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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.42 Lisboa jun. 2014

 

CENTENÁRIO DA GRANDE GUERRA

As origens da Grande Guerra e o estatuto de Grande Potência: o caso da Alemanha

The origins of the Great War and the Great Power status: the German case

Patrícia Daehnhardt*

 

*Professora auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Lusíada de Lisboa e investigadora do IPRI-UNL. Doutorada em Relações Internacionais pela LSE, Reino Unido. Entre as suas publicações recentes contam-se «Germany, the EU and a transforming domesticpolitical arena». In Charlotte Bretherton, e Michael L. Mannin, (org.) – The Europeanization of European Politics (Palgrave Macmillan, 2013); e «Germany in the European Union». In Reuben Wong, e Christopher Hill, (org.) – National and European Foreign Policies: towards Europeanization? (Routledge, 2011).

 

RESUMO

O artigo aborda a temática das origens da Grande Guerra da perspetiva do estatuto de Grande Potência da Alemanha e analisa o conjunto de debates e de publicações mais recentes sobre o papel da Alemanha nas vésperas da Guerra. É analisado o debate histórico sobre a questão da culpabilização e o papel de Berlim, desde a análise convencional prevalecente na Alemanha de revisionismo das décadas de 1960 e 1970 que deu origem ao chamado primeiro ‘debate histórico’ na Alemanha Federal, até à interpretação prevalecente na Alemanha unificada relativamente ao argumento de que as ações da Alemanha contribuíram decisivamente para a eclosão do conflito. Mais recentemente parece emergir um novo consenso entre os historiadores de que a eclosão da guerra não tinha nada de inevitável e de que todas as potências contribuíram, por motivações divergentes, para o início da Grande Guerra.

Palavras-chave: I Guerra Mundial, Alemanha, «culpa de guerra», «debate histórico»/Historikerstreit

 

ABSTRACT

The article addresses the issue of the origins of the Great War from the perspetive of Germany’s great power status and analyzes the set of debates and more recent publications on the role of Germany on the eve of war. The historical debate on the issue of guilt and the role of Berlin is analyzed from the conventional analysis prevalent in Germany to the revisionism of the 1960s and 1970s that gave rise to the so-called first ‘historical debate’ in West Germany, up to the prevalent interpretation at the time of German unification that Germany’s actions had contributed decisively to the outbreak of the conflict. More recently a new consensus appears to be emerging among historians that the outbreak of war was nothing inevitable and that all the powers contributed with differing motivations for the start of the Great War.

Keywords: First World War, Germany; «war guilt», «historians’ debate»/Historikerstreit

 

Aniversários são catalisadores da memória histórica. 2014 proporciona logo três eventos importantes para recordar: o centenário do início da Primeira Guerra Mundial, os 75 anos do início da Segunda Guerra Mundial e os 25 anos da unificação da Alemanha. Mas provavelmente sobre nenhum outro acontecimento mundial foi publicado e discutido tanto como sobre a «Grande Guerra».1 É consensual entre historiadores e analistas que a Primeira Guerra Mundial foi a «catástrofe seminal do século XX», como George F. Kennan lhe chamou, e que dela decorrem implicações importantes que em parte explicam a ocorrência da Guerra de 1939-45, após duas décadas de ressentimentos mútuos entre as potências europeias enfraquecidas.2 Isso levou historiadores e politólogos a falarem de uma nova ‘Guerra dos Trinta Anos’ ou de uma ‘crise dos vinte anos’.3 Paradoxalmente o ‘longo’ século XIX fora marcado por uma prosperidade económica considerável – o que explica parte da surpresa de muitos pela eclosão da Guerra quando a estabilidade da ordem internacional, e europeia, em particular, parecia sustentar-se no florescimento da economia. O facto de a guerra inicialmente europeia se ter alastrado para fora da Europa terá sido, igualmente, subestimado.

Entre 1914 e 1918 viveram-se quatro anos de «guerra total»4, com cerca de 24 milhões de mortes, miséria generalizada e destruição total que mudou o mundo fundamentalmente. Na gestão de conflitos políticos e militares, a Primeira Guerra Mundial foi a primeira «guerra total», um conflito tecnológico-industrial em grande escala que desenvolveu e testou a utilização de armas novas, como tanques, aviões e submarinos e a arma química como a primeira arma de destruição maciça. Entre agosto e setembro de 1914, a mais poderosa e próspera parte do mundo, escreve a historiadora Margaret MacMillan, tinha iniciado um processo de autodestruição.5Foi uma guerra que poderia estar concluída no final do outono de 1914, quando se tornou claro que os planos de guerra de todas as Grandes Potências participantes falharam e que a continuação da guerra poria em marcha desenvolvimentos que todas elas tinham procurado evitar. Mas a Guerra perdurou durante quatro longos anos e quando terminou, em novembro de 1918, as potências europeias estavam enfraquecidas, com novos regimes e impérios coloniais debilitados.

O fim da guerra não só marcou o colapso dos regimes monárquicos das dinastias dos Hohenzollern, Habsburgos e Romanov, a Paz de Versalhes e o começo do fim do imperialismo europeu e do estatuto da Inglaterra e da França como duas potências globais; significou também a ascensão dos Estados Unidos como potência mundial e a revolução comunista na Rússia: a par com as fraquezas da Europa pós-imperial, os Estados Unidos e a Rússia soviética ascenderiam a potências extraeuropeias com projetos ideológicos universais opostos, a democracia e o comunismo. Por seu turno, a Alemanha imperial foi derrotada, e o regime político sucessor, a República de Weimar foi incapaz de travar a emergência, pouco mais de uma década depois, do nacional-socialismo, o terceiro projeto político de cariz universalista. São estes três Estados com as suas ideologias opostas, a democracia liberal norte-americana, o marxismo-leninismo soviético e o nacional-socialismo alemão, que iniciam uma competição e que se afirmariam como as principais potências do sistema europeu durante os próximos vinte anos, entrando em conflito, no espaço euro-atlântico e fora dele, numa segunda «guerra total», entre 1939 e 1945.6

Se estas foram as consequências sistémicas decorrentes da Primeira Guerra, com consequências relevantes para a definição do estatuto de Grandes Potências e a sua hierarquização sistémica, outra implicação significativa foi a questão da culpabilização pelas origens da Primeira Guerra Mundial. A problemática da «culpa de guerra» é uma temática que tem sido debatida ao longo de décadas por historiadores, e que reflete o modo como as potências europeias definem as perceções que têm umas das outras. Por outras palavras, não foram apenas as consequências geopolíticas da guerra e as cláusulas dos tratados de paz impostas pelos vencedores que definiriam o futuro relacionamento entre a Alemanha, Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos; interpretações justapostas sobre as causas da Guerra, a classificação do papel de cada um dos intervenientes e a identificação dos culpados pela Guerra e daqueles que para ela foram arrastados – a culpa versus a passividade e a inocência – continuam a influenciar ainda hoje o debate sobre as causas da Primeira Guerra Mundial.

