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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  n.32 Lisboa dez. 2011

 

Nos tiros de partida para a inevitável revisão do Tratado de Lisboa. Quem ousa abrir todas as matrioshkas?

 

João de Menezes Ferreira

Jurista. Licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, com uma pós-graduação em Direito Europeu pelo College of Europe, Bruges. Foi chefe da delegação portuguesa no Grupo de Redacção do Tratado de Adesão de Portugal às Comunidades Europeias; representante português na CIG que redigiu o Acto Único Europeu; relator geral do processo de ratificação do Tratado de Maastricht na Assembleia da República; e chefe da delegação portuguesa no Comité de Redacção do Tratado de Lisboa.

 

RESUMO

Neste artigo sustenta-se que passos na direcção da União Política ditados por maiores ambições em matéria de Política Externa e de Segurança Comum continuam a ser, por diversas razões, uma miragem. E como a Alemanha, nas discussões pré-Tratado de Lisboa, nunca mostrou vontade em mexer nos equilíbrios de Maastricht em sede de União Económica e Monetária, também não era nessa área que alguma vez alguém esperaria progressos institucionais significativos. Mas de repente, vinda do nada, a chamada crise das dívidas soberanas, neste último domínio, vai determinar uma inevitável revisão dos tratados europeus.

Palavras-chave: Crise europeia, Tratado de Lisboa, União Europeia, Portugal

 

At the shooting points of departure for the inevitable revision of the Lisbon Treaty. Who dares to open up all the matrioshkas?

ABSTRACT

This paper argues that steps towards a Political Union dictated by major ambitions in terms of the Common Foreign and Security Policy continue to be, for various reasons, a mirage. And as Germany, at the pre-Lisbon Treaty discussions, as never shown willingness to change the balances from Maastricht regarding the Economic and Monetary Union, it was also not in that area that one would be expecting significant institutional progress. However, suddenly, coming from nowhere, the so-called sovereign debt crisis, in this last domain, will determine an inevitable revision of the European treaties.

Keywords: European crisis, Lisbon Treaty, European Union, Portugal

 

ANTECEDENTES DAS SOLUÇÕES DOS TRATADOS MAASTRICHT/LISBOA

Antes de entrar de xofre numa discussão prestes a deflagrar, que a muitos parece coisa nova mas que é afinal antiga e tem pergaminhos, a citação do excerto de um texto recuado no tempo tem a virtude de nos colocar em perspectiva:

«Sempre que se aproximam os tempos de revisão dos Tratados relativos à construção europeia, florescem hipóteses de temas e soluções, afirmam os seus proponentes, que não deixarão de estar em cima da mesa. Cada observador interessado ou governo empenhado vai assim ganhando espaço de discussão num contexto histórico que é complexo. Se pensarmos, por exemplo, que a União Económica e Monetária esteve na ordem do dia dos trabalhos que conduziram ao Acto Único Europeu de 1985, que já era objecto dos relatórios e planos dos Senhores Barre, Werner, e Tindemans nos idos anos sessenta e setenta, e que só vingou como conceito motor no Tratado da União Europeia de 1992 (Maastricht) que agora vamos rever, logo concluiremos a relatividade de todas as congeminações que são apresentadas como certezas inabaláveis. Deixemos de lado obras doutrinárias ou o carisma impressivo de dois estadistas europeus, Willi Brandt e Jacques Delors, que terão inventado respectivamente os conceitos de “duas velocidades” e de “geometria variável”1.

[o relatório Tindemans de 1975 aponta cinco postulados da “geometria variável”]

1. Todos os estados-membros da CE aceitam os objectivos comuns de construção europeia e o método da sua realização progressiva.

2. As derrogações num determinado domínio são consentidas em nome de uma situação objectiva (económica, social, ou física).

3. Em princípio, as derrogações são temporárias, e quando o não são, tal se deve a factores independentes da vontade do estado beneficiário2.

4. As decisões sobre a descolagem, e designadamente o reconhecimento da situação objectiva dos estados que não seguem, em determinada matéria, no “pelotão da frente”, devem ser tomadas por instituições comunitárias, num quadro institucional único.

5. Os estados assim atrasados, não só recebem dos restantes ajuda e assistência conducentes ao reagrupamento ulterior de todos – princípio da solidariedade – como também participam nas instituições comuns, pelo menos na avaliação dos progressos registados no domínio considerado. […]

Nesta breve resenha não exaustiva de temas a abordar numa teoria geral da geometria variável, resta um aspecto de vital importância e que se prende com o estatuto dos estados-membros afastados da implementação de uma determinada política, não só no que respeita à intervenção nos órgãos de orientação e gestão, como no que concerne as obrigações que os restantes estados-membros para com eles devem manter.

Como é de fácil compreensão, esta última questão é crucial para países como Portugal, pelo menos no que toca as questões económicas e sociais, nas quais o atraso relativamente a padrões médios comunitários é mais sensível. Apraz registar, em primeiro lugar, que a doutrina Tindemans de 1975 sobre o assunto era já muito clara e inteiramente favorável à posição de defesa dos países mais carenciados...»3

Pode tentar-se alegar que esta é uma visão ultrapassada da construção «comunitária» (estranho como esta palavra primordial do processo de integração europeia desaparece do léxico dos actores principais...), mas o certo é que ela é a do Tratado de Maastricht e se manteve até ao Tratado de Lisboa, apesar de duas radicais diferenças entre os dois: o número de estados-membros outorgantes (12 no primeiro e 27 no segundo) da regulação da moeda única (o primeiro é anterior à sua criação e prepara-a, o segundo é posterior à sua criação e disciplina-a). Concluiremos que certas soluções formais de Lisboa foram as últimas possíveis de uma concepção que se está a desconjuntar, e que também neste aspecto – os outros de que mais se fala são banais e cruciais pois respeitam ao nosso quotidiano – os europeus vão ter de mudar de vida.

No Tratado de Lisboa privilegiaram-se os grandes equilíbrios institucionais e os avanços na edificação do 2.º pilar (Política Externa e de Segurança Comum) e do 3.º pilar (Justiça e Administração Interna). Quanto ao 1.º pilar (justamente a União Económica e Monetária), houve sensíveis progressos no completamento do Mercado Interno, mas as possíveis (houve algumas ideias) inovações na configuração da União Económica e Monetária (UEM) – entretanto fora organizado o Sistema Europeu de Bancos Centrais (SEBC) de que é peça fundamental o Banco Central Europeu (BCE), criado o euro, etc. – foram consensualmente abandonadas em detrimento de adaptações mínimas. Numa palavra, na redacção do Tratado de Lisboa ninguém quis mexer nas regras da União Económica e Monetária então em vigor. Houve meras adaptações dessas regras ao formato de tratado.

Sem elaborar, registe-se que o que antecede se aplica em absoluto a regras para ultrapassar eventuais crises das dívidas soberanas dos estados-membros: essa eventualidade era impensável aquando de Maastricht pelo que nele não há quaisquer regras de «salvação» de parceiros em dificuldades (veremos adiante que as que existem vão até no sentido oposto); e continuou a ser impensável aquando de Lisboa, pelo que nele continua a não haver tais regras. De forma lapidar, sentenciou recentemente o governador do Banco de Portugal Carlos Costa: em boa verdade foram os dirigentes políticos europeus que «inventaram» a crise das dívidas soberanas ao admitirem, «numa decisão política de princípio que colocou em causa convenções bancárias fundamentais [ocorrida em 2010 logo no começo da pressão insustentável dos mercados sobre a dívida grega] que um devedor soberano [da UE, ou pelo menos da zona euro pode não cumprir...». E, conclui Carlos Costa, a crise entretanto alastrada deverá ser resolvida por quem a desencadeou, isto é, politicamente.

