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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.27 Lisboa set. 2010

 

Impasses e «esperanças»

 

René Pélissier

Historiador. Autor de Les campagnes coloniales du Portugal, 1844-1941 (2004) e, com Douglas L. Wheeler, de História de Angola (Tinta-da-China, 2009).

 

Na nossa opinião, a pior crítica que se pode fazer a um historiador ou a um bibliógrafo não é estar mal informado ou ser incompetente; é ser sectário ou – o que é disso corolário – ser complacente para quem pensa como ele. As páginas de apresentação e análise de uma dezena de livros que se seguem dizem respeito, a diversos níveis, à colonização portuguesa tardia, à Guerra Colonial e à situação vivida em vários países saídos de uma e de outra. Estas notas não pretendem ser uma visão detalhada de todos os aspectos que abordam, já que estamos dependentes da produção internacional que alguns editores pretendem dar a conhecer, ou seja, vender, o que é muito legítimo da sua parte. Vários dos títulos assinalados chocarão as convicções dos leitores e do autor. Este último não tem de se desculpar: explora o que lhe chega à secretária, bom ou mau, insignificante ou magistral. Mas isso não o impede de conservar os seus valores – se ainda os tiver, após tantas centenas de milhar de páginas consumidas e, muitas vezes, indigestas.

Comecemos pela memória colonial entre os antigos colonos, revisitada por uma jornalista, Ana Sofia Fonseca1, que fez um trabalho impressionante. Angola, Terra Prometida, é uma fonte de primeira importância para conhecer a vida de uma sociedade desaparecida após 1975. Será uma obra de propaganda nostálgica e unilateral? Não. A autora esforça-se por contrabalançar os argumentos do Estado Novo e os dos nacionalistas africanos, ainda que com uma preponderância das opiniões dos colonos, o que é compreensível, dado o título escolhido e o público a que se destina em Portugal. O panorama coberto é vasto e vai do rico fazendeiro até ao colono médio ou pobre, passando pelos seus criados ou por indivíduos sexualmente marginais. As informações são essencialmente retiradas de entrevistas (perto de uma centena), da leitura da imprensa local (antes de 1975) e de memórias publicadas ou transmitidas aos descendentes. A autora consultou igualmente os arquivos da PIDE/DGS, de algumas empresas, e de algumas famílias. Trata-se de um clássico trabalho de historiador, tratado segundo as técnicas jornalísticas, a fim de interessar o leitor. Ana Sofia Fonseca deslocou-se a Luanda, Sá da Bandeira/Lubango e a Novo Redondo/Sumbe o que, no último caso, não é tão frequente.

Teve a boa ideia de dividir o livro por temas, começando pela viagem marítima (a partir dos anos 1940-1950), seguindo para a instalação na cidade, nas plantações e mesmo no mato (essencialmente através de um casal de caçadores ou de alguns administradores). No conjunto, sem contar com uma grande secção sobre os ricos fazendeiros de café dos arredores de Novo Redondo, a tónica é posta na vida urbana, o que reflecte bem o carácter essencialmente recente e gregário da imigração portuguesa. Uma boa parte do livro ocupa-se dos divertimentos da burguesia branca nas cidades (corridas de automóveis, rádio, cinema, praias, vida nocturna). Na verdade, em contraste com a existência mesquinha dos pobres da Metrópole sob o Estado Novo – pobres mobilizados para os virem defender – a maior parte dos colonos acreditava ter encontrado um ersatz do Brasil em Angola, onde tudo é possível para quem quer trabalhar ou para quem tem boas relações para fazer trabalhar os africanos. A autora tem razão quando recorda que esta vida de sonho só é possível sob a égide do Exército, que não pertence ao seu mundo. Não escamoteia o facto de a prosperidade ter um carácter artificial que repousa sobre a exploração inicial do indígena, nem que a Administração sabia perfeitamente que os abusos coloniais tinham provocado condições de vida infra-humanas na Baixa de Cassange e, em menor grau, no Noroeste (durante a corrida ao café dos anos de 1950-1960). Estas condições persistiam tardiamente em determinados locais do interior (por exemplo, no Cuando Cubango, em 1971, mesmo depois da abolição do trabalho contratado, em 1962). Os castigos corporais ainda eram praticados por certos administradores, muito depois do fim oficial do indigenato, na Lunda, entre outras regiões.

