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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.53 Lisboa mar. 2017

https://doi.org/10.23906/ri2017.53r02 

RECENSÃO

O mundo ainda não é «pós-americano»

 

Felipe Albuquerque

JOSEPH S. NYE, JR. Is the American Century Over? Polity Press, 2015, 152 páginas.

 

Em Is the American Century Over?, Joseph Nye questiona teses que defendem a irreversibilidade do declínio norte-americano e afirma que a ordem internacional contemporânea depende das opções de política externa de Washington. Em resposta à pergunta que dá título à sua obra, o autor é taxativo: «descrever o século XXI como o de declínio dos Estados Unidos da América é provável que seja pouco acurado e enganoso» (p. 116). Ao longo de sete capítulos, Nye refuta determinismos históricos e rejeita argumentos como o de Paul Kennedy1, que mostram a existência de ciclos de ascensão e de queda para as grandes potências.

Percepções de que os Estados Unidos estariam a declinar não são novas. Surgiram durante a competição sistêmica com a União Soviética e em virtude do desafio econômico alemão e japonês dos anos 1980. No contexto atual, ainda ecoa a instabilidade do pós-Guerra do Iraque e da crise econômico-financeira iniciada em 2008. Esse desarranjo também é marcado pela ascensão relativa de países emergentes, com especial destaque para a China; pelo recrudescimento de novas ameaças à preponderância estatal, como terrorismo, alterações climáticas, fluxos migratórios e de refugiados; e pelo fortalecimento de discursos nacionais refratários aos pilares mantenedores da ordem liberal. Como aponta Nye, «por vezes, ter ansiedade sobre o declínio pode levar a políticas nacionalistas e protecionistas deletérias» (p. 20), leitura essa que pode ser aplicável à recente eleição de Donald Trump, ao Brexit e ao fortalecimento de movimentos eurocéticos.

Na obra, o autor defende que a primazia dos Estados Unidos está em xeque, mas ainda não foi superada. Erigida sob liderança de Washington nos estertores da Segunda Guerra Mundial, a ordem liberal em vigor tem por base a prevalência da democracia, dos direitos humanos, do livre comércio e da igualdade soberana entre os estados. Regras e instituições multilaterais são ferramentas que fomentam a interdependência, funcionam como canais para a cooperação e criam anteparos em caso de possíveis conflitos interestatais.

Ao longo do livro, o autor refuta teorias de relações internacionais de matriz realista, pois defende que a prevalência de grandes potências em contexto sistêmico cada vez mais incerto, multipolar e competitivo não depende unicamente de fatores materiais, tais como potencial militar, domínio de recursos naturais, tamanho geográfico e poderio econômico. Para além de possuir hard power, a projeção externa de um Estado depende da existência de soft power, que envolve a capacidade de exercício de atração e de persuasão. Combinados, poder «duro» e poder «brando» confirmam o que Nye chamou de «smart power», tema da obra pretérita The Future of Power2.

Na visão dele, Washington é quem melhor combina e exerce as dimensões econômica, militar e cultural/imaterial de poder. O desproporcional controle dessas três dimensões é o que explica a resiliência do «século norte‑americano». O relativo declínio econômico do país nas últimas décadas e a emergência de atores como a China, por conseguinte, não garantem a superação da primazia norte‑americana, como querem autores como Amitav Acharya3. Para Nye, a importância dos Estados Unidos continuará ao longo do século XXI.

O terceiro capítulo do livro examina que outros estados podem apresentar desafios à preeminência norte‑americana e questiona se alianças entre eles seriam factíveis. Europa, Japão, Rússia, Índia e Brasil são estudados a partir das dimensões de poder elencadas pelo autor. Em cada um desses casos, no entanto, Nye não só destaca a existência de fragilidades que inviabilizam o surgimento de rivais à altura, como também minimiza a possibilidade de formação de coligações opostas a Washington4.

Enquanto a Europa carece de um sentido de unidade e de coesão, o Japão, ao buscar apoio dos Estados Unidos frente à ascensão chinesa, tenderia a fortalecer a posição norte‑americana na balança de poder global. A Rússia é caracterizada como revisionista e em declínio econômico e militar, mas capaz de demonstrações de força contra vizinhos regionais, como nos conflitos com Geórgia (2008) e Ucrânia (2014). Uma possível aliança com a China é minimizada visto que, para Nye, Pequim é beneficiada pela manutenção do status quo. Índia e Brasil, por fim, possuem soft power e potencial para desenvolvimento socioeconômico, mas convivem com consideráveis entraves domésticos e não têm incentivos e/ou condições de rivalizarem com Washington.

 

DESAFIOS À PREPONDERÂNCIA NORTE-AMERICANA

A China, tema do capítulo seguinte, é tida como o «único país com potencial» para desafiar a primazia dos Estados Unidos (p. 44). Ainda que careça de recursos de soft power, Pequim é detentora de armas nucleares, território continental e domínio tecnológico, além de consideráveis contingente populacional e Forças Armadas. No ponto de vista de Nye, não obstante, a China está atrás dos Estados Unidos em todas as três dimensões de poder e tem optado por engajar‑se primordialmente em seu próprio desenvolvimento e em sua região imediata (p. 47). Tais fatores limitam o engajamento chinês e contrapõem‑se a argumentos, como os de John Mearsheimer5, de que a ascensão de Pequim será conflituosa.