Este artigo, não sendo escrito por uma historiadora e não tendo a autora realizado investigação em arquivos para o efeito, tem como objetivo analisar o conjunto de debates e de publicações mais recentes sobre o papel da Alemanha em inícios da Primeira Guerra Mundial. A primeira secção problematiza a temática do ‘estatuto’ de uma Grande Potência; a segunda secção analisa o debate histórico sobre a questão da culpabilização e o papel da Alemanha, desde a análise convencional prevalente na Alemanha até ao revisionismo das décadas de 1960 e 1970 que deu origem ao chamado primeiro ‘debate histórico’ na Alemanha Federal, até à interpretação prevalente na Alemanha unificada.

 

A política europeia da Alemanha: ascensão ao estatuto de Grande Potência

Em inícios do século XX, como em tantas épocas da história europeia, a questão do estatuto de poder de Grande Potência foi um dos catalisadores para a atuação política dos Estados. A ambição de confirmação de um novo estatuto de poder ou o receio de perda do estatuto adquirido motivou os principais atores. No século XIX, o historiador alemão Leopold von Ranke definiu uma Grande Potência como «aquela que consegue assegurar a sua existência contra todas as outras, mesmo quando estas estão unidas. (...) Essa Grande Potência é tão potente que não necessita de nenhuma aliança, dependendo apenas dela própria»7. No verão de 1914, a Alemanha parecia segura da sua capacidade de autossuficiência, da dispensabilidade de alianças e da sua força militar para contrariar alianças contra ela criadas. Economicamente, a Alemanha estava a desenvolver uma forte capacidade industrial e nas ciências naturais e humanas assim como no domínio da cultura, a Alemanha era um dos países europeus mais modernos. Como afirmara o historiador Fritz Stern, o século XX poderia ter sido «um século alemão».8

Em tempo de paz, o estatuto de Grande Potência pressupunha a aceitação de deveres e responsabilidade pela estabilidade da ordem europeia e mundial e o reconhecimento desse estatuto pelas outras potências. Segundo a definição de Hedley Bull, o primeiro atributo de Grande Potência implica a aceitação de direitos e deveres e um sentido de responsabilidade pela estabilidade da ordem do sistema internacional, da segurança e paz internacionais.9 A França napoleónica e a Alemanha nacional-socialista, por exemplo, recusaram essa responsabilidade internacional ao adotarem um revisionismo auto destrutivo. O segundo atributo de uma Grande Potência é o reconhecimento do estatuto de Grande Potência pelos outros atores políticos, ou seja, a legitimação desse estatuto no sistema internacional. O concerto europeu do século XIX, por exemplo, foi a institucionalização de um sistema internacional assente na aceitação da responsabilidade coletiva de todas as Grandes Potências pela segurança europeia, articulado com um princípio de intervenção em caso de conflito para a reposição da ordem do status quo ante.

Em 1914, a Alemanha tinha feito o percurso de ascensão de Grande Potência mas o reconhecimento desse novo estatuto pelas outras potências oscilava entre a rejeição do mesmo, por parte da França, e a necessidade de acomodação do novo elemento de poder, por parte da Inglaterra. Para além das potenciais alterações de poder na Europa, esta indefinição no reconhecimento do novo estatuto à Alemanha tinha a ver com a projeção desta no Próximo Oriente e no norte de África, o que refletia o aumento do seu poder: Berlim queria ter também um ‘lugar ao sol’, participar na mesa das Grandes Potências e obter uma fatia maior dos espólios dos conflitos. Inevitavelmente, esta alteração do estatuto de poder tinha implicações no estatuto das outras potências europeias, a começar pela Inglaterra. Na sua ambição de tornar a Alemanha uma potência mundial que alcançasse um estatuto de poder superior ao da Inglaterra, o imperador Guilherme II ordenou a construção de uma moderna frota marítima sob o comando do Almirante von Tirpitz que poderia vir a rivalizar diretamente com a frota inglesa e destronar a Inglaterra como detentora da maior frota marítima do mundo.10 Enquanto que para os alemães o rápido crescimento da marinha imperial era um marco vital para consolidar a sua posição como potência mundial, bem como uma alavanca útil para induzir a Inglaterra a aceitar este ‘new kid on the block’, os ingleses viam a nova política imperial alemã como uma ameaça ao estatuto de grande império britânico. Por outro lado, a não renovação do tratado de contrassegurança com a Rússia, significou para esta que a Alemanha estava a opor-se aos interesses russos, o que levou São Petersburgo a voltar-se para o inimigo alemão, a França, com a qual veio assinar uma aliança militar em 1892. O aumento do seu poder material arrastaria consigo um aumento das formas de projeção desse mesmo poder, mudando a distribuição de poder favoravelmente para a Alemanha, empenhada no aumento significativo da produção de carvão e de aço, aproximando-se do nível de produção britânico.

Quando em 2 de agosto de 1914 as tropas alemãs ocuparam o Luxemburgo, estado neutro, e dois dias depois, em 4 de agosto, invadiram a Bélgica, igualmente neutra, a caminho da França, a Alemanha deparou-se com uma coligação oposta de todas as potências europeias – como em 1761 quando Frederico o Grande viu-se rodeado por uma coligação europeia antiprussiana. Se se partir do pressuposto de que a hostilização por parte dos seus Estados vizinhos à pretensão de ascensão a Grande Potência e logo de alteração do status quo na Europa era previsível, em 1914 a Alemanha não atuou como Grande Potência responsável: localizada no centro da Europa cabia-lhe uma responsabilidade acrescida pela estabilidade do continente europeu, o que implicava garantir que pelo menos uma das Grandes Potências europeias – não a enfraquecida Áustria-Hungria – aceitasse coligar-se com a Alemanha. Uma atitude menos responsável por parte da Áustria ou da Sérvia não teria produzido implicações tão significativas como a ação da Alemanha que, conhecendo os riscos envolvidos de uma Guerra com a Rússia e a França, optou por subjugar o interesse da paz e da estabilidade na Europa aos seus interesses imediatos – os da consolidação de um estatuto de Grande Potência através de uma Guerra. Na interpretação do historiador Ludwig Dehio, a busca em vão da Alemanha de Guilherme II de quebrar a hegemonia mundial britânica e afirmar a hegemonia alemã como definidora do novo equilíbrio de poder na Europa precipitou a Guerra, quando a Alemanha iniciou uma «Guerra defensiva contra a Inglaterra e a sua grande coligação».11