Só na plena compreensão do modo como foi sendo pensado ao longo das décadas – ver relato acima – o aprofundamento da integração europeia nos seus aspectos de política económica e financeira, no interior das quais a criação e consolidação de uma moeda única seria a etapa crucial, se pode considerar natural a articulação destas matérias no Tratado de Maastricht, que se manteve incólume no Tratado de Lisboa, até hoje. As soluções formais nunca são de escolha única, e constataremos que algumas das escolhidas são bastante tortuosas no afã de manter uma certa concepção global, que hoje – em 2011 – já não temos pejo em qualificar como optimista, ilusória.

O primeiro facto a assinalar é a separação sistemática entre política económica e política monetária, após breve introdução comum (artigo 119 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia). Por razões metodológicas destes comentários que adiante se perceberão, inverto a ordem da respectiva apresentação.

 

POLÍTICA MONETÁRIA (ARTIGOS 127 A 133 DO TFUE)

O conceito da geometria variável tem no tratado (de Maastricht a Lisboa) como expressão genérica – aplicável em vários domínios – as chamadas «cooperações reforçadas» (artigo 20 do Tratado da União Europeia). Mas são do mesmo conceito também as disposições sobre a política monetária. Por esta começo, com remissão a artigos do Tratado de Lisboa, o qual não apresenta grandes diferenças nesta área relativamente ao Tratado de Maastricht.

Passo em claro dispositivos mais organizacionais e menos polémicos (artigo 127 – atribuições do BCE e do SEBC; artigo 128 – relação entre BCE e bancos centrais quanto à emissão de moeda; artigo 129 – Conselho e Comissão Executiva do BCE na gestão do SEBC; artigo 130 – independência do BCE; protocolo relativo aos estatutos do BCE e do SEBC), pois nesta ocasião interessa sobretudo realçar os elementos característicos que provavelmente mais vão ser afectados na superação da actual crise.

As regras mais peculiares – em boa verdade um pouco esquizofrénicas – são as que caracterizam os espaços monetários da União Europeia (UE), repartindo-os entre a zona euro (onde actua o eurogrupo) e a não zona euro, num contexto, já o disse, em que o euro já fora instituído no virar do século e a ele só aderiram 17 dos 27 estados-membros. Para garantir o que acima chamámos uma geometria variável positiva, essas regras excluem compartimentos estanques, o que determina que todos os estados-membros da UE decidem sobre tudo, integram ou podem vir a integrar (e no limite deixar de integrar) a zona euro, e por isso as mesmas regras se aplicam teoricamente a todos (os agora 27). A seguir se perceberá o porquê do qualificativo «teoricamente»:

a) todos integram o Comité Económico e Financeiro (artigo 134);

b) todos (em reuniões do Conselho, seja em conselho de ministros das Finanças, seja em Conselho Europeu) têm de decidir formalmente a adopção das «medidas específicas para os estados-membros cuja moeda seja o euro» (artigo 136), bem como as medidas que não são aplicáveis aos «estados-membros relativamente aos quais o Conselho não tenha decidido que satisfazem as condições necessárias para a adopção do euro» – designados «estados-membros que beneficiam de uma derrogação» (artigo 139 e seguintes). Note-se o cuidado inclusivo posto nesta dupla negativa e na referência a uma derrogação (na lógica dos tratados sempre transitória), e note-se que, formalmente, todos decidem quem entra na zona euro (e, no limite, quem sai);

c) da concepção que antecede decorre que as reuniões do eurogrupo – ou da zona euro – são informais e assim têm de se manter, em face do Tratado de Lisboa (protocolo relativo ao eurogrupo, artigo 1), ou seja, em direito incapazes de gerar decisões vinculativas. Nesse pressuposto os cidadãos europeus foram-se apercebendo com estranheza (ou se calhar com indiferença...) que essas reuniões até hoje presididas pelo senhor Juncker, apesar de muito mediatizadas são uma espécie de conversa, são sempre seguidas ou antecedidas por outras, mais alargadas, nas quais são formalmente tomadas as decisões;

d) todavia, apesar desta complexa tessitura formal igualitária, a intervenção dos estados «sob derrogação» acaba por ser puramente virtual: por exemplo, «não têm direito a voto» nas decisões do Conselho atinentes às medidas aplicáveis à zona euro (artigo 136 n.º2); por exemplo, não integram os órgãos de decisão do BCE (artigo 282 e protocolo relativo aos Estatutos do SEBC e ao BCE); em suma, fazem figura de corpo presente nas reuniões formais – em que participam – e nas quais se têm decidido as agora muito complicadas questões relativas à zona euro.

A medalha tem um reverso evidente: por um lado, nada impede que um Estado «passivo» nestes domínios e instâncias passe a «activo». Por outro lado, quando se chegar ao ponto de ter de alterar os tratados (e é nesse ponto em que quase estamos), não importa só que a norma naturalmente exija unanimidade dos votos, é forçoso também concluir que, com esta filosofia fundadora de construção não compartimentada do euro, é impensável à partida uma futura separação formal de águas que não seja consensualizada entre todos os 27 estados-membros.

Tudo aponta para que pelo menos duas destas construções, a saber, a visão não compartimentada da pertença à zona euro e a gestão informal do eurogrupo, tenham os seus dias contados, se as combinarmos com a questão da chamada «governação económica da Europa», que agora me ocupará e torna tudo isto mais claro.

Antes disso, e porque o ponto se tem prestado a grandes tiradas e confusões, é útil um esclarecimento sobre a ausência de dispositivo de expulsão de um país da zona euro. Ao contrário da cláusula de adesão à UE que sempre existiu nos tratados (hoje artigo 49 TUE), da cláusula de saída voluntária unilateral da UE (só introduzida no Tratado de Lisboa, artigo 50 TUE), e da cláusula de suspensão de um Estado que não respeite os direitos fundamentais (nunca se tendo querido configurar uma expulsão, este compromisso no artigo 7 TUE vem de tratado anterior e foi introduzido na primeira oportunidade depois do episódio dos neonazis no Governo austríaco), a lógica descrita de um sistema fluido de gestão da zona euro implica uma verdadeira impossibilidade de expulsões do euro: os estados que cumprem os critérios estão ou entram, os que os não cumprem não estão ou saem, tudo é flexível. A única incongruência é a implícita exigência de unanimidade para as decisões de entradas e de saídas (incluindo o voto do Estado alvo da decisão), mas esse é o preço do sistema inclusivo e descompartimentado que foi delineado.

 

POLÍTICA ECONÓMICA (ARTIGOS 119 A 126 DO TFUE)

Há vários modos de abordar o passado e o futuro previsível da política económica no seio da UE. Opto pelo mais simples para a demonstração a que me proponho, e que radica na questão da perda (ou partilha, é à vontade do freguês) das soberanias nacionais.

Os progressos iniciais da União Monetária, designadamente dos países do euro, tornaram automaticamente deletéria qualquer discussão sobre as políticas monetária e cambial enquanto instrumentos poderosos de política interna nos estados que têm uma moeda comum a outros estados. Pura e simplesmente desapareceram de cena. Ponto final.

Ora nada disto acontece quando entramos no terreno da União Económica, e nos aventuramos em zonas que não são as tradicionais dos tratados fundadores: as liberdades de circulação, a união aduaneira e a política comercial comum, a política da concorrência, as chamadas políticas europeias sectoriais, os fundos estruturais, etc. O núcleo duro das áreas de política económica que falta desbravar para as pôr em comum é extremamente resistente às veleidades de integração. Faça-se uma pergunta retórica e impressionista: estando já perdida a autonomia nacional em matéria monetária e cambial, e consumando-se a suplementar perda de autonomia na política orçamental, na política fiscal, na política de rendimentos e preços, na política de emprego, e noutras políticas que genericamente compõem o que se pode apelidar a «governação económica», o que fica de verdadeiramente soberano na esfera dos poderes económicos do Estado-membro que sacrifica essas autonomias? Pouco, em boa verdade, bastante pouco...

