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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.57 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.57a07 

QUE SEGURANÇA MARÍTIMA TEMOS E QUEREMOS

A segurança marítima e a vontade para agir em conjunto

Maritime security and the will to act together

 

Luís Carlos de Sousa Pereira

Direção-Geral da Autoridade Marítima | Praça do Comércio, 1100-148 Lisboa | sousapereira@marinha.pt

 

RESUMO

As visões dissimilares sobre o mar e a diferente forma como os estados valorizam as ameaças e riscos que afetam a segurança marítima traduzem-se em diferentes noções de exposição ao perigo, que, escoradas num conceito de poder e de propriedade sobre os espaços e os meios, se reflete de forma negativa na motivação para agir em conjunto. Dependendo tais empenhamentos da vontade individual e de contributos voluntários, não é possível saber em antecipação se será, ou não, possível reunir todas as condições necessárias ao desencadear de uma determinada operação, o que releva a necessidade de se ponderar sobre modelos de gestão capazes de agregar vontades, sem as condicionantes próprias daquelas dissemelhanças.

Palavras-chave: Segurança marítima, visões nacionais, ameaças e riscos, gestão.

 

ABSTRACT

Different views and dissimilar perceptions about maritime security and its fundamentals impact directly on individual States will to engage in multinational operations. These are then dependent on voluntary contributions which makes it difficult to assess whether the needed resources will be available to cope with the stated requirements, and sets a demand for managing solutions that are capable to trigger the motivation needed for a joint action, taking inhibiting variables away from the equation.

Keywords: Maritime security, national visions, threats and risks, management.

 

ENQUADRAMENTO

Quando agimos fazemo-lo normalmente como resposta a alguma coisa, para transformar uma situação em nossa vantagem ou para repor um equilíbrio que foi alterado por uma determinada circunstância ou acontecimento.

Perante algo que nos desafia, ou que é passível de nos causar prejuízo, enumerar e caracterizar os fatores que afetam o universo de bens, lato sensu, que nos importam, é o primeiro passo no processo de identificação das respostas (seja na ótica do indivíduo, seja no plano do coletivo). E uma vez avaliadas as consequências que resultam da materialização de tais variáveis, as opções consideradas para as contrariar devem subordinar-se a uma verificação em sede de adequabilidade, exequibilidade e aceitabilidade: serão adequadas se responderem ao problema inicial; exequíveis se puderem ser concretizadas; e aceitáveis, se realizadas em respeito aos valores de referência1 e admissíveis na ótica do custo-benefício.

Atendendo a que a «segurança» é um fator relevante para a vida em sociedade, e reconhecendo a correlação entre o mar, as atividades marítimas e o desenvolvimento, ponderar sobre as causas que destabilizam a «segurança marítima» constitui um exercício essencial para antecipar contrariedades e identificar soluções. E se o espaço de ação é comum, naturalmente que se esperam elevados níveis de envolvimento de todos em ações coordenadas ou articuladas.

Pese embora a ação conjunta seja uma realidade em muitas ocasiões – a nato e a União Europeia (UE) participaram com forças navais nas operações de combate à pirataria no Índico, e a agência europeia Frontex, no contexto da segurança das fronteiras externas da UE, tem coordenado os contributos individuais em prol de uma ação ordenada na resposta ao problema da imigração nos mares Mediterrâneo e Egeu –, reunir os meios e recursos necessários às operações assenta num processo de contribuições voluntárias, o que faz depender o resultado da vontade de cada Estado.

Basta atender aos inúmeros escritos sobre segurança marítima para se compreender que existem incontáveis perspetivas sobre o tema e, logo, sobre aquilo que o influencia, aspeto determinante para compelir cada um a agir. De facto, a produção da academia sobre o assunto, que alguns autores entendem como insuficiente, tem demonstrado que o significado da expressão, o conceito, a tipificação ou o tipo de abordagem adotada na identificação e materialização das respostas não são coincidentes. Sendo então a expressão da vontade um ato individual, difícil de predizer, é legítimo supor que, perante cada novo desafio, não seja possível antecipar se teremos ou não reunidos todos os requisitos necessários a um desfecho capaz.