A derrota em 1918 evidenciou que, apesar de ter força suficiente para combater uma potência, a Alemanha seria sempre demasiadamente fraca para combater todas as outras ao mesmo tempo. A complexidade da posição da Alemanha no centro da Europa e a forma como os Estados vizinhos responderam corresponde, historicamente, ao que se denomina de ‘questão alemã’: o dilema que resultava ou da acentuada fraqueza, ou da excessiva força do Estado alemão, e da dificuldade de se criar um sistema de equilíbrio que contivesse esta tensão constante. No primeiro caso, a fraqueza tornava o Estado alemão vulnerável a pressões externas; no segundo, a Alemanha tornava-se demasiadamente forte para se manter uma potência europeia equilibrada, com fronteiras estáveis e uma política externa de uma Grande Potência responsável. Por outro lado, a forma como as potências vencedoras lidaram com a Alemanha, em 1919, a aplicação de elevadas reparações de guerra e a ostracização política no sistema internacional, contribuiu para as debilidade do novo regime democrático da República de Weimar e facilitou a emergência de uma Alemanha revisionista, que, a partir de 1933, seguiu o objetivo de alteração do status quo precário do período entre as duas guerras através de uma política expansionista de germanização da Europa. Como afirmou recentemente Joseph Nye,

«a Primeira Guerra Mundial não era inevitável. Tornou-se mais provável pelo poder emergente da Alemanha e o receio que isto provocou na Inglaterra. Mas também se tornou mais provável pela resposta receosa da Alemanha face ao poder crescente da Rússia, bem como uma miríade de outros fatores, incluindo erros humanos.»12

 

A questão da ‘culpa de guerra’

A questão sobre a culpabilização da Guerra não apenas permanece controversa até hoje, como continua a produzir novos resultados de investigação histórica.13 Várias são as questões levantadas, como por exemplo: As ações da Alemanha foram defensivas ou ofensivas? Em 1914 a Alemanha pretendeu recorrer a uma Guerra preventiva? Terão os decisores políticos alemães pretendido resolver problemas políticos internos do país através do recurso a uma Guerra europeia?14

Pelo Artigo 231º do Tratado de Paz de Versalhes, a Alemanha era moralmente responsável pela Guerra e foi obrigada a pesadas reparações de guerra. 15Esta cláusula de culpabilidade pela Guerra foi rejeitada pela maior parte dos alemães que a consideravam uma humilhação, e que pouco mais de uma década mais tarde seria aproveitada para a emergência do nacional-socialismo. Apesar das pesadas reparações às quais fora obrigada a Alemanha permanecia um ator importante na política europeia.16Enquanto que tinha tido perdas territoriais importantes e estava condicionada pelas restrições do Tratado de Versalhes, ela permanecia não apenas o maior Estado para além da União Soviética, mas em termos relativos era ainda mais forte do que antes de 1914.17

A análise do papel da Alemanha na I Guerra Mundial tem produzido diferentes interpretações, num conjunto de ondas de justificações e críticas, que perduram até hoje. Numa primeira onda, autores alemães contestaram a leitura do artigo 231º e afirmaram que a Alemanha fez parte de um grupo de países europeus que consciente ou inconscientemente se envolveram no conflito. Durante a década de 1920 a Chancelaria alemã e o ministério dos negócios estrangeiros prosseguiram uma campanha política com o objetivo de refutar a tese da responsabilidade da Alemanha pela Guerra, através do apoio à publicação de livros e revistas assim como a centros de investigação criados para o efeito. Segundo a interpretação oficial da República de Weimar a Alemanha não podia ser culpabilizada pela eclosão da Guerra porque a política de reparações de Guerra, estipuladas pelo Tratado de Versalhes foi imposta e era injusta. Esta ação foi bem-sucedida, não apenas na própria Alemanha, convencida da sua inocência, mas também em parte no estrangeiro. Nas suas memórias, o antigo primeiro-ministro inglês David Lloyd George escrevia «As nações deslizaram para dentro do caldeirão fervente da guerra sem qualquer traço de apreensão ou desânimo»18. Segundo esta leitura, dominante na altura, a Guerra ocorreu de forma acidental, tendo a bipolarização de alianças aberto o caminho para a Guerra: a rivalidade entre a Tríplice Entente, composta pela França, Rússia e Inglaterra, e a Tríplice Aliança entre a Alemanha, Áustria-Hungria e a Itália supostamente arrastaram as Grandes Potências para a Guerra. Historiadores alemães como Gerhard Ritter, defendiam que não se tratou de um plano sistemático previamente elaborado mas antes de erros e uma falta de aptidão política que deixaram o conflito escalar assim como uma liderança militar pouco sancionada pela classe política que arrastou a Alemanha para o conflito.19

Quanto ao papel das restantes potências europeias, a Inglaterra tão pouco cumpriu o seu papel de potência responsável do sistema internacional, que seria impedir a ascensão de uma nova potência hegemónica e manter o equilíbrio. O que significava que a Inglaterra poderia ter-se aliado à Alemanha: não tinha interesses territoriais na Europa e estava ligada à casa real alemã dos Hohenzollern por laços familiares; por seu turno, a Alemanha não tinha (ainda) interesses coloniais que rivalizavam com os interesses coloniais ingleses. Como afirma Margaret MacMillan, «uma parceria entre a maior potência continental europeia e a maior potência naval do mundo fazia todo o tipo de sentidos, mas desta vez cabeças mais sábias não prevaleceram»20. Perante tal improbabilidade, a crise de julho poderia ter sido contida se o ministro dos negócios estrangeiros britânico, Sir Edward Grey tivesse emitido um sério aviso à Alemanha de que a invasão da França através da Bélgica levaria a uma intervenção britânica, o que também não aconteceu.21Sobre as motivações da França, o historiador Stefan Schmidt sugere que o que orientou o pensamento francês foi o fortalecimento da aliança franco-russa, uma vez que implicava o apoio francês à política externa russa.22Por seu turno, a Rússia estava interessada em adquirir os estreitos turcos e, especialmente, assegurar a posse de Constantinopla; para tal, a crise de julho de 1914 e a possibilidade de uma guerra europeia não era de todo inconveniente, para o governo de São Petersburgo, para alcançar tais objetivos contra o império otomano, sugere o historiador americano Sean McMeekin.23 Para além disso, a decisão de iniciar a mobilização parcial das suas tropas pouco depois do eclodir da crise não contribuiu para uma solução pacífica para a crise.

