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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.53 Lisboa mar. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.53a02 

A FACE VISÍVEL DA EUROPA. OS FUNDOS EUROPEUS EM PORTUGAL

Coesão económica e social. Do apogeu ao crepúsculo?

Economic and social cohesion: from the apogee to the twilight?

 

Vítor Martins

 

RESUMO

O grande projeto de reconstruir e unir a Europa, lançado no pós-guerra, foi alicerçado no princípio da solidariedade, princípio muito enfatizado pelos fundadores como Monnet, Schumann, Adenauer. E é esse princípio que está na base do conceito de coesão económica e social criado por Jacques Delors com o apoio de Tommaso Paddoa‑Schioppa, o qual viria a integrar o Ato Único Europeu. Os instrumentos de coesão foram responsáveis pela intensa convergência real e pelo acentuado crescimento que a economia europeia conheceu até finais dos anos 1990. O alargamento ao Centro e Leste da Europa, a crise financeira e a deriva intergovernamental no sistema institucional, entre outros fatores, conduziram à diluição do princípio da coesão económica e social. Ora, sem coesão – política, económica e social! – não haverá futuro para a União. E não haverá «geometria variável» que a possa salvar.

Palavras-chave: União Europeia, Fundo de Coesão, Acto Único Europeu, Jacques Delors.

 

ABSTRACT

The big project to rebuild and unify Europe, launched after Second World War, had been grounded on the solidarity principle which had been highlighted by European founding fathers as Monnet, Schumann and Adenauer. This principle is the base of the economic and social cohesion concept created by Jacques Delors and supported by Tommaso Paddoa‑Schioppa and would become to integrate the European Single Act. The cohesion tools have been responsible for the strong real convergence and marked growth of the European economy until the end of 90’s. Among other factors, the enlargement to the East and Central Europe, the financial crisis, the intergovernmental drift in the institutional system, led to the economic and social cohesion concept dilution. But without cohesion – political, economic and social – there will be no future to the Union. And there will be no ‘variable geometry’ that could save it.

Keywords: European Union, Cohesion Found, European Single Act, Jacques Delors.

 

Os Fundos Estruturais (Fundos) da União Europeia (UE) são um dos instrumentos das políticas de coesão. Não são o único instrumento, mas são, indiscutivelmente, um dos mais importantes, como o seu histórico comprova com eloquência.

A escorar as políticas de coesão está o princípio da solidariedade que tem, no seu reverso, o princípio da subsidiariedade. Vale a pena compreender a sua génese e o seu percurso.

Não é irrelevante recordar que, logo em 1950, a Declaração Schumann que lançou a integração europeia enfatizava a «solidariedade de facto» como um dos pilares fundamentais. Não uma solidariedade retórica, declarativa, simbólica, mas uma solidariedade efetiva, tangível, permanente. E foi esse conceito que o Tratado de Roma acolheu, já lá vão seis décadas. Os fundadores exprimiram, ainda que com formulações diversas, a importância que atribuíam à solidariedade como cimento indispensável para o sucesso da construção europeia. Relevo, com o expressivo e inspirador exemplo disso mesmo, palavras do chanceler Adenauer: «A ideia do direito e justiça, de respeito e de solidariedade, deve guiar todas as nossas ações.» Nesta curta e incisiva frase de um grande líder europeu do pós-guerra encontramos o quadro de princípios que fundou a integração europeia.

Não é secundário que nessa frase a «solidariedade» apareça referida em paralelo com o «respeito». É que a solidariedade para ser efetiva tem de respeitar as identidades, as especificidades, numa palavra, a diversidade. A «solidariedade» decidida e exercida sem ponderar, nem respeitar as condições específicas e o quadro identitário das nações e das regiões que a esperam e justificam, pode ter até severas consequências perversas nos planos político, económico e social. Veja‑se, como exemplo, a forma e o modo como a UE lidou com os resgates financeiros dos estados‑membros que enfrentaram crises de dívida soberana. Ora, para Adenauer era simples: o direito tem de andar alinhado com a justiça; e a solidariedade tem de casar com o respeito.

