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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.43 Lisboa set. 2014

 

25 ANOS DA QUEDA DO MURO DE BERLIM

 

O momento da Alemanha que rumo para a política externa alemã num mundo em transformação?

The Germany's moment

 

Mónica Dias

Coordenadora da Licenciatura em Ciência Política e Relações Internacionais no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, onde leciona desde 1992. É doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais neste Instituto com a tese «A Paz Imperfeita – uma interpretação do conceito de Paz de Woodrow Wilson» e desenvolve investigação na área dos Estudos de Conflitos e de Paz, bem como na área de Estudos da Democracia. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas na FLUL e apresentou a sua Tese de Mestrado sobre o significado do paradigma utópico na Cultura Ocidental. Para além do seu percurso académico, que inclui lecionação na Universidade de Colónia, RFA e a formação no Curso de verão da United States Information Agency (atual Fulbright) sobre «Federalism and American Political Traditions», foi assessora da Comissão de Educação, Ciência e Cultura na Assembleia da República (1996-2000) e formadora em seminários internacionais organizados pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu nas áreas da educação multicultural, liderança e gestão de conflitos.

 

RESUMO

Num momento de grandes transformações geopolíticas, a Alemanha continua sem uma posição claramente definida quanto ao papel que quer ou deve desempenhar no palco internacional. Convicta da sua responsabilidade para com outros povos, mas muito reticente em assumir uma posição de liderança, oscila na forma de afirmação dos seus interesses nacionais. Contudo, o seu crescente poder económico sugere tacitamente uma voz mais determinada nos assuntos externos, cada vez mais percecionados como "Weltinnenpolitik" (política interna mundial), como Willy Brandt, então chanceler da RFA, o antecipou já em 1973 perante a Assembleia Geral da ONU, aquando da integração da Alemanha Federal nesta instituição. Neste contexto, o artigo reflete sobre possíveis percursos para a política externa alemã na atualidade.

Palavras-chave: Alemanha, política externa, ONU, NATO

 

ABSTRACT

At time of great geopolitical transformations, Germany remains without a clearly defined position about the role it wants or should play on the international stage. Convinced of its responsibility towards other people, but very reluctant to take on a position of leadership, it oscillates in the affirmation of its national interests. However, its growing economic power tacitly suggests a more determined voice in foreign affairs, increasingly perceived as "Weltinnenpolitik" (global domestic policy) as Willy Brandt, then Chancellor of the Federal Republic of Germany, anticipated in 1973 before the General Assembly of the United Nations, when West Germany was integrated into this institution. In this context, the article reflects on possible routes for German foreign policy today.

Keywords: Germany, foreign policy, United Nations, NATO

 

Em 1989, a queda do muro de Berlim deu início a um processo de grandes transformações geopolíticas, cujo fim ainda não é percetível. Como se de uma metáfora se tratasse, os acontecimentos pacíficos daquela noite de 9 de novembro numa cidade dividida no centro da Europa fizeram ruir certezas e equilíbrios, dissolveram fronteiras e pactos e remeteram-nos, desde então, para o difícil desafio da (re)invenção de uma nova ordem mundial.

Vinte e cinco anos depois, a Alemanha volta a estar no centro das atenções, mas, ao contrário do que se poderia esperar, continua sem uma posição claramente definida quanto ao papel que quer ou deve desempenhar no palco internacional. Convicta da sua responsabilidade para com outros povos, mas muito reticente em assumir uma posição de liderança, oscila na forma de afirmação dos seus interesses nacionais. Contudo, o seu crescente poder económico sugere tacitamente uma voz mais determinada nos assuntos externos, cada vez mais percecionados como «Weltinnenpolitik» (política interna mundial), como Willy Brandt, então chanceler da rfa, o antecipou já em 1973 perante a Assembleia Geral da onu, aquando da integração da Alemanha Federal nesta instituição.

Hoje, quase 70 anos após a sua «hora zero»1e uma geração após a unificação da Alemanha, o novo (e velho) Governo de Coligação da Alemanha ensaia uma nova política externa tentando superar as aporias que marcam a sua estratégia desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Tendo em conta as memórias do passado, bem como o contexto geopolítico e sobretudo económico-financeiro atual, continua a não ser fácil traçar um novo mapa de política internacional para Berlim. As exigências de maior participação (política, económica e militar) alemã são sempre lançadas num tom contraditório de receio e crítica, por um lado, receia-se o protagonismo político excessivo, por outro, critica-se a falta de participação do mero papel de «espectador-pagador» nos conflitos internacionais.