A interpretação do papel da Alemanha na Grande Guerra – uma Grande Potência que atuou na defesa dos seus interesses como as outras potências europeias -encontrou suporte na escola que defendia o Primat der Aussenpolitk, ou seja, a primazia da política externa e que considerava que as estruturas domésticas de um Estado eram fortemente condicionadas por pressões externas, pela localização geográfica do país e pelas escolhas de alianças do mesmo. Leopold von Ranke e Otto Hinze desenvolveram as suas análises históricas de acordo com este princípio. Gustav Stresemann, ministro dos negócios estrangeiros da República de Weimar foi influenciado por essa leitura. Após a unificação alemã em 1990 historiadores como Gregor Schollgen defendiam a relevância de fatores geoestratégicos e o primado da política externa como essencial na definição da política externa alemã pós-unificação.24Por seu turno, outros, como, por exemplo, o historiador Arno J. Mayer consideravam que foram antes as políticas internas das potências europeias que explicam a eclosão da Primeira Guerra Mundial, e logo, definem o primado da política interna como o fator determinante.25

 

As teses revisionistas de Fritz Fischer

Esta interpretação do papel da Alemanha na Primeira Guerra mundial e a ideia do Primat der Aussenpolitik foi duramente contestada pelo historiador alemão Fritz Fischer que, em 1961, apresentou uma interpretação revisionista da participação da Alemanha na Primeira Guerra Mundial, argumentando que em vez de ser arrastado para a guerra, o Império Alemão iniciou a guerra deliberadamente para confirmar o estatuto de potência mundial. No seu livro Griff nach der Weltmacht Fischer atribuiu as causas da Guerra às posições dos decisores políticos do império alemão, conscientes das consequências bélicas das suas ações: «a liderança política alemã tem uma parte significativa da responsabilidade histórica pela eclosão da guerra»26. Poucos anos mais tarde, em 1969, Fischer reforçou o seu argumento em Guerra das Ilusões afirmando que «a liderança política alemã tem a parte significativa da responsabilidade histórica». Fischer baseou-se em arquivos históricos segundo os quais o chanceler Bethmann Hollweg, em julho de 1914, estaria com uma «disposição bélica», e que o general von Moltke teria exigido ao ministro dos negócios estrangeiros, desde inícios de junho de 1914, a possibilidade de se iniciar uma ‘guerra preventiva’, assim como um conjunto de outras correspondências e contactos27o que, na perspetiva de Fischer, evidenciavam o instinto imperialista alemão que levou o Reich a enveredar sistematicamente para uma política agressiva e expansionista. Ligado a esta ambição no palco externo estava também a preocupação, segundo Fischer, de ‘distrair’ de problemas políticos e sociais internos.

Fischer não só afirmou que a Alemanha teve a maior parte da responsabilidade pela eclosão da guerra, mas também que os lideres políticos tinham planeado a guerra e que, portanto, os objetivos eram objetivos expansionistas, e, por isso, semelhantes aos de Adolf Hitler e do nacional-socialismo alemão. Por outras palavras, a implicação da tese de Fischer foi a da linha da continuidade histórica: o nacional-socialismo entre 1933 e 1945 já não podia ser interpretado como uma catástrofe alemã indivídual, mas representava antes o culminar de incompatibilidade da Alemanha com o liberalismo e a democracia ocidental. Isto transformou o significado da tese do Sonderweg (caminho particular) da história alemã: se até então o Sonderweg refletia «a afirmação orgulhosa de diferenças entre a Alemanha e o Ocidente, tornou-se [agora] um triste reflexo das aberrações da Alemanha face ao Ocidente».28O ponto extremo dessas aberrações foi, naturalmente, o nacional-socialismo, quando as questões de identidade alemã, e caminho particular foram exploradas ao máximo. Mas para Fischer prevalecia, até 1945, uma linha de continuidade na política externa alemã, na qual se deveria inserir as pretensões hegemónicas da Alemanha.

As teses de Fischer geraram uma forte controvérsia, que ficou conhecida por debate histórico (Historikerstreit), o primeiro deste género e ao qual se seguiria um segundo na década de 1980. Dum lado encontravam-se os historiadores da linha conservadora como Gerhard Ritter, Hans Herzfeld, Walther Hubatsch, Egmont Zechlin e Erwin Hölzle que rejeitavam a atribuição da culpa de Guerra unicamente ou maioritariamente à Alemanha; do outro lado, Fritz Fischer, Imanuel Geiss e Helmut Böhme que assumiam uma posição assertiva quanto à questão da culpabilidade pela I Guerra e levantavam interrogações sobre a continuidade entre as elites do Império de Guilherme II e as do Terceiro Reich.29Até então prevalecera o monopólio da interpretação conservadora. Mas as grandes controvérsias políticas e históricas nunca acontecem fora do contexto sociopolítico em que se inserem. Na década de 1960 a República Federal da Alemanha iniciava um período de emancipação política interna, de liberalização da cultura política e de advento da Ostpolitik do Chanceler Willy Brandt – a abertura político-diplomática, económica, social e cultural à RDA e ao leste europeu. Rudolf Augstein, editor do semanário Der Spiegel afirmava: «Ambas as guerras mundiais foram guerras pela hegemonia alemã na Europa, pela obtenção do primeiro lugar no mundo. A Alemanha perdeu conscientemente arriscou e perdeu exausta»30. Este debate histórico perdurou na RFA até à década de 1980, quando emergiu um segundo debate histórico. Neste segundo Historikerstreit o historiador conservador Ernst Nolte defendeu a legitimidade de comparação histórica entre o nacional-socialismo e o comunismo, argumentando que o primeiro não teria acontecido sem o segundo, ou seja, que o nacional-socialismo fora uma resposta à revolução bolchevique. Contra estas teses o sociólogo Jürgen Habermas defendeu a singularidade do período do Terceiro Reich e a impossibilidade da sua comparação com outros acontecimentos históricos.31

 

O centenário da Grande Guerra: a continuação do debate

Aquando da unificação da Alemanha em 1990 existiu um consenso relativamente ao argumento de que as ações da Alemanha tinham contribuído decisivamente para a eclosão do conflito e que era à Alemanha que cabia a maior parte da responsabilidade pela eclosão da guerra. A nova ortodoxia era a da aceitação da versão moderada de Fischer, que a Alemanha tinha uma parte importante da culpa, motivada principalmente por questões de estatuto de poder no sistema europeu, mais do que por considerações de ordem política interna. Ou seja, fatores estratégicos condicionaram a ação da Alemanha e não teorias sobre as causas de política interna alemã da Guerra. A historiadora Annika Mombauer argumenta que o que era menos claro eram quais poderiam ter sido as motivações para a política externa agressiva.32 Mais recentemente emergiu um consenso entre os historiadores que a eclosão da guerra não tinha sido inevitável e que todas as potências contribuíram, por motivações divergentes, para o início da Guerra. Para o historiador Brendan Simms, da Universidade de Cambridge os objetivos da Alemanha eram defensivos e não são explicáveis por ambições territoriais: a Alemanha recorreu a uma guerra preventiva por receio da Rússia.33