Europeísta sem demasiado fervor federalista, para aceitar estas incursões de progresso prefiro a ideia da soberania partilhada à de soberania perdida. Mas a questão é que até hoje os parlamentos nacionais guardam para si próprios o essencial da soberania económica, e exercem-na periodicamente no período nobre de discussão/aprovação do orçamento anual, sendo apesar de tudo menor o peso das decisões económicas ao nível europeu que condicionam esse orçamento; ao invés, quando houver um verdadeiro «governo económico europeu», quaisquer que sejam as suas modalidades, a soberania económica deixada aos parlamentos nacionais passará a ser realmente residual. E isso implica a revolução de algumas mitologias de autonomia bem arreigadas, e exige a compreensão do cidadão-eleitor. O que também não é coisa pouca.

Tal não quer dizer que não se avance, seja em nome de um desígnio maior para a Europa nesta era de globalização, seja porque esse avanço se torna, por um qualquer motivo, inelutável. E é esta última hipótese que provavelmente ocorrerá.

As regras sobre harmonização fiscal (a única que resta para completar o mercado interno em que se mantém o princípio da unanimidade na adopção do artigo 113) e sobre a política económica nos tratados (Maastricht e Lisboa – TFUE) são o eco da resiliência da soberania nacional, e por isso foram desenhadas com indiscutíveis cuidado e contenção. O que as torna, na actual conjuntura, potencialmente desactualizadas e, por conseguinte, candidatas a remodelação. Vejamos.

A disposição nuclear, porque reveladora de todos os conceitos de base, é a do artigo 119, que não percorro em toda a sua variedade mas em que destaco o objectivo de «adopção de uma política económica baseada numa estreita coordenação das políticas económicas dos Estados Membros...» (n.º 1) e «a observância dos seguintes princípios orientadores: preços estáveis, finanças públicas e condições monetárias sólidas e balança de pagamentos sustentável» (n.º 3).

Mais uma vez só nos interessa aqui rememorar o aparelho dispositivo do tratado cujo cumprimento já está muito abalado na actual situação e que, portanto, quando chegar o momento de revisão, não poderá deixar de ser profundamente remodelado. Os dois aspectos mais evidentes são o método de «coordenação económica» e os limites impostos num determinado caso concreto a quaisquer intervenções colectivas regeneradoras dos princípios definidos, ou seja, em palavras mais redondas, os limites a ajudas, socorros e resgates macroeconómicos de estados-membros prevaricadores.

Em direito internacional, o método da «coordenação» em áreas económicas e a tomada de decisão por unanimidade são os clássicos exemplos de uma filosofia de cooperação intergovernamental, que, como sabemos, é o contrário do «método comunitário». Não surpreenderá pois que, perante a desconfiança dos estados-membros quanto à perda dos últimos redutos significativos de soberania nacional na área económica, tenha sido este o método privilegiado no tratado, em todo o seu esplendor.

Tomemos por exemplo o artigo 121 sobre o longo procedimento de actuação da União. Aí temos (da parte da Comissão) «relatórios e recomendações» para «projectos de orientações gerais»; (da parte do Conselho) há «decisões sobre orientações gerais», «acompanhamento», «supervisão multilateral», e a políticas económicas não compatíveis (de um Estado-membro) que conduzem a «advertências» e «recomendações». Única cedência ao método comunitário, neste caso o Estado em causa não vota e as decisões são tomadas por maioria qualificada. Mas é tudo muito macio.

O mesmo se diga quando (artigo 126) são detectados «défices excessivos» no orçamento ou na dívida pública de qualquer Estado-membro (segundo os valores de referência de, respectivamente, três por cento e 60 por cento, fixados em 1992 em protocolo anexo a Maastricht, que se mantém). Também aqui há, da parte da Comissão, «acompanhamento com critérios», mais «relatórios» e «recomendações» que culminam no Conselho, o qual decide por «recomendações» (não optando por medidas vinculativas). Só num último estádio, passado um tempo, dado algum apoio («empréstimos do Banco Europeu de Investimento») e respeitado o princípio do contraditório («informações completas»), poderá haver sanções (sob a forma de «depósitos não remunerados na ue» e/ou «multas»), mediante decisões por maioria qualificada, sem direito de voto do Estado-membro em causa. Tudo também muito macio.

O outro aspecto da construção normativa que me interessa frisar consiste na avareza dos mecanismos de solidariedade, que decorre da ortodoxia da concepção geral da UEM (imposta precisamente pela Alemanha, em contrapartida do abandono da sua supermoeda, o marco).

Se regressarmos ao artigo 122, constatamos que a solidariedade para com os estados faltosos é mínima, e que, por exemplo quaisquer «medidas adequadas à situação económica» num caso concreto têm de se fundamentar em «dificuldades de aprovisionamento de certos produtos, designadamente no domínio da energia [sic]». Segundo o artigo 123 «é proibida a concessão de créditos pelo Banco Central Europeu ou pelos bancos centrais nacionais dos outros estados-membros... em benefício de» instituições e órgãos da própria UE, ou administrações centrais, autoridades regionais e locais e outras autoridades públicas dos estados-membros; também está expressamente excluída a «compra directa de títulos da dívida a essas entidades pelo BCE ou pelos bancos centrais nacionais» (excepto instituições de crédito de capitais públicos semelhantes a bancos privados). A simples descrição destes limites faz-nos sorrir, lembrando as ultrapassagens já ocorridas desde a eclosão da crise das dívidas soberanas até hoje.

Haveria ainda que comentar no artigo 124 os limites prudenciais ao acesso privilegiado a financiamentos e no artigo 125 a «irresponsabilidade» da UE pelos compromissos nacionais, bem como a «irresponsabilidade» de qualquer Estado-membro pelos compromissos das suas autoridades públicas, mas o mote está dado.

 

ULTRAPASSAGENS, VIOLAÇÕES, MEDIDAS INSUFICIENTES, IDEIAS DE FUTURO

Esta prosa não servirá para definir os contornos da crise do euro (ou, com mais propriedade, a crise de certas dívidas soberanas na zona euro), nem para procurar os seus antecedentes, nem para descrever exaustivamente as suas cambiantes ao longo dos quase já dois anos passados sem se tomarem as decisões necessárias nos momentos certos, nem para identificar os culpados e os inocentes – afinal, todos, instituições e países, aparentam ser simultaneamente uma coisa e a outra.

Limitar-me-ei a pegar nas disposições dos tratados que acima evoquei e a submetê-las ao crivo deste tempo recente de crise, distinguindo acontecimentos já passados e antevisões do futuro que nos está reservado, ou seja, em relação ao primeiro ponto, como as disposições do tratado se têm revelado desadequadas e ditaram que medidas concretas já as tenham ultrapassado ou violado, embora especialmente desenhadas para manter a ilusão de que a ordem constitucional do Tratado (de Lisboa) permanece incólume; e em relação ao segundo, que ideias começam a germinar para revisão do Tratado, a partir do momento em que a necessidade de iminentes medidas de fundo tornam essa revisão inevitável.

O detonador da crise é simples. No mercado financeiro das dívidas soberanas dos estados-membros do euro, e porque a moeda é comum, as taxas de juro e outros referentes obtidos pelos estados eram muito próximos (casos, por exemplo, do mercado da dívida alemã e da grega). A partir de 2009 os custos de emissão, até aí praticamente iguais, começaram a divergir, aumentando exponencialmente nos países com dívida pública e défices excessivos, porque os «mercados» consideraram que havia risco de não cumprimento do reembolso na maturidade. Os responsáveis políticos máximos da UE pouco fizeram para desmentir essa percepção de risco, que se manteve e tem alastrado sem cessar, contaminando vários países e conduzindo-os, uns a seguir aos outros, à situação de necessitarem de intervenção (assistência, ajuda, resgate) dos seus pares.

 

O PASSADO

Sinalizo, sem me estender: i) os países beneficiários e países dadores de ajuda; ii) os novos instrumentos de ajuda; iii) os novos problemas dos credores; e iv) os limites de resiliência do Tratado de Lisboa.

Em relação aos países beneficiários e países credores, depois de várias ajudas dispersas que não surtiram efeito suficiente, foram em sequência objecto de resgate financeiro mediante um pacote específico de compromissos a Grécia (que vai no segundo pacote), a Irlanda e Portugal. Outros poderão seguir-se, designadamente a Itália e a Espanha. Os dadores são sobretudo os restantes estados da zona euro (indirectamente também os restantes estados da UE, fora da zona euro, se e quando for mobilizado o orçamento da UE).