Esta dificuldade, ligada às expectativas dos outros países relativamente à Alemanha, é repercutida no interior da sociedade alemã, onde ainda há muitos que, recordando os fantasmas do passado, e a consequente revindicação «Nie wieder Krieg» («Nunca mais Guerra»), preferem uma postura política discreta sem protagonismos e participações militares nos conflitos mundiais – e outros que, desejando um regresso a uma «normalidade» perdida (ou que, provavelmente, ainda nunca existiu), defendem para a RFA um papel emancipado e sem complexos, que assuma, ao lado das outras nações democráticas e dos seus parceiros da União Europeia (UE) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), a sua responsabilidade de «potência média» no palco internacional.

Neste, e em muitos outros aspetos, a Alemanha é uma «pátria difícil»2. A complexidade da identidade alemã, que muitas vezes a empurrou para um «Sonderweg»3, traça-se, desde já, pela sua dimensão e situação geográfica, no centro da Europa, tornado palco por excelência de guerras e disputas, de migrações, deslocações e perseguições. Depois, temos de considerar a sua dimensão populacional e económica, que também é crítica. Como observava o seu Presidente em 1969, antevendo com algum ceticismo a possibilidade de uma unificação alemã: «A Alemanha seria grande demais para não ter um papel no equilíbrio das forças mundiais e pequena demais, para equilibrar os poderes à sua volta.»4 E, por, fim, temos a memória do «Terceiro Reich» que contaminou irremediavelmente toda a história alemã e comprometeu os destinos da nação desde então5. Não é por acaso que ainda hoje se fala da «questão alemã» quando se tenta uma definição de uma nação que, marcada pelo estigma do passado, ainda está à procura do seu lugar – dentro e fora das suas próprias fronteiras. Assim, as dificuldades de busca de identidade a um nível interior repercutem-se para a definição de um papel no mundo e, mais concretamente, para a formulação de uma política externa.

Neste contexto, convém recordar que a população alemã teve, desde sempre, uma relação distante com a «política», isto é, com a esfera de participação e tomada de decisão política. A elite intelectual teve sempre uma atitude de distância cética relativamente à esfera da política na sua vertente prática e partidária, como evidenciam, por exemplo, os trabalhos de Max Weber6, sobre os obstáculos ao desenvolvimento do liberalismo na Alemanha (denunciando a burguesia de pouco burguesa e a cultura política estranhamente apolítica). O grande desenvolvimento económico, tecnológico e industrial, mas também a enorme produtividade artística, cultural e científica, devendo destacar-se aqui especialmente a área jurídica e administrativa, não teve qualquer equivalência política, no sentido da participação dos cidadãos nos assuntos políticos, ou do fomento de um espírito organizado de contestação – sempre astuciosamente suprimido por regimes autoritários e repressivos7.

Só mais tarde, em 1949, é que a República Federal Alemã (RFA) aprende a Democracia que recebe por imposição das forças de ocupação, pois ao longo da sua história, as experiências de tentativa de participação política ou de Democracia foram ou cruelmente caladas ou, no caso da República de Weimar, fatidicamente derrotadas. Consequentemente, também a política externa alemã foi sempre definida sem a participação da população, desde a sua entrada no palco internacional, marcada pela primeira unificação nacional em 1871, conseguida através da mão de ferro do chanceler Otto von Bismarck, passando pela tragédia da Primeira Guerra Mundial e a ascensão de Hitler ao poder, até à queda do III Reich em 1945. A política externa alemã foi, assim, continuamente, uma política determinista, definida sem transparência de cima para baixo, ou de modo unidimensional do exterior para o interior. Particularmente depois de 1945, a política externa alemã (da RFA e da República Democrática Alemã (RDA)) foi determinada sem qualquer possibilidade de alternativa, sem poder de decisão, nem margem para autonomia. As duas Alemanhas eram, de facto, países «menores» que ainda não tinham alcançado a maioridade política. E a sua identidade no mundo era definida pela comunidade de valores a que pertencia. Assim, Konrad Adenauer, o primeiro chanceler da RFA, definia os desígnios para a política externa com a fórmula geral: «Estamos seguros porque estamos na NATO», fazendo da Alemanha um parceiro especial dos EUA. Efetivamente, ao longo de toda uma geração, a política externa alemã desenvolveu-se, desde a sua «hora zero», sob o olhar atento dos seus aliados – o que constituiu um importante fator de estabilização do próprio processo de democratização e de participação política interna8.

