. Este incidente constituiu parte da imagem deteriorada da Rússia no mundo ocidental, juntamente com o homicídio de Anna Politkovskaya e de outras figuras consideradas como duros opositores do Presidente Putin.

O Caso Litvinenko terminou como um escândalo diplomático entre Moscovo e Londres, com um grupo de quatro diplomatas de cada lado que acabaram por ser expulsos. Como forma de retaliação contra o lado britânico, a Rússia anuncia a quebra da cooperação bilateral contra o terrorismo. As questões de segurança mostraram ser fonte de divisões: para a Grã-Bretanha, o assassínio de Litvinenko era um caso relacionado com terrorismo, ao passo que para a Rússia um dos pontos fulcrais era a relutância das autoridades britânicas em extraditar Akhmed Zakayev, que era acusado de apoiar o terrorismo dentro da Rússia. Esta divergência de percepção teve como resultado a avaliação do chefe do M15, Jonathan Evans, segundo a qual a Rússia era um país hostil que desviou recursos britânicos usados para proteger a Grã-Bretanha das actividades ilegais dos agentes dos serviços secretos russos36.

A Grã-Bretanha também tomou providências para dificultar a sua política de vistos para funcionários públicos russos. A resposta russa foi bastante explícita: segundo Viacheslav Nikonov, "a partir de agora os negócios britânicos passarão a enfrentar maiores dificuldades nos mercados russos"37. Esta reacção revela um importante aspecto do debate: a política não é vista na Rússia como uma área auto-suficiente para regulamentar relações de poder, e assume-se que ela necessita de factores adicionais para projectar poder (como sanções económicas, por exemplo). Esta questão parece dar continuidade ao debate sobre se os instrumentos económicos usados pela Rússia constituem a sua - muito eficaz - "arma política" escondida. Contudo, neste jogo de pressão entre a Rússia e o Reino Unido esta questão pode ser invertida: será que as contradições políticas entre os dois países constituem uma razão suficiente para repensar as relações económicas bilaterais? Ambos os países parecem responder positivamente à pergunta.

A reacção da Rússia ao Caso Litvinenko transforma-o noutra tentativa de remodelar aquilo a que poderíamos chamar o "mapa mental" da Europa, que, como já apontei atrás, se baseia na distinção entre os "bons" e os "maus" europeus. Neste caso, a Rússia tenta abrir uma excepção para as políticas hostis do Reino Unido, um gesto discursivo que indica que a Rússia não pretende extrapolar a toda a UE as dificuldades que enfrenta no seu relacionamento com aqueles países.

KALININGRADO: DO LEGADO SOVIÉTICO ÀS ABORDAGENS PRAGMÁTICAS

O conflito de Kaliningrado dá-nos outro exemplo da reactualização da retórica da Guerra Fria e da sua revisão.

A estratégia política geral da Rússia consistia em manter o estatuto do oblast de Kaliningrado como parte da Federação Russa, e na plena aplicação das leis russas que regulam, quer os acontecimentos internos dessa região, quer a sua relação com o centro federal. Os principais conceitos ideológicos articulados pelas autoridades russas eram: "dignidade", "respeito", "orgulho", "honra" e "princípios". É neste contexto que a UE foi amplamente considerada como uma potência que impedia a Rússia de exercer os seus direitos de soberania sobre o oblast de Kaliningrado.

Um factor que dificultou a aplicação da lógica de status quo nesta situação foi a insistência da UE na sua própria versão de status quo, que se baseava na aplicação de normas do acquis communautaire ao enclave da Rússia. O choque entre duas lógicas de status quo define a natureza do conflito, que, inevitavelmente, deu origem a

"um processo interminável de construção de limites entre "nós" e "eles", entre bom e mau, e um receio agudo de que se estes limites fossem postos em causa a identidade da comunidade seria destruída. […] Escusado será dizer que uma predisposição discursiva desta natureza dificilmente poderia conduzir a um espírito de abertura e de derrube de fronteiras"38.