Quanto aos instrumentos, como vimos, nos termos estritos do Tratado de Lisboa (nesta parte obedecendo à ortodoxia imposta pela Alemanha na concepção do euro) o Banco Central Europeu é responsável pela política monetária e pela estabilidade dos preços, mas não está habilitado a intervir no mercado da dívida pública dos estados (empréstimos e/ou compra de títulos) nem em questões orçamentais. Não obstante, os acontecimentos ditaram que em Março de 2010 o BCE começou a comprar dívida soberana dos países em dificuldades no mercado secundário, e em Agosto de 2011 recomeçou essa prática numa base sustentada, desta vez não direccionada aos estados que entretanto passaram a beneficiar de acordos de resgate (Grécia, Irlanda, Portugal, administrativamente dispensados de acorrer aos mercados), mas a outros estados em risco de contaminação (Espanha, Itália). Esta ultrapassagem da letra das disposições do tratado, praticada por uma entidade como o BCE, habituado a outro género de intervenções e independente, passou em claro. Um pecadilho em boa-fé, portanto.

Como também vimos, o Tratado de Lisboa não deixa qualquer espaço para a solidariedade financeira entre estados-membros no sentido de ajudarem a debelar uma crise que se instale quanto a uma ou mais dívidas soberanas. Em causa não está agora só a compra de títulos – neste caso também proibida no Tratado de Lisboa e entretanto já admitida na prática (via Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, conforme adiante) – mas dinheiro fresco, mediante a concessão de empréstimos directos (em conjunção com o FMI, cujos estatutos o vocacionam para estas ocasiões) associados a compromissos do(s) beneficiário(s) de regeneração das contas públicas e de reformas estruturais.

Depois de uma primeira recusa – essencialmente da Alemanha, que neste momento tem de assumir sempre metade da factura – com a alegação de evidente violação do tratado, e de uns tardios ensaios de mecanismos de disponibilização de fundos financeiros levantados pelos estados-membros, chegou-se à criação, à custa de todos (os estados-membros do euro, por não serem estas acções comportáveis pelo orçamento comunitário) de um instrumento temporário, o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF), que está em acção. Entretanto, um novo instrumento, agora permanente, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), foi concebido em 2010 para substituir a partir de Julho de 2013 o FEEF (data em princípio já antecipada para Julho de 2012). O FEEF teve o capital inicial de 250 mil milhões de euros, que subiu em 21 de Julho de 2011 para 440 mil milhões de euros (teoricamente, pois o acordo não foi ainda aplicado), e que em 26 de Outubro de 2011 foi «dinamizado» para um bilião de euros; significa esta «dinamização» – a que em postura guerreira se chamou logo «maximização da potência de fogo do FEEF» – que o compromisso anterior de reunir dinheiro fresco para emprestar (ou comprar dívida nos mercados secundários) aos estados em apuros foi substituído por um método de alavancagem financeira do mesmo capital já levantado, com criação de um veículo especial para angariar contribuições de países terceiros como a China, a Rússia, a África do Sul ou o Brasil. Adicionalmente, foi concebida a concessão de linhas de crédito aos países em dificuldades, bem como o seguro contra riscos de incumprimento de uma parte das novas emissões de dívida (de dois países, Itália e Espanha), e, finalmente, em antecipação do que só estava previsto para acontecer na vigência do MEE, foi negociado o envolvimento dos credores privados em eventuais processos de incumprimento – o chamado perdão da dívida4. De notar que a primeira reacção dos terceiros «amigos» (com grandes superavits financeiros) convidados a acorrer às finanças dos estados do euro, em vez dos próprios parceiros, se saldou num rotundo «não» (sem prejuízo de algo se vir a conseguir através do Fundo Monetário Internacional).

No que concerne aos novos problemas dos credores, atento o princípio dos vasos comunicantes a que esta matéria não escapa, quaisquer facilidades dadas a um devedor reflectem-se automaticamente na esfera de actuação do credor. O surgimento do instrumento de perdão de dívida na resolução da crise das dívidas soberanas determinou, em espelho, a necessidade de sanear a situação dos bancos detentores dessas dívidas, sediados tanto nos estados beneficiários como nos estados dadores de ajuda. Numa palavra, e ao contrário do que muitos dizem ou gostariam, a superação da actual situação toca a todos e terá vítimas em todo o lado.

No segundo pacote de ajuda à Grécia (o único caso para já admissível), o perdão por privados da dívida soberana está fixado em 50 por cento: há já uma participação de privados através de uma troca de dívida em várias modalidades para reduzir as necessidades de financiamento a curto prazo do país e cortando no volume da dívida (troca de dívida antiga por nova de valor inferior, o chamado haircut). Mais do que suficiente para ter induzido o problema da urgente recapitalização dos bancos europeus assim defraudados.

O assunto é a vários títulos polémico quanto às modalidades de recapitalização e às questões de propriedade que envolve, quer na perspectiva dos bancos visados, quer na dos estados. Diga-se apenas, relativamente a estes últimos, que sendo este, segundo o tratado, um problema dos estados e não da UE, e após a própria UE ter sido obrigada a impedir três falências europeias no contexto da falência do Lehman Bros. em 2008, há vontade de montar um sistema coordenado de recapitalização dos bancos apanhados pela crise. A Alemanha, receosa da perda de confiança pelos mercados, começou por querer canalizar tudo através do FEEF. Barroso, no seu recente road map apresentado ao Parlamento Europeu sugeriu a coordenação pela Autoridade Bancária Europeia; a Comissão e a Alemanha acabaram por adoptar a tese da coordenação pela Autoridade Bancária Europeia, mas com primeiro recurso ao mercado, depois aos próprios estados-membros interessados, e só em última análise ao FEEF; o Parlamento Europeu parece querer que haja um verdadeiro plano europeu (e não só coordenado).

Por fim, relativamente aos limites de resiliência do Tratado de Lisboa, importa referir que o quadro institucional do Tratado de Lisboa em matéria de gestão da zona euro e da coordenação das políticas económicas tem sido suficiente para acomodar todas as medidas e todos os acontecimentos que brevemente acabamos de evocar. Por vezes as medidas ultrapassam as disposições em vigor sem qualquer rebuço nem reacção de desconforto. Tal tem acontecido com medidas tomadas pelo BCE, que por ter meios e ser independente, de certa forma assume o encargo de suprir incapacidades e incompetências dos estados-membros, cujos governos estão submetidos a escrutínio interno quando decidem despesa.

Outras vezes, e foi manifestamente o caso quando já não era possível dispensar novos compromissos financeiros dos estados e se passou à criação do FEEF, a acomodação faz-se com a adopção de instrumentos intergovernamentais que a UE aprendeu a usar já há algum tempo, em alternativa – em fuga – ao moroso e complicado processo de revisão dos tratados. Os estados agem de forma consensual e cada um ratifica no seu quadro interno a sua própria decisão.

Mas este último tipo de acomodação tem facetas perversas. Cada passo é mais um atentado ao chamado método comunitário e uma vitória da intergovernamentalização; a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu eclipsam-se; ao receio de um directório dos grandes países no contexto de mecanismos institucionais formais de sabor pré-federal sucede a presença quotidiana e descarada de um directório de dois deles (mais precisamente um e meio); preocupações de legitimação democrática atingem os mínimos (não há sequer opinião pública sobre o assunto, a súbita hipótese de um referendo na Grécia foi sentida como um ultraje). Esta prática só tem como único limite a lógica, o facto de não poder transformar o tratado que indirectamente modifica num monstro sem sentido.