Christopher Clark, historiador australiano igualmente professor na Universidade de Cambridge posicionou-se recentemente contra o argumento da singularização da Alemanha como principal causadora da Primeira Guerra Mundial. Em The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, publicado em 2012, Clark demonstra que os decisores políticos da Tríplice Aliança e da Tríplice Entente como que sonambularam para o conflito, «vigilantes, mas cegos, atormentados por sonhos, mas incapazes de reconhecer a realidade dos horrores que em breve iriam trazer ao mundo»34. Nesta análise, Clark aproxima-se da leitura do antigo primeiro-ministro britânico Lloyd George que afirmou que, apesar de ninguém querer a guerra, em 1914, os governos europeus como que ‘escorregaram’ nela. Clark refere como é que o dilema de segurança, na origem de várias situações de conflito levou os decisores franceses a considerarem as suas ações meramente defensivas, ao passo que as da Alemanha, cuja posição na balança de poder militar estava, segundo os franceses, enfraquecida, eram vistas como potencialmente agressivas. «Em nenhum momento os franceses ou os estrategistas russos envolvidos planearam lançar uma guerra de agressão contra as potências centrais. (...) Mas é impressionante, mesmo assim», refere Clark,

«como é que os decisores políticos pensaram tão pouco nos efeitos que as suas ações provavelmente iriam ter sobre a Alemanha. Os decisores políticos franceses estavam cientes da forma em que o equilíbrio da ameaça militar se havia inclinado contra a Alemanha (...). Mas como eles viam suas próprias ações como inteiramente defensivas e atribuíam intenções agressivas unicamente ao inimigo, os principais decisores políticos nunca equacionaram a sério a possibilidade de que as medidas articuladas por eles poderiam estar a diminuir as opções disponíveis para Berlim»35.

Segundo Clark, a França apostou tudo na sua aliança com a Rússia (a Rússia foi a primeira a mobilizar as tropas), até porque os sinais vindos de Inglaterra eram ambíguos. No seio da aliança russo-francesa partia-se do pressuposto de que iria ocorrer uma crise nos Balcãs, independentemente de quem a começava.

Citando novas fontes, Clark argumenta que a Alemanha não foi a principal responsável pela Guerra: «não se deve menosprezar a paranoia militar e imperialista dos políticos austríacos e alemães (…). Mas os alemães não eram os únicos imperialistas e os únicos a sucumbir à paranoia»36. Na perspetiva deste historiador, a Alemanha sentiu-se cercada pela Tríplice Entente entre a Grã-Bretanha, França e Rússia, cujo potencial militar se tornara cada vez maior. A Alemanha e a Áustria-Hungria não foram mais responsáveis pela eclosão da guerra do que a Rússia ou a França, que viram na crise de 28 de junho – o assassinato do arquiduque austríaco Francisco Ferdinando, sucessor ao trono austríaco - a oportunidade para consolidar a sua aliança e de iniciarem uma guerra preventiva. Contra a ideia da bipolarização de alianças que contrapôs a Tríplice Entente à Tríplice Aliança, Clark argumenta que existiu «uma persistente incerteza em todos os quadrantes sobre as intenções tanto de amigos como de potenciais inimigos» e que «se o tecido das alianças tivesse parecido mais confiável e duradouro, os principais decisores ter-se-iam sentido sob menos pressão para agir como agiram».37E se não tivesse ocorrido o assassinato do arquiduque, não era inconcebível pensar-se que «a Tríplice Entente poderia não ter sobrevivido a resolução da crise balcânica e o desanuviamento anglo-alemão poderia ter-se transformado em algo mais substancial».38Clark considera mesmo a identificação de um culpado desnecessária e de pouca utilidade. «É realmente necessário identificar um único Estado culpado ou estabelecer um ranking de Estados de acordo com a sua quota de responsabilidade?»39. Para o historiador, «o início da Guerra em 1914 não é um drama de Agatha Christie no fim do qual descobrimos o culpado à volta de um corpo», mas antes «uma tragédia, não um crime».40Clark afirma que houve na Europa em 1914 um patriotismo defensivo, mas que «nenhuma das Grandes Potências estava a considerar nessa altura iniciar uma Guerra de agressão contra os seus vizinhos»41.

O argumento de Clark de que a Alemanha é responsável pela Grande Guerra, mas não mais do que as outras potências europeias, opondo-se assim à tese defendida por Fritz Fischer na década de 1960 encontrou, naturalmente, eco na Alemanha, que vê neste revisionismo de Fischer a possibilidade de arquivar a tese da responsabilidade primordial da Alemanha. O cientista político alemão Herfried Münkler, da Universidade de Humboldt em Berlim, argumentou recentemente de forma semelhante à de Christopher Clark. Na Alemanha, segundo Münkler, a Primeira Guerra Mundial foi durante muito tempo «considerada apenas como um prelúdio da Segunda Guerra Mundial, como ponto de partida para uma narrativa de arrogância e culpa alemãs removido da análise teórica política» que «deve novamente ser tratada como um acontecimento autónomo e complexo».42Münkler defende que a guerra não foi inevitável e que poderia ter sido evitada se tivesse havido de todos os lados «mais discernimento e visão analítica».43

«A Alemanha foi no verão de 1914 um dos principais agressores - mas não estava sozinha nesta responsabilidade; quanto mais se investiga os acontecimentos complexos nos vários países antes da Guerra, mais a responsabilidade pela guerra encontra-se partilhada entre todas as potências europeias» e não se deve focar exclusivamente sobre «a potência inquieta do império guilhermino».44

Segundo Münkler, os franceses, temiam a marginalização da França, os russos estavam preocupados com o impacto da sua perda de influência depois da derrota contra o Japão em 1905, e a Áustria-Hungria receava a perda do seu estatuto de Grande Potência. Também no Reino Unido prevaleceu o medo do declínio, enquanto que os alemães tinham uma «obsessão de cerco». À semelhança de Clark, ele vê «uma lição de política (...), na qual a interação entre o medo e a imprudência, a arrogância e a autoconfiança ilimitada tornou a defesa racional de interesses sob tais circunstâncias «quase impossível» e levou a um caminho do qual já não havia retorno possível».45Segundo Münkler havia ainda divergências internas quanto ao interesse alemão em envolver-se numa Guerra. «Dos três atores cruciais - o Imperador, o Chanceler e o chefe do Estado Maior - apenas Helmuth von Moltke teria pretendido travar esta guerra, afirmando que, se fosse esse o objetivo, então ela deveria ser travada em breve.»46Os militares, contudo, gozavam de grande influência junto de Guilherme II e, com um poder cujo exercício não dependia nem do Chanceler nem do parlamento, e com o gradual distanciamento do imperador, no decorrer da Guerra, do centro de decisão político, um desequilíbrio considerável entre o poder politico e o poder militar, segundo Münkler, ajuda e explicar a posição alemã de perpetuar a guerra47.