O pensamento em termos de choque de identidades levou Moscovo a assumir que a UE estava propositadamente a tornar o conflito mais complexo e que pretendia enfraquecer os laços da região com a Rússia. Isto explica porque é que antes de negociar assuntos específicos, a Rússia - seguindo o legado político soviético - está de pré-aviso e assume uma posição de defesa contra os seus interlocutores. Como resposta ao que foi considerado como gestos de hostilidade, por parte do Ocidente, a Rússia é incitada a endurecer a sua posição relativamente à questão de Kaliningrado - sem prestar atenção às implicações práticas dessa postura. De modo muito significativo, Gleb Pavlovskii, um dos manipuladores de opinião do Kremlin, utilizou a expressão "soberania" dezassete vezes numa entrevista de duas páginas na sequência do encontro UE-Rússia em Svetlogorsk em Maio de 200939, e depois acrescentou referências à "teoria do dominó" (que defende que a concessão de um estatuto administrativo especial aos residentes de Kaliningrado provocaria uma reacção em cadeia no Tataristão, nas ilhas Curilas e noutras partes potencialmente problemáticas da Rússia).

Muitas personalidades russas com a mesma opinião colocaram deliberadamente o conflito do oblast de Kaliningrado num contexto emocional, recorrendo à retórica do nacionalismo ferido. O enclave russo foi descrito como um território "cercado" de vizinhos hostis; logo, o que importa é restaurar a subordinação do oblast de Kaliningrado ao centro federal, e demonstrar a firmeza da posição russa. Bons exemplos disso são os ex-líderes do partido Rodina, que contribuíram grandemente para a escalada do conflito de identidade ao sugerirem que a Rússia tinha de ameaçar a Lituânia através de reivindicações territoriais e da não-ratificação do tratado do estabelecimento de fronteiras40.

Enquanto isso, no seio do oblast de Kaliningrado havia muitos apoiantes da abordagem geopolítica. Por exemplo, um dos políticos locais comparou o processo de alargamento da NATO com o "Drang nah Osten" alemão41. Há forças políticas locais que em 2003 emitiram uma carta aberta ao público da região na qual protestavam contra as perspectivas de ratificação do tratado fronteiriço entre a Rússia e a Lituânia, especulando que isso incitaria a Lituânia a juntar-se à NATO e, em seguida, a chantagear a Rússia42. Os jornais locais que cobriram os primeiros dias de travessia da fronteira na sequência da introdução de facilidades na obtenção de documentos para viajar em Julho de 2003, aplicou de forma alargada o discurso do Outro ("passageiros russos assustados" vs "cruéis oficiais de alfândega" da Lituânia, "atmosfera nervosa" de verificação na passagem da fronteira, etc. 43).

Uma explicação para este tipo de discurso é a de que a Rússia fica desorientada em situações em que os limites das fronteiras ficam difusos, em que as identidades mudam de orientação, e em que a hierarquia dos actores não está bem estabelecida44. É por isso que a Rússia tende mais a reagir do que a agir na região do mar Báltico, e dá respostas sobretudo quantitativas e modernistas aos desafios muito mais fundamentais e qualitativos que as estruturas territoriais de governo têm enfrentado. Moscovo tem dificuldades significativas em percepcionar o oblast de Kaliningrado como uma parte orgânica dos projectos emergentes do Báltico e/ou da região nórdica. Os corpos executivos russos exprimiram repetidas vezes as suas preocupações acerca da concessão de privilégios e direitos especiais a uma única região (por exemplo, a travessia, sem necessidade de vistos, de fronteiras de países da UE). Nas entrelinhas pode ler-se que este ponto de vista restritivo pode ser explicado pelo receio de que o oblast de Kaliningrado pudesse estabelecer laços mais fortes com a região do Báltico, e que acabasse por redireccionar as suas relações para o Ocidente.