Curiosamente, Ana Sofia Fonseca dá um grande destaque à mentalidade dos liceais de Luanda. Inclui o racismo de certos estudantes em relação aos seus condiscípulos mais escuros que depositavam esperanças de ascensão social na FNLA (?) e sobretudo no MPLA. Há várias páginas úteis sobre a Livraria Lello, viveiro de livros «subversivos» e como tal vigiada. Em Sá da Bandeira, a modesta Atenas do ensino secundário meridional, um folclore estudantil procurava copiar os costumes de Coimbra. Mais inesperado entre a bibliografia em português, a autora lembra o papel emancipador das missões protestantes e descobre que em Novo Redondo havia uma directora de um colégio a favor da independência. Citando uma tese brasileira (p. 174), acrescenta que no fim da colonização havia cerca de três mil estudantes no ensino superior local (um número razoável) mas que apenas quarenta eram negros. Termina com a catástrofe de 1975 e o êxodo penoso destas centenas de milhar de brancos (e alguns mestiços) abandonados pelo seu Exército. O sonho tornara-se pesadelo e todo o seu mundo se desmoronava na explosão dos mitos salazaristas e pré-salazaristas. Uma bibliografia modesta e 331 notas completam este trabalho não maniqueísta e, sob muitos aspectos, muito útil.

Existe outro livro importante sobre os colonos, mas num registo mais militante e pessoal, porque vivido do interior, e já não em Angola, mas num contexto familiar em Lourenço Marques. Trata-se da confissão impúdica de Isabela Figueiredo2, a autobiografia de uma retornada rebelde que não suportava o racismo acentuado de seu pai e que regressa sozinha, aos 13 anos, para a casa da avó nas Caldas da Rainha, em 1975, ou seja, numa altura em que os retornados não eram acolhidos de braços abertos na sua antiga Metrópole. Depois da leitura de Caderno de Memórias Coloniais, um psicanalista que tivesse nascido na Argélia nos anos de 1940-1950 não tardaria a fazer o seu diagnóstico: «Complexo de Electra tropicalizado, com transferência negrófila atenuada pela lucidez do sujeito». Mas nós, simples recenseadores de ruínas imperiais, que nunca lemos Jung, Lacan e outros «engenheiros de almas» para idólatras ociosos, seremos muito menos restritivos. A autora interessa-nos? Sim. Porquê? Porque demole as defesas agressivas ou lacrimejantes de alguns retornados em ruptura com o Paraíso. Esses viam-no – ou ainda o vêem – retroactivamente verdejante e ela denuncia-o pela sua negrura, ensanguentada pela injustiça. Não é a relação amor-ódio contra o progenitor demonstrada neste livro brutal que nos prende a atenção; é o que revela sobre uma certa sociedade branca e patriarcal.

Ela que sossegue: não é próprio da situação sul-moçambicana, ela mesma herdeira do arcaísmo e da violência em relação aos pobres da província portuguesa antes e durante o Estado Novo. O seu meio familiar é o do colono médio que enriqueceu, imigrado de primeira geração, decidido a explorar os seus operários negros que considera, na melhor das hipóteses, como animais preguiçosos e alcoólicos. Pessoalmente, encontrámos na mesma época (1967) este tipo de colono no Gabão, já independente. Mas havia uma marcada diferença entre os dois países: a guerra colonial no Norte de Moçambique, tão longe da capital que nem era mencionada nas conversas. Quando chegou o 25 de Abril, a autora tinha 11 anos e a maior parte dos brancos locais estava tão imbuída do seu poderio irreal que acreditava ser possível obter uma independência à rodesiana. Reflexo típico de uma incapacidade em medir a fragilidade da sua dominação? Na verdade, não havia nenhum dirigente de envergadura, não havia nenhuma organização. Tudo era confusão e verbalismo.

Depois do 7 de Setembro de 1974 os massacres dos brancos pelos negros revanchistas dissipam-lhes os sonhos. Usado e hostil, o Exército português na sua maioria não é favorável a estes filhos perdidos da dialéctica. É a derrocada, a evaporação de uma colonização que não era de modo nenhum secular mas mais um simples artifício recente na capital. A família permanece e a menina de 12 anos dá por si a alfabetizar os filhos dos assassinos dos brancos e a receber o ensino da FRELIMO. Toda a história é invertida, as novas verdades marxistas-leninistas com molho africano substituem as dos salazaristas. A continuação é inesperada. Enviada para a província portuguesa para continuar a sua educação e «contar a expoliação dos colonos pela FRELIMO», esta jovem imigrada lusófona considera então os seus novos compatriotas na Metrópole bem pequenos e francamente mesquinhos. Ainda em Moçambique, em 1978, o pai – um «gabarolas» de um racismo irreprimível – é detido por injúrias a Samora Machel. Sairá da cadeia fragilizado e mais prudente, mas preso a Maputo, caído na deliquescência. Ou seja, o valor deste texto reside naquilo que diz da convivência desequilibrada durante os dez últimos anos da colonização numa cidade sob a dependência oculta da África do Sul. O que já é muito.

