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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.37 Lisboa Mar. 2013

 

Continuidade e mudança na política externa brasileira. As especificidades do comportamento externo brasileiro de 2003 a 2010

Continuity and change in Brazilian foreign policy. The specificities of the Brazilian external behaviour, 2003-2010

 

Miriam Gomes Saraiva

Professora na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) no programa de pós-graduação em Relações Internacionais, e investigadora do CNPQ. Foi Visiting Fellow de pós-doutoramento no Instituto Universitário Europeu em Florença entre 2002 e 2003, e teve a cátedra Rio Branco em Relações Internacionais na Universidade de Oxford em 2013

 

RESUMO

O objetivo do artigo é analisar a política externa brasileira do Governo de Lula da Silva tomando como foco seus graus de continuidade e mudança. Com este objetivo, apresenta inicialmente um debate sobre continuidade e mudança na política externa brasileira, assim como examina as correntes de pensamento que influenciaram em seu processo de formulação. Apresenta em seguida um breve histórico da política externa do Governo de Cardoso com vistas a marcar o grau de continuidade desta política em relação à de seu antecessor. O artigo concentra sua análise na política externa do Governo de Lula da Silva, destacando suas diferenças entre o primeiro e o segundo mandato. Sua conclusão orienta-se para questões de continuidade e mudança.

Palavras-chave: política externa brasileira, Lula da Silva, continuidade e mudança, ideias

 

ABSTRACT

The aim of this article is to analyze the Brazilian foreign policy during the Lula government, focusing on its continuities and changes related to the former government. The article is organized as follows: Firstly, introduces a debate about continuities and discontinuities in Brazilian foreign policy. Secondly presents a brief historical of the foreign policy of Cardoso administration in order to set the basis for the evaluate Lula’s foreign policy particularities. Then focuses the analysis on Brazilian foreign policy adopted during the Lula period with emphasizing separately the first and the second term. The conclusion outlines characteristics of continuity or change of this policy.

Keywords: Brazilian foreign policy, Lula government, continuities and discontinuities, ideas

 

A defesa da continuidade tem um peso político importante no Ministério de Relações Exteriores brasileiro (Itamaraty), o que provoca entre os acadêmicos o debate sobre continuidade e mudança na política externa brasileira. Este artigo visa agregar reflexões a este debate tomando como caso estudado o comportamento externo brasileiro durante o Governo de Lula (2003-2010) verificando seu grau de continuidade/mudança em relação às políticas externas do Governo de F. H. Cardoso em termos de estilo, estratégias e objetivos. Como critério para avaliar mudanças, trabalha com três classificações apontadas por Charles F. Hermann, a saber: ajustes, mudanças de programa, mudanças de metas1. Para tanto, o artigo dá destaque a duas dimensões específicas: as ideias que permeiam o processo decisório em política externa e as ações externas levadas a cabo durante o período. Seu argumento principal é que o comportamento externo do Governo de Lula guarda diferenças em relação ao de seu antecessor no que diz respeito à dinâmica do processo decisório e no que diz respeito à forma de inserção do país na ordem internacional. Aqui se defende também que o comportamento externo brasileiro experimentou variações sutis entre o primeiro e o segundo mandato.

Com vistas a cumprir seu objetivo, o artigo apresenta primeiramente um debate entre continuidade e mudança na política externa brasileira, com especial atenção às ideias que lhe deram base desde os anos 1990. Em seguida, faz um breve histórico do comportamento externo brasileiro do Governo de Cardoso. A terceira e a quarta parte analisam, respetivamente, as características da política externa propriamente dita implementada durante os dois mandatos do Governo de Lula.

 

CONTINUIDADE E DESCONTINUIDADES NA POLÍTICA EXTERNA DE LULA

Segundo muitos analistas, a política externa brasileira é identificada por sua continuidade desde os anos 1960. O Itamaraty, enquanto corporação diplomática, concentraria seu processo de formulação e seu poder de burocracia especializada teria contribuído para um comportamento mais estável pautado em alguns princípios como o pacifismo, não intervenção, igualdade soberana das nações e respeito ao direito internacional, que comporiam um «acervo diplomático»2. Esta concentração tornaria a política externa menos vulnerável a ingerências da política doméstica3.

No entanto, como pano de fundo para esta perspectiva, pode ser identificado, por um lado, um discurso político que defende a continuidade4 e, por outro, a instrumentalização da política externa como mecanismo para se conseguir insumos para o desenvolvimento do país junto com algumas crenças que orientam evolução da política externa há muitos anos: a autonomia e a ação universalista5. O universalismo corresponderia à ideia de estar aberto para manter relações com todos os países, e é tanto um produto da diversificação de parceiros quanto um instrumento de ação enquanto player global. A autonomia, por sua vez, seria definida, grosso modo, como a margem de manobra que o país tem nas suas relações com demais estados e em sua atuação na política internacional. Subjacente às ideias de universalismo e autonomia está a crença histórica entre os formuladores da política externa de que o Brasil tornar-se-ia uma grande potência. Com base nesta perspectiva, acreditou-se que o país deveria ocupar um lugar especial no cenário internacional6. A política externa seria, neste caso, um instrumento para tal. Assim, estas crenças deram base à organização de comportamentos inspirados em premissas realistas, mas que produziram respostas diferentes frente às perspectivas do sistema internacional7.

A perspectiva de continuidade convive então com descontinuidades. As estratégias podem assumir um caráter grociano ou hobbesiano; demonstrar preferência por uma atuação mais autônoma no cenário internacional ou por liderar iniciativas de países do Sul; ou adotar um comportamento de stakeholder ou de revisionista soft8. E o conceito de autonomia assumiu diferentes abordagens no decorrer das últimas décadas9. Nestes casos, as alternativas foram definidas a partir do contexto internacional do momento, da estratégia de desenvolvimento e de determinados cálculos dos formuladores de política externa que variaram de acordo com a visão política e a perceção destes formuladores do que seriam os interesses nacionais, da conjuntura internacional e de outras variáveis mais específicas. Cason e Power mostram como a «presidencialização» da política externa a partir da atuação de um presidente comprometido com o tema em sua formulação pode definir e/ou alterar os rumos desta política10. Maria Regina Soares de Lima argumenta que países como o Brasil adotam com frequência um comportamento internacional de natureza multifacetada que busca, ao mesmo tempo, beneficiar-se das possibilidades do sistema internacional, liderar esforços de remodela-lo com vistas a beneficiar os países do Sul, e atuar no contexto regional com uma perspectiva de liderança11 .