Desde o início do processo de integração que se percebe bem a atenção e o cuidado que era posto, na construção, passo a passo, de uma Europa coesa e solidária. Nas décadas de 1960 e 1970 era frequente a expressão «integração harmoniosa» para designar um processo que não devia alienar identidades, marginalizar nações, cavar assimetrias. No método comunitário – uma das originalidades bem-sucedidas das primeiras décadas de integração europeia – o sistema de decisão, embora sempre sob a natural tensão dos interesses nacionais, visava identificar e maximizar o perímetro do interesse comum, cabendo à Comissão Europeia (outra das originalidades da CEE), um papel central e decisivo. O próprio «Compromisso do Luxemburgo» tão controverso, admitindo, fora dos tratados, a excecionalidade da invocação do «interesse vital», pretendia garantir aos parceiros um último recurso, para fazer prevalecer interesses tidos por críticos e fundamentais. Era como que um safety net invocável em situações particularmente graves para o interesse nacional. Em nome de quê? Da solidariedade e da coesão. Para prevenir o quê? Ruturas e distorções na adesão dos parceiros ao projeto de integração.

Embora se considerasse, e com bom fundamento, que a construção europeia era um win-win project em que o interesse comum era um motor que criava valor acrescentado com benefício para todos, sempre se quis acautelar os riscos que resultariam de efeitos assimétricos decorrentes do processo de aprofundamento da integração. Esta preocupação cresceu à medida que as Comunidades Europeias se alargaram e aprofundaram. Logo o primeiro alargamento (Reino Unido, Irlanda e Dinamarca) induziu à criação do Fundo de Desenvolvimento Regional, originalmente não mais do que uma facility financeira para apoiar regiões que, sofrendo de vulnerabilidades e atrasos estruturais, não conseguiam captar todas as vantagens da integração económica, nomeadamente do mercado comum. Contudo, foi no contexto do terceiro alargamento, aquele que há 30 anos integrou Portugal e Espanha, que o conceito de coesão económica e social ganhou «foral». Por um lado, construiu‑se uma base conceptual bem identificada e por todos assumida. Por outro lado, transpôs‑se o conceito para o tratado, dando‑lhe estatuto de direito primário.

Tudo isso ocorreu com o Ato Único Europeu, negociado nos finais de 1985, já Portugal tinha assinado o tratado de adesão, e que foi ratificado ainda em 1986. O Ato Único Europeu, hoje peça quase esquecida no admirável percurso da integração europeia, foi dos passos mais decisivos e estruturantes da construção da unidade da Europa, após o Tratado de Roma, em 1957.

Negociado num célebre Conselho Europeu, em dezembro de 1985, no Luxemburgo, onde pontificavam líderes como Helmutt Kohl, François Mitterrand, Margareth Thatcher e Giulio Andreotti, o Ato Único Europeu fundou o mercado único com as quatro liberdades de circulação fundamentais (produtos, capitais, serviços e, naturalmente, pessoas) e projetou o princípio da coesão económica e social.

Se do lado do Conselho Europeu à volta da mesa se sentavam líderes da extraordinária envergadura dos já referidos, a que se juntavam Cavaco Silva e Felipe González – ainda que formalmente estes com o estatuto de observadores –, do lado da Comissão, é bom lembrá‑lo, a presidência era assumida por Jacques Delors, que tinha alcançado essa nomeação porque a «dama de ferro» britânica vetara Claude Chesson (o primeiro nome proposto pela França). Ora, esse incidente histórico veio a revelar‑se decisivo para o devir da integração europeia. É que foi precisamente Delors que arrancou a integração europeia da euroesclerose – expressão com que na altura se definia a estagnação e o marasmo europeus – para o período de fulgor que se seguiu. Espírito sagaz, inquieto, combinando, na linha inspiradora de Monnet, a visão com o pragmatismo, Jacques Delors entendeu que era hora de levar a integração para outros patamares.

Vale a pena recordar palavras suas em 1985, logo no início do seu mandato:

«A Europa chegou a uma encruzilhada. Ou avança com firmeza e determinação ou retorna à mediocridade. Ou nos resolvemos a levar até ao fim a integração económica da Europa ou então abdicamos, por falta de vontade política para fazer face à imensidade da tarefa, e consentimos que a Europa se torne uma simples zona de comércio livre.»

Como ecoam atuais estas palavras de Delors, escritas há mais de 30 anos! E estas são também palavras suas:

«Recordo‑me das minhas interrogações ao chegar à presidência da Comissão das Comunidades Europeias em Janeiro de 1985: deveríamos lançarmo‑nos numa reforma institucional e política da Comunidade ou propor como prioridade a unificação monetária ou, ainda, mobilizar os europeus relativamente à segurança e defesa? Mas, por múltiplas razões relativas às competências limitadas da instituição europeia e após ter testado junto dos governos dos Estados membros todos os projectos de relançamento, optei por, de acordo com os princípios caros a Jean Monnet, designar um objectivo mobilizador e fixar um calendário para o atingir.»