Mais curto, salientamos igualmente o testemunho romanceado (?) de um jovem colono, chegado aos quatro anos a Inhaminga (a norte da Beira). O pai possui uma grande plantação de algodão e, diz ele, trata bem dos trabalhadores. Mas a guerrilha aproxima-se e incendeia-lhe metade da colheita de algodão. Uma bomba ao retardador explode no cinema local. O pai fica, mas a mãe e o filho são evacuados de comboio, que é por sua vez atacado, apesar da escolta militar. Por um golpe de teatro, o seu criado, anjo-da-guarda e amigo, é um chefe local da FRELIMO responsável pelo incêndio. O autor torna-se retornado com menos de dez anos na Beira Litoral. Continua um rapazinho anti-racista e humanista. África não se esquece 3 e à medida que envelhece mais lhe sente a falta. Idealizada ou não, é a sua infância. Compreendemo-lo.

Prosseguiremos agora por outros impasses, não já os que bloqueiam a ascensão dos colonos para o Paraíso mas aqueles aonde a política conduziu muitas centenas de milhar de soldados metropolitanos numa guerra acima dos seus meios. A literatura dos antigos combatentes é um género, ou subgénero, que mobiliza e mobilizará os professores de literatura portuguesa durante muitas gerações, bem depois do desaparecimento dos que a escreveram. Estes académicos, em geral, não têm as mesmas preocupações dos autores e ainda menos as dos historiadores. Os últimos desejam saber o que não se encontra nos comunicados de imprensa da época nem na história oficial estabelecida a posteriori pelos estados-maiores. Para os historiadores, o estilo e o lirismo, a poesia e o vocabulário das emoções não são mais do que acessórios. O aborrecimento chega depressa após a leitura das proezas desta ou daquela unidade; não nos devemos desencorajar, pois acabamos por descobrir pepitas mesmo nos romances históricos, redigidos por certos actores (em geral oficiais ou suboficiais milicianos) que tiveram de combater a sério.

Memória dos Dias sem Fim 4 é disto um bom exemplo ainda que, infelizmente, não seja datado e se revele um pouco «literário» de mais. Luís Rosa está numa guerra absurda, não patriótica, e enfrenta na Guiné um inimigo decidido e combativo que o quer suplantar militarmente. Psicologicamente já venceu a maior parte dos soldados portugueses. Mas ainda não venceu todos os seus auxiliares fulas/peuls ou outros muçulmanos que têm um interesse, real ou simulado, em recusar a dominação do PAIGC, dos seus métodos e dos seus objectivos. O alferes Rosa e a sua companhia estão na zona nevrálgica fronteiriça do Sudeste, entre o rio Cacine e o limite artificial da Guiné Conacri. É um lugar de passagem obrigatória do PAIGC, que está encarregado de retomar e defender. Um historiador que já sublinhou abundantemente o carácter arbitrário do traçado dos contornos da Guiné não pode ficar insensível a esta demarcação que divide o país dos nalu. De entre as características mais importantes do livro, limitar-nos-emos a citar as mais originais: a) a presença de um comerciante português em Gadamael (o «porto» de acostagem fluvial das lanchas da Marinha que asseguram o abastecimento das tropas terrestres) que explora impiedosamente os nalu (incluindo a instalação de um bordel militar com as filhas ou as mulheres dos seus devedores); b) a tortura de um louco, prisioneiro; c) a execução em Guilege, por um alferes, de um velho informador/agente duplo, a quem obriga a cavar o próprio túmulo antes de arrancar uma orelha do seu cadáver; d) o bombardeamento com morteiros do posto de Sangonhá a partir do campo de Marela do PAIGC na Guiné Conacri e o franqueamento, em represália, da fronteira pelos comandos fula e pela milícia local, que destroem a base do PAIGC; e) a recepção dos refugiados que fogem da fome; f) a primeira destruição pelas unidades regulares de artilharia do PAIGC da guarnição portuguesa de Guilege, refugiada nas trincheiras em volta do posto – apenas os bombardeamentos aéreos fariam recuar os guerrilheiros; g) o fornecimento de informação contra o PAIGC por um chefe nalu, refugiado na Guiné Conacri, em troca de um tratamento contra as doenças venéreas, quando em princípio os bufos que chegavam do outro lado da fronteira eram pagos pelos portugueses em moeda guineense.