Desde os anos 1990, segundo Lima, na medida em que a agenda de política externa foi ganhando espaço nos marcos das políticas públicas e tornando-se objeto de interesse de diferentes setores da sociedade, o monopólio do Itamaraty na formulação de políticas e do que seria apresentado como «interesses nacionais» do país perdeu força12. A abertura da economia contribuiu para a politização da política externa em função da distribuição desigual de seus custos e ganhos, enquanto a consolidação democrática fomentou na sociedade debates e preferências sobre temas de diferentes áreas da agenda internacional. Estes dois processos abriram espaços para a consolidação de correntes de pensamento diferenciadas.

Durante a gestão de Collor de Mello, no início dos anos 1990, houve uma crise do paradigma globalista de política externa que pôs em xeque os princípios do comportamento adotado até então baseado no Pragmatismo Responsável dos anos 1970. No entanto, esta crise levou à consolidação, no interior do Itamaraty, de duas correntes de pensamento – autonomistas e institucionalistas pragmáticos – com visões diferentes sobre a dinâmica da ordem internacional, sobre interesses nacionais e sobre a melhor estratégia para se atingir os objetivos de autonomia e crescimento econômico do país. Estas duas correntes foram consonantes com visões de atores políticos e consolidaram-se no decorrer da década13. Por outro lado, a diferença de visões no interior do Itamaraty facilitou a inclusão de atores de outras agências estatais e não governamentais no processo de formulação de iniciativas externas.

Os institucionalistas pragmáticos vieram a compor a corrente que se fortaleceu e se consolidou durante o Governo de Cardoso. No campo econômico, são mais favoráveis a um processo de «liberalização condicionada» da economia14 e, no espectro partidário, encontram maior identidade no PSDB (Partido Social Democrático Brasileiro). Os institucionalistas pragmáticos caracterizam-se por dar maior importância ao apoio do Brasil aos regimes internacionais em vigência, identificando a regulamentação das relações internacionais como um cenário favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro. Defendem também uma inserção internacional do país a partir deuma nova visão dos conceitos de soberania e autonomia, aonde os valores globais devem ser defendidos por todos. Neste caso, a autonomia comportaria um país integrado à ordem internacional que empreenderia suas diferentes iniciativas nos marcos das instituições internacionais.

A ascensão do Governo de Lula, por outro lado, reforçou a atuação da corrente autonomista. Seu traço mais marcante é a defesa de uma projeção autônoma e proativa do Brasil na política internacional. Dentro desta perspectiva eles defendem uma reforma da dinâmica das instituições internacionais que proporcione espaços de atuação para o país. Com um comportamento baseado em um revisionismo soft da ordem internacional, os autonomistas têm preocupações de caráter político-estratégico em relação ao embate Norte/Sul, e buscam uma aproximação com países emergentes que teriam características comuns com o Brasil. A construção da liderança regional e a ascensão para a posição de potência global são seus objetivos principais.

Os autonomistas são tributários do desenvolvimentismo no campo econômico. Identificam a integração como um instrumento de acesso a mercados externos, como mecanismo de fortalecimento do país nas negociações econômicas internacionais, e também como canal para a projeção das empresas brasileiras na região.

A ascensão de Lula trouxe, como novidade no processo de formulação e implementação de política externa, uma nova corrente de pensamento na área, com poucos vínculos históricos com a diplomacia, mas que, durante os dois mandatos e no processo de inclusão de novos atores na formulação de política externa, estabeleceu um diálogo importante com o Itamaraty e exerceu alguma influência em decisões de política externa. Sua origem está em acadêmicos e lideranças políticas do Partido dos Trabalhadores (PT).

O Programa de Governo do PT para o mandato de 2003-2006, diferente do costume brasileiro de orientar o debate político para temas internos, apontava em primeiro lugar um projeto de política externa direcionado sobretudo para a América do Sul e a integração regional como elemento capaz de impulsionar o desenvolvimento nacional15. Destacava também a contribuição do país para a diminuição das tensões internacionais e para a construção de um mundo mais equilibrado. Tradicionalmente, o partido teria uma faceta internacionalista. Na contra mão da tradição concentradora do Itamaraty, o Presidente Lula convocou a Marco Aurélio Garcia, então secretário de Relações Internacionais do PT, para prestar-lhe assessoria, abrindo com isto espaços para a influência deste grupo.

Prioritariamente, as preocupações desta corrente orientavam-se para o processo de integração regional a partir da crença na existência de uma identidade própria da região, propondo um aprofundamento deste em termos políticos e sociais. Ao mesmo tempo, apoiava as iniciativas de governos sul-americanos que buscariam refundar as estratégias de desenvolvimento e o próprio regime político de seus respetivos países. Defendia uma disposição brasileira de arcar em maior medida com os custos da integração regional. Em relação ao Mercosul (Mercado Comum do Sul), seriam favoráveis ao aprofundamento da integração em termos políticos, sociais e culturais.

Esta posição teve influência sobre os autonomistas do Itamaraty, convergindo para um comportamento proativo na cooperação principalmente com os países vizinhos, e na aceitação das diferentes opções políticas da região. Por outro lado, em alguns temas os dois grupos exerceram influências desiguais, produzindo resultados muitas vezes contraditórios, como no caso do Mercosul. Nestes casos, o papel do Presidente Lula como articulador das duas visões foi importante. A diplomacia presidencial e sua participação no processo de formulação da política externa garantiram os canais de expressão dos pensadores oriundos de seu partido.

Cason e Power e Hirst, Lima e Pinheiro chamam a atenção para a pluralização de atores no processo de formulação. Na dimensão governamental, o desenvolvimento da cooperação Sul-Sul do Brasil com países vizinhos e africanos aumentou a presença de outros ministérios como o da Saúde, de Ciência e Tecnologia e de Agricultura na formulação da política de cooperação internacional, assim como o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ganhou maior presença em financiamentos externos16. Na dimensão societal, cresceu o interesse e o debate sobre política externa nos marcos da sociedade civil. A opinião pública e agentes econômicos passaram a acompanhar mais de perto o comportamento externo do país e os meios de comunicação começaram a dedicar mais espaços para a política externa. Os partidos de oposição fizeram públicas suas críticas à política adotada pelo Governo para a América do Sul.