Uma interrogação bem ilustrativa de tais divergências concerne aos conflitos regionais: sendo indubitável que constituem um distúrbio ao normal uso do mar, devem, ou não, ser considerados um problema de segurança marítima? Ou consentindo que sejam um problema para a segurança marítima, por que não podem ser caracterizados como um problema de segurança marítima? Para os que colocam essas situações no plano estrito da «guerra do mar», ou das «operações navais» (militares), a segurança marítima resvala para questões cuja génese é essencialmente securitária, ou seja, da competência das polícias2. Mas os defensores dessa tese podem, à vez, ser censurados por terem uma visão restrita sobre a segurança marítima, alheando fatores e atores que, de outra forma, poderiam ter impacte significativo nas soluções a prosseguir. Por outro lado, pode alegar-se que quanto mais abrangente for a perspetiva, mais agentes serão envolvidos e mais difícil será a coordenação das ações.

Encontrar denominadores comuns que nos permitam chegar a uma base de entendimento suficientemente consensual sobre segurança marítima para, a partir daí, estimular, e garantir, a ação integrada e a articulação dos diferentes atores em ambiente marítimo, torna-se assim um desafio complexo.

As noções de soberania, responsabilidade e autoridade podem contribuir para sistematizar, estruturar e disciplinar o pensamento, exercício especialmente útil perante problemas complexos, ou face a soluções que se revelam desajustadas e nos impelem a recomeçar todo o processo de análise e de identificação de um novo caminho (ideia bem ilustrada na expressão inglesa back to the basics). Mas ao mesmo tempo que condicionam e integram decisivamente as soluções organizacionais e funcionais, esses mesmos conceitos podem impedir que essas soluções tenham aplicabilidade transversal, mesmo quando as necessidades operacionais são comuns. O compromisso poderá ser o de avaliar modelos alternativos de gestão e de promoção da segurança marítima que sejam aplicáveis, e abranger visões, atores e prolemas diferenciados (optando-se por uma aproximação top-down, em vez de uma construção bottom-up, por norma mais estruturada).

Talvez por tudo o que se referiu, alguns académicos entendam que mais discussão possa vir a contribuir para se delimitar o tema dentro de parâmetros mais compreensíveis e criar «uma linguagem comum». Este não é, contudo, um artigo académico. Os pensamentos que se partilham advêm da experiência profissional do autor, particularmente enformada pelo planeamento estratégico e pelas operações, e, neste caso, também pelo desafio de abordar o tema num contexto de «visões cruzadas». Sendo opinativo e pretendendo, sobretudo, desafiar ideias e promover o debate, conterá certamente pontos de vista discutíveis que poderão ser questionados e objeto de contra-argumentação.

 

AS MÚLTIPLAS PERSPETIVAS SOBRE O MAR

Os espaços marítimos são um continuum que se estende de costa a costa, independentemente da distância, das conceções teóricas ou de regimes jurídicos sobre o mar. No mar não existem fronteiras que impeçam que os efeitos de um incidente evoluam e se propaguem a despeito do seu local de origem. Qualquer ocorrência pode influenciar tanto outros eventos nas suas proximidades, como afetar também acontecimentos em espaços contíguos ou distantes. Este quadro parece sugerir que existe uma visão comum sobre o mar, razão bastante para encorajar o diálogo e capitalizar sobre a atuação colaborativa.

Acresce que a segurança marítima é transversal aos interesses dos diferentes protagonistas de um mundo globalizado, mesmo quando os estados não possuem linhas de costa de dimensão significativa ou acesso direto ao mar. A simples menção às grandezas 70, 80 e 90, que se relacionam com a «geografia física» – os mares e oceanos constituem 70 por cento da superfície terrestre –, a «geografia humana» – 80 por cento da população mundial reside até 100 quilómetros da linha de costa –, e a «geografia económica» – 90 por cento das transações económicas, em volume, são efetuadas por mar –, ilustram a enorme dependência que hoje temos relativamente ao mar.

Tal sistematização, particularmente útil em análises teóricas ou para a elaboração de estatísticas, pode ter uma interpretação estratégica e/ou política3, em que a geografia física se traduz em «mobilidade» – através do mar –, a geografia humana se reflete em «acesso» – a partir do mar –, e a geografia económica se exprime em «presença» – no mar4.