 

O FUTURO. A ABERTURA DAS MATRIOSHKAS

Não se sabe exactamente quanto tempo durará o passado, mas há no ar várias ideias relativamente claras sobre as situações que sem falha vão modelar o futuro. Todas elas estão imbricadas umas nas outras, e por isso escolhi para as descrever sumariamente o artesanato figurado das matrioshkas russas: caixinhas que parecem únicas mas que têm dentro de si, outra, e outras mais, quase até ao infinito. A característica que me satisfaz nesta figuração é que há uma espécie de poder discricionário de abrir todas as caixinhas ou só algumas delas, e o resultado parecerá sempre perfeito. Veremos como isso se adequa ao presente imbróglio.

O futuro, no sentido deste ensaio, começará quando for enfim dado o tiro oficial de partida para a revisão do tratado de Lisboa. Nada de anúncios e promessas de projectos, que já foram surgindo e certamente correspondem ao início de estudos no remanso de gabinetes fechados à curiosidade jornalística (já os há da Alemanha, da França, da Comissão Europeia, do Parlamento Europeu), mas um processo formal, assumido por todos. Adiante se verá quais todos.

 

PRIMEIRA MATRIOSHKA: GARANTIAS CENTRALIZADAS OU MUITO DINHEIRO

Tantas medidas lançadas em sucessivos conselhos europeus de desfecho eufórico (a euforia resiste umas horas, às vezes uns dias) e outras tantas questões por elas desencadeadas, nem que fosse por efeito de acumulação, sempre deveriam apelar à urgente renovação de todo o enquadramento da uem. Mas sejamos realistas: não será a catadupa de medidas e questões, mas a prosaica e vil falta de dinheiro, sem alternativas à vista, que vai determinar o tiro da partida de um processo de revisão «constitucional» da UE. E com a chegada da Itália ao problema há a certeza de que vai ser preciso muito dinheiro, mesmo muito dinheiro, para qualquer tipo de resgate.

Os eurobonds, garantia central imbatível por via da mutualização das dívidas soberanas são obrigações de dívida europeia emitida e garantida conjuntamente por todos os países da zona euro. Com os eurobonds estabelece-se um sistema de dívida comum que exprime a solidariedade na zona euro no modo em que se igualizam os custos de financiamento da maior parte das emissões nos distintos estados do euro. Teriam taxas de juro fixas e na prática, pela subida das taxas de juro nos países mais ricos, corresponderiam a uma transferência de recursos destes para os países mais débeis cujas taxas de juro ficariam a níveis mais baixos. Funcionam como uma espécie de couraça impenetrável que amaina irreversivelmente a pressão dos mercados, assegurando um regresso à situação anterior ao início da crise das dívidas soberanas. E também haverá ganhos para os supostos países virtuosos como a Alemanha, sendo o principal a possibilidade de oferecerem ao mercado um produto financeiro seguro (garantido por toda a zona euro) de médio/longo prazo e com uma liquidez comparável à do mercado americano da dívida, o que ajudaria a reforçar o euro como moeda de reserva global em concorrência com o dólar.

Digam o que disserem os dirigentes, toda a gente está de acordo com a instituição dos eurobonds. Só que também todos sabem que isso não vai acontecer agora, sem condições nem contrapartidas. A Alemanha está contra, temendo que a introdução dos eurobonds anule a função disciplinar dos mercados e das taxas de juro diferenciadas, vai insistindo na doutrina «protestante» da necessidade de os países prevaricadores passarem pelo castigo antes da redenção, mas sabe-se que já os está a estudar, a desenhar. Jean Claude Juncker é a favor da instituição dos eurobonds e diz que eles são apresentados de uma forma caricatural na Alemanha. Juncker e Tremonti, respectivamente, presidente do eurogrupo e ministro da Economia italiano, apresentaram em Dezembro de 2010 o plano de criação de uma Agência Europeia da Dívida que emitiria eurobonds até ao limite de 40 por cento do PIB da zona euro, e que financiaria até 50 por cento das emissões dos estados do euro, e, em casos excepcionais, até aos 100 por cento, originando um mercado europeu de eurobonds com muito maior liquidez e com preços mais baratos. O Parlamento Europeu e o FMI são a favor da criação dos eurobonds. No Discurso do Estado da União no PE a 28 de Setembro de 2011, Durão Barroso, em nome da Comissão Europeia, anunciou o estudo para a criação de , gabou-lhes as virtualidades, mas teve o cuidado de os deixar para momento oportuno, para o final de um processo de reorganização interna da UE que ainda não se iniciou (e na qual não quer perder o pé, acrescente-se).

Independentemente dessa conditio sine qua non de reorganização institucional a que me dedicarei na matrioshka seguinte, a questão do momento da utilidade dos eurobonds não é indiferente. Devem eles surgir no início ou no fim de um longo e duro processo de disciplina e de convergência real das políticas nacionais? Alemanha, Holanda e Finlândia, para dar exemplos, preferem aparecer no final, enquanto que os países do Sul entendem que os eurobonds são os propulsionadores dessas políticas de convergência. Os alemães acham que assim os países de despesismo descontrolado não mudarão de vida, e que a instituição prematura de eurobonds corresponde a deixar entrar pela janela a «União de transferências» que a Alemanha sempre negou e evacuou pela porta quando consentiu na criação do euro. Tema para outra matrioshka...

O tema dos eurobonds é objecto de multifacetada meditação, e não quero deixar em claro a que se centra em construções intermédias, que supostamente evitariam iniciar o (quanto a mim) inevitável processo de revisão dos tratados. Refiro três mais engenhosas: a dos eurobonds azuis e vermelhos, a dos pré-eurobonds, e a dos bonds independentes.

Em Maio de 2010, Jakob Weizsäcker (Centro de Reflexão Europeu Bruegel) e Jacques Delpla (Conselho de Análise Económica), logo apoiados pela Itália e pelo Luxemburgo, propuseram um fundo comum mediante a emissão de eurobonds. Só a dívida inferior a 60 por cento do PIB de cada país aderente (limites de Maastricht) poderia ser trocada por eurobonds (os «bonds azuis», muito líquidos e superseguros e com taxas de juro muito baixas, mutualizados na zona euro). Os estados com mais necessidades emitiriam individualmente dívida nacional acima desse limiar, sujeita a taxas de juro que o mercado fixaria («bonds vermelhos»). Para forçar a disciplina orçamental os países gastadores teriam uma proporção de títulos azuis inferiores aos 60 por cento do PIB, podendo até ser expulsos do sistema, se atingissem níveis grandes de endividamento.

Noutro sistema, idealizado por Elisa Ferreira, deputada europeia, os estados emitem transitoriamente – este é um esquema de evolução para os eurobonds – a dívida de forma coordenada (e não em comum) sob superintendência do ministro das Finanças europeu (?); cada país garante a sua dívida mas as taxas de juro são previamente fixadas, e se os títulos não forem comprados pelo mercado são absorvidos pelo FEEF (ou pelo instrumento que lhe suceda). Caso a este sistema seja associado disciplina orçamental controlada e garantia de consolidação e reembolso da dívida pública de todos os estados, não seria necessário alterar o Tratado de Lisboa.

Na concepção dos euronomics (grupo de oito economistas europeus que inclui o português Ricardo Reis), sem necessidade de alterar os tratados podem ser previstas obrigações («bonds») muito seguras emitidas por uma agência europeia independente, a qual começaria por comprar uma carteira diversificada de dívida da zona euro e depois emitiria novas obrigações garantidas por uma parte substancial dos títulos detidos em carteira (por exemplo, 70 por cento) e por isso com risco de incumprimento baixíssimo, e emitiria também novos títulos de maior risco mas de maior retorno.

Fundo Monetário Europeu ou Sistema Monetário Europeu, sempre com um poderoso Banco Central Europeu. É uma quase certeza dos analistas, difundida ainda à boca pequena, a de que o FEEF (ou o seu sucessor MEE) terá os dias contados se os estados-membros do euro não lhe providenciarem depressa liquidez fresca em quantidades tão significativas que desestimulem os mercados a especular sobre qualquer das dívidas soberanas actualmente sob pressão. Falava-se em dois biliões de euros antes da dívida italiana hipoteticamente obrigar a intervenção exterior, não sei que números serão suficientes se essa ameaça se concretizar. Para piorar as coisas, anote-se a determinação da Alemanha em não financiar o FEEF em mais do que a sua factura actual (metade do capital «social» de 440 mil milhões de euros, acrescida da sua recusa em transformar o FEEF numa espécie de entidade bancária que se refinancie junto do BCE (ideia francesa), e do aparente fiasco do veículo do FEEF criado para atrair liquidez dos países emergentes.