 

BREVE TRAJETÓRIA DOS ANTECEDENTES DE POLÍTICA EXTERNA DE CARDOSO

«Somos um grande país, com tradições de crescimento e [...] de participação, muitas vezes protagônica, na construção da convivência internacional e regional. Estamos engajados em parcerias internacionais que ampliam a nossa presença no mundo... Somos um “mercador global” e um “ator global”. [...] A preeminência no cenário internacional, de valores caros ao povo brasileiro como a democracia, as liberdades individuais e o respeito aos direitos humanos e a evidência de que [...], o mundo está engajado em um processo de crescimento da civilização...»17

No início do Governo de Cardoso, com o fortalecimento da corrente institucionalista pragmática, sua diferenciação principal em relação a políticas externas anteriores foi a adoção do conceito de soberania compartilhada, diferente do conceito clássico de soberania. Esta visão identificava um mundo marcado por um «concerto» de países com discurso homogêneo em defesa de valores universais, junto com a tendência a formar regimes para garanti-los. Uma das condições da manutenção deste «concerto» seria a grande adaptabilidade da liderança norte-americana às demandas das potências e, em segunda instância, dos países médios e pequenos18. Este cenário abriria espaços para o Brasil adotar uma posição que não significasse nem alinhamento aos Estados Unidos nem postura de free rider. Esta posição orientar-se-ia, em primeiro lugar, pela perceção da existência no novo cenário de alinhamentos variáveis e, em segundo, pela adesão aos regimes internacionais vigentes19. Dentro da manutenção da crença da autonomia, isto significou também uma modificação em seu conteúdo: a ideia da «autonomia pela integração» se firmou, em detrimento da autonomia buscada anteriormente visando a autossuficiência20.

Os institucionalistas pragmáticos identificavam a regulamentação das relações internacionais como um cenário favorável ao desenvolvimento econômico brasileiro e ao fortalecimento da presença internacional do país uma vez que as regras do jogo internacional deveriam ser seguidas por todos os países incluindo os mais ricos. O papel do Brasil em uma conjuntura de geometrias variáveis deveria ser simultaneamente de «convergência» em termos de valores e de «crítica» em relação às distorções que têm lugar na ordem internacional21. Dentro desta perspectiva, a diplomacia buscou um comportamento ativo nos foros multilaterais caracterizado como global player e optou pela adesão a regimes internacionais na área de segurança internacional.

Ao mesmo tempo, o governo buscou implementar o comportamento de global trader, com atuações em diferentes mecanismos de negociações comerciais, sendo a OMC (Organização Mundial do Comércio) o fórum privilegiado. Em relação à UE (União Europeia) houve um esforço de aproximação bilateral do Governo Cardoso com seus países no campo político, identificando estes como parceiros do multilateralismo e de princípios que davam base ao «concerto» de países. No entanto, esta expectativa não prosperou; a UE demonstrou preferência pela interlocução através do diálogo UE-Mercosul e um foro privilegiado UE-Brasil não foi considerado. Na esfera econômica, até o final do Governo, foram realizadas diversas rodadas de negociação dedicadas ao acordo de associação interregional UE-Mercosul, mas sem êxito. No que diz respeito aos Estados Unidos, houve divergências referentes ao comércio internacional e ao protecionismo e, na América do Sul, enquanto o Governo norte-americano mostrava mais pressa em concluir o ALCA (Acordo de Livre Comércio das Américas), o Governo brasileiro preferia criar obstáculos e atrasar a sua conclusão dando ênfase às experiências sub-regionais como o Mercosul. Em relação à aproximação com países do Sul que havia tomado um forte impulso durante o governo anterior, a ascensão dos institucionalistas pragmáticos favoreceu uma diminuição em seu ritmo e a concentração de maiores esforços no campo comercial. A Comunidade de Países de Língua Portuguesa foi institucionalizada mas com impulsos limitados nas relações entre seus membros.

Na esfera regional a ideia de autonomia apareceu com mais força frente aos países vizinhos e a prioridade de seu primeiro mandato foi o Mercosul. Embora o discurso diplomático fosse favorável à integração, este não se traduziu em ações. O crescimento do comércio de manufaturas nacionais aparecia como principal item da agenda brasileira para a região22. Mas durante o segundo mandato a diplomacia brasileira revisou o comportamento tradicional brasileiro pautado pelo conceito de não intervenção e buscou construir sua liderança na área a partir de um equilíbrio entre integração, estabilidade democrática e desenvolvimento da infraestrutura23. Neste contexto, foi dado início à construção de uma comunidade de países na região. Em 2000 teve lugar a primeira reunião dos países sul-americanos em Brasília com vistas a formar a Comunidade Sul-Americana de Nações (casa), onde as principais ideias discutidas foram integração econômica e infraestrutura, junto com a perspectiva de reforço dos regimes democráticos. Foi criada a IIRSA (Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana), como marco impulsionador de projetos de integração de infraestrutura.

No que diz respeito ao Mercosul, os institucionalistas pragmáticos identificavam-no como instrumento para aumentar os ganhos econômicos do país priorizando a integração comercial. Com esta perspectiva, o regionalismo aberto foi instrumento importante para não obstaculizar relações brasileiras com outros parceiros, e a institucionalização do bloco não foi vista como necessária. A visão favorável à abertura condicionada da economia identificava parcerias com países industrializados como um importante elemento para estimular o comércio exterior e o Mercosul como um espaço para reduzir o impacto da abertura comercial. Esta visão oscilou entre a defesa de uma área de livre comércio e a aceitação de uma união aduaneira incompleta. A harmonização das relações entre Brasil e Argentina já se apresentava como um fator relevante para o estilo universalista da política externa brasileira. No âmbito interno ao bloco, a defesa da democracia foi materializada na reação brasileira e argentina à crise vivida pelo governo paraguaio, em 1996, e na criação posterior da Cláusula Democrática.

No final do governo de Cardoso, alguns passos haviam sido dados com vistas a tornar o Brasil um player global. Mas os defensores de um perfil mais autônomo de política externa levantaram restrições à preferência dos institucionalistas pragmáticos por ações moderadas nos marcos das instituições internacionais como melhor alternativa para garantir o êxito de objetivos de longo prazo.

 

OS PRIMEIROS PASSOS DA POLÍTICA EXTERNA DE LULA: MUDANÇAS SEM RUTURA

«Nossa política externa refletirá, também, os anseios de mudança que se expressaram nas urnas. No meu Governo, a ação diplomática do Brasil estará orientada para uma perspectiva humanista e será, antes de tudo, um instrumento do desenvolvimento nacional.»24

Ao contrário da tradição do Itamaraty, o discurso de posse de Lula destacava a ideia de mudança. No entanto, as novidades em política externa não se colocaram a partir de uma rutura e foram sendo sentidas progressivamente no decorrer dos dois mandatos. O argumento aqui defendido é que, embora tenha havido continuidade nas crenças e na utilização da política externa como instrumento para conseguir insumos para o desenvolvimento, os autonomistas trouxeram uma descontinuidade na visão de mundo e nas estratégicas adotadas, levando o país a um movimento claro de fortalecimento de sua presença internacional como player global. De acordo com as classificações de Hermann na passagem para o governo de Lula a política externa teria experimentado um ajuste para, no decorrer de seu governo, evoluir para uma mudança de programa25.