Mas se pensarmos o mar em termos de soberania ou de jurisdição, releva o ordenamento jurídico da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), que divide os espaços marítimos em «águas interiores», «mar territorial», «zona contígua», «zona económica exclusiva» e «alto mar», onde a natureza e alcance dos poderes dos estados difere consoante a área em que se exerce.

Bastaria atender a estas duas últimas formas de «ler o mar», a estratégica/política e a jurídica/legal, para se perceber que as interpretações sobre o «que há a fazer» possam divergir significativamente. Se na perspetiva da estratégia o espaço marítimo se explora na projeção de poder, onde os ganhos de influência podem melhor ser potenciados através de alianças e de parcerias, na ótica jurisdicional os espaços significam poder e propriedade, podendo levar a que as prioridades se centrem nos interesses próprios em detrimento de opções que prosseguem objetivos comuns.

E se a geografia pode representar afastamento de um problema e, potencialmente, alheamento quanto à participação numa solução colaborativa ou cooperativa, não se pode estabelecer uma ligação direta entre a geografia e a intenção de agir. Um Estado com uma pequena costa, ou com uma reduzida frota de pesca e/ou comercial, estará menos vulnerável aos perigos que atingem as populações costeiras ou às ameaças contra a segurança dos marítimos. Mas embora não especialmente afetado, poderá privilegiar a projeção e apostar fortemente na participação em soluções supranacionais como forma de alargar a sua influência e, dessa forma, ganhar espaço político nos fóruns internacionais para reclamar acesso a recursos marítimos que não possui5. Um bom exemplo, que se retomará mais adiante, é o do processo de alargamento das plataformas continentais. Estando em questão direitos sobre os fundos e sobre os preciosos recursos vivos e inertes do solo e do subsolo, alguns países mais desenvolvidos poderão sentir-se tentados a promover alterações ao direito para reforçar as suas prerrogativas, independentemente da localização geográfica das áreas ou das matérias-primas6. Ao contrário, as opções podem ser condicionadas por ser pequeno, ou um país pouco desenvolvido, estando as suas opções limitadas pelos recursos de que dispõe, o que o levará e priorizar a afirmação da soberania, descartando o envolvimento em problemas que não o prejudicam diretamente.

Por outro lado, mesmo reconhecendo que a segurança marítima é uma responsabilidade partilhada, uma nação com uma grande linha de costa e/ou com jurisdição sobre vastos espaços marítimos, estando naturalmente exposta a um conjunto alargado de riscos e ameaças com origem no mar, poderá ser mais renitente a influências externas, e descurar os modelos supranacionais em prol de soluções federadas, a fim de firmar direitos e poder sobre as suas possessões. Mas também poderá querer projetar poder e influência para ganhar ascendente e intervir no plano multinacional, condicionando a seu favor, e/ou liderando, as opções estratégicas (e políticas) daí decorrentes.

Se entretanto abandonarmos as abordagens centradas no mar como ativo geoestratégico ou como espaço de governança, centrando-nos na economia, desaguamos na multiplicidade de atividades marítimas e no que estas representam para o desenvolvimento. Qualquer atividade marítima depende da confiança dos promotores quanto à salvaguarda de pessoas e bens, quanto à segurança dos e nos espaços, quanto à equidade na aplicação da lei, e quanto à sustentabilidade económica dos investimentos. Tal faz relevar o papel das tarefas fundamentais dos estados, a segurança e o desenvolvimento7, delimitação através da qual se tipificam interesses e os fins políticos a perseguir. Mas se essa demarcação forma um denominador comum, a visão segundo as atividades torna muito difícil desenhar respostas integradas pois elas não têm o mesmo valor ou significado para cada protagonista.

A dificuldade em identificar soluções para os problemas de segurança marítima tem então que ver com visões diversas, interpretações dissonantes, interesses autónomos e prioridades discordantes, o que dificulta a prossecução de soluções integradas ou coordenadas. De facto, nem sempre é fácil perceber o que um determinado ator inclui, ou exclui, da sua conceção de segurança marítima, e, em consequência, gerar a motivação necessária à ação.