Um dos melhores romances sobre a guerra colonial na Guiné! Outro livro interessante são as memórias de um furriel responsável pelos veículos da sua companhia que reconhecia a inutilidade desta guerra. Os Tempos de Guerra 5 situa-nos numa região ligeiramente mais a norte, no eixo Buba-Aldeia Formosa (Quebo) e para além, na direcção da fronteira sudeste. Quem é que nesta companhia estacionada em Buba saberia que em Fevereiro de 1881 se tinha aí travado a maior batalha dos fula contra a principal guarnição portuguesa da época na África atlântica, antes de chegar a Luanda? Ninguém, evidentemente, porque o comando em Lisboa, afogado nos seus mitos, enviava para ali os seus homens dizendo-lhes que a Guiné era deles desde o século XV! A ignorância paga-se sempre caro, sobretudo na carne dos soldados sacrificados. O autor descreve minuciosamente as várias tabancas onde a sua unidade esteve implantada. Buba, nesta última guerra, era um ponto importante porque era o «porto» onde desembarcavam os homens e as munições destinadas a opor-se à ofensiva de Nino Vieira, que destruiu a guarnição de Contabane (22 de Junho de 1968). Finalmente os descendentes dos fula de 1881 tinham Buba por conta dos portugueses! A título de curiosidade ficamos a saber que uma disputa mortal opunha os fuzileiros e os comandos em Buba, e que o aeródromo de Bissau era utilizado pelos aviões que abasteciam o Biafra. Spínola morreu, Nino Vieira foi assassinado, o Biafra já não existe. Amílcar Cabral também não e o que é que aconteceu à Guiné independente?

Se deixarmos as linhas de fronteira coloniais na Guiné, encontramos outras sentinelas imperiais em Angola, a começar no Sudeste, e depois em Cabinda. Quem ouviu falar de Ninda6? Para além de ser uma aldeia perdida, a 41 quilómetros da fronteira com a Zâmbia (e não 15 quilómetros, como escreve o antigo furriel miliciano que aí está estacionado desde Maio de 1973), era a cinco dias de viagem (de caminho-de-ferro e depois de camião) de Luanda. O que é que nos ensina este texto? Muito: a) a paralisia operacional quase total dos guerrilheiros do MPLA; b) a existência de uma base de helicópteros sul-africanos que transportam as tropas portuguesas; c) a presença de uma companhia de katangueses que estão cansados de lutar pelos portugueses; d) as reacções dos soldados depois do 25 de Abril de 1974. Sem receberem alimento a partir do Luso, em plena confusão, têm de ir à caça de noite; e) o medo das minas continua a ser o seu único inimigo. Ficamos a saber que no fim de Julho de 1974 a companhia é transferida para Nova Gaia (Baixa de Cassange). É rendida por soldados «libertadores». Abandonam-se os auxiliares africanos à sua sorte. A administração portuguesa é substituída por pequenos quadros arrogantes do MPLA. Os roubos e pilhagens de algumas fazendas intensificam-se. No fim de Novembro de 1974 a companhia é encarregada de manter a ordem em Malange, dominada pelos extremistas que se lançam contra os colonos. O que se segue é do conhecimento geral.

No extremo oposto de Angola descobrimos uma outra situação fronteiriça, ligeiramente anterior (por volta de 1972-1973), narrada num romance de amor em tempo de guerra. A originalidade de Viagem ao Fim do Império7 está em ser dos poucos livros situados na floresta de Maiombe, em Cabinda, e é acerca do MPLA que pretende «libertar» o enclave, e dos seus habitantes, que não o aceitam, por aspirarem a separar-se de Angola. O livro foi escrito por um capitão miliciano que, na vida real, se integrou tão bem no Exército que acabou tenente-coronel. Nota-se: a) os contactos oficiosos entre os oficiais e os guerrilheiros que exigem dinheiro para não minar as pistas e montar emboscadas (sector de Luali); b) a presença de um rico fazendeiro (de café) provavelmente em contacto, também ele, com uma guerrilha sobretudo vitoriosa nos seus comunicados; c) a espionagem recíproca que permite uma informação razoável sobre o adversário; d) a liberdade de expressão dos oficiais que esperam uma mudança de política que não vem; e) os roubos de materiais por alguns soldados, que o revendem; f) a simulação de loucura de certos oficiais no hospital militar de Luanda a fim de serem repatriados; g) a adesão dos chefes consuetudinários do Maiombe ao separatismo da FLEC; h) a visita – controversa para os oficiais – da «Cilinha», que vem erguer o moral dos soldados num posto avançado e alimentar assim a propaganda oficial do Estado Novo.