Talvez por causa de toda esta experiência, a política externa alemã continua a ser um tema menos relevante na consciência dos alemães. Sobre a política externa há, em geral, mais unanimidade (mesmo entre os diferentes partidos) e, mesmo neste momento, os alemães estão muito mais preocupados com outras questões, como, por exemplo, a energia ou a reforma do Estado Providência. Conformada com o seu estatuto especial que lhe fora imposto em 1945 e que a impediu de intervenções militares no exterior, mas também de protagonismos no palco da grande política internacional, ajustou-se a um papel menor e mais recatado e confiou a sua defesa em larga medida aos EUA e à NATO – sem, no entanto, abdicar de olhar de modo atento para o mundo e de procurar vias alternativas para aí intervir discretamente.

Contudo, depois de um processo de unificação que já tem a idade de uma geração, depois do Kosovo, do Afeganistão e do Iraque, mas também depois do choque económico de 2008, que colocou a Alemanha num lugar cimeiro na Europa, a nova República de Berlim terá inevitavelmente de assumir a sua «maioridade» e responsabilidade em assuntos de política externa. Qualquer tentativa de regresso ao passado, isto é, à postura do tempo da Guerra Fria, representaria hoje uma insustentável leveza sem razão de ser. Nem que seja porque a Ucrânia é mesmo ali ao lado e desafia todo o ténue equilíbrio da Europa. Nem que seja porque a Rússia desperta velhos fantasmas que a Alemanha jurou não voltar a evocar. Será, então, que a exclusividade de uma alternativa de «paz e cooperação» para a definição da política externa deixou de ser sustentável num mundo em acelerada transformação geopolítica?

No contexto de uma conceção da ordem mundial ainda muito marcada pela lógica do poder da força, os seus aliados (na NATO, mas também na UE) exigem à Alemanha uma atuação militar mais determinada. Os planos para a reforma das forças armadas da RFA (iniciadas já há alguns anos) e os novos planos da atual Ministra da Defesa podem ser disso um primeiro indício9.

Todavia, isto não significa que Berlim deva fazê-lo necessária ou obrigatoriamente intervindo nos conflitos internacionais com mais forças de combate ou que deva pintar a águia federal de falcão europeu – mas sim que deve apresentar, de facto e em viva voz, sem pretextos e responsabilizações externas, a sua agenda para a ordem internacional que se fundamenta na sólida cultura política originada em 1949 e que é movida pelos seus legítimos interesses nacionais desde 1990. É provavelmente esta uma oportunidade histórica para a Alemanha.

Ao contrário do que se afirma, gostaria assim de defender que as políticas de cooperação e para a paz (e expressas, por um lado, através de missões militares de paz no âmbito da ONU e da NATO ou, por outro, através de programas culturais e educativos, dos quais o trabalho desenvolvido pelo Instituto Goethe em zonas de pós-conflito é um excelente exemplo) constituem uma alternativa muito pertinente no contexto geopolítico atual, apresentando um contributo essencial para uma nova gestão de poder no mundo. Mas será essa via ainda sustentável quando pensamos na atual política externa da Rússia, no terrível drama humanitário na Síria ou no terror espalhado pelo movimento do «Estado Islâmico»?

Para melhor observarmos este argumento a favor de uma via alternativa da gestão da política internacional, deve recordar-se muito brevemente apenas três das principais orientações da política externa alemã desde a sua fundação em 1949 e que constituem um rumo importante a ter em conta para a definição das relações internacionais.