Economicamente, a China enfrenta obstáculos como rápida urbanização, envelhecimento populacional e PIB per capitarelativamente baixo. O ganho de importância do yuan no mercado financeiro internacional é minorado por Nye, que lembra que o país asiático não controla redes de pesquisa e de desenvolvimento, centralizadas essas, em sua maioria, em território norte-americano. Do ponto de vista militar, a China investe menos que os Estados Unidos, não possui similar capacidade de projeção naval e tampouco dispõe de alianças militares, infraestrutura e experiência em suas Forças Armadas. Já o soft power chinês seria prejudicado pela assertividade regional de Pequim e por constrangimentos domésticos causados por nacionalismo e pelo controle do Partido Comunista.

Além de citar essas limitações, Nye defende que a ascensão chinesa gera reações de outras potências asiáticas, como Índia e Japão, e de sócios menores como o Vietnã e as Filipinas, o que assegura vantagens estratégicas para os Estados Unidos. Desse modo, o autor aproxima‑se da visão de John G. Ikenberry6 de que a China deve ser integrada à ordem vigente não só como forma de perpetuar a segurança de Washington, mas também para fazer frente aos desafios transnacionais contemporâneos. Isso posto, a ascensão do «resto» cria complexidades e incertezas, mas não é suficiente para minar a primazia dos Estados Unidos.

Após minimizar a relevância de fatores externos, Nye localiza no âmbito doméstico as causas para um possível declínio dos Estados Unidos. Em especial, menciona que crises econômicas afetam a capacidade de o país gerar soft e hard power, bem como as chances de os formuladores de política exterior empregarem tais dimensões de poder. Quanto ao aspecto econômico, o argumento centra‑se na ideia de que a economia norte‑americana encontra‑se hoje em melhores condições do que no contexto da crise de 2008, com o dólar ainda como moeda de referência. Ademais, o país domina tecnologias‑chave em setores como biotecnologia, tecnologia da informação e nanotecnologia. Para o autor, problemas recentes como o aumento da desigualdade podem afetar a imagem do país, mas não ocasionarão seu declínio. As instituições políticas domésticas são marcadas por crescente polarização ideológica entre os dois principais partidos e por constantes disputas entre os poderes executivo e legislativo. Ainda que causem preocupação, esses conflitos são tratados como elemento integrante do jogo político norte‑americano e parte da «história de engajamento» social do país (p. 91). Os riscos domésticos, assim, não geram condições que levem a um declínio absoluto.

 

CONTINUIDADE DA PRIMAZIA DOS ESTADOS UNIDOS

Na parte final da obra, Nye mantém a defesa da preeminência norte‑americana, mas reconhece que dois grandes processos de difusão de poder estão em curso: (1) transição global de poder do Ocidente para o Oriente; e (2) difusão de poder de governos para atores não estatais, causada principalmente pela revolução informacional, o que Nye chama de «entropia informacional» e trata como um desafio que pode ser ainda mais relevante que a ascensão chinesa (p. 97). Quando analisa essa desconcentração de poder, representa a ordem internacional como um tabuleiro de xadrez tridimensional. Ao passo que no âmbito militar o poder seria unipolar e dominado por Washington, a distribuição de capacidades seria multipolar do ponto de vista econômico e «não polar» no que diz respeito às relações transnacionais.

Nessa conjuntura, a liderança de Washington continua a ser central para a solução de problemas comuns, como, por exemplo, crises financeiras, proliferação nuclear, governança da internet e alterações climáticas. Para Nye, os Estados Unidos têm tido e continuarão a ter um papel fundamental em instituições e em redes internacionais voltadas para a promoção de bens coletivos. Como explicita, o peso dos Estados Unidos «ainda importa» (p. 109).

O autor encerra a obra com a afirmação de que não estamos em um «século chinês» ou, como defende Oliver Stuenkel7, em um «século pós‑americano» (p. 125). Mas lembra que, para que haja continuidade da centralidade norte‑americana, o poder de Washington não deve ser exercido sobre os outros, mas com os outros, em um jogo cooperativo de soma positiva. Por fim, adverte que voltar‑se ao isolacionismo do século XIX e dos anos 1930 ou optar por expansionismo descontrolado pode afetar decisivamente o lugar do país no mundo. Resta saber se a presidência de Donald Trump irá pôr as teses do livro à prova. No momento atual, a leitura de Is the American Century Over? torna‑se ainda mais interessante.

 

NOTAS

1 KENNEDY, Paul – The Rise and Fall of Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000. Nova York: Vintage Books, 1987.

2 NYE, Joseph S. – The Future of Power. Public Affairs: Nova York, 2011.

3 ACHARYA, Amitav – The End of American World Order. Cambridge: Polity, 2014.

4 Ele não explica, contudo, que fatores podem levar esses países a agirem coletivamente. Para tanto, ver: ALBUQUERQUE, Felipe Leal Ribeiro de – «A cooperative global South? Brazil, India, and China in multilateral regimes». In Carta Internacional. Belo Horizonte. Vol. 11, N.º 1, 2016, pp. 163-187.

5 MEARSHEIMER, John – «The gathering storm: China’s challenge to U.S. power in Asia». In The Chinese Journal of International Politics. Pequim. Vol. 3, 2010, pp. 381-396.

6 IKENBERRY, John G. – «The rise of China and the future of the West: can the liberal system survive?». In Foreign Affairs. Nova York. Vol. 87, N.º 1, 2008, pp. 23-37.

7 STUENKEL, Oliver – Post-Western World: How Emerging Powers Are Remaking Global Order. Cambridge: Polity Press, 2016.

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