Tal como no caso dos eurobonds, a manterem-se os impasses referidos de financiamento do FEEF pouco restará para garantir liquidez a um sistema central de resgate do que idealizar um verdadeiro Fundo Monetário Europeu ou um Sistema Monetário Europeu, no interior do(s) qual(is) se reforce em muito a capacidade de intervenção do BCE. Ou radicalmente se altere a natureza dessa intervenção. Mais uma vez, é a Alemanha a defensora jurada da actual ortodoxia de visão do BCE como garante da estabilidade de preços na UE, e por conseguinte, sendo ela a líder do conjunto, só dela poderão vir, um dia, algumas indispensáveis cedências. E também como no caso dos eurobonds, tudo dependerá de outras contrapartidas cuja negociação não está feita.

Haverá modalidades intermédias, mas o núcleo da questão final é o de saber se deve ser mantida a ortodoxia de Maastricht ou, como sustentam os neokeynesianos como Paul Krugman ou Paul De Grauwe, é preferível dar uma orientação e autorização geral ao BCE no sentido de (capitalizando-se ou agindo a descoberto) emitir moeda ilimitadamente e intervir discricionariamente no mercado, como faz a Reserva Federal Americana. Os resultados em termos de inflação poderiam ser graduados, sendo certo que gerir com um pouco de inflação (e manutenção de valores nominais dos rendimentos) as convulsões sociais que se perspectivam em muitos países europeus nestes tempos de crise não é necessariamente uma má ideia.

Outra ideia em discussão sobre o desenho geral de um sistema apto a debelar a crise das dívidas soberanas reside em privilegiar, em caso de risco de incumprimento, uma intervenção sob a forma de garantias sem que os países em causa abandonem forçosamente o mercado, em vez dos actuais empréstimos directos (tipo troika) com abandono mais ou menos prolongado dos mercados por parte do país assistido.

 

SEGUNDA MATRIOSHKA: O GOVERNO ECONÓMICO DA UNIÃO (OU DOS 17?)

Quaisquer mudanças de paradigma no ataque à crise das dívidas soberanas, seja a mutualização dessas dívidas mediante os eurobonds, seja a remodelação dos poderes do BCE, terá como necessária contrapartida – a Alemanha não se cansa de o dizer e fundamentalmente tem toda a razão – a instauração de um «governo económico» da União (veremos de que União se trata na próxima matrioshka...). O que pressupõe a opção por regras verdadeiramente pré-federais em domínios fulcrais da União Económica, designadamente os que são atributo da política orçamental no seu sentido lato (política fiscal, política de rendimentos e preços, e indirectamente política de emprego, política social), até agora ciosamente mantidos na esfera interna dos estados-membros, e que são negociados e adoptados no processo orçamental dos parlamentos nacionais.

Entretanto, foram dados passos no sentido de uma maior vigilância orçamental e do controlo da evolução da dívida pública dos estados, bem como foi enfim adoptado, na sequência de um lento processo de discussão, um pacote de governança económica e orçamental contendo medidas muito práticas de implementação do Pacto de Estabilidade e Crescimento que rompem com hábitos antigos de vigilância comunitária que o próprio comissário Joaquin Almunia classifica como muito light. Mas o que já se alcançou ainda não é suficiente. A requerida solidariedade financeira implicará fórmulas de verdadeira união política nestas áreas, até um dia, quem sabe, haver profunda integração fiscal e um tesouro único (pelo menos da zona euro).

Por partilha de soberania mediante mecanismos pré-federais quero dizer controlo apertado de procedimentos e decisões vinculativas (se necessário por maioria qualificada) nestas áreas, com o correlativo fim da leitura laxista da coordenação económica que decorre da letra do tratado (desde Maastricht até Lisboa). Ora isto só se pode fazer modificando o tratado nessa parte, e ninguém hoje põe seriamente essa consequência em dúvida. Poderão encontrar-se formulações mais ou menos hábeis para respeitar arreigadas sensibilidades nacionais mas essa será a realidade, nua e crua.

Aliás, conhecidas personalidades de pendor mais federalista consideram que este novo passo de transferência para a UE de parte da soberania dos estados, na forma de um certo federalismo orçamental, traz grandes potencialidades no combate à crise. Os federalistas europeus (Juncker, Tremonti, Verhofstadt, González, Schröder, etc.), por exemplo, reconhecendo embora que a criação de futuros eurobonds deverá ter como contrapartida a austeridade e as reformas estruturais nos países que delas mais beneficiarão, sublinham a capacidade que uma entidade central teria de cobrar receitas ao nível «federal» para oferecer bens públicos à escala europeia. Jacques Delors, quando se exprime publicamente, não anda muito longe destas ideias, a que chama uma «cooperação económica reforçada».

Na prática, os estados participantes com défices excessivos (neste momento com as dívidas soberanas desordenadas e descontroladas) e que estão a ser assistidos (Grécia, Irlanda e Portugal), não sentirão grande diferença. Vão criando e aplicando um corpo de regras de boa conduta que cumprem como se houvesse instituições a impô-las segundo um método comunitário (decisões por maioria qualificada, etc.), com a diferença de que agora agem sob pena de não aceder à assistência financeira prevista. Ou seja, com a instauração de um governo económico após a revisão do tratado, estados como Portugal ficariam sujeitos a um controlo do tipo daquele que a «troika» exerce neste momento, só que de forma permanente e institucionalizada. Podem mesmo ter o consolo de saber que essas regras se aplicarão a todos, indiscriminadamente.

Ora aqui reside uma fonte de perplexidade, senão de inquietação.

É que, quer em declarações públicas recentes da chanceler Angela Merkel, quer no roadmap que a Comissão Europeia apresentou a 12 de Outubro de 2011, é sugerida a modificação do Tratado de Lisboa (artigo 136) sob forma de intervenção musculada da Comissão e do Conselho nos «projectos de orçamento dos países com planos de salvação». Espera-se que tenha havido um qualquer lapso de transmissão pois não me passa pela cabeça que um futuro poder constituinte permita a criação de um regime pré-federal como uma espécie de castigo unicamente aplicavel a países em regime de «assistência», o que seria ridículo, discriminatório, e deveria ter merecido uma reacção negativa imediata por parte de países como Portugal. É preciso não esquecer, como bem acentuou o nosso «senador» Silva Lopes, que sendo este um mundo de vasos comunicantes, o que os grandes devedores da UE têm a menos corresponde em grande parte ao que os grandes credores da UE têm a mais. E por isso bem esteve um comunicado recente (creio que) de um conselho europeu, ao assinalar que está sob vigilância a actual situação de excedentes financeiros na Alemanha. Por outras palavras, num dia em que houver mais federalismo orçamental, será só necessária alguma coragem para impor mediante decisões vinculativas orçamentos mais expansionistas a estados como a Alemanha, se se mantiver nesse país uma situação de sistemático entesouramento.