É duro arriscar a pele por uma causa em que não se acredita. Vejamos então aqueles que continuam a acreditar. Não sabemos se são representativos de uma grande proporção da opinião pública. Em todo o caso, mesmo assim, há pouco publicavam grossos livros, por vezes muito bem documentados, mas sempre vingativos. A polémica está cada vez mais presente, mas nos opúsculos recebidos tornou-se difícil identificar dados concretos, porque os discursos e as diatribes impõem-se aos números. Comecemos, apesar de tudo, por um sector em que um mestiço cabindense, secretário provincial da educação (1964-1971) em Angola deu um impulso tardio mas notável ao ensino. A este título, quer queiramos quer não, foi ele que o africanizou nos níveis inferiores, apesar da oposição surda ou virulenta de certos decisores que percebiam que, com esta acção, estava prestes a cortar o ramo sobre o qual repousava a supremacia do poder branco em Angola. Percebemos logo que a dezena de pequenas brochuras obtidas da Edição Neos (aliás Núcleo de Estudos Oliveira Salazar, que parece ser a sucessora das Edições Nova Arrancada que tinham um catálogo de livros) dizem todas respeito a Angola, e não a Moçambique nem às pequenas parcelas imperiais. Falta de autores ou de interesses?

Das três brochuras de José Pinheiro da Silva8, a mais útil para quem quiser ter estatísticas, e não simples declarações de intenções, é a primeira enumerada em nota de rodapé. A segunda é uma recolha de discursos e de entrevistas deste partidário indomável da assimilação oficial mas também, à sua maneira, artesão da preparação intelectual dos angolanos. A terceira acumula outros discursos onde, num, não dissimula que o MPLA tentou atraí-lo 47 pp. para o seu lado. Onde tantos outros funcionários angolanos viraram a casaca, ele, ao menos, permanecerá fiel ao ideal salazarista e às suas convicções. Não teremos qualquer dificuldade em ligar este trio com a reedição de uma outra brochura publicada em três línguas (propaganda oblige), em 1968, pela pena do jornalista Arthur Ligne9. De extrema-direita ou de extrema-esquerda, os regimes autoritários tentaram sempre captar os jovens. Era mais difícil numa colónia, mesmo que fosse apresentada como portuguesa desde há séculos. Mas, apesar de tudo, a construção de uma escola rural ou de um posto sanitário no mato, por adolescentes, é uma actividade em benefício da comunidade. O problema é que era uma gota de água num oceano de pobreza, de ignorância e de doenças. Ao lermos título tão sedutor como Angola. O 4 de Fevereiro de 196110 o historiador que há em nós desperta e crê ir obter informações, novas, já que esta data fatídica se tornou no símbolo da «guerra de libertação» do MPLA e o autor da brochura é o governador-geral de Angola no momento dos factos. Infelizmente, nas 79 páginas do texto, a secção angolana ocupa apenas umas 28. É pouco para grandes revelações e, de facto, são raras. Mesmo assim, são fornecidos alguns detalhes acerca das medidas de precaução que o governador pediu que a Metrópole tomasse para evitar a contaminação pelo Congo ex-belga em 1960. Pretende que a misteriosa revolta da Baixa de Cassange não se devia aos excessos da «autocracia do algodão» local – o que é insustentável – mas às tradições independentistas do Cassange (é parcialmente possível mas onde estavam os sobas supostos a encarná-las?) e à influência de provocadores vindos do Congo independente. É mais do que provável, mas porque é que teriam escolhido este lugar afastado do mato angolano quando o caminho mais curto era o que descia de Léopoldville, como o fez a upa em Março de 1961? Se não houvesse um terreno socioeconómico favorável no Cassange, não teria havido uma revolta. Relembra que evitou o pior das represálias dos colonos brancos contra os musseques de Luanda em Fevereiro de 1961, quando a polícia queria ajudá-los, e não deixa de sublinhar que os seus apelos a Lisboa depois do 15 de Março depararam com a má-vontade do Ministério da Defesa, que não quis dotar as milícias com armas. O governador teve de importar armas e munições britânicas. Coloca em causa dois generais vindos da Metrópole que visitaram Cabinda e o Congo a 15 de Março e minimizaram a violência (p. 71) junto de Lisboa. Mordicus defende a posição de Salazar contra o general Botelho Moniz, e dá a entender que, sem a sua serenidade, teria ocorrido um levantamento geral. Ipso facto, as acusações de impreparação e passividade que lhe fizeram são, segundo ele, mitos. Esta defesa pro domo por um jurista tão experiente como o autor merece mais de 28 páginas. Desejamos, portanto, que apesar da sua idade avançada (nasceu em 1915), publique ou encoraje a publicação de um relatório – ou mesmo de uma tese – completo da sua gestão entre 1960 e 1961. Antigamente os governadores-gerais de Angola (e de outros territórios) publicavam as suas memórias ou justificações em grossos volumes. Ele, mais do que outros, ocupa uma posição charneira e crucial na história de Angola. Tantos milhares de páginas contraditórias sobre este período apareceram que já não se sabe em quem acreditar e, infelizmente, não é a sua outra brochura11 que dissipará as dúvidas dos historiadores sérios.