Assim nasceu o mercado único, cujo livro branco apresentado na Cimeira de Milão de junho de 1985, veio a estar na base do Ato Único Europeu.

O impulso que a integração europeia conheceu a partir daí fundou‑se num tríptico conceptual definido por Delors como a matriz que deveria escorar todos os passos: competição – cooperação – solidariedade.

Um relatório – o Relatório Cecchini – mostrou aos europeus o que então se designou pelos «custos da não Europa». Ou, de outra maneira, o que a Europa teria a ganhar com a eliminação de barreiras e o aprofundamento da construção europeia. A realização de um «espaço sem fronteiras» que permitiu um verdadeiro «mercado comum», traria acréscimos de competitividade, relançamento do investimento, criação de emprego e crescimento económico e, ainda, uma muito maior afirmação externa pela expressão que o maior bloco económico do mundo poderia assumir no contexto internacional. Tudo isso se viria a confirmar na década de ouro da integração europeia entre 1985 e 1995, década que Felipe González costuma qualificar de «a cavalgada europeia sob a liderança de Delors».

Para Jacques Delors, o mercado único teria de ser acompanhado de um reforço das políticas de convergência. Mercado único e coesão são as duas faces do espaço sem fronteiras. A coesão foi tida como vital quando o mercado único foi lançado. Recordo mais uma vez Delors em discurso direto: «Esta coesão era para nós indispensável. A Comissão Europeia, guardiã do interesse superior europeu, não podia considerar, e muito menos aceitar, que o grande mercado – proposta sua – viesse agravar os desequilíbrios existentes.»

O saudoso Tommaso Paddoa‑Schioppa foi então, sob a orientação de Jacques Delors, quem elaborou o conceito de «coesão económica e social» que o Ato Único Europeu consagrou. Na simplicidade da sua perceção, o conceito estabelecia que, a mais ambição na integração, deveria sempre corresponder mais coesão. E mais estabelecia que a coesão não chegaria apenas pelas forças do mercado, impunha outrossim políticas voluntaristas ou «políticas de acompanhamento e compensação» para usar termos do próprio Paddoa Schioppa. Era então também entendido que o esforço de coesão económica e social não relevava apenas de equidade e solidariedade. Era ele próprio um instrumento de desenvolvimento que todos beneficiava, já que tirava partido da imensa «reserva de crescimento económico» que as regiões menos desenvolvidas poderiam potenciar.

O mercado único e a coesão constituíram, ambos sublinhe‑se, o motor do intenso crescimento económico que a Europa conheceu nessa década. Os pacotes Delors I e II, aprovados em 1988 e 1992, foram ferramentas decisivas para o crescimento económico e também para a convergência que então se operou. O caso de Portugal é um bom exemplo.

E foi ainda o conceito de coesão económica e social, que Lady Thatcher procurava sempre subestimar («its their word for cash …»), mas que, acentue‑se, nunca vetou, que permitiu fundar iniciativas que, nesse período, vingaram e se revelaram de impactos positivos muito significativos para vários países e regiões da Europa, como foi o caso do nosso país.

Disso exemplo foi a flexibilização do FEDER para apoiar investimentos no setor da educação. Exemplo maior foi também o PEDIP (Programa Específico para o Desenvolvimento da Indústria Portuguesa). Semeado no tratado de adesão, sob proposta portuguesa subscrita por Delors (ele mesmo escreveu pelo seu punho a declaração que a esse propósito figurou anexa ao tratado de adesão), o PEDIP veio a ser consagrado em 1988, na Cimeira de Bruxelas, mau grado alguma oposição da «dama de ferro» prontamente contrariada pelo triunvirato «Delors, Mitterrand, Kohl». Recordo muitas conversas que tive com Jacques Delors na negociação do PEDIP e a sua firme determinação em levá‑lo por diante. Sem o seu empenho nunca teria sido possível. Foi um instrumento inovador cujo impacto, por mais polémico que possa ser, foi seguramente muito positivo para a indústria portuguesa.