E outras picardias se perfilam na discussão das regras sobre o governo económico. A opinião pública tem visto a Comissão sair dos holofotes, em detrimento de um protagonismo do minidirectório franco-alemão, conspícuo demais para ser acidental. Talvez embalado pelo emudecimento da Comissão, esse directório aproveitou a primeira oportunidade para frisar que a condução do governo económico europeu será do Conselho, do mesmo passo institucionalizando imediatamente (?) «cimeiras dos países da zona euro», presididas por Herman Van Rompuy em acumulação com a sua presidência do Conselho Europeu, o que o torna antecipadamente chefe do governo económico (e proto-ministro das Finanças europeu?). O papel de Jean Claude Juncker (que pensa pela sua cabeça) ficou ambíguo mas o próprio não pareceu incomodar-se. Já para a Comissão este foi one step too far e, saindo da sua letargia, ripostou. Barroso proclamou então perante o Parlamento Europeu no seu discurso do Estado da União que «a Comissão é o Governo económico da Europa e não precisamos de mais instituições». O curioso desta batalha meio surda que veio para durar é que, para quem saiba o mínimo de direito comunitário (ou leia o tratado), ambas as partes têm razão. É certo que a Comissão é o executivo comunitário mas não é o Executivo na acepção que lhe é dada pelo direito interno da generalidade dos estados europeus, de governo com inteira autonomia de decisão na sua esfera própria. Por muito que tenha o monopólio de preparar e propor decisões, e tenha autonomia para as executar uma vez decididas, a verdade é que o core da deliberação nunca lhe pertenceu e nunca lhe pertencerá, é do Conselho (e agora, quase sempre também do Parlamento). E Barroso sabe disso.

 

TERCEIRA MATRIOSHKA: GESTÃO DA ZONA EURO E GEOMETRIA VARIÁVEL

As duas primeiras matrioshkas revelaram, por um lado, que apesar das virtualidades que ainda se possam extrair de regras processuais, como a do artigo 136, há normas substanciais necessárias para debelar a crise que exigem disciplina não contemplada pela actual redacção do Tratado de Lisboa, de que decorre a probabilidade de que este tenha que ser revisto a breve prazo, por muito difícil e moroso que seja o processo «constitucional», para mais estando em causa uma nova partilha de poderes soberanos em áreas tradicionalmente muito sensíveis.

A terceira matrioshka revela outras questões, tão difíceis e sensíveis quanto as já descritas, mas de diferente natureza. A que estados-membros se aplicarão as regras já sugeridas ou em estudo? Que sacrifício irreversível se vai introduzir na concepção de geometria variável positiva e integradora (ou de duas velocidades temporárias) vigente no tratado?

Acabar com a gestão informal da zona euro tal como está redigida no tratado é relativamente fácil. Difícil é renunciar à filosofia de solidariedade comunitária que inspirou a escrita destes capítulos (filosofia a que me referi na primeira parte deste comentário pelo que não será necessário insistir nela agora), e introduzir um princípio de compartimentação, porventura irreversível, na aplicação das regras da União Económica e Monetária aos estados-membros da União Europeia.

Expressemo-nos de modo prático. Neste momento as regras da UEM vigentes nos 17 estados-membros que aderiram ao euro são claramente insuficientes mas ainda assim bastante diferentes das aplicáveis aos dez estados-membros que não pertencem à zona euro. Numa filosofia não compartimentada, fluida, essa pertença é potencialmente variável pois a adesão ao euro depende unicamente da vontade do postulante e da verificação das condições objectivas para cumprir as regras inerentes ao uso da moeda única. Ora, nesta conjuntura, em que há uma crise na zona euro e se perspectiva um salto qualitativo fundamental com um assinalável espartilho nas regras que se lhe aplicam, que perspectivas se abrem (ou se fecham) aos dez estados que ainda não aplicarão tal disciplina? Em tese nada de especial acontece, tudo continua a depender da vontade do postulante e do preenchimento de condições objectivas de admissão ao clube. Mas será exactamente assim? Serão todos chamados a discutir as regras que vêm aí? Podemos dividir os estados-membros da zona não-euro entre os que querem mas não podem (aceder ao euro) e os que podem mas não querem (aceder ao euro). Se quanto aos primeiros quaisquer regras de federalismo orçamental, por exemplo, são aceitáveis e apenas tornarão mais difícil vir a integrar a zona euro, quanto aos segundos (o caso do Reino Unido vem de imediato ao espírito) tudo é conceptualmente muito mais complicado. É sabido que as reticências de Londres (opinião pública, certos partidos ou franja de partidos) versam sobre o federalismo centrípeto de Bruxelas, que tudo indica se vai intensificar. Das reacções britânicas já conhecidas dos líderes de opinião «europeia», tanto pode resultar a manutenção de uma ficção de adesão futura ao euro para as calendas (sem data definida), como o aproveitamento da ocasião para, de uma vez por todas, afastar essa possibilidade. E neste último caso é bem de uma União Europeia compartimentada, a duas velocidades permanentes, que passaremos a tratar.

Este tema chama um outro, só aparentemente de carácter jurídico. Os tratados europeus só podem ser adoptados por unanimidade (o que implica consenso na aprovação e ratificações em todos e cada um dos estados-membros). Esta circunstância deverá ser rigorosamente respeitada na revisão do tratado que se avizinha. São possíveis mas não expectáveis problemas que possam ser suscitados por um ou outro dos dez estados da zona não-euro, a não ser a autêntica caixa de surpresas que certamente será a gestão do caso britânico, que evoquei.

Das palavras de alguns (poucos) curiosos ou responsáveis vão escapando as soluções que já estarão a ser ensaiadas em secretos gabinetes.

Há já quem fale de um tratado complementar ao Tratado de Lisboa, apenas outorgado pelos estados do euro. A vingar essa hipótese, o efeito de geometria variável compartimentada ou negativa (ou de duas velocidades) passará a ser uma marca genética da construção europeia. Isso mesmo propõe5 Jean-Claude Piris, ex-director-geral dos Serviços Jurídicos do Conselho, com quem tive o prazer de trabalhar pela última vez durante a meteórica redacção do Tratado de Lisboa. Descrente de qualquer reforma a 27, ele só vê como saída do marasmo actual a iniciativa pelos estados do euro (supostamente os 17), seja com aproveitamento das cláusulas do actual tratado sobre «cooperações reforçadas», seja pela celebração de um tratado entre eles, adicional ao Tratado de Lisboa e com ele compatível, num equilíbrio difícil porque esses estados manteriam as suas obrigações no actual quadro e criariam novas obrigações noutro quadro.

Com discrição, o ministro dos Estrangeiros alemão, Guido Westerwelle, vai anunciando o que será a eventual importação para este debate do método Schengen. Notem-se atentamente as suas palavras: «certos países entre os dez que não estão na zona euro (leia-se o Reino Unido) têm grandes reservas... não estão prontos para um aprofundamento (dos tratados europeus)... mas uma cooperação diferenciada é sempre possível... todos seriam convidados mas haveria a possibilidade de diferenciar». Descodificando, negociações a la carte e protocolos de adesão às modificações do tratado que forem introduzidas, adesão com mais ou menos intensidade, com mais ou menos pressa.

Ao terminar este pequeno percurso pelas terras das velocidades e das geometrias, refiro os rumores de uma separação de águas dentro da própria zona euro, fosse por estratificação em diferentes níveis de integração, fosse pela expulsão de alguns dos seus actuais membros pelos restantes (indo engrossar a lista dos «outros»). Esta ideia eugénica não parece ter grande lógica, nem sequer financeira, mas nunca se sabe...

 

QUARTA MATRIOSHKA: ORÇAMENTO COMUNITÁRIO E PERSPECTIVAS FINANCEIRAS (REDUÇÃO DAS ASSIMETRIAS E CRESCIMENTO)

Talvez seja uma reflexão que só ocorrerá neste momento aos mais frágeis e periféricos, mas a verdade é que entre os pressupostos teóricos de uma integração económica regional (na ocorrência, europeia) estão sempre os conceitos de progressiva redução das assimetrias e a tendencial coesão no interior desse território integrado. Poderá ter havido abusos e laxismo no aproveitamento de uma época de boom económico e de facilidades por alguns, e haverá então necessidade de refluxo e de sacrifícios. Mas para além destes movimentos de ajustamento, enquanto as economias de uma zona económica e monetária não se aproximarem estrutural e minimamente, a respectiva sobrevivência estará sempre em causa. E isso implica alguma forma de transferência continuada de recursos dos mais ricos para os menos ricos, dos que acumulam haveres financeiros para os que acumulam dívidas para se desenvolverem.