Na dita brochura afirma que Salazar e Caetano queriam uma «paz negociada», mas que esperavam o «momento propício», sabendo que uma vitória militar era impossível (p. 11). Será talvez verdade para o segundo, mas o tempo não tinha a mesma fluidez em Lisboa que no resto do mundo, infelizmente. A lentidão foi sempre inimiga dos portugueses e a sua rival pérfida, a precipitação, foi e continua a ser ainda mais catastrófica para as suas aventuras. Outro título enganador? Com os três opúsculos12 do general Silvino Silvério Marques esperávamos ter uma narração detalhada e seguida do seu segundo e derradeiro mandato (15 de Junho a 19 de Julho de 1974). Mas, vítima do afastamento geográfico e da total insuficiência das bases de dados das livrarias portuguesas, em que nenhuma põe à venda toda a produção editorial nacional, fundamentamo-nos nas indicações bibliográficas que encontramos por vezes em certos livros de que os autores, evidentemente, não se dão ao trabalho de indicar o número de páginas das entradas que citam. Assim, quando ocasionalmente esperamos três volumes grossos, acabamos por receber três finas publicações com um total de 69 páginas, o que interdita, evidentemente, longos desenvolvimentos a todos os autores. O que é que nos resta? A reprodução de cartas ou de artigos, alguns dos quais aparecidos na imprensa de extrema-direita, onde o autor defende a sua gestão de um mês durante um período cataclísmico da história portuguesa. Rectifica os erros de facto enunciados nos livros ou declarações de vários artesãos desta famosa «descolonização exemplar». Ao fazê-lo, divulga alguns detalhes concretos sobre os bastidores do poder e o jogo desarticulado do MFA em 1974-1975. Encontramos igualmente do mesmo autor uma demolição13 de um dos promotores da dita descolonização. Faltam-nos conhecimentos para fazer mais do que assinalar a existência desta polémica aos que se interessam por este género que pulula na literatura ultramarina portuguesa há mais de dois séculos.

Com os impasses e as lamentações para trás, olhemos agora para as «esperanças» ou, pelo menos, para as tentativas feitas para ultrapassar as inúmeras dificuldades que assaltam os PALOP desde a independência. O que haveria de melhor para abrir esta caixa de Pandora do que o romance14 redigido por um advogado que, de 1994 a 1998, participou em projectos humanitários e culturais? A obra imagina um misterioso trouble shooter que a ONU despacha para os países de língua portuguesa na África. Desde logo, o autor inspira-se naquilo que conheceu de perto nos tempos de juventude. Em Angola, o seu herói é enviado a título de mediador entre o governo local e um jornalista guineense que entrevistou um antigo ministro que acusa as autoridades de ter assassinado um candidato a primeiro-ministro. Aproveita para descrever uma Luanda desfigurada. Em São Tomé visita São João dos Angolares e deplora as desventuras da ajuda técnica portuguesa e o tráfico de droga gerado pelos colombianos. Na Guiné, assiste a um rito de passagem entre os Bissagos (ilha de Bubaque), onde três crianças morrem no mar. Em Bafatá são as aspirações de um movimento político que quer sanear a situação. É dizimado. Por todo o lado reina a corrupção e a degradação de um não-Estado. Em Moçambique, a polícia de Maputo extorque quem passa, e o autor completa o quadro com um episódio sectário e mórbido.

Podemos encontrar exemplos mais optimistas, mas não nos desencorajemos, pois um coronel irlandês15 dá-nos as suas memórias de oficial dos Capacetes Azuis da ONU, especialmente em Angola. Consagra dois capítulos ao seu papel na missão da Untag (1989-1990), encarregada de observar a retirada das forças cubanas e da SWAPO, a organização principal dos nacionalistas namibianos. Por trás dos habituais discursos e recepções em Lubango (ex-Sá da Bandeira) e em Luanda, o coronel, como peixe na água na Babel das forças militares das Nações Unidas, conta--nos que os angolanos são pouco receptivos a estes enviados mal equipados. A desconfiança das FAPLA (Forças Armadas do MPLA) explicar-se-á pela dificuldade que têm em encontrar soldados voluntários para irem ser mortos. O autor vê desfilar jovens, vítimas de uma razia, presos por cordas para não escaparem, na própria Lubango. Faz-nos recordar o recrutamento forçado dos contratados pela Administração portuguesa, no Sul de Angola. Este livro é útil para seguir a evacuação das bases militares da SWAPO (mais de cinco mil soldados) e a libertação dos prisioneiros políticos namibianos encarcerados por este partido, que os detinha em dois «campos da morte» (incluindo um para mulheres e crianças) no território angolano. Uma mulher esteve aí prisioneira onze(?) anos. Quando tudo terminou a Untag recebeu as medalhas da ONU. A estada angolana do autor (pp. 255-297) foi a sua última missão para as Nações Unidas. Angola ainda teria uma guerra civil durante mais de onze anos, larvar ou violenta, mas disso não nos conta nada, porque já lá não está.