Analisar ou antecipar respostas com base nas diferentes perceções sobre o mar poderá assim tornar-se enganador, pois estaremos a tomar por comum um grupo de princípios cuja contextualização depende dos objetivos a atingir. Não é possível assentar em tais premissas para desenvolver uma abordagem bottom-up que nos possibilite inferir sobre um conjunto de soluções tipificadas, pois acabamos condicionados por diferentes entendimentos sobre uma mesma realidade, o que nos conduz a uma aproximação top-down.

Em contrapartida, quando nos concentramos nas ameaças e nos riscos, variáveis passíveis de serem nomeadas e amplamente reconhecidas por todos como os agentes das ações ilegais e disruptivas que geram insegurança no mar, também a perceção de perigo que eles representam assume um caráter muito subjetivo, o que vai enformar as ações individuais. Na realidade, a diferente priorização e a forma como cada ator inter-relaciona e interage com aqueles fatores, origina um sem-número de alternativas, as quais, se difíceis de antecipar, podem ainda ser mais difíceis de articular.

A ideia de que a problemática da segurança marítima se resolve com empenhamentos para lá das fronteiras de cada Estado pode assim não ser uma «verdade absoluta», que todos interiorizam e prosseguem de igual forma. Para os processos de decisão contribuem em grande medida considerandos de geopolítica8 e de geoestratégia9, mas também preocupações securitárias de natureza «territorial», que condicionam e enformam as modalidades de ação. Por esse motivo é tão complexo criar referências comuns – ainda que sob a forma de grandes agregados, necessariamente abrangentes – para inferir ou interpretar intenções e, em consequência, criar as sinergias que fomentam a ação conjunta.

Porque o presente artigo se foca na «vontade para agir», importará encontrar um mecanismo através do qual se possam referenciar as necessidades da ação. Para tanto, interessa analisar um caso em que a ação não esteja condicionada por variáveis diferenciadoras e tentar retirar ilações que nos permitam construir lógicas semelhantes para outras situações.

 

A BUSCA E SALVAMENTO MARÍTIMO

Independentemente da perspetiva, é amplamente reconhecido que a salvaguarda da vida humana no mar é uma importante vertente da segurança marítima. Na sistematização segundo as vertentes safety10security11, a salvaguarda da vida humana no mar constitui a parcela safety, conceptualmente bem tipificada. Em oposição está a caracterização de security, que é objeto de conceções bem mais dissonantes12. Não cabendo neste texto explicar em detalhe como está organizada a resposta a acidentes no mar, importa reter que, no que respeita à busca e salvamento (SAR)13, essa organização decorre de um compromisso que os estados assumem, perante a comunidade internacional, relativamente a um serviço a prestar nos espaços oceânicos fronteiros ao seu território – que no caso de Portugal se estendem muito para além das áreas marítimas sob soberania ou jurisdição nacional.

Compromisso» refere-se a uma obrigação da qual resulta responsabilidade para com terceiros. Ao assumir um compromisso, não nos podemos desobrigar de o cumprir transferindo-o para outrem.

Responsabilidade» equivale a «obrigação», e porque está relacionada com a ideia de compromisso, não tem necessariamente de estar associada à noção de soberania14, porquanto pode não ter diretamente que ver com lógicas de poder ou de posse.

O sucesso da organização SAR reside no permanente acesso a dados e a sistemas de monitorização e de alerta em «quase tempo real», na partilha de informação, na edificação e exploração de conhecimento situacional, e na eficiente gestão de um conjunto diversificado de meios, o que inclui a coordenação de navios mercantes próximos da área de um acidente/incidente. Assenta, particularmente, na colaboração entre atores (países, instituições, agências, meios, etc.), mas, mais importante, referindo-nos a «compromisso», é independente de quaisquer considerandos sobre superioridade, propriedade ou soberania.

Soberania», de uma forma simples, é o «poder de escolher e de decidir». Esta noção assume particular importância quando se aborda a questão da «partilha de soberania», que só deve ocorrer quando incide sobre espaços ou matérias que são comuns a vários atores. Se se acorda que terceiros, sem contrapartida no mesmo plano, passem a ter um papel sobre algo que é pertença de uma só parte, o que existe não é uma partilha mas uma perda de soberania15.