Na esfera da política internacional, o Governo de Lula encontrou um cenário internacional favorável. Diferente da ordem de caráter homogêneo dos anos 1990, os anos 2000 conviveram com uma ordem global fragmentada e marcada por pluralismo em termos de ideias e comportamentos, assim como pela emergência de novos atores que buscam modificar o equilíbrio da tomada de decisões sobre temas de dimensão global.

A ascensão dos autonomistas diminuiu a convicção nos regimes internacionais, que foi substituída por comportamento proativo com vistas a modifica-los em favor dos países do Sul ou em benefício próprio. A diplomacia do Governo Lula caracterizou-se pelo reforço das crenças na autonomia, no universalismo, enquanto a liderança regional e a ascensão para a posição de potência global foram objetivos prioritários. «Nossa política externa não pode estar confinada a uma única região, nem pode ficar restrita a uma única dimensão. O Brasil pode e deve contribuir para a construção de uma ordem mundial pacífica e solidária, fundada no Direito e nos princípios do multilateralismo, consciente do seu peso demográfico, territorial, econômico e cultural, e de ser uma grande democracia em processo de transformação social.»26

Em primeiro lugar, o Governo fortaleceu a prioridade da candidatura do Brasil a membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como credenciais para a candidatura brasileira, a diplomacia deixou de lado os princípios e valores e optou por defender melhor distribuição de benefícios do comércio internacional e o combate à fome e à pobreza que afetariam a estabilidade internacional (o combate ao terrorismo não foi assumido como prioridade).

Em termos comerciais, o Governo atuou ativamente nas negociações da OMC através de ação conjunta com outros países em desenvolvimento. O G20, formado pouco antes das negociações de Cancun com vistas a incluir o fim dos subsídios agrícolas na Rodada Doha, por países emergentes e outros menores, tornou-se um fórum importante de atuação da diplomacia brasileira logrando condicionar os avanços das negociações à inclusão da questão dos subsídios em sua agenda. Nas negociações de formação da ALCA, o Itamaraty introduziu modificações no processo negociador com vistas a interrompê-las27. As negociações foram encerradas sem êxito.

Os autonomistas deram um novo impulso à cooperação Sul-Sul com países emergentes. Sua base seria a percepção de que estes países teriam características semelhantes ao Brasil – «dimensões continentais», «reconhecida importância regional», «população», «produto interno bruto», «recursos naturais» – e com interesse no reordenamento do sistema internacional: «países que não estão integrados estruturalmente a áreas mais amplas, que veem na globalização a possibilidade de realizar sua condição de potência e de não serem levados a optar por um esquema de associação periférica a uma das três grandes áreas [...] são os candidatos naturais a ter lugar de destaque na nova ordem mundial.»28

Além dos acordos comerciais assinados e das ações nos marcos do G20, o Fórum de Diálogo IBSA (Índia, Brasil e África do Sul) foi criado, com vistas a debater questões relacionadas à ordem internacional, às Nações Unidas e ao intercâmbio tecnológico.

A cooperação também avançou com regiões mais pobres, embora com características diferentes. Em relação ao continente africano, o Governo procurou aproximar-se e estabelecer vínculos nos campos político, comercial, de cooperação técnica e cultural. Neste caso, a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa atuou como mecanismo importante. Foram realizadas as Cúpulas América do Sul-África e América do Sul-Países Árabes, mecanismos diplomáticos idealizados pela diplomacia brasileira. Vigevani e Cepaluni (2011) classificam esta busca de novos parceiros não tradicionais como «autonomia pela diversificação», diferente da classificação de «autonomia pela integração» do governo anterior.

Frente à América do Sul, o comportamento foi influenciado também pelo grupo vinculado ao PT que propunha um aprofundamento do processo de integração em termos políticos e sociais a partir da percepção da existência de certa compatibilidade entre valores, de vantagens conjuntas reais, e de uma relativa identidade comum generalizada no continente sul-americano29. O discurso de posse de Lula já refletia esta posição: «Apoiaremos os arranjos institucionais necessários para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul.»30 A convergência entre as visões autonomista e do PT proporcionou uma percepção da região diferente do governo anterior, e levou a um comportamento diferente frente à construção da liderança baseada em novas formas de cooperação/ /integração com os países vizinhos, e também frente ao Mercosul.

Com este objetivo, a diplomacia brasileira buscou aprofundar o comportamento que já vinha sendo seguido na gestão de Cardoso, mas dando um novo sentido à construção da liderança com padrões de soft power através do reforço do multilateralismo na região. Recuperou e atualizou na forma da «não indiferença» os princípios da não intervenção31. Em relação aos Estados Unidos não houve convergência no trato dos temas regionais, mas a falta de uma política norte-americana para a região facilitou que não houvesse enfrentamentos entre os dois países. O Governo brasileiro atuou de forma autônoma frente a questões do continente.

Para implementar seu projeto, a estratégia de consolidação da casa foi importante para a diplomacia brasileira. A partir da eleição de Lula, houve esforços na sua institucionalização, com a inclusão de novos temas como diálogo político, integração energética, mecanismos financeiros sul-americanos, assimetrias. Isto mostra os primeiros reflexos da ampliação das iniciativas de cooperação técnica e financeira com países da região.

No entanto, somente ao final do primeiro mandato com uma reação brasileira positiva frente à nacionalização de reservas de gás da Petrobras pelo Governo boliviano que começa a se desenhar a disposição do Governo de Lula de arcar com alguns custos do processo de integração sul-americana superando o que Burges chama de «highly cost-averse leadership style»32.

O Mercosul e as relações entre Brasil e Argentina, por sua vez, tiveram sua importância destacada sobretudo em discurso no princípio da gestão33. As eleições de Lula e Néstor Kirchner pareciam abrir espaços para a construção de uma parceria mais sólida no campo político entre os dois países com a assinatura, em 2003, do «Consenso de Buenos Aires».