A esperança tímida chega-nos de onde menos esperamos, com o primeiro guia turístico alguma vez consagrado a Angola, país mais reputado pelas desgraças e estatuto de eterna vítima do que pelas belezas naturais. Sejamos claros. Não só a Angola16 de Mike Stead e Sean Rorison cobre uma enorme lacuna como é um ponto de viragem na bibliografia angolana. Depois de milhares de livros onde a tinta não era a única coisa negra ou vermelho-sangue, eis algo que se inclina mais para o cor-de-rosa. Um cor-de-rosa ainda tingido pela dor das recordações mas que deseja orientar-se para um optimismo prudente. Os autores não escondem que estão no quarto de um doente grave, mas que foi finalmente retirado da morgue. Pode começar a receber alguns visitantes intrépidos ou, melhor, alguns viajantes muito aventurosos, mas já não cangalheiros. Como especialista em Angola, tenho portanto o prazer de registar esta evolução, fazendo votos para que a convalescença não seja apenas uma simples remissão sem amanhã.

Não acreditamos que Angola alguma vez se torne numa concorrente séria da Riviera, mas o editor tem razão em apostar em leitores pragmáticos (homens de negócios apressados, humanitários enquistados, expatriados de todos os géneros, etc.), não fascinados pelo dolce farniente mas necessitados de informação séria e actualizada sobre hipóteses de sobrevivência, não apenas no inferno actual de Luanda, mas igualmente nos locais de veraneio idílicos que são o Kuíto (três páginas) e Menongue, sem falar de Cuito Cuanavale, M’Banza Congo, Soyo, Saurimo, etc. Nem tudo é perfeito neste guia. Duvidamos que o forte de Encoje tenha desaparecido completamente, a julgar pela espessura das muralhas, tal como as vimos em 1966. Da mesma forma, fixar (p. 242) em 40 mil o número conjecturado dos mortos pelos bombardeamentos portugueses (1961) na Baixa de Cassange, e depois pelas doenças e a fome, é absolutamente inverificável e releva do exagero próprio dos nacionalistas. Estas bagatelas, inevitáveis num contexto anticolonial, não nos devem esconder a imensa utilidade desta chave que abre o cofre-forte onde estão guardadas as realidades angolanas (incluindo as menos agradáveis, a começar por uma burocracia e uma corrupção que atingem níveis estratosféricos raramente igualados em África, até ao perigo das minas e de uma situação sanitária deplorável). Há 95 páginas consagradas a informações gerais, 50 à província de Luanda, 102 às outras províncias e dois apêndices com uma iniciação ao vocabulário utilizado em Angola (incluindo o calão local bastante impenetrável a um lusófono médio) e uma bibliografia de base em três línguas. De notar – caso raríssimo para um autor de guia turístico – que Mike Stead é um diplomata de carreira que esteve um ano em Luanda como cônsul e chefe adjunto da missão britânica e que viajou muito para fora da capital. O seu co-autor, mais jovem, Sean Rorison, é de nacionalidade canadiana e ficou com as províncias mais «difíceis», como Cabinda (nove páginas incluem o Maiombe, com Buco Zau e Belize, e depois a fronteira nordeste que é atravessada por um simples caminho). Uma verdadeira aventura que deve trazer recordações a alguns milhares de antigos combatentes. Em resumo, temos aqui um conjunto de informações impossíveis de encontrar noutro lugar, e só nos resta recomendar muito fortemente esta obra.

E como estamos com um diplomata que não tem medo de apanhar com um mau golpe de muleta de um mutilado de guerra à saída de um cocktail luandense, vejamos um outro – desta feita, francês – que também viajou pela Angola profunda. Na verdade pertence aos serviços culturais e o seu ponto forte é a fotografia. Três anos em Angola permitiram-lhe escapar-se da embaixada, não para tão longe como os dois anglófonos, mas bem mais do que os outros fotógrafos francófonos que o precederam. Antigo jornalista, deveria ter desenvolvido mais as legendas dos seus «bilhetes-postais». Quatro em cada cinco fotografias não sabemos onde foram tiradas. O seu entusiasmo diplomático condu-lo, muito naturalmente, a eliminar todas as asperezas políticas que possam causar mossa.