A partilha de soberania acontece por vontade de quem a exerce. Já a partilha de responsabilidade não pode ser feita apenas pelo acordo entre dois atores, estando dependente da anuência da parte com quem se assumiu o compromisso original. Isto porque, como já se explicou, uma obrigação não pode ser transferida para terceiros.

O exercício da soberania ou o cumprir com responsabilidades assumidas tem sempre inerente algum tipo de autoridade. Os estados têm autoridade de coordenação sobre os meios necessários ao salvamento da vida humana no mar nas suas áreas de responsabilidade SAR, mas não têm, muitas vezes, qualquer soberania ou jurisdição sobre parte significativa desses espaços.

A «autoridade» tem que ver com poderes funcionais. É atribuída a um «agente», definida para um fim específico, pode estar balizada no tempo ou ser circunscrita a um espaço (de ação). A autoridade é uma «ferramenta» que permite que aquele em que é depositada seja reconhecido por aqueles sobre quem se exerce o poder, legitimando a sua ação.

Respeitando uma matriz genérica de normas e procedimentos, incumbe ao Estado responsável decidir a forma como organiza e assegura a resposta, não se encontrando aquele obrigado a seguir um qualquer modelo padrão. Em génese, pode dizer-se que a organização para a busca e salvamento funciona, no plano macro (internacional), como um «sistema federado».

A SAR é uma questão complexa ao nível da materialização das respostas – já se aludiu aos inumeráveis recursos16 necessários à sua gestão operacional –, mas simples quando se estima o bem afetado: a vida humana. Existe assim um amplo entendimento sobre o que há a fazer, o que permite agregar vontades e dirimir diferenças em torno de um propósito que todos acolhem como comum. Para tanto, a própria área de atuação dos estados não é, na maioria dos casos, como se mencionou para o caso português, coincidente com as respetivas «fronteiras marítimas»17. E, contrariamente ao que ocorre quanto à delimitação daqueles espaços18, isso não resulta em querelas ou disputas, não origina dificuldades de articulação no mar, nem redunda em competição sobre as áreas marítimas. Isto porque, reforçando o que atrás de referiu, se retiraram da «equação» variáveis como território, poder, posse e/ou soberania.

Neste caso, uma solução tipicamente federada funciona, porque não tem de existir uma relação de hierarquia entre os estados e as «estruturas centrais» – por exemplo, com a Organização Marítima Internacional (OMI) no seu papel de entidade reguladora –, podendo os primeiros manter a sua autonomia e o conjunto próprio de competências. Mas no caso das múltiplas variáveis que importam para a vertente de security, o mesmo pode já não ser verdade porquanto o valor da geografia nas relações de poder ou no uso do poder (matérias próprias da geopolítica e da geoestratégia) tem uma influência determinante para os processos decisórios. Ao introduzir a variável «poder» num contexto em que as ameaças e os riscos são percecionados e valorizados de forma dissonante, e em que a associação entre geografia e influência ou soberania releva para a decisão, um modelo em que cada ator é autónomo quanto às suas opções, logo muito condicionado por perceções situacionais independentes, e pelo confronto de «vontades», gera enorme incerteza quanto à faculdade de se materializarem soluções integradas eficazes.

Refira-se, a propósito do raciocínio anterior, que não foi necessário fazer qualquer referência a ameaças ou riscos concretos, tendo-nos limitado a identificar como essas variáveis se materializam – ameaçam a vida humana –, aspeto que é suficiente para gerar consenso sobre a necessidade de agir. A extrapolação para o caso da segurança (security) pode não ser direta, mas concede-nos uma importante pista: na impossibilidade de retirar da equação as condicionantes próprias das relações de poder, poderemos transformar as causas da instabilidade em catalisadores da ação, identificando denominadores comuns.

 

TRANSFORMAR AMEAÇAS E RISCOS EM REQUISITOS DE AÇÃO

Combater as causas e neutralizar os efeitos» constitui uma referência para o planeamento e uma orientação para a ação.