Para os autonomistas, a integração sul-americana sob a liderança brasileira seria o principal objetivo e, para tanto, priorizariam uma ampliação do Mercosul através da entrada de novos estados ou da formação da CASA. A base do regionalismo aberto do Mercosul e seu caráter comercialista foram criticados pelos autonomistas. Em obra de 2006, o secretário-geral Pinheiro Guimarães critica a perda de importância do «desenvolvimento» nos marcos do bloco34. O Mercosul comercial seria visto somente como um instrumento capaz de proporcionar ao Brasil um melhor posicionamento regional e de abrir caminho para a formação de uma área de livre comércio na região35. O Governo buscou então manter um equilíbrio econômico no interior do Mercosul que favorecesse os projetos brasileiros de desenvolvimento de infraestrutura e projeção industrial e apostou em uma ampliação do bloco com a assinatura de acordos de associação com os países da Comunidade Andina e o processo de entrada da Venezuela como membro pleno.

Por outro lado, e para atender às preferências do grupo vinculado ao PT, foram dados passos para superar o défice institucional e modificar sua dinâmica. O Tribunal Permanente de Revisão entrou em vigor e foi criado o Parlamento do Mercosul. Na prática, o bloco experimentou uma reconfiguração em seu perfil com a criação de novas áreas de atuação como o Programa de Trabalho do Mercosul e o Instituto Social do Mercosul e foi criado o Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM) que mostrou já uma disposição brasileira de alavancar investimentos econômicos em países do bloco. Os recursos do FOCEM, porém, foram inicialmente pequenos36.

Entre Brasil e Argentina, a prioridade dada pelo Governo brasileiro à América do Sul como um todo foi um obstáculo para o aprofundamento da aliança estratégica. Os investimentos brasileiros na construção de uma liderança regional e seu comportamento proativo no cenário internacional de forma individual gerou na Argentina reações contrárias como a falta de apoio à candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Em termos econômicos, os governos de Néstor Kirchner e depois de Cristina Kirchner adotaram uma estratégia neodesenvolvimentista, com vistas a recompor o parque industrial nacional, mas que entrou em choque com a consolidada política industrial brasileira reforçada pela perspectiva de expansão das empresas brasileiras na região. Isto levou a restrições argentinas na área de livre comércio e o intercâmbio comercial diminuiu em termos relativos dentro da balança comercial brasileira.

 

SEGUNDO MANDATO: LIDERANÇA REGIONAL E ATIVISMO INTERNACIONAL

Durante o segundo mandato a política externa assumiu mais fortemente suas diferenças em relação ao período de Cardoso deixando clara a «mudança de programa». A crise financeira de 2008 e a conjuntura internacional mais fragmentada, assim como a reeleição de Lula e a estabilidade econômica, reforçaram a legitimidade do Governo e sua autonomia para o reforço do ativismo internacional e das iniciativas de construção da liderança na América do Sul em diversas dimensões.

Em sua inserção na política internacional, a partir do segundo mandato a diplomacia brasileira acirrou os esforços de projeção do país como player global buscando um multilateralismo universalista e sempre orientando-os para uma revisão das instituições internacionais. Neste caso, a ideia do revisionismo soft da ordem internacional ficou mais visível e a diplomacia brasileira passou a integrar-se em diferentes fóruns.

Durante o segundo mandato, nos marcos da cooperação com parceiros emergentes, o Itamaraty buscou aproveitar todos os espaços abertos pela classificação do Brasil como um dos BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China) através de iniciativas com vistas a reforçar uma parceria para a revisão das instituições da ordem internacional. Participou ativamente das negociações sobre a mudança do clima junto com o BASIC (grupo composto por Brasil, África do Sul, Índia e China) com vistas a consolidar um papel proativo dos países emergentes frente ao tema37. Por outro lado, participou ativamente no G20 financeiro, criado para buscar soluções para a crise econômica de 2008. E buscou contribuir para a solução do impasse palestino-israelense, assim como teve uma participação ativa nas negociações da questão nuclear com o Irã. A participação mais autônoma do Brasil na política internacional e seus impulsos reformistas criaram novas áreas de atrito com os Estados Unidos, mas que foram tratadas com baixo perfil político.

O comportamento brasileiro frente à UE experimentou uma inflexão. Foi assinada uma parceria estratégica, com vistas a incrementar uma aproximação com países europeus nos marcos do projeto brasileiro de player global, visando a defesa do multilateralismo e a revisão no equilíbrio de poder no quadro das instituições internacionais. Esta parceria incentivou a inclusão de representantes brasileiros em reuniões com europeus para discutir temas referentes às negociações econômicas internacionais. A parceria estratégica foi identificada pela diplomacia brasileira também como canal importante para a aproximação do Brasil com países europeus que poderiam vir a favorecer uma transferência de tecnologia para áreas estratégicas brasileiras. Mas, em função da nova perspectiva revisionista brasileira diferente do período de Cardoso, houve divergências entre as duas partes no que diz respeito a estratégias de ação e preferências frente a temas da política internacional, assim como tensões entre o respeito à soberania e o respeito a temas de direitos humanos. De fato, a diplomacia brasileira encontrou coincidência objetiva de posições com outros países emergentes.

No que diz respeito à cooperação com países de menos recursos, houve um crescimento das iniciativas frente a países africanos iniciadas no primeiro mandato e a prioridade foi dada à cooperação técnica e financeira e ao bilateralismo. A Agência Brasileira de Cooperação ampliou sua participação no arco da política externa, junto com a internacionalização de políticas setoriais como saúde, ciência e tecnologia, educação e agricultura. O apoio ao Brasil dos países africanos em fóruns multilaterais tornou-se uma contrapartida importante na agenda da política externa brasileira.

A construção da liderança brasileira na América do Sul fez-se sentir com mais vigor no segundo mandato. Em 2008, a CASA deu lugar à Unasul (União das Nações Sul-Americanas) e ganhou mais consistência. Para o Governo brasileiro, a organização tornou-se seu principal canal de ação multilateral através do qual a diplomacia atuou com vistas a construir posições comuns com os países vizinhos, assim como responder como bloco a temas da política internacional38. Por outro lado, tinha um caráter estritamente intergovernamental, o que garantiu a margem de autonomia brasileira frente a seus parceiros na organização e em suas relações com países fora da região: «A UNASUL é o primeiro organismo sul-americano que reúne países subdesenvolvidos, com características comuns, para articular sua ação para dentro e para fora do continente.»39

A construção da liderança apoiou-se também na cooperação técnica e em investimentos, articulados com a projeção de empresas brasileiras na região (identificados como instrumento de política externa). A cooperação técnica foi implementada com a participação dos ministérios de Educação, Ciência e Tecnologia e Saúde. O BNDES aprovou financiamentos para obras de infraestrutura na região conduzidas por empresas brasileiras e a IIRSA foi um mecanismo importante para operacionalizar estes investimentos.