 

A POLÍTICA EXTERNA COMO POLÍTICA DA PAZ

Desde 1949, as relações internacionais alemãs definiram-se essencialmente por três vias: (1) a participação (ativa ou mais passiva) em organizações internacionais, (2) a construção europeia e, a outro nível, (3) a divulgação e o fomento da sua cultura, investigação e ciência (através de instituições como o Instituto Goethe ou o Instituto Max-Planck, através de programas de intercâmbio e de formação)10. Enquanto nação de «mãos atadas» em matéria de assuntos exteriores, como já vimos na presente reflexão, a RFA tentou fazer, então, o melhor da sua situação de «menoridade política», afirmando-se sob as sombras do passado como «soft power» ou poder civil. Evidentemente, o comércio e a economia (nomeadamente a exportação dos seus produtos para todo o mundo) têm aqui um papel igualmente relevante.

Da necessidade nasceu assim uma via especial (um novo «Sonderweg») que se tornou muito eficaz e que poderá apontar para novos caminhos da política internacional. Trata-se de uma tentativa de conciliar o interesse nacional (que subsiste obviamente) com propostas não militares para a promoção da cooperação, da segurança e da paz. Assim, e tendo em conta toda a sua breve história, a política externa da RFA foi, desde o início, entendida como «política da paz». Este desígnio de paz está já inscrito no Preâmbulo da Lei Fundamental de 1949 e assume-se como o slogan do novo papel da Alemanha no mundo. De modo muito significativo, é com esta frase que o site do Ministério dos Negócios Estrangeiros (Auswärtiges Amt) abre uma das suas páginas mais importantes: «A política externa é política para a paz»11. A ideia de que a Alemanha nunca mais deverá fazer surgir uma guerra está, de facto, profundamente impregnada na consciência dos alemães. Um dos mais importantes exemplos da sua política da paz é a participação alemã nas Nações Unidas – em que se empenhou (tal como o Japão) com grande determinação12.

Para melhor justificar esta afirmação, vale a pena recordar brevemente o percurso que levou as duas Alemanhas à entrada nas Nações Unidas. A admissão dos dois Estados Alemães na comunidade da Organização das Nações Unidas deve-se, em grande medida, à «Ostpolitik» de Willy Brandt (que levou à assinatura do «Vier-Mächte-Abkommen de 3 de setembro de 1971» e do «Grundlagenvertrag» em 1972). Mas por causa do estatuto especial da Alemanha depois da Segunda Guerra Mundial, o caminho até 1973 foi muito complexo e sinuoso. De acordo com os artigos 53º e 107º da Carta das Nações Unidas, os assuntos dos países derrotados não eram de respeito da ONU, mas sim dos vencedores, isto é, das respetivas forças de ocupação. Depois da guerra, as questões da Alemanha eram, assim, basicamente tratadas pelos Estados Unidos, por um lado, e pela União Soviética, por outro. Nesta lógica ditada pela Guerra Fria, os dois Estados Alemães seguiram ao longo dos anos cinquenta objetivos e estratégias diferentes relativamente às Nações Unidas. A RFA (e o Ocidente), que ainda defendia o seu desejo de reunificação, não tinha interesse em ver um reconhecimento internacional oficial da RDA. Era esse um dos propósitos principais da RDA, motivo pelo qual apresentou um primeiro pedido de adesão em 1966 – recusado indiretamente no Conselho de Segurança, uma vez que a admissão de novos Estados na ONU está sujeita à apreciação dos membros deste órgão mais poderoso. Como, em contrapartida, a RFA não tinha interesse em levar a questão das duas Alemanhas à ONU, esta não formulou qualquer pedido de adesão formal. Contudo, encontrou gradual e muito discretamente outras formas de participação nas Nações Unidas. Essa participação é veiculada na sequência da assinatura de dois Tratados que comprometem definitivamente a RFA com a ONU. A 3 de outubro de 1954, a RFA adere à NATO e compromete-se a orientar a sua política pelos princípios da Carta das Nações Unidas (curiosamente, não houve comemorações dignas de nota quando em 2004 passaram 50 anos sobre essa data). Alguns dias mais tarde, celebra-se a assinatura do «Deutschlandvertrag» (ratificado em maio de 1955), pelo qual a Alemanha volta a adquirir grande parte da sua soberania. Ora, no artigo 3º deste «Tratado da Alemanha», há novamente a promessa de formular as políticas de acordo com a Carta das Nações Unidas13. Esta promessa vai tornar-se não só um fator de estabilização política e social, como ainda um valioso estímulo que cria um horizonte de expectativa (com dimensão cultural) para a construção da paz.