Contudo, o pensamento defensivo nos escalões superiores da elite federal é seriamente desafiado pelos que aderiram ao que se podia designar como o discurso da questão "orientada para dentro". Os seus defensores acham que, nesta região, a Rússia defronta problemas de ordem técnica e não política e que se devia concentrar em actualizar as comunicações aéreas e por ferry entre Kaliningrado e o território russo continental, em providenciar passaportes internacionais aos residentes e em dar as boas-vindas a novos consulados no oblast de Kaliningrado45. O que efectivamente ameaça o futuro de Kaliningrado não é o novo sistema de regulamentação de vistos, mas a falta de recursos da Rússia para modernizar de forma notória as comunicação da região para leste, e a baixa competitividade das comodidades locais46. São sobretudo questões internas que exacerbaram a posição de Kaliningrado. Outros afirmam que ninguém na região do mar Báltico está interessado na emergência de uma quarta república báltica que seria incapaz de lidar eficazmente com a corrupção, o desemprego e a degradação ambiental.

Também por isso a UE não tem obrigações financeiras para com o oblast de Kaliningrado47, o que faz com que a sua elite seja mais activa no estabelecimento de um lóbi junto do centro federal em nome dos seus interesses regionais.

O que resulta deste tipo de raciocínio é uma lógica de dessecularização que implica o abandono de uma plataforma exclusivamente centrada no poder em favor de uma plataforma mais orientada para as questões reais. Embora a Rússia na sua globalidade não se sinta pronta para se comportar como um país báltico, alguns dos seus territórios podem com maior facilidade e rapidez tornar-se "regiões bálticas". Kaliningrado é um assunto que aguarda resolução, pelo que o seu modelo futuro poderia ser descrito como "leis europeias num território russo". Isto poderá suceder como resultado da aplicação de práticas-padrão num vasto grupo de esferas de política pública - as regras internas de regulamentação de negócios, a protecção do ambiente e os padrões de segurança de produtos têm de ser compatíveis com os dos países da UE, etc.

Portanto, o conflito de Kaliningrado dá-nos um bom exemplo de dois significados diferentes incluídos no discurso acerca da "escolha europeia" por parte da Rússia.

O entendimento de se "estar na Europa" é marcado por um forte sentido de política de poder, o que implica que a Rússia está ansiosa por obter o mesmo tipo de tratamento por parte da UE e por aceder ao seu mercado. A Rússia tem de ser aceite em pé de igualdade independentemente dos seus acontecimentos internos, incluindo as políticas eleitorais, o governo, as relações negociais, as liberdades dos meios de comunicação, e por aí fora.

Entretanto, começa a surgir um entendimento diferente acerca da "escolha europeia" da Rússia, que faz alterar as políticas russas, da fobia para a cooperação, do semi-isolacionismo e das frequentes opções unilaterais para soluções multilaterais. A "europeização" da Rússia é portanto interpretada como uma política de reconstrução das regras internas da Rússia em consonância com as normas da UE. O oblast de Kaliningrado parece ser um bom terreno para experimentar movimentos que se devem, de um modo geral, a dois motivos principais. Em primeiro lugar, há um sentimento bastante difundido de que o oblast de Kaliningrado, criado como uma unidade administrativa governada directamente pelo centro e destinada a agir de forma controlada de acordo com as regras ditadas de cima, parecia feito à medida para o sistema soviético, mas parece desempenhar aspectos disfuncionais num novo contexto pós-soviético. O oblast de Kaliningrado está à procura de novas formas para a sua subjectividade transregional, presumindo que as hipóteses de sucesso se consideram mais elevadas nos territórios que enfrentam a ameaça de serem empurrados para a periferia e que se encontram profundamente insatisfeitos com os seus papéis.