A iniciativa de liderança foi confrontada por alguns países vizinhos que desafiaram a posição brasileira reivindicando concessões no campo econômico. Além da questão com a Bolívia do final do primeiro mandato, a cobrança de que o Brasil arcasse com custos financeiros de uma integração foi presente. Como resposta, o Governo brasileiro deu passos importantes em termos domésticos estruturando uma articulação política em torno do projeto de liderança na região, que se refletiu na formação de uma coalizão mais favorável à disposição brasileira de arcar com alguns custos da integração sul-americana: o país começou a assumir progressivamente o papel de paymaster na região, embora sem modificar a agenda comercial unidirecional e enfrentando resistências internas40. Pensadores do PT tiveram influência neste comportamento apoiando a cooperação e incentivando os esforços de aproximação com os países cujos governos eram identificados por eles também como progressistas41.

Em relação ao Mercosul, a visão autonomista definiu os rumos da diplomacia em termos realistas. A perspectiva sul-americana e a projeção internacional do país tornaram-se prioridades e foram levadas adiante de forma autônoma em relação ao bloco. Os problemas de protecionismo no comércio intrabloco cresceram, mas os avanços não comerciais em seu interior receberam impulsos e o Mercosul teve consolidado seu novo perfil. Apesar da preferência brasileira pela cooperação bilateral, os recursos do FOCEM cresceram até o final do mandato de Lula, e foram aprovadas iniciativas como o Plano Estratégico de Ação Social e o Programa de Integração Produtiva do Mercosul42.

Por fim, as relações com a Argentina tiveram consolidado um novo perfil. O fortalecimento da economia brasileira e a projeção do país no cenário internacional trouxeram, para a diplomacia brasileira, novas áreas de atuação que não foram acompanhadas pela Argentina. Mas o reforço do Mercosul institucional favoreceu o diálogo político entre os dois países. A cooperação de diferentes ministérios em setores como educação, cultura, energia e trabalho com seus semelhantes argentinos cresceu durante o período. A integração na dimensão intersocietal, a partir de iniciativas de diferentes agentes governamentais expressando a incorporação de novos atores na formulação de política externa própria do Governo de Lula, teve avanços. O desenvolvimento da infraestrutura regional aproximou os dois países em projetos comuns. E, mais importante, foram seguidos, como política de Estado, os esforços para manter estreitos laços de cooperação com a Argentina que evitassem o renascimento de qualquer tipo de rivalidade.

 

CONCLUSÃO

Apesar da existência de traços de continuidade da política externa, esta assumiu características diferentes no Governo de Lula em relação ao seu antecessor. Suas crenças consolidadas foram mantidas nas duas gestões mas puderam ser adaptadas a diferentes cenários e conjunturas abrindo espaços para seus formuladores adaptarem-nas a novas preferências políticas e a distintas percepções da ordem internacional. Mas as mudanças experimentadas foram progressivas, assumindo algumas diferenças entre o primeiro e o segundo mandato. Vista ao final da gestão, a política externa do Governo de Lula trouxe novidades. No que diz respeito a seu processo de formulação e de implementação, novos atores foram incorporados: por um lado, pensadores do PT que puderam exercer influência sobretudo através da assessoria presidencial e, por outro, outras agências de Governo que tiveram suas políticas internacionalizadas.

No início do Governo as mudanças, embora assinaladas em termos de discurso, foram menos visíveis. A força política da ideia de continuidade dentro do pensamento diplomático brasileiro evitou que houvesse uma ruptura forte em relação ao governo anterior. A primeira percepção por parte de alguns analistas foi de que as mudanças se limitavam às prioridades e à intensidade das ações, como «ajustes», na concepção de Hermann43. Mas durante o segundo mandato, a ideia de «mudanças de programa» aparece claramente, embora sem significar uma «mudança de metas».

O projeto de ascender no cenário internacional foi mantido, mas o apoio aos regimes internacionais foi substituído por um comportamento revisionista de reformar as instituições internacionais. O novo cenário internacional após a crise financeira de 2008 foi aproveitado pela diplomacia brasileira para uma ascensão internacional significativa. O debate sobre potência média foi superado dando lugar à ideia de país emergente.

A corrente autonomista deu mais relevância às crenças buscando de forma mais direta e com estratégias de mais curto prazo tanto o reforço da autonomia e do multilateralismo quanto a busca da projeção do país como player global no cenário internacional. Cason e Power mostram como os governos de Cardoso e Lula partiram de tradições semelhantes mas produziram respostas diferentes para alterar sua posição no sistema internacional44.

Em relação à cooperação Sul-Sul, em suas diferentes dimensões, durante o segundo mandato ela se fez mais forte. As dimensões técnicas, financeiras e societais passaram a ocupar um espaço maior, através sobretudo da participação de novos atores no processo de formulação da política externa.

Por fim, o comportamento frente à América do Sul. Se durante o primeiro mandato o Mercosul ainda dividia a prioridade com a América do Sul, herdada do período de Cardoso, após 2006 as outras alternativas de cooperação e integração regional tornaram-se claramente prioritárias.

Com um viés diferente da política externa do Governo de Cardoso, a diplomacia autonomista de Lula passou a buscar estratégias mais diretas para valorizar a autonomia das ações brasileiras; reforçar o universalismo através da cooperação Sul-Sul e das instâncias multilaterais, e fortalecer o papel proativo do Brasil na política internacional. Em relação à América do Sul, o Governo de Lula demonstrou uma vontade política no sentido de uma forte articulação dos países da região a partir da centralidade brasileira. As mudanças ocorridas foram percebidas no decorrer do tempo, e articuladas com modificações no cenário internacional e na conjuntura política do país.

 

Data de receção: 16/01/2012 | Data da aprovação: 31/07/2012

 

NOTAS

1 Para Hermann, o ajuste significa uma mudança na intensidade e na clareza da política externa, sem modificar o que é feito, como é feito e seus objetivos; nas mudanças de programa ocorrem variantes nos métodos e estratégias para se atingir os objetivos, embora estes se mantenham inalterados; a mudança de metas significa uma reconfiguração das propostas de ações e metas. Cf. Hermann, Charles F. – «Changing course: when governments choose to redirect foreign policy». In International Studies Quaterly. Vol. 34, N.º 1, 1990, pp. 3-21.         [ Links ]

2 Sobre o tema, cf. Mello e Silva, Alexandra – «Ideias e política externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU». In Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília, Vol. 41, N.º 2, 1998, pp. 139-158.         [ Links ]

3 Sobre esta perspectiva de centralidade do Itamaraty na formulação da política externa brasileira até os anos 1990 cf. Lima, Maria Regina S. de – «Instituições democráticas e política exterior». In Contexto Internacional. Rio de Janeiro. Vol. 22, N.º 2, 2000, pp. 265-303,         [ Links ] que aponta tanto para o componente institucional na sua conformação quanto a natureza das questões incluídas na agenda externa e da ausência de impactos distributivos.