A participação em diversas suborganizações das Nações Unidas (com estatuto jurídico independente)14 tornava a aspiração de contribuir para a paz no mundo muito concreta. Curiosamente, a cooperação com organizações como a FAO (1950), a OMS e a UNESCO (1951), a IDA (1960) ou o PNUD (1965) – onde se destaca o grande contributo financeiro – vai beneficiar não só os objetivos das Nações Unidas, como ainda a consolidação da paz na própria Alemanha que, num intercâmbio de valores e conhecimentos, começa a aprender a paz – o que se repercute quer no debate teórico dos estudos da paz, quer nas práticas políticas, sociais e culturais que marcam a realidade alemã15.

No seu discurso perante a Assembleia Geral em 1973, o nobel da paz Willy Brandt apontou, de imediato, para a urgência de políticas concertadas entre todas as nações para fazer face a problemas globais: «A globalização das ameaças através da guerra, do caos e da autodestruição exige uma espécie de “política mundial interna”.»16Essa preocupação multilateral, foi, particularmente desde 1990, uma marca fundamental da política externa alemã.

Como nação que conheceu, como poucas outras, os terrores da guerra, sentiu, talvez, com mais intensidade a necessidade de contribuir para a paz, como forma de redenção tácita e silenciosa, provando não só a possibilidade da reconstrução da paz no próprio país, mas afirmando discretamente uma Alemanha empenhada na paz ao nível internacional. É neste sentido que podemos entender as declarações do Chanceler Schröder perante a Assembleia Geral das Nações Unidas, reunida 30 anos depois da adesão da Alemanha: «Conscientes da nossa própria história, aceitamos cumprir a nossa responsabilidade para uma política de cooperação para a paz»17. Note-se aqui que Schröder vem, aliás, mudar radicalmente a postura discreta da Alemanha na política internacional, dando-lhe mais força e visibilidade, e afirmando claramente a sua ambição de participar, lado a lado com os seus aliados, no velho jogo de poder no palco mundial18.

 

DA VELHA RESPONSABILIDADE À NOVA OPORTUNIDADE

Esta declaração de princípios deixa bem claro que, no novo milénio, a Alemanha unida vem reclamar uma nova estratégia para a sua política externa que torna o velho equilíbrio mais imprevisível e desafiador. Chegou o momento que já se aguardava, desde 1990, com grande especulação: O que aconteceria ao «gigante económico» quando assumisse a sua maioridade política? O que seria do tão previsível e bem comportado «discípulo dos EUA»? A Europa e o mundo começavam a ver os velhos fantasmas desde Bismarck, passando pelo velho Kaiser, até ao hediondo espectro de Hitler. Mas, ao mesmo tempo, começavam a ouvir-se igualmente as vozes daqueles que reclamavam um papel mais participativo da Alemanha – o que aconteceu, por exemplo, durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, quando se exigia da Alemanha mais do que o mero apoio moral e monetário, desafiando-a para assumir a sua responsabilidade e para intervir diretamente nos conflitos internacionais19. A Alemanha viu-se, assim, durante anos, na aporia entre passado e presente, que levou a uma política externa ainda pouco delineada e determinada20. A grande exceção aqui é a Sentença do Tribunal Constitucional Federal de 12 de julho de 1994, permitindo as missões «out of area» de tropas alemãs, deixando, no entanto, na sua formulação vaga, muitas interrogações21.

Só em 1998, com a mudança governativa (depois de uma era de 16 anos de Helmut Kohl), é que começa uma verdadeira «nova» política externa alemã. As afirmações de Gerhard Schröder confirmaram o novo estilo de liderança (menos modesto ou discreto) de uma nova geração de políticos que da Segunda Guerra Mundial apenas tinham memórias de criança, anunciando que a Alemanha ia conduzir uma política de uma nação adulta e emancipada, que assumia a sua responsabilidade e o seu passado (nunca negando a sua catastrófica história nacional, como declarou o ministro dos negócios estrangeiros Joschka Fischer), mas que olharia para a frente, com normalidade e sem constantes complexos de culpa22.