A segunda razão - que se relaciona com a primeira - diz respeito à assunção de que, não só o próprio oblast de Kaliningrado, mas toda a região do mar Báltico, representam um "quadro aberto" que sempre acolhe a chegada de novas ideias. Uma vez que muitos especialistas assumem que "os velhos padrões do regionalismo" se tornaram obsoletos, os novos ainda têm de ser desenvolvidos para lá dos limites administrativos do Estado, que, por isso, têm de ser integrados em contextos transnacionais. Em particular, a criação da euro-região "Báltica" (que inclui o oblast de Kaliningrado) é uma das tentativas de "multilateralizar" a agenda da região e de reorientar as estratégias regionais no sentido de promover a inovação, soluções de marketing, a orientação para o consumidor, proporcionar melhores acessibilidades aos bens e aos serviços públicos, e dar maior visibilidade aos debates públicos acerca das condições de vida futuras.

CONCLUSÃO

Tal como salientei neste ensaio, a análise dos discursos políticos tem de ter em conta os acontecimentos que são escolhidos como pontos temporais constitutivos que substanciam e legitimam as identidades dos sujeitos políticos. Partindo deste ponto de vista, poder-se-ia assumir que os discursos contemporâneos russo e europeu assentam em dois momentos-chave do século XX: a II Guerra Mundial e a queda do Muro de Berlim.

Apesar desta aparente analogia estrutural entre os dois discursos, há uma diferença notória entre os efeitos que eles causam na formação das duas identidades. Para a Europa (e no sentido lato, para toda a comunidade euro-atlântica), estes dois acontecimentos modeladores estão intimamente relacionados e inscrevem-se numa "narrativa maior" da proliferação dos valores da democracia e da paz. O Presidente norte-americano Barack Obama afirmou que a invasão das tropas aliadas na Normandia há sessenta e cinco anos foi um momento essencial que permitiu que se alcançassem os sucessos que se seguiriam à libertação da Europa: o Plano Marshall, a aliança da NATO, e a prosperidade partilhada e a segurança que ambos proporcionaram48.

Aquilo de que a Rússia sente desesperadamente falta é deste tipo de "grande narrativa".

A vitória da URSS na Grande Guerra Patriótica, instrumentalmente "apropriada" pelo regime "tandemocrático" de Putin-Medvedev como uma das provas históricas mais convincentes do estatuto de grande potência da Rússia faz ao mesmo tempo parte de um discurso pró-comunista/neo-estalinista, que de outra forma seria rejeitado pelo Kremlin. Os significados de celebração ligados ao 9 de Maio (o Dia V) nesse sentido negam o potencial de emancipação do legado de 1989, o que se deve a dois motivos.

Primeiro, o que se seguiu pouco depois da queda do Muro de Berlim - a dissolução da União Soviética em 1991 - é comummente aceite como um símbolo do desmembramento artificial do mesmo Estado que venceu a maior batalha do século XX. Em segundo lugar, a desintegração vertiginosa do bloco socialista de estados-satélites em 1989 desafiou a própria ideia da suposta "libertação" soviética de um grupo de estados da Europa Oriental em 1945.

No que diz respeito a esses antigos estados da Europa de Leste, os seus discursos modeladores de identidade, ao contrário dos da Rússia e da Europa, acrescentam intencionalmente outros pontos de referência temporal às suas narrativas nacionais, fazendo com que o quadro geral seja mais diferenciado e controverso. Por exemplo, a Estónia situa a sua identidade internacional no tratado de paz de Tartu, de 1920, enquanto as autoridades ucranianas tentam usar o Golodomor (grande fome) de meados dos anos 1930 como uma legitimação histórica dos maus-tratos que esta república sofria às mãos das autoridades comunistas de Moscovo. Os húngaros, certamente, mantêm as suas memórias constitutivas da invasão soviética de 1956, ao passo que os checos comemoram os acontecimentos semelhantes de 1968. Por diversas razões, estas memórias nacionais não estão inscritas de modo particularmente profundo nem no discurso russo nem no europeu.