Outro exemplo, bem expressivo, tem a ver com as «regiões ultraperiféricas». Na Cimeira de Rodes, em 1989, o Professor Cavaco Silva, então primeiro‑ministro, apresentou a proposta da criação de um estatuto especial para as regiões insulares distantes do continente que sofriam de vulnerabilidades específicas no confronto com as exigências e as sinergias do mercado único. No caso português, estavam em causa as regiões da Madeira e dos Açores, mas seriam abrangíveis outras regiões como as Canárias (Espanha) e os PTOM e DOM (França). Essa proposta, que viria a singrar depois de complexa negociação, fundou‑se naturalmente no princípio da coesão económica e social e nas disposições do próprio Ato Único Europeu. Daí nasceu o POSEIMA que enquadrou apoios específicos à Madeira e aos Açores, de modo a poderem enfrentar com sucesso o desafio do mercado único. O seu impacto foi extraordinariamente positivo nas duas regiões autónomas. O estatuto de região «ultraperiférica» veio a ser consolidado no Tratado de Amesterdão em 1996.

Nas negociações do Tratado da União Europeia, em 1991, a questão da coesão económica e social foi ponderada à luz do objetivo da União Económica e Monetária (UEM). Já o Relatório Delors para a UEM, que foi a base do acordo de Maastricht, previa a necessidade de reforçar os instrumentos europeus para prevenir os riscos de agravamento das assimetrias em decorrência do aprofundamento da integração monetária. O mesmo relatório previa igualmente medidas anticrise para proteger a zona euro.

O arsenal de medidas anticrise que Delors tanto defendeu ficou adiado, tal como a união económica que não se assumiu à altura do projeto federal da união monetária. Um erro que foi essencialmente patrocinado pela Alemanha. Quanto à coesão económica e social foi possível, num quadro de negociações muito duras, reforçá‑la. A Comissão, apoiada essencialmente por Portugal e Espanha, pôde fazer vingar o fundamental das suas propostas nesse tema.

No plano tangível, avulta a criação do Fundo de Coesão que foi, de resto, proposta portuguesa. Num memorando intitulado «Fundo Europeu de Coesão», Portugal pôs na mesa a criação de um novo instrumento financeiro para apoiar as redes transeuropeias e o ambiente. O tratado acabou por prever a sua criação. E foi na Cimeira de Lisboa, sob presidência do Professor Cavaco Silva, em 1992, que o Fundo de Coesão foi constituído. Para a sua aprovação, que teve a forte resistência dos alemães e dos ingleses, foi decisivo o apoio de François Mitterrand, inclusive durante o debate ocorrido naquele Conselho Europeu, desmontando a oposição de Kohl e Major.

Posteriormente, no Conselho Europeu de Edimburgo, em dezembro de 1992, o Pacote Delors II foi aprovado, incluindo o maior envelope financeiro de sempre para apoio da coesão. Com esta aprovação as políticas europeias para apoiar a convergência económica e social garantiram um lugar de destaque no orçamento da (UE). Diminuía o orçamento para a política agrícola. Progrediam os meios orçamentais para a coesão. Cresciam os recursos próprios da União.

Portugal passou de um PIB per capitade 53 por cento face à média europeia, em 1986, para cerca de 75 por cento a meados da década de 1990. Essa acelerada convergência só foi possível com o apoio dos fundos europeus. A modernização das infraestruturas, a atração de investimento estrangeiro (com a Autoeuropa como um exemplo expressivo), a internacionalização da economia portuguesa devem muito aos apoios comunitários. Igualmente a qualidade de vida dos portugueses, muito particularmente nas regiões do país menos desenvolvidas. Que seria do interior do país sem esses apoios?!

A importância atribuída então às políticas de coesão é bem evidenciada no quarto alargamento, que incluiu a Suécia, a Finlândia e a Áustria, em 1995. Nessa altura, os instrumentos de coesão foram adaptados para poderem apoiar as regiões menos desenvolvidas desses países. Em particular, a Finlândia beneficiou mesmo de um novo objetivo de coesão (o objetivo 6) que permitiu canalizar fundos europeus para as zonas mais nórdicas desse país escandinavo. Delors empenhou‑se muito nessa decisão. Lembro‑me de o ouvir argumentar que era muito importante que os novos aderentes da UE, beneficiando também dos instrumentos de coesão, compreendessem a natureza e o alcance das políticas de coesão para o projeto de construção europeia.