Lança-se assim toda uma nova agenda, guiada por um novo sentido de autonomia, que encontrou a sua expressão simbólica com a mudança política de Bona para Berlim, decidida formalmente em 1991 e concretizada em 1999. Destacamos deste período de coligação Schröder/Fischer (SPD/Bündnis 90-Die Grünen), para além da continuação do fomento das políticas económicas e culturais (se bem que com deslocação de acentuação para os países de Leste e da Ásia), a intervenção militar no Kosovo23, a participação de tropas alemãs em missões de paz em todo o mundo (destacando-se aqui particularmente o seu trabalho no Afeganistão), a afirmação clara (e pensada de um modo mais concertada do que em 1992) do objetivo de um lugar permanente no Conselho de Segurança da ONU, perseguido com grande empenho pelo Governo de Schröder (e com moderação e prudência por Merkel) e – depois de 2003 – de um certo afastamento dos EUA, como consequência da recusa de participação na operação militar no Iraque e na crítica pública e demarcação da estratégia do seu aliado mais importante.

Foi esta a herança híbrida de Angela Merkel e Franz-Walter Steinmeier, no primeiro Governo da grande coligação, entre 2005 e 2009 e novamente desde dezembro de 2013. Mas hoje a situação é diferente. Há muito mais pressão sobre a Alemanha. Hoje já não é possível voltar à «zona de conforto» de um espetador discreto que marcou a época do pós-guerra. O mundo mudou e, no novo cenário mundial, é fundamental que a Alemanha assuma inequivocamente as suas responsabilidades. São, aliás, os seus vizinhos na Europa Central e de Leste que, no passado, mais temiam uma Alemanha poderosa (como, por exemplo, a Polónia), que hoje apelam a uma liderança forte e determinada da RFA na Europa e no mundo. As recentes visitas de Angela Merkel e de Frank-Walter Steinmeier a esses países parecem ser uma resposta clara a essas solicitações que têm um peso não só simbólico quando acompanhados de garantias de solidariedade inquestionáveis e da determinação em aplicar sanções mais duras à Rússia. Contudo, nas mais recentes declarações do atual Ministro de Negócios Estrangeiros sobre a situação na Ucrânica chama-se igualmente atenção para a importância de manter a porta do diálogo com a Rússia aberta e de apontar alternativas, contrariando com persistência «a linha dura de confrontação que corre o sério risco de conduzir á exaltação da violência»24.

Na verdade, a grande questão a que os alemães (e não só os seus dirigentes políticos) terão de responder é como pretendem redefinir a ideia da política externa enquanto «responsabilidade para a paz» numa era em que a insegurança e violência se tornou global. Como deverá fazer valer os seus créditos de «poder civil» com um enorme potencial económico e assumir ao mesmo tempo uma liderança forte, destacada e consequente nas relações internacionais? Como poderá assumir uma força de intervenção mais determinada e musculada sem tentações nem complexos imperiais? Na resposta a estas interrogações está também a grande oportunidade para a Alemanha.

Na inevitável e inadiável redefinição do rumo para a sua política externa num mundo em transformação, seria bom que a Alemanha soubesse insistir em afirmar novos «espaços de possibilidades geopolíticas». É justamente pela responsabilidade histórica que tem – mas também pela mudança política que conseguiu ao longo de processo de democratização que passou pelo trabalho na memória, pela superação coletiva de duas ditaduras, pela aprendizagem da liberdade, da cidadania ativa e da participação crítica e solidária, e ainda pela capacidade de reconstrução e conciliação da sua nação – que a Alemanha se encontra numa posição especial para apontar vias alternativas de gestão de poder na política externa.

Um bom exemplo para esta abordagem diferente no espaço internacional é a Ostpolitik. Quando a Europa ainda estava separada por um muro e se vivia numa «Guerra Fria» fundada numa clivagem ideológica que era marcada pela ameaça nuclear e uma hostilidade violenta entre Ocidente e Oriente, Willy Brandt desenvolveu um programa que teve por objetivo uma «mudança política através da aproximação»25. Tendo em consideração o difícil contexto político internacional para a reconciliação do povo alemão, entendeu que a única possibilidade para alcançar esse fim seria o diálogo, que pressupunha primeiro o reconhecimento e a reaproximação, para promover depois uma política de mediação e transformação pacífica. Foi assim que o Muro de Berlim começou a ruir, levando, em 1990, à unificação da Alemanha.