O seu texto bilingue está, portanto, no limite de uma reportagem publicitária. Prisioneiro do charme, não arrisca seguramente ver as autoridades angolanas exigir a sua saída do país. Mesmo assim ficamos perplexos de ler (p. 82), «1618, quando os portugueses foram expulsos de Angola pelos espanhóis, estes, por sua vez, expulsos pelos holandeses». Mas como os historiadores não frequentam muito os serviços culturais franceses no estrangeiro, isto não tem nenhuma importância, pois Gilles Germain17 quis agradar e mostrar que Angola saiu do abismo. Graças a este álbum magnífico conseguiu fazer-nos apaixonar pelas paisagens e populações. O que já é muito e, com ele, as «esperanças» perdem finalmente as aspas da dúvida. Ou seja, tudo está bem quando acaba bem. Tornamo-nos eufóricos.

 

Tradução: Marta Amaral

 

Notas

1 FONSECA, Ana Sofia – Angola, Terra Prometida. A Vida Que os Portugueses Deixaram. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2.ª edição, 2009, 327 pp., fotografias a preto e branco e a cores.        [ Links ]

2 FIGUEIREDO, Isabela – Caderno de Memórias Coloniais. Coimbra: Angelus Novus Editora, 2009, 138 pp. + 24 pp. com fotografias a preto e branco.

3 SILVA, Medina da – África Não Se Esquece. Tamanga Maningue – Corre Muito Depressa. Porto: Edições Ecopy, 2009, 95 pp.

4 Rosa, Luís – Memória dos Dias sem Fim. Barcarena: Editorial Presença, 2009, 262 pp.

5 TRAQUINA, Manuel Baptista – Os Tempos de Guerra. De Abrantes à Guiné. Companhia de Caçadores 2382. Buba-Aldeia Formosa 1968/70. Abrantes: Edições Palha de Abrantes, 2009, 231 pp., fotografias a preto e branco e ilustrações a cores

6 VICTOR, Aristides – Ninda. Os Trilhos da Angústia. As Areias da Angústia. Porto: Edições Ecopy, 2007, 269 pp.

7 INURA, Martz – Viagem ao Fim do Império. Lisboa: Âncora Editora, 2008, 325 pp.

8 SILVA, José Pinheiro da – A Batalha da Educação em Angola (Subsídios para a História – 1964-71). Lisboa: Edição NEOS, 2009, p. 109; Há Só Uma Língua Culta Portuguesa (A Batalha da Educação em Angola), 1964-1971. Lisboa: Edição NEOS, 2009, 63 pp., fotografias a preto e branco; A Educação e o Futuro de Angola (1970). Lisboa: Edição NEOS, 2009, 47 pp.

9 LIGNE, Arthur – «Da Vida e da Obra» das Brigadas de Acção Social da Mocidade Portuguesa (Divisão de Angola). Lisboa: Edição NEOS, 2009, 63 pp.

10 TAVARES, Álvaro da Silva – Angola. O 4 de Fevereiro de 1961. Lisboa: Edição NEOS, 2008, 79 pp.

11 TAVARES, Álvaro da Silva – A Entrega do Ultramar Português e o 4 de Fevereiro de 1961 em Angola. Lisboa: Edição NEOS, 2009, 63 pp.

12 MARQUES, Silvino Silvério – Governo Geral de Angola. Dias do Fim. Lisboa: Nova Arrancada, 2003, 23 pp.; Idem, vol. II, 2005, 31 pp.; Idem, vol. III, Lisboa: Edição Núcleo de Estudos Oliveira Salazar, 2006, 15 pp.

13 MARQUES, Silvino Silvério – Comentário às Quase Memórias de Almeida Santos. Lisboa: Edição NEOS, 2004, 31 pp.

14 FARIA, Alexandre – Filhos de África. Porto: Edições Ecopy, 2008, 203 pp., fotografias a preto e branco.

15 MORIARTY, Michael – An Irish Soldier’s Diaries. Mercier Press, Cork, 2010, 315 pp. + 16 pp. com fotografias a preto e branco.

16 STEAD, Mike, e RORISON, Sean–Angola. Chalfont St Peter (Inglaterra): Bradt Travel Guides Ltd., 2009, viii-280 pp. + 15 pp. com fotografias a cores, mapas e ilustrações a preto e branco.

17 GERMAIN, Gilles– Angola, Le renouveau. Recomeçar. Pau (França): Éditions Cacimbo, 2009, 176 pp., centenas de fotografias a cores