Exemplo cimeiro – tantas vezes esquecido! – da aplicação do princípio da coesão económica é também o da unificação da Alemanha, após a queda do Muro de Berlim. Essa vitória política da Europa, que muito deveu à integração europeia, fez disparar, a favor do Leste da Alemanha, um poderoso arsenal de medidas de apoio e, em particular, de significativos fluxos financeiros a partir dos Fundos Estruturais. As políticas de coesão foram mobilizadas para tornar possível a integração harmoniosa da Alemanha de Leste. Todos os estados‑membros contribuíram para isso. E não foram só apoios financeiros. O Leste da Alemanha beneficiou então, com base no conceito de coesão, de várias derrogações temporárias à aplicação do direito comunitário, em particular no domínio da concorrência, para facilitar ajudas de Estado ao investimento e ao reforço do tecido empresarial!

Contudo, à entrada do século XXI, com o advento do euro, a coesão económica e social passou para plano secundário. Primeiro, de forma subtil. Depois, de forma ostensiva. Chegou a ser considerado «politicamente incorreto» invocar a coesão económica e social. As razões, principalmente políticas, foram múltiplas. Desde logo, o enfraquecimento da Comissão Europeia no processo de decisão, o que se agravou com o Tratado de Lisboa. A Comissão, principalmente sob o comando de Delors, tinha sido determinante na conceção e na negociação das políticas de coesão. A partir da primeira década do novo milénio não mais a Comissão conseguiu ser o grande motor da integração europeia.

Em segundo lugar, o lançamento do euro criou um novo foco na UE que ajudou a diluir o princípio da coesão económica e social. Os contribuintes líquidos consideravam que, com o euro, a responsabilidade de convergência era dos estados‑membros. O euro já era proteção suficiente.

Em terceiro lugar, o neoliberalismo impunha‑se como conceção progressivamente dominante, mesmo na UE. O mercado resolve tudo. A regulamentação intensiva é inimiga do crescimento e do progresso. Os Fundos Estruturais eram vistos como «auxílios perversos» que geravam «subsídio‑dependência» e quebravam a energia do empreendedorismo e os benefícios da competição. A integração europeia deveria concentrar‑se na liberalização, na abertura de mercados, na desregulamentação. A coesão era tida como voluntarismo démodée contraproducente.

Em quarto lugar, o alargamento ao Leste da Europa, agravou a perceção das políticas de coesão. Não só o foco adornou para leste, como a UE não acautelou o impacto do alargamento nos estados‑membros. O quinto alargamento da UE, absolutamente imperativo por razões políticas e, em particular, geopolíticas, desencadeou efeitos negativos com impacto assimétrico nos diversos estados. Portugal, em especial pela sua localização e pelo seu perfil económico, suportou, em termos relativos, a maior fatura, como diversos estudos o confirmaram. Nada disso foi prevenido, nem acautelado, pela UE.

Finalmente, com a crise financeira, a partir de 2008, o conceito de coesão económica e social ainda mais empalideceu. A forma desastrosa como a UE respondeu à crise das dívidas soberanas dos países ditos «periféricos» gerou sérias e perigosas clivagens entre estados‑membros, uns tidos por virtuosos, e outros por incumpridores crónicos, fazendo alimentar uma falsa superioridade moral que cavou uma desconfiança que perdura. O espírito de solidariedade dos fundadores e o conceito racional de Delors sobre a coesão económica e social diluíram‑se na voragem da crise.

Felizmente, os Fundos Estruturais perduram e continuam a financiar as regiões menos desenvolvidas. Apoio ainda decisivo para Portugal que procura tirar partido da Agenda 2020. Mas no plano macropolítico, os objetivos da coesão são olhados com desconfiança, tidos erradamente como um ónus que pesa sobre os países ricos que daí nada beneficiam. Alguns creem mesmo que seria conveniente desencadearem a fuga em frente para se «libertarem» dos países da coesão, considerados como um fardo. Se o fizessem, e estou ainda convicto que não o farão, cavariam a prazo a desintegração da UE.

A geometria variável há muito que existe na UE. Quem não quer ou não pode acompanhar o aprofundamento da integração, fica noutro patamar. Já foi assim com Schengen e com o euro, para dar apenas dois exemplos. O que não pode aceitar‑se é deixar cair esse pilar fundamental da integração europeia que é a coesão económica e social.

Geometria variável, velocidades diferenciadas, círculos concêntricos, tudo isso é possível e, em muitos momentos, até desejável. Todavia, a solidariedade e a coesão, nos planos político, económico e social, têm de ser um imperativo, permanente e transversal. E nunca um princípio descartável.

 

Data de receção: 23 de janeiro de 2017 | Data de aprovação: 21 de fevereiro de 2017

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