4 A ideia da continuidade é apresentada pela diplomacia brasileira como um dado, entendendo os ganhos políticos que esta crença pode trazer.

5 Segundo Vigevani e Cepaluni a autonomia e o universalismo devem ser vistos como elementos norteadores do comportamento externo brasileiro. Cf. Vigevani, Tullo, e Cepaluni, Gabriel – A Política Externa Brasileira: A Busca pela Autonomia, de Sarney a Lula. São Paulo: Editora UNESP, 2011.         [ Links ]

6 Mello e Silva, Alexandra – «Ideias e política externa: a atuação brasileira na Liga das Nações e na ONU». In Revista Brasileira de Política Internacional. Vol. 41, N.º 2, 1998, pp. 139-158.         [ Links ]

7 Cf. Cason, Jeffrey, e Power, Thimoty J. – «Presidentialization, pluralization, and the rollback of Itamaraty: explaining change in Brazilian foreign policy making from Cardoso to Lula». Conference Paper «Regional Powers in Asia, Africa, Latin America, the Near and Middle East», GIGA/ /Hamburg, dezembro de 2006.         [ Links ]

8 Letícia Pinheiro destaca que dentro dos marcos do realismo, a diplomacia brasileira estruturou ações de caráter prioritariamente hobbesiano mas, por vezes, também grociano. Cf.Pinheiro, Letícia – «Traídos pelo desejo: um ensaio sobre a teoria e a prática da política externa brasileira contemporânea». In Contexto Internacional. Rio de Janeiro. Vol. 22, N.º 2, 2000, pp. 305-335.         [ Links ] Maria Regina Soares de Lima, expondo sobre «As bases conceituais da política externa brasileira» no seminário «Iniciativa México-Brasil», LACC/FIU, Miami, 13 de maio de 2010, apresenta estas duas formas de comportamento para um país com as características do Brasil.

9 Autonomia pela distância, autonomia pela participação, autonomia pela integração, autonomia pela diversificação.

10 Cason, Jeffrey, e Power, Thimoty J. – «Presidentialization, pluralization, and the rollback of Itamaraty: explaining change in Brazilian foreign policy making from Cardoso to Lula».

11 Lima, Maria Regina Soares de – «A economia política da política externa brasileira: uma proposta de análise». In Contexto Internacional. Rio de Janeiro. Ano 6, N.º 12, 1990, p. 17.         [ Links ]

12 Lima, Maria Regina S. de – «Instituições democráticas e política exterior». In Contexto Internacional. Rio de Janeiro. Vol. 22, N.º 2, 2000, pp. 265-303.         [ Links ]

13 Sobre os institucionalistas pragmáticos Letícia Pinheiro define uma matriz teórica para a política externa brasileira no final do século XX e identifica uma articulação entre a atuação brasileira nos marcos das instituições internacionais como um elemento garantidor da autonomia e do desenvolvimento e preceitos de poder da escola realista Cf. Pinheiro, Letícia – «Traídos pelo desejo: um ensaio sobre a teoria e a prática da política externa brasileira contemporânea», pp. 305-335. Adota-se aqui sua nomenclatura para uma das correntes mencionadas em função do apoio pragmático que esta corrente dá aos regimes internacionais como instrumento para conseguir seus objetivos. Os que aqui são chamados de autonomistas seriam revisionistas em relação às instituições internacionais. O termo foi mencionado pela autora em Saraiva, Miriam G. – «A diplomacia brasileira e a visão sobre a inserção externa do Brasil: institucionalistas pragmáticos X autonomistas». In Mural Internacional. Rio de Janeiro,Ano 1, N.º 1, 2010, pp. 45-52 [Consultado em: 6 de setembro de 2010] Disponível em: http://www.ppgri.uerj.br/public/        [ Links ]

14 Termo introduzido por Pedro da Mota Veiga para explicar a implementação de gradual, descontínua e muitas vezes incompleta dos novos paradigmas liberais adotados nos anos 1990 na América do Sul. Cf. Veiga, Pedro da Mota – «O policy making da política comercial no Brasil: os caminhos da transição». In El proceso de formulación de la política comercial. Nivel uno de un juego de dos niveles: Estudios de países en el Hemisferio Occidental. BID/ Munk Centre/ Inter-American Dialogue, 2002.         [ Links ]

15 Cf. Programa de Governo Coligação Lula Presidente, pp. 6-8. [Consultado em: 6 de setembro de 2010]. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/uploads/programagoverno.pdf

16 Cf. Cason, Jeffrey, e Power, Thimoty J. – «Presidentialization, pluralization, and the rollback of Itamaraty: explaining change in Brazilian foreign policy making from Cardoso to Lula»; Hirst, Mónica, Lima, Maria Regina Soares de, e Pinheiro, Letícia – «A política externa brasileira em tempos de novos horizontes e desafios». In Análise de Conjuntura OPSA. Rio de Janeiro. N.º 12, dezembro de 2010. http://observatorio.iesp.uerj.br/analises.php        [ Links ]

17 Trechos do discurso de posse do chanceler Luiz Felipe Lampreia – Resenha de Política Exterior do Brasil. Brasília, N.º 76, MRE, 1.º semestre de 1995, pp. 17-27.         [ Links ]

18 Fonseca Jr, Gélson – «Anotações sobre as condições do sistema internacional no limiar do século XIX: a distribuição dos polos de poder e a inserção internacional do Brasil». In Dupas, Gilberto, e Vigevani, Tullo (eds.) – O Brasil e as Novas Dimensões da Segurança Internacional. São Paulo: Alfa-Omega/Fapesp, 1999, p. 32.         [ Links ]

19 Fonseca Jr, Gélson – «Anotações sobre as condições do sistema internacional no limiar do século XIX: a distribuição dos polos de poder e a inserção internacional do Brasil», p. 39.