Não é difícil ver que o que mais precisamos hoje é uma nova Ostpolitik, para a paz na Europa (e no mundo), bem fundada e serena e que aposta ousadamente na força da conciliação, ajustando a sua estratégia aos desafios do século XXI. Na verdade, a Guerra Fria ainda não acabou, como agora está à vista. Mas a Alemanha pode voltar a dar um contributo decisivo para terminá-la.

Num momento em que a Europa olha para Berlim, seria estimulante saber que a Alemanha (co-)responde e assume um novo protagonismo, definido pela sua vontade e os seus princípios: Aprofunda a agenda da sua política externa (sempre entendida como política para a segurança e paz, como a homepage do Ministério de Negócios Estrangeiros realça estrategicamente) e aposta ainda mais nas vias diplomáticas de pressão, mas também de cooperação – envolvendo forças económicas, civis e militares em objetivos de sustentabilidade da paz (e não da guerra). Empenha-se ativamente no desescalar de conflitos (e não no escalar). Reinventa uma Ostpolitik para o século XXI. Participa ativamente na tão urgente reorganização da gestão do poder mundial. Assume assim uma nova liderança – certo – mas preservando o melhor da sua experiência enquanto «Friedensmacht» («força de paz») assente em novos modelos de poder e comunicação, segurança e liberdade e ajustados a um mundo global em transformação.

 

Data de receção: 17 de agosto de 2014

Data de aprovação: 25 de setembro de 2014

 

NOTAS

1 O período imediatamente após o fim da 2ºGuerra Mundial é frequentemente referido como "hora zero" da Alemanha. Caracteriza-se assim um país em escombros que tenta ultrapassar o terrível passado para conseguir reconstruir-se política e economicamente. Este conceito é, no entanto, muito contestado, pois em História não há a possibilidade de fazer do passado uma tabula rasa e a memória do passado é justamente a chave para um futuro mais maduro, consciente e responsável.

2 Gustav Heinemann (SPD), Presidente da RFA entre 1969 e 1964, no seu discurso inaugural proferido a 1 de julho de 1969. IN: http://germanhistorydocs.ghi-dc.org/sub_document.cfm?document_id=169&language=german

3 Para uma discussão deste conceito que significa "via especial", veja-se WEHLER, Hans-Ulrich Wehler - Deutsche Gesellschaftsgeschichte. Vol. 3: Von der „Deutschen Doppelrevolution“ bis zum Beginn des Ersten Weltkrieges. 1849-1914. München: Beck, 1995; WINKLER, Hans August, Der lange Weg nach Westen. München: Beck 2005        [ Links ]

4 HEINEMANN, Gustav – «Discurso inaugural», 1969.

5 SCHEIDL, Ludwig et al. (Org.), Dois Séculos de História Alemã, Coimbra: Minerva, 1996;         [ Links ] WEIDENFELD, Werner, Handbuch zur Deutschen Einheit, Frankfurt a. M. [u.a.] : Campus-Verl., 1999        [ Links ]

6 Veja-se aqui, entre outros, WEBER, Max, Die protestantische Ethik und der Geist des Kapitalismus, Vollständige Ausgabe. München: C.H. Beck 2010        [ Links ]

7 Veja-se aqui SCHEIDEL, Ludwig et al. (Org.), Dois Séculos de História Alemã, Coimbra: Minerva, 1996 e STERN,         [ Links ] Carola e Heinrich A. Winkler (Org.) - Wendepunkte deutscher Geschichte 1848-1990, Frankfurt am Main: Fischer, 1997,         [ Links ]

8 As forças de ocupação na RFA (que rapidamente se tornaram "aliados") reorganizaram a seguir ao fim da II Guerra Mundial as estruturas administrativas, económicas e políticas no país, tendo por exemplo introduzido o Federalismo e monitorizado a fundação de jornais ou de empresas.