Quanto às razões que levaram à eclosão da Guerra, Münkler refere uma «estratégia de duplo cerco»: por um lado, o «cerco da monarquia do Danúbio pela Liga dos Balcãs, sob proteção russa» e por outro, o «cerco da Alemanha pela França e pela Rússia, com a Inglaterra tendencialmente do lado franco-russo». Esta constelação aguçou a atmosfera ainda mais e «tinha que inevitavelmente levar à perspetiva de tempo limitado, o que tornaria um ato irracional da política alemã mais provável, como aconteceu em julho de 1914», escreve Münkler. Quanto à existência de planos para uma Guerra preventiva, Münkler afirma que faziam parte da definição da estratégia de um Estado na altura. A Alemanha «não foi de forma alguma a única potência que agiu de forma imperialista na Europa; isto aplica-se também aos adversários do império alemão.» O historiador alemão Sönke Neitzel, professor de história internacional na London School of Economics, argumentou que apesar de o imperador Guilherme II ter sido uma figura menos central do que o Chanceler Bethmann Hollweg analisou corretamente a situação quando considerou que a partir de 1907 a aproximação entre a Inglaterra e a Rússia sugeria uma política de cerco, lentamente em curso.48Que a crise na Sérbia se iria alastrar tornou-se evidente quando, em 26 de julho de 1914 a Rússia, que sempre se viu como potência protetora dos eslavos, nos Balcãs mobiliza as tropas. Estas interpretações mais recentes não rejeitam evidentemente a tese da responsabilidade da Alemanha. Mas não individualizam o caso alemão e não estabelecem um nexo de causalidade entre as ambições do Segundo e do Terceiro Reich alemães, como Fischer tinha feito. As análises tendem a basear-se antes na investigação arquivística que sugere que todas as Grandes Potências da altura, a França, a Rússia, a Inglaterra e a Alemanha, mas também a Áustria-Hungria e a Sérvia tinham não apenas objetivos concretos quanto à hipótese de uma Guerra como tinham planos de contingência. Nesse sentido, passados 100 anos do início da Guerra, as explicações da causa da Guerra centram-se novamente na tese de Lloyd George de que as potências foram arrastadas para o conflito, ou, como recentemente afirmou Christopher Clark, sonambularam para a Guerra.

 

2014 e 1914: as limitações dos paralelismos históricos

Entre a unificação da Alemanha em 1871 e a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914 a globalização económica em curso entre as potências europeias parecia conduzir a um mundo mais interdependente e logo mais pacífico, como argumentou optimisticamente Norman Angell, mas a globalização produziu uma rápida mudança no equilíbrio das capacidades militares-industriais das potências europeias.49O deflagrar da Primeira Guerra Mundial lembra-nos como é que uma ordem mundial aparentemente estável, assente no suposto ‘século da paz’ após o Congresso de Viena de 1815 pôde entrar em colapso num espaço temporal curto e devido a um acontecimento aparentemente pouco significativo.

Perante a pluralidade e multicausalidade de fatores que explicam a eclosão da Primeira Guerra Mundial talvez o da crença na impossibilidade de ocorrência de um conflito entre potências europeias que viveram o século XIX como o século da paz, e um fin de siècle de forte desenvolvimento cultural e globalização económica, ligado à excessiva fraqueza dos decisores políticos para decidirem estrategicamente são tudo fatores que, cem anos depois, nos devem alertar, perante os desenvolvimentos mais recentes no espaço euro-atlântico. Quando está por decidir o futuro político e estratégico de um país relevante como a Ucrânia, que, perante a política agressiva da Rússia tem que redefinir a sua política externa e de segurança e quando a Europa, os Estados Unidos (e a Rússia) têm de redefinir a futura ordem de segurança do espaço euro-atlântico, os festejos do centenário da Grande Guerra podem ser catalisadores da memória histórica, e dos eventos que servem como dissuasores de potenciais reproduções. Ao mesmo tempo, e inevitavelmente, a natureza humana procura recorrer às analogias históricas, como forma de antecipar possíveis mudanças. Mas como afirmou Joseph Nye, «analogias históricas, embora, por vezes, úteis para fins de precaução, tornam-se perigosas quando transmitem uma sensação de inevitabilidade histórica»50.

Para além do contexto da Grande Guerra, a Alemanha é o país que ao longo de séculos constituiu o centro das atenções europeias, pela sua centralidade estratégica, capacidade económica e político-militar, constituindo, como afirma Brendan Simms, «o cockpit da luta ideológica europeia», desde os tempos do Sacro Império Romano-Germânico, passando pela Guerra dos Trinta Anos, até ao fim da Guerra Fria, cujo epicentro de antagonismo ideológico se encontrava em Berlim.51A Alemanha é hoje novamente uma Grande Potência na Europa central, e permanecem muitos os desafios que emergem da sua posição central e no centro; estes desafios encontram-se contextualizados num sistema de alianças europeias e transatlântico sólido. Por isso, a responsabilidade de uma Grande Potência implica que, como a história lhe indica, a melhor forma de responder a esses desafios será em estreita cooperação com os parceiros dessas mesmas alianças.

 

Data de receção: 5 de Maio de 2014

Data de aprovação: 4 de Junho de 2014

 

Notas

1As publicações mais recentes incluem Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914. Nova Iorque: Harper Perennial, 2014;         [ Links ] SIMMS, Brendan – Europe: The Struggle for Supremacy, 1453 to the Present. Londres: Allen Lane, Penguin Books, 2014;         [ Links ] Macmillan, Margaret – The War that Ended Peace: How Europe abandoned peace for the First World War. Londres: Profile Books, 2013;         [ Links ] Levy, Jack S. e Vasquez, John A., eds. – The Outbreak of the First World War: Structure, Politics, and Decision-Making. Cambridge: Cambridge University Press, 2014;         [ Links ] Mcmeekin, Sean – July 1914: Countdown to war. Londres: Icon, 2014.         [ Links ] Publicações em alemão incluem Münkler, Herfried – Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918. Berlim: Rowohlt Berlin, 2013; Mombauer, Annika – Die Julikrise. Europas Weg in den Ersten Weltkrieg. Munique, 2014.         [ Links ]

2George F. Kennan descreveu a Primeira Guerra Mundial como «the seminal catastrophe of the century-the event which… lay at the heart of the failure and decline of this Western civilization». Kennan, George F. – The Decline of Bismarck’s European Order:Franco-Russian Relations 1875-1890. Princeton University Press, 1981.         [ Links ] Ver também Fromkin, David – Europe’s Last Summer: Who Started the Great War in 1914?. Vintage, 2005.         [ Links ]

3Carr, E.H. – The Twenty Years’ Crisis 1919-1939. Londres e Nova Iorque: MacMillan and Company Limited: St. Martin’s Press, 1939.         [ Links ]

4Ver Chickering, Roger e Forster, Stig (eds.) – Great War, Total War Combat and Mobilization on the Western Front, 1914–1918. Cambridge: Cambridge University Press, 2006.         [ Links ] A “totalidade” da guerra, é definida como correspondendo à mobilização de todos os recursos humanos e materiais disponíveis implicando o fim da distinção entre militares e civis. A “guerra total” aparece como a contrapartida inevitável da industrialização, do progresso tecnológico e da cultura de massa.