O que resulta daqui é que a Rússia se encontra numa situação de duplo conflito discursivo: as suas versões de acontecimentos-chave do século XX são desafiadas, quer pela narrativa história euro-atlântica, quer pelos discursos auto-assertivos dos "novos europeus". O pior erro que o Kremlin pode cometer é apelidar de "incorrectas" ou "malévolas" todas as interpretações alternativas da história. A tentação de aplicar um argumento ao estilo da Realpolitik - ou seja, equiparar as práticas comemorativas desafiantes (e até hostis) a falsificações prejudiciais para os interesses da Rússia - numa situação muito mais multidimensional de identidades em conflito e de discursos em fase de viragem não só não aproximará a Rússia da Europa como não a ajudará a reificar o potencial, ainda inexplorado, do legado de 1989.

TRADUÇÃO DE JORGE GARCIA

 

NOTAS

1 BUTLER, Judith - Precarious Life. The Powers of Mourning and Violence. Londres: Verso, 2006, p. 5.        [ Links ]

2 BADIOU, Alain - Metapolitics. Londres: Verso, 2005, pp. 21-24.

3 KARA-MURZA, Alexei - Mezhdu imperiei i smutoi. Moscovo: Instituto de Filosofia, Academia Russa de Ciências, 1996, p. 23.

4 MOROZOV, Viacheslav - "Russia in/and Europe: identities and boundaries". Ensaio preparado para o workshop "Identity Policies in Wider Europe. Mutual Perceptions in Germany and Russia", Berlim, Friedrich Ebert Stiftung e Stiftung Wissenschaft und Politik, 6 de Junho de 2009, p. 5.

5 Cf. discurso de Dmitri Medvedev na Conferência de Política Mundial, em Evian, 8 de Outubro de 2008. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/appears/2008/10/207422.shtml

6 Ibidem.

7 BAZHANOV, Yevgeniy - "Overcoming the Hobbesian instinct". In The Moscow Times, 15 de Maio de 2009, p. 8.

8 OZNOBISCHEV, Sergey - "Vremia vybirat". In International Trends. Journal of International Relations Theory and World Politics. Vol. 2, N.º 1 (4), Janeiro-Abril de 2004, p. 92.

9 BAZHANOV, Yevgeniy - "Russian foreign and security policy in its global dimension". In SPILLMAN, Kurt, e WENGER, Andreas (coords.) - Russia's Place in Europe. A Security Debate. Berna: Peter Lang Publishers, 1999, p. 171.

10 SPILLMAN, Kurt, e WENGER, Andreas (coords.) - Russia's Place in Europe. A Security Debate, p. 221.

11 SMITH, David J. - ""Woe from stones": commemoration, identity politics and Estonia's "War of Monuments"". In Journal of Baltic Studies. Vol. 39, N.º 4, Dezembro de 2008, p. 421.

12 YASTRZHEMBSKIY, Sergey - "Kto tormozit vagon?". In MoskovskiiKomsomolets, 16 de Maio de 2007.

13 Nezavisimaya gazeta, 17 de Novembro de 2004.

14 Strana.ru, 10 de Outubro de 2004.

15 MOROZOV, Viacheslav - "Russia in the Baltic Sea region: de-securitization or de-regionalization?". In Cooperation and Conflict, Setembro de 2004.

16 MOROZOV, Viacheslav - "The Baltic states in Russian foreign policy discourse: can Russia become a Baltic country?", Copenhagen Peace Research Institute, COPRI Working Paper, 2004.

17 ASTROV, Alexandr - Samochinnoe soobschestvo: politika men'shinstv ili malaya politika?. Talin: Publicações Avenarius, 2007.

18 Entrevista de Vladimir Putin à CNN, Sochi, 28 de Agosto de 2008. Disponível em: http://www.government.ru

19 PAVLOVSKY, Gleb - "Vozvraschenie iz Gori". In Expert. N.º 33, 25-31 de Agosto de 2008, p. 60.

20 DORENKO, Sergei - "Nam prinesut Gruziyu v podarochnoy upakovke". In Komsomolskaya Pravda, 4-11 de Setembro de 2008, p. 4.