20 «Acabaram-se os tempos de isolacionismo e da autossuficiência. A soberania nacional deixou de ser argumento para comportamentos que atentam contra os valores fundamentais», «A autonomia pela integração significa apoio aos regimes internacionais». Cf. Lampreia, Luiz Felipe – «A política exterior de Fernando Henrique Cardoso». In Revista Brasileira de Política Internacional. Brasília. Vol. 41, 1998, pp. 5-17.         [ Links ]

21 Vigevani, Tullo, e Cepaluni, Gabriel – A Política Externa Brasileira: A Busca pela Autonomia, de Sarney a Lula. São Paulo: Editora UNESP, 2011, p. 99.         [ Links ]

22 Sean Burges mostra dados sobre os vínculos comerciais entre os países da região. Cf. Burges, Sean – «Bounded by the reality of trade: practical limits to a South American Region». In Cambridge Review of International Affairs. Vol. 18, N.º 3, outubro de 2005, pp. 437-454.         [ Links ]

23 Villa, Rafael D. – Brasil: Política Externa e a Agenda Democrática na América do Sul. Trabalho apresentado no IV Encontro Nacional da ABCP. Rio de Janeiro, PUC-Rio, 21-24 de julho de 2004.         [ Links ]

24 Trecho do Discurso de Posse de Lula da Silva – Resenha de Política Exterior do Brasil. Brasília: Ministério de Relações Exteriores. Vol. 30, N.º 92. 2003, pp. 13-20.

25 Hermann, Charles F. – «Changing course: when governments choose to redirect foreign policy». In International Studies Quaterly. Vol. 34, N.º 1, 1990, pp. 3-21.         [ Links ]

26 Trecho do Discurso de Posse do Chanceler Celso Amorim – Resenha de Política Exterior do Brasil. Vol. 30. N.º 92. Brasília: Ministério de Relações Exteriores, 2003, pp. 21-25.

27 Durante o Governo Cardoso a diplomacia brasileira já evitava assumir compromissos nesta área.

28 Documento do Itamaraty do período «autonomista» de Itamar Franco, «O repensar do Itamaraty e da política externa brasileira», citado por Sebastião do Rego Barros passa bem a percepção desta corrente. Cf. Barros, Sebastião do Rego – «O Brasil e a Rússia». In Fonseca Jr, Gélson, e Castro, S. H. Nabuco de (coord.) – Temas de Política Externa II – volume 2. Brasília: FUNAG/Editora Paz e Terra, 1994, pp. 117-136.         [ Links ]

29 Malamud e Castro fornecem elementos importantes para se pensar esta visão da integração. Cf. Malamud, Andrés, e Castro, Pablo – «Are regional blocs leading from nation states to global governance? A skeptical vision from Latin America». In Iberoamericana. Nordic Journal of Latin American and Caribbean Studies. Vol. XXXVI, N.º 1, 2007.         [ Links ]

30 Luiz Inácio Lula da Silva – Discurso de Posse de Lula da Silva – Resenha de Política Exterior do Brasil., p. 18.

31 Segundo Celso Amorim, «O Brasil sempre se pautou pela não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados [...]. Mas a não-intervenção não pode significar a falta de interesse. Ou dito de outra forma, o preceito da não-intervenção deve ser visto à luz de outro preceito, baseado na solidariedade: o da não indiferença.» Cf. Amorim, Celso – «Política externa do Governo Lula: os dois primeiros anos». In Análise de Conjuntura OPSA. Rio de Janeiro. N.º 4, 2005. [Consultado em: 6 de dezembro de 2011]. Disponível em: http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/discursos/discurso_detalhe3.asp?ID_DISCURSO=2655        [ Links ]

32 Burges, Sean – «Bounded by the reality of trade: practical limits to a South American region». In Cambridge Review of International Affairs. Vol. 18, N.º 3, outubro de 2005, pp. 437-454.         [ Links ]

33 Vigevani e Ramanzini apontam a defesa por parte do então secretário-geral do Itamaraty – Samuel P. Guimarães – de uma aliança argentina como base da integração sul-americana. Cf. Vigevani, Tullo, e Ramanzini Jr., Haroldo – «Pensamento brasileiro e integração regional». In Contexto Internacional. Rio de Janeiro, Vol. 32. N.º 2, 2010, pp. 437-487.         [ Links ]

34 O texto mencionado é Guimarães, Samuel Pinheiro – Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. Citado em Vigevani, Tullo, e Ramanzini Jr., Haroldo – «Pensamento brasileiro e integração regional», p. 24.

35 No artigo já mencionado, o chanceler faz um balanço dos dois primeiros anos da política externa do Governo de Lula, com muito destaque para a América do Sul. Em relação ao Mercosul, a maior preocupação apresentada refere-se a seus ganhos em relação a terceiros países da América do Sul. Cf. Amorim, Celso – «Política externa do Governo Lula: os dois primeiros anos».

36 O focem entrou em vigor em 2006 com um total inicial de US$100 milhões por ano, e contribuição brasileira de 70 por cento de seus recursos. Ver http://www.mercosur.int/focem/ [Consultado em: 21 de dezembro de 2011].

37 Este grupo é mais um mecanismo de articulação entre países emergentes que buscam uma revisão da ordem internacional. A partir de 2011 a África do Sul foi incorporada ao então BRICS.

38 Se a formação de consenso foi possível em diversos assuntos regionais, como mostra Andrés Malamud, o objetivo de atuar conjuntamente para fora da região não se confirmou. Não se vê votos conjuntos dos países da UNASUL em foros multilaterais. Cf. Malamud, Andrés– «Leadership without followers: the contested case for Brazilian power status». In Martins, E. R., e Saraiva, M. G. (eds.) – Brasil-União Europeia-América do Sul. Anos 2010-2020. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2009, pp. 126-148.         [ Links ]

39 Palavras de Pinheiro Guimarães em entrevista ao Jornal Valor Econômico Brasília, 14 de julho de 2008. [Consultado em: 6 de setembro de 2010]. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/embaixador -samuel-pinheiro-guimaraes-neto/view

40 A balança comercial seguiu mantendo um superavit em relação aos países vizinhos, com excepção da Bolívia, mantendo a exportação de manufaturados.

41 Neste contexto, as boas relações com a Venezuela marcadas pela coexistência entre sua entrada no Mercosul e a tolerância de sua liderança em outro mecanismo de cooperação – a alba – foi um bom exemplo.

42 As contribuições dos estados-membros foram em 2011 de US$305.600. Cf. http://www.mercosur.int/focem/

43 Hermann, Charles F. – «Changing course: when governments choose to redirect foreign policy».

44 Cason, Jeffrey, e Power, Thimoty J. – «Presidentialization, pluralization, and the rollback of Itamaraty: explaining change in Brazilian foreign policy making from Cardoso to Lula».