Esses pressupostos fazem todo o sentido na mesa de quaisquer negociações no momento em que se irá tratar de mecanismos de verdadeira união económica, união monetária, de união política (mesmo que a palavra federalismo seja evitada). Haja quem tenha coragem para os pôr em cima da mesa das negociações, na busca de um equilíbrio global.

Para mais enquanto vai regressando, em tom cada vez mais dramático, a necessidade de preservar alguma margem de crescimento na economia dos que mais sacrifícios deverão fazer. Depois dos neokeynesianos terem imperado nos primeiros meses da crise – os do subprime – e terem sido escorraçados pelos monetaristas ortodoxos na actual fase, eis que vão regressando. Falam outra vez, são outra vez citados pelos políticos...

Os pontos de aplicação são óbvios. A dimensão e função redistributiva do orçamento comunitário, em primeiro lugar, de molde a ser consentâneo com um federalismo digno desse nome, mesmo mitigado. Com um orçamento parco (em percentagem do PIB dos seus membros), a União Europeia nunca quis – com boas razões – ir pelo caminho da perequação de recursos e transferências orçamentais regulares. Também nunca instaurou uma verdadeira política regional. Preferiu agir pela via dos fundos estruturais com respeito do princípio da coesão, mas há modos de repensar estes caminhos, sobretudo com base num orçamento comunitário que possa ser reforçado. O tempo ainda por cima está aí, com a discussão das perspectivas financeiras no prazo 2014-2020 cujos desdobramentos sectoriais e pacotes financeiros já circulam e começam a ser discutidos em Bruxelas. Haverá possibilidade (e sobretudo vontade) de as agregar à discussão «constitucional» que se avizinha? Dou o exemplo das «Connecting Europe Facilities», o novo nome de guerra (para uma gestão mais racional) das velhas redes transeuropeias de transportes, energia e telecomunicações, para os quais se ensaiam novas formas de financiamento, uma espécie de parcerias público-privadas europeias. Estou lembrado dos que vieram – justificadamente mas com algum desfoque das prioridades – defender que os eurobonds, em vez de acudirem à dívida passada, deveriam ser utilizados para financiar investimento futuro prioritário ao nível europeu, e indutor de crescimento. Porque não juntar tudo num enorme panelão?

Haverá recusas categóricas desta globalização das discussões. São expectáveis. O que não impede que haja mobilização e concertação dos nela interessados. Sem medo de desagradar, seja a quem for.

Também há já momentos de retracção antecipada, mesmo antes de se ir a jogo, por parte de pessoas de insuspeita propensão federalista, para quem deveria ser natural um salto qualitativo e quantitativo na concepção dos orçamentos comunitários no contexto de uma política económica colectiva claramente federal. António Vitorino, ex-comissário europeu, lembrou que as disponibilidades necessárias (financeiras, para resolver a crise das dívidas soberanas) só podem vir de uma cooperação intergovernamental e que não vale a pena diabolizar, anunciando a morte do sistema comunitário. O futuro sistema de governação económica terá forçosamente de contar com as duas dimensões, e, nesse pressuposto, procurar construir um modelo federal teórico seria uma fuga para a frente sem qualquer correspondência com a realidade e sem qualquer viabilidade prática.

Realpolitik, sem dúvida.

 

QUINTA MATRIOSHKA: LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA

O ensaio vai longo, deixa-se aqui só uma chamada de atenção para que não se subvalorize a dimensão da consciência e aquiescência dos governados nos momentos que se vão viver.

As discussões que se avizinham têm um alcance na organização dos poderes soberanos dos estados (como resultado do que passarão a ser as novas competências da União, ou de uma parte dela) como nunca aconteceu, nem sequer em Maastricht. O papel dos parlamentos nacionais estará francamente em causa, e a percepção dos órgãos de soberania mudará em conformidade. A haver um paralelo de relevância histórica só talvez o da época do fundador Tratado de Roma.

Sabemos e aceitamos que em 1957 a integração europeia era uma questão de destemidas vontades individuais, génio e chancelarias. E depois a Europa foi sendo construída nas costas dos cidadãos, a partir do impulso inicial. Os tempos mudam e felizmente tem havido progressos na legitimação do esforço diplomático, que continua a ser essencial. Mas os resultados continuam a ser muito insuficientes, e ou o esforço de comunicação com as «bases» melhora ou os riscos de descolagem – revolta, indiferença – por parte dos cidadãos quanto aos destinos colectivos será mesmo preocupante. Maastricht já poderia ter sido um tempo de apreciável legitimação popular e não o foi. Os tratados seguintes nada acrescentaram. O contexto da redacção do Tratado de Lisboa foi o da mera reconstrução tecnocrática do malogrado Tratado Constitucional, em cuja discussão pública tinham sido feitas boas apostas e fora cometida boa-fé, sem prejuízo de alguma ingenuidade e oportunismo político.

Não há boas receitas para o que deverá ser feito desta vez, em tempo de grandes dificuldades quotidianas e consequente descrença. Vai ser preciso vontade dos responsáveis, esforço, e imaginação, muita imaginação.

 

E PORTUGAL?

Portugal está concentrado na sobrevivência das pessoas, das empresas e das instituições mas não poderá distrair-se deste assunto, nem na negociação, nem na incorporação destas questões numa consciência nacional.

Preparar internamente a negociação de modo a que antecipadamente se saiba o que se quer e do que em todo o caso se deve salvaguardar é um truísmo. Também entendo que na frente internacional a preparação da negociação deve ser cuidada, com maior ou menor discrição.

A táctica da individualização própria para impedir a contaminação pelos vizinhos – na geografia, nos problemas – em maus lençóis, no período que se pode apelidar da negação solitária, foi um rotundo fracasso. Não só no caso português, diga-se em abono da verdade: todos os países que trilharam esse caminho para apaziguar os mercados e as agências de rating, falharam e falharão, pois verificou-se que essas entidades obscuras conhecem os números e não se distinguem pela caridade das suas acções. Creio que deverá haver um tempo de acção externa concertada com outros, naturalmente a seleccionar pela comunhão nas causas. Não será difícil encontrar aliados e sabe-se de antemão os que naturalmente estarão do outro lado da barricada. Medo de desagradar não pode fazer parte do léxico, por muito frágeis que intimamente nos sintamos. Na discussão de um tratado europeu não há bons nem maus alunos, há interesses nacionais.

Uma última palavra para os responsáveis que já se ouviram, não tanto para referir o Governo, que se acantonou em prudência evasiva nas primeiras escaramuças (eurobonds, papel do Banco Central Europeu), mas a inusitada cruzada do Presidente Cavaco Silva. Não pode ser só a oportunidade de protagonismo ou a indiscutível competência pessoal nestes assuntos que o movem. E quase espanta a veemência da sua profissão de fé europeísta (ou mesmo federalista), eivada de inúmeras manifestações de «incorrecção política», pelo menos por parte de um chefe de Estado: a defesa dos eurobonds e da revolução nos poderes do BCE; o apoio aberto ao papel da Comissão contra a deriva intergovernamental; a desconfiança face ao minidirectório franco-alemão e à relevância dada ao presidente da União; o ataque cerrado aos mercados, às agências de rating e tutti quanti; o acento no binómio austeridade/crescimento mesmo nas presentes circunstâncias internas, etc.

Cavaleiro solitário? Guarda avançada?

Lisboa, 15 de Novembro de 2011

 

NOTAS

1 A que se juntou mais tarde o conceito de «círculos concêntricos», popularizado pelo ministro dos Estrangeiros italiano Gianni de Michelis.

2 Este postulado tem sido muito debatido, a propósito da admissibilidade de soluções do tipo adesão e retirada voluntárias, expulsão, etc.

3 In FERREIRA, João de Menezes – «Prolegómenos de uma teoria geral da geometria variável positiva na União Europeia». In Acompanhamento Parlamentar da Revisão do Tratado da União Europeia na Conferência Intergovernamental de 1996, Lisboa, Comissão de Assuntos Europeus, Assembleia da República, 1995.         [ Links ]

4 Cf. Ponto seguinte do presente artigo.

5 Financial Times, 4 de Novembro de 2011.

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