Combater as causas significa tentar encontrar as soluções para um problema analisando as suas origens e atuando sobre estas. É um exercício útil quando realizado individualmente, mas que pressupõe que as causas possam ser reconhecidas por todos, ou pela maioria, como premissas comuns, quando desenvolvido para identificar modalidades de ação que envolvem vários atores. Numa abordagem meramente teórica é um exercício que faz todo o sentido, mas que corre o risco de não ser bem-sucedido porque, como se aludiu, existem leituras muito diversas quanto ao modo como a segurança marítima é concebida e percecionada, o que inclui, igualmente, diferentes formas de compreender e de valorizar os seus motivos. Nas minhas palestras sobre o tema procuro sensibilizar as audiências para essa realidade com a apresentação de uma ilusão ótica19, normalmente uma imagem de uma face humana que pode ser vista, simultaneamente, de frente ou de perfil, o que permite ilustrar que, apesar se vermos as mesmas coisas, percecionamo-las de maneira diferenciada porque a nossa matriz de valores não é a mesma. Consoante aquilo a que damos mais valor, assim também o que é passível de atingir nos merece maior atenção e assume maior prioridade.

As consequências da globalização, que fizeram relevar a noção de «transnacionalidade» dos fenómenos – sejam eles perpetrados pelo homem ou resultado da ação da natu- reza –, não são ajuizadas da mesma forma, uma vez que variáveis como a geografia – que associamos a «afastamento» e a «proximidade» –, a utilidade da atuação – que apreciamos em relação à dependência e à importância do interesse lesado – ou o custo-benefício da ação – que avaliamos em inúmeros planos, dos quais não é despiciendo o impacte na opinião pública –, condicionam significativamente as prioridades individuais. Neste contexto, a materialização de políticas e de estratégias comuns, ou mesmo o acordo quanto a medidas que devem ser tomadas para refutar um problema concreto, debate-se com vontades dissemelhantes, ou mesmo contraditórias, o que, em consequência, reduz o poder20 coletivo de agir (independentemente de ser possível reunir e corporizar as capacidades adequadas).

Se nos centrarmos apenas nas causas é possível enumerar e individualizar atores ou fenómenos que constituem ameaças e riscos, sendo todos amplamente reconhecidos como tal. Terrorismo, criminalidade transnacional, proliferação de armas de destruição maciça, tráfico de pessoas, tráfico de estupefacientes, contrabando, pirataria, ciberterrorismo e cibercriminalidade, estados falhados, imigração ilegal, acidentes marítimos, disputas por recursos naturais, crimes ambientais e depredação dos recursos naturais marinhos, incorporam uma listagem bastante completa, ainda que não exaustiva. Para o exercício que se propõe não importa se deixámos ou não de fora alguma ameaça ou risco, porque o que se pretende é aferir quais são as formas de os contrariar. Não individualmente, onde desembocaríamos novamente em múltiplas alternativas, umas comuns, outras mais dedicadas ou específicas, mas analisando a sua génese e identificando os desafios que, como um todo, nos colocam. A análise da realidade recente pode dar-nos algumas pistas nesse sentido.

A 12 de outubro de 2000 ocorre um ataque suicida ao navio da Marinha dos Estados Unidos USS Cole num porto do Iémen; a 19 de novembro de 2002, o afundamento do navio petroleiro Prestige originou um derrame de combustível que poluiu milhares de quilómetros da costa portuguesa, espanhola e francesa; a 10 de abril de 2005, o navio petroleiro Feisty Gas, de bandeira de Hong Kong, é atacado e apresado por piratas somalis ao largo do golfo de Áden; a 28 de julho de 2010, uma explosão a bordo do petroleiro japonês M Star, a navegar no estreito de Ormuz, é associada a um ato terrorista perpetrado pela Al-Qaida; a 16 de julho de 2015, um navio patrulha egípcio no mar Mediterrâneo é atingido por um míssil disparado a partir de terra por terroristas pertencentes ao Estado Islâmico.

Todos os eventos anteriores descrevem incidentes ou acidentes no mar, sendo ilustrativos de acontecimentos que perturbam a segurança marítima. Diferem nos atores (terrorismo, pirataria, etc.), nas causas (intencionais, acidentais, fruto de negligência, atribuíveis a falhas de segurança, resultado de acidentes marítimos), nos locais (mar alto, estreitos, portos ou proximidades), na região (oceano Atlântico, mar Mediterrâneo, oceano Índico, mar Arábico) e na forma (ataque com explosivos, ataque com armas, mau tempo, falhas de material, etc.). Mas todos têm algo em comum: não foram (evidentemente) anunciados, o que tornou virtualmente impossível prever onde e quando aconteceriam. Corroborando esta leitura, pode afirmar-se que as causas da instabilidade são, na essência, imprevisíveis.