5Macmillan, Margaret – «1914 and 2014: should we be worried?», International Affairs, Londres: Vol. 90, Nº 1, 2014, p. 59.         [ Links ]

6Ver Schweller, Randall – Deadly Imbalances: Tripolarity and Hitler’s Strategy of World Conquest. Nova Iorque: Columbia University Press, 1998.         [ Links ]

7Laue, Theodor von – Leopold von Ranke. The Formative Years. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 1950, p. 202.         [ Links ]

8 Citado por Wolfgang Thierse, então presidente do Bundestag alemão, por ocasião da entrega do Prémio Nacional da Fundação Nacional da Alemanha, Fundação para a Alemanha e na Europa, a Fritz Stern, em 17 de junho de 2005, em Berlim. Consultado em: 15 de maio de 2014. Disponível em: http://www.bundestag.de/bundestag/praesidium/reden/2005/008/244968. Sobre o dinamismo cultural vivido na Europa nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, ver Illies, Florian – 1913: Der Sommer des Jahrhunderts. Frankfurt am Main: S. Fischer, 2012.

9 Bull, Hedley – The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics, Nova Iorque: Columbia University Press, 1977.         [ Links ]

10 Esta estratégia, contudo, era oposta à seguida pelo Chanceler Otto von Bismarck que tinha levado a Alemanha a travar três guerras, com a Dinamarca, a Austria-Hungria e a França, para alcançar a unificação alemã, unindo 25 entidades que constituiram o ‘Segundo Reich’ em 1871. Uma vez alcançado esse objetivo, Bismarck seguiu, até 1890, uma política externa de equilíbrio, na qual as alianças eram vistas como um “pesadelo das coligações” e onde o objetivo, para além de evitar alianças demasiado comprometedoras e limitadoras da margem de manobra política do Estado recém-unificado era isolar a França e evitar que ela liderasse uma coligação contra a Alemanha. Através da unificação o novo Reich tinha abalado a balança de poder europeia e Bismarck tinha consciência disso. Por isso, a estratégia de Bismarck visava não apenas evitar alianças antialemãs, como também conter a própria Alemanha que atuaria como uma potência ‘saturada’, sem pretensões expansionistas e empenhada em manter o equilíbrio geopolítico europeu. Na perspetiva de Bismarck, isto pressupunha uma política de alianças que isolasse diplomaticamente a França. A Dupla Aliança, em 1879 com a Austria-Hungria, que obrigava os dois Estados a ajudar-se um ao outro no caso de uma agressão russa foi substituída, dois anos depois, pela Liga dos Três Imperadores, em 1881, entre a Alemanha, a Austria-Hungria e a Rússia, garantindo a neutralidade benevolente em caso de guerra contra um quarto Estado – a França. Pelo Tratado de Contra-Segurança, em 1887, assinado depois do colapso da Liga dos Três Imperadores devido às rivalidades austro-russas nos Balcãs, a Alemanha e a Rússia garantiram-se assistência mútua através de neutralidade benevolente mútua e secreta, no caso de um ataque francês à Alemanha e de um ataque austríaco à Rússia.

11Dehio, Ludwig – Deutschland und die Weltpolitik im 20. Jahrhundert. Munique: Verlag R. Oldenbourg, 1955.         [ Links ]

12Nye, Joseph – «1914 Revisited?», Project Syndicate, 13 de janeiro de 2014. Consultado em: 7 de maio de 2014. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/joseph-s-nye-asks-whether-war-between-china-and-the-us-is-as-inevitable-as-many-believe-world-war-i-to-have-been.         [ Links ]

13Ver Levy, Jack S. e Vasquez, John A. – «Introduction: historians, political scientists and the causes of the First World War», in Jack S. Levy e John A. Vasquez, eds. The Outbreak of the First World War: Structure, Politics, and Decision--Making. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, pp. 3-29.         [ Links ]

14Williamson, Samuel R., Jr. – «July 1914 revisited and revised: the erosion of the German paradigm» in Jack S. Levy e John A. Vasquez, eds. The Outbreak of the First World War: Structure, Politics, and Decision-Making. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, pp. 30-63.         [ Links ]

15O artigo que ficou conhecido como a ‘War Guilt Clause’ estipulava que “The Allied and Associated Governments affirm and Germany accepts the responsibility of Germany and her allies for causing all the loss and damage to which the Allied and Associated Governments and their nationals have been subjected as a consequence of the war imposed upon them by the aggression of Germany and her allies.” O Tratado foi assinado no verão de 1919, após seis meses de negociações, e estipulou que a Alemanha teria de pagar reparações de Guerra no valor de 269 bilhões de marcos, valor que pouco depois foi reduzido para 132 bilhões de marcos, o que não deixava de ser uma quantia por muitos considerada excessiva.

16 Perante a ocorrência da revolução alemã, o fim do regime imperial e a instauração de uma república parlamentar, George Kennan foi crítico sobre o que identificou como política contraditória das potências vencedoras face à Alemanha durante as negociações de paz. Se o objetivo era punir a Alemanha seria preferível manter o Kaiser e os generais no poder; se, por outro lado, era esperada uma mudança de regime político, não se deveria ter tomado a atitude punitiva na conferência de paz, porque isto tornava o novo regime instável interna e internacionalmente desde o seu inicio, confrontado-o com reparações de guerra que este dificilmente conseguiria realizar. Como escreveu Kennan: «Se era para ser uma paz punitiva, então o antigo regime deveria ter sido obrigado a suportá-la. Se se iria insistir numa mudança de regime, então uma paz punitiva não fazia qualquer sentido.» Kennan, George F. – Russia and the West under Lenin and Stalin. Boston e Toronto: Little, Brown and Company, 1961, p. 164.