21 Entrevista de Dmitri Medvedev à BBC, Sochi, 26 de Agosto de 2008. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/appears/2008/08/205775.shtml

22 "Kto ubil "Bol'shuyu Evropu"", in http://europe.inache.net/bigeuro.html

23 Entrevista de Vladimir Putin ao canal televisivo Vesti, 6 de Setembro de 2008. Disponível em: http://www.government.ru

24 VLASOVA, Olga - "Kak pobedit' Evrosoyuz". In Expert. N.º 34, 1-7 de Setembro de 2008, pp. 66-69.

25 LAVROV, Sergey - "Vneshniaya politika Rossii i novoe kachestvo geopoliticheskoi situatsii". In Moscow: the Diplomatic Academy of MFA, Diplomaticheskiy ezhegodnik, 2008.

26 Discurso do Presidente Medvedev na Conferência de Política Mundial, Evian, 8 de Outubro de 2008. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/apears/2008/10/207422.shtml

27 Ibidem.

28 PAVLOVSKY, Gleb - "Vozvraschenie iz Gori". In Expert. N.º 33, 25- 31 de Agosto de 2008, p. 60.

29 REMIZOV, Mikhail - "Sud'ba rossiyskogo nasledstva", APN Agency & National Strategy Institute, 12 de Abril de 2005. Disponível em: http://www.apn.ru/publications/print1355.htm

30 TRENIN, Dmitry - Reading Russia Right, Policy Brief, Carnegie Endownment for International Peace, edição especial, n.º 42, Outubro de 2005, p. 1.

31 Encontro do Presidente Putin com os membros do clube de debate Valday, Sochi, 14 de Setembro de 2004. Disponível em: http://www.kremlin.ru/text/appears/2007/09/144011.shtml

32 ADOMEIT, Hannes - "Inside or outside? Russia's policies towards NATO". In ROWE, Elana Wilson, e TORJESEN, Stina (orgs.) - The Multilateral Dimension in Russian Foreign Policy. Londres: Routledge, 2009, p. 117.

33 Kommersant, 28 de Maio de 2008.

34 O ex-agente do KGB, Litvinenko, recebeu a cidadania britânica. As autoridades britânicas acusara§m Andrey Lugovoi de ter envenenado Litvinenko em Londres.

35 Moscow News. N.º 28 (1395), 20-26 de Julho de 2007, p. 12.

36 USA Today, 6 de Novembro de 2007, p. 2.

37 Moscow News. N.º 28 (1395), 20-26 de Julho de 2007, p. 13.

38 MOROZOV, Viacheslav - "Russia in the Baltic Sea region: de-securitization or de-regionalization?".

39 Disponível em: http://www.strana.ru/print/137124.html

40 Mayak Baltiki, 13 de Fevereiro de 2003, p. 2.

41 CHERNOMORSKII, P. - "Ni transit, ni vizy kaliningradskuyu problemu ne reshat". Disponível em: http://www.globalrus.ru/index.html?section=review&id=57235

42 Baltiiskaya gazeta. N.º 6 (74), 20 de Fevereiro de 2003, p. 4.

43 Kaliningradskaya Pravda. N.º 213 (15616), 23 de Outubro de 2002, p. 6.

44 MOROZOV, Viacheslav - "The Baltic states in Russian foreign policy discourse: can Russia become a Baltic country?".

45 Disponível em: http://www.politcom.ru/print.php?fname

46 SMORODINSKAIA, Natalia - Baltiiskaya zagvozdka (O desconforto báltico). Disponível em: http://www.expert.ru/sever/current/tema.shtml

47 KOBRINSKAIA, Irina - "Pri chom zdes vizy" [O que têm os vistos a ver com tudo isto]. In The Moscow News. Disponível em: http://www.mn.ru/issue.php?2002-25-26

48 OBAMA, Barack - "Remarks of the President at D-Day 65th anniversary ceremony". Normandy American Cemetery and Memorial, France. The White House, Office of the Press Secretary, 5 de Junho de 2009.

 

* Professor na Universidade de Nizhny Novgorod, Rússia.