O Estado Islâmico, ou ISIS21, caracterizado como um grupo terrorista, teve a sua origem22 no desmembramento da estrutura militar pós guerra do Iraque, congregando um número considerável de ex-quadros do antigo regime e outros aliados de oportunidade, como o braço armado da Al-Qaida naquele país. O combate ao Estado Islâmico centrou-se inicialmente num contexto de medidas anti-insurgência. Mas a organização não se limitou à tentativa de expulsar as forças ocidentais e a procurar destruir a nova ordem estabelecida, tendo encetado uma demanda por território e por maior poder (político). Depressa a lógica das medidas anti-insurgência deu origem a uma guerra tradicional, destinada a recuperar vastas áreas do território do Iraque e da Síria e a resgatar as populações entretanto subjugadas ao ISIS. Deslocadas pela guerra, ou para escapar às atrocidades do grupo terrorista23, milhares de pessoas iniciaram um êxodo em direção à Europa, dando primeiro origem a um grave problema de salvaguarda da vida humana no mar, pelas más condições em que arriscam a travessia do Mediterrâneo, e depois a uma complexa crise humanitária.

Não sendo despiciendo antecipar que uma guerra possa dar origem a deslocações das populações afetadas, já seria mais difícil de presumir que tal redundasse na necessidade de conduzir operações de salvamento no mar em larga escala, e durante um período alargado de tempo, ou que um grupo terrorista se transformasse numa organização com poderes políticos e controlo militar sobre um vasto território. Esta constatação demonstra que não é possível prever com facilidade o que vai acontecer (i.e., como um determinado ator se irá manifestar) nem como a situação poderá evoluir. Concordar com esta conclusão equivale a dizer que, além de imprevisíveis, os fatores de instabilidade são também incertos.

Já a pirataria marítima é um fenómeno que tem afetado os mares desde tempos imemoráveis, nunca tendo cessado por completo, ao contrário do sentir da generalidade da opinião pública, como acontecia antes de se ter dado o recrudescimento dos ataques por piratas na região do Corno de África e no oceano Índico, que trouxe novamente o assunto para a ribalta24. Segundo dados coligidos no período entre 2002 e 201125, o aumento dos custos para a indústria de transporte marítimo devido aos ataques de piratas ao largo da Somália ascenderam a mais de 1500 milhões de dólares (2010), estimando-se que para cada 120 milhões de dólares pagos em resgates, possam ser imputados entre 900 e até 3300 milhões às companhias e aos consumidores finais. E sabe-se que os montantes pagos para libertar os navios sequestrados são posteriormente utilizados para financiar atividades terroristas e o crime organizado.

Estamos assim perante um tipo de ocorrência que, embora circunscrita a determinadas áreas geográficas (que se podem delimitar no espaço), tem consequências globais. Ademais, a pirataria interage com outros fenómenos como o terrorismo e a criminalidade organizada, o que sugere que cada ameaça não pode ser vista de forma isolada, devendo antes ser analisada em contexto, ajuizando as suas diferentes vertentes e ligações. Em suma, ameaças e riscos estão correlacionados e interagem entre si, a despeito de qualquer considerando de natureza material ou geográfica.

Do anterior, é lícito aceitar que se reduziu um conjunto significativo de fatores causais a apenas três características (metodologia que costumo referir como o «racional dos três “is”»): imprevisibilidade, incerteza e interdependência.

Neste ponto, apelando a alguma abertura de pensamento por parte do leitor, propõe-se que aquilo que genericamente identificámos como «características», se possa, na verdade, entender como a forma de materialização das ameaças e dos riscos. Ou seja, aceitar que as causas da instabilidade no mar se manifestam de forma imprevisível, incerta e interdependente. Esta interpretação pode ajudar-nos a identificar respostas, sem atuar sobre as causas, mas sim sobre as suas «consequências funcionais»26