17Simms, Brendan – Europe: The Struggle for Supremacy, 1453 to the Present. Londres: Allen Lane, Penguin Books, 2014, p. 326.         [ Links ]

18 Citado em Levy, Jack S. e Vasquez, John A. – «Introduction: historians, political scientists and the causes of the First World War». In Jack S. Levy e John A. Vasquez, eds. The Outbreak of the First World War: Structure, Politics, and Decision-Making. Cambridge: Cambridge University Press, 2014, p. 16.         [ Links ]

19 Ritter, Gerhard, Staatskunst und Kriegshandwerk. Das Problem des „Militarismus“ in Deutschland. Munique: Oldenbourg Verlag, 1954-1968.         [ Links ] Ver principalmente os volumes 3 (Die Tragödie der Staatskunst. Bethmann Hollweg als Kriegskanzler 1914-1917 ) e 4 (Die Herrschaft des deutschen Militarismus und die Katastrophe von 1918).

20Macmillan, Margaret – «1914 and 2014: should we be worried?». In International Affairs, Vol. 90, No.1, 2014, p. 62.         [ Links ]

21Ver Macmillan, Margaret – The War that Ended Peace: How Europe abandoned peace for the First World War, Londres: Profile Books, 2013.         [ Links ]

22Schmidt, Stefan – Frankreichs Aussenpolitik in der Julikrise: ein Beitrag zur Geschichte des Ausbruchs des Ersten Weltkrieges,Munique: Oldenbourg Verlag, 2009.         [ Links ]

23Mcmeekin, Sean – The Russian Origins of the First World War. Cambridge: Belknap Press, 2011.         [ Links ]

24Schöllgen, Gregor – Stationen deutscher Außenpolitik. Von Friedrich dem Großen bis zur Gegenwart, München: Verlag.         [ Links ] C.H. Beck, 1994, pp. 51-87 e Schöllgen, Gregor – Der Auftritt. Deutschlands Rückkehr auf die Weltbühne, Munique: Propylaen, 2003.         [ Links ]

25 Mayer, Arno J. – «The Primacy of Domestic Politics». In Herwig, Holger, ed., The Outbreak of World War I. Boston, MA: Houghton Mifflin, 1996, pp. 42-47.         [ Links ] A tese de Mayer não é surpreendente tendo em conta o seu argumento de que o conjunto das potências europeias se encontravam, em 1914, numa ‘situação revolucionária’ na qual os fatores internos se sobrepõem, por definição, aos fatores externos.

26Fischer, Fritz – Griffnach der Weltmacht: Die Kriegszielpolitik des Kaiserlichen Deutschlands 1914-1918. Düsseldorf: Droste, 1961.         [ Links ] Ver também Fischer, Fritz – War of illusions: German policies from 1911 to 1914. Nova Iorque: Norton, 1975.         [ Links ]

27 Fischer, Fritz – Hitler war kein Betriebsunfall. Aufsätze, Munique: C.H. Beck, 1992, pp. 24-28.         [ Links ]

28Berger, Stefan – Inventing the Nation: Germany. Londres: Hodder Arnold, 2004, p. 191.         [ Links ]

29Também o historiador Hans Ulrich Wehler escreveu: “Que em vez da temida terceira guerra balcânica que Viena queria travar contra a Sérvia, num curto espaço de tempo e em grande medida se iniciou uma grande guerra entre todas as grandes potências europeias desencadeada graças à política de alto risco de Berlim, ficou claro já no início de agosto de 1914.” Wehler, Hans-Ulrich – «Der zweite Dreißigjährige Krieg». In Der Spiegel, 30 de março de 2004. Consultado em: 13 de maio de 2014. Disponível em: http://www.spiegel.de/spiegel/spiegelspecial/d-30300048.html

30Augstein, Rudolf. D er Spiegel . 11/1964. Consultado em: 15 de maio de 2014. Disponível em: http://www.spiegel.de/spiegel/print/d-46163408.html.         [ Links ]

31Ver, por exemplo, Berger, Stefan – The Search for Normality National Identity and Historical Consciousness in Germany since 1800. Oxford: Berghahn Books, 1997;         [ Links ] Knowlton, J. e Cates, T. – Forever in the Shadow of Hitler? The Dispute about the Germans’ Understanding of History, original documents of the Historikerstreit. Nova Jersey: Humanities Press, 1993;         [ Links ] Travers, Martin – «History Writing and the Politics of Historiography: the German Historikerstreit». In The Australian Journal of Politics and History, Vol. 37, Nº 2, 1990, pp. 246-261.         [ Links ]

32Ver Clark, Christopher, Munkler, Herfried, Simms, Brendan, Macmillan, Margaret, e Mombauer, Annika.

33Simms, Brendan – Europe: The Struggle for Supremacy, 1453 to the Present, Londres: Allen Lane, Penguin Books, 2014.         [ Links ]

34Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p. 562.         [ Links ]

35Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p. 353.         [ Links ]

36Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p.561.         [ Links ]

37Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, pp. 362 e 364, respetivamente.

38Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p. 364.         [ Links ]

39Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p. 560.         [ Links ]

40Clark, Christopher – The Sleepwalkers. How Europe went to War in 1914, Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p. 561.         [ Links ]

41Clark, Christopher – The Sleepwalker s. How Europe went to War in 1914 , Nova Iorque: Harper Perennial, 2014, p. 363.         [ Links ]

42Münkler, Herfried – Der Grosse Krieg. Die Welt 1914-1918. Berlim: Rowohlt Berlin, 2013, p. 9 e p. 11.         [ Links ]

43Münkler, Herfried – Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918. Berlim: Rowohlt Berlin, 2013, p. 14.         [ Links ]

44Münkler, Herfried – Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918. Berlim: Rowohlt Berlin, 2013, p. 10.         [ Links ]

45Münkler, Herfried – Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918. Berlim: Rowohlt Berlin, 2013, p. 14.         [ Links ]

46 Ver também Mombauer, Annika – Helmuth von Moltke and the Origins of the First World War, Cambridge: Cambridge University Press, 2001.         [ Links ]

47Münkler, Herfried – Der Grosse Krieg. Die Welt 1914–1918. Berlim: Rowohlt Berlin, 2013, pp. 20-21.         [ Links ]

48Neitzel, Sönke – Kriegsausbruch: Deutschlands Weg in die Katastrophe 1900 -1914. Munique: Pendo Verlag, 2002, pp. 92-93.         [ Links ]

49Angell, Norman – The great illusion, Londres: Heinemann, 1912. Citado por Macmillan, Margaret – «1914 and 2014: should we be worried?», International Affairs, Vol. 90, Nº 1, 2014, p. 61.         [ Links ]

50 Nye, Joseph – «1914 Revisited?», Project Syndicate, 13 de janeiro de 2014. Consultado em: 7 de maio de 2014. Disponível em: http://www.project-syndicate.org/commentary/joseph-s-nye-asks-whether-war-between-china-and-the-us-is-as-inevitable-as-many-believe-world-war-i-to-have-been        [ Links ]

51Simms, Brendan – Europe: The Struggle for Supremacy, 1453 to the Present, Londres: Allen Lane, Penguin Books, 2014, p. 531.         [ Links ]