9Veja-se aqui os projetos de Guttenberg e mais recentemente de von der Leyen, bem como o estudo do Ministério da Defesa da RFA “Eckpunkte für die Neuausrichting der Bundeswehr” de 27 de maio de 2011 e, de um modo mais amplo, o site deste mesmo Ministério em: http://www.bmvg.de/portal/a/bmvg/!ut/p/c4/TcoxDoAgDEDRs3gBurt-5C3UxoBUatBBoMfH0Mpo_vg8r9Ng28lYosb1ghmWn0T3G3c2bSnvAEp-Ck5nSRUDRO-cD6YCiGUa3W0h9R9j_ ZDizbq1pFMhxGj6qrQnv

10 Neste contexto é curioso chamar atenção para a missão do Instituto Alemão, tão bem conhecido em Portugal (sobretudo tendo em conta o papel que teve antes e durante a Revolução) e da política cultural da Alemanha que é considerada, com base numa formulação de Willy Brandt, como a “terceira coluna da política externa alemã” (vide ROSSBACH, Udo – Die auswärtige Kulturpolitik der Bundesrepublik Deutschland: Grundlagen, Ziele, Aufgaben. Stuttgart: Noll, 1980).

11Vide http://www.auswaertigesamt.de/DE/Aussenpolitik/Friedenspolitik/Ueber-sicht_node.html.

12 Veja-se aqui HAFTENDORN, Helga, Deutsche Außenpolitik zwischen Selbstbeschränkung und Selbstbehauptung 1945-2000. München: DAV, 2001 p. 419.         [ Links ]

13Vide http://www.auswaertigesamt.de.

14 Note-se que desde o Acordo de Petersberg (Bona) de 22.11.1949, a RFA fica autorizada a cooperar com Organizações Internacionais.

15STERN, Carola e Heinrich A. Winkler (Org.) – Wendepunkte deutscher Geschichte 1848-1990, Frankfurt am Main: Fischer, 1997, FULBROOK, Mary – History of Germany: 1918-2000. The divided Nation, Oxford: Blackwell, 2002.

16«Die Globalisierung von Gefahren durch Krieg, Chaos, Selbstzerstörung erfordert eine Art `Weltinnenpolitik’ (Brandt, 1973)” in: http://www.auswaertiges-amt.de.

17 Consulte-se aqui os documentos do Ministério de Negócios Estrangeiros da RFA disponíveis em http://www.auswaertiges-amt.de.

18 A atitude algo arrojada com que Schröder reclamou um lugar de maior protagonismo para a Alemanha ao nível mundial e que se prende muito com o seu estilo de liderança transparece ainda nas suas opções profissionais após ter abandonado o cargo de Chanceler ou nas recentes declarações pouco discretas a propósito da situação na Ucrânia.

19 HAFTENDORN, Helga, p. 392.

20 Haveria aqui muitos exemplos que mostram uma espécie de procura de nova identidade, no difícil equilíbrio entre o desejo de aceitação de novas responsabilidades, a continuação da lealdade perante as velhas alianças e a afirmação de interesses nacionais próprios. As políticas e a diplomacia desenvolvida durante a guerra do Golfo, durante a guerra na antiga Jugoslávia (e especialmente no que diz respeito à Croácia), e a revelação feita pelo Ministro de Negócios Estrangeiros em 1992, perante a Assembleia da ONU, da ambição de um lugar permanente no Conselho de Segurança da Organização – ambição ainda muito pouco amadurecida – são disso um bom exemplo. Veja-se aqui MÜLLER, Jan-Werner – Another Country. German Intellectuals, Unification and National Identity, New Haven: Yale University Press, 2000.

21 Vide http://www.asfrab.de/urteilbverfg12719942bve392.html.

22 Para uma análise mais aprofundada desta questão veja-se Haftendorn (idem), pp. 389-390.

23 Desta participação numa operação de combate que tanta polémica gerou, destacamos aqui apenas a Resolução Diplomática de 1999 (vide Haftendorn, 418).

24 Vide http://www.auswaertiges-amt.de/DE/Infoservice/Presse/ArchivReden_node.html?gtp=532008_unnamed%253D1.

25 Esta expressão que marca o objetivo da Ostpolitik surgiu de uma série de Conferências proferidas por Egon Bahr e Willy Brandt em 1963. Para um aprofundamento deste tema que não é possível prosseguir aqui veja-se, por exemplo, http://www.zeit.de/zeit-geschichte/2013/04/willy-brandt-neue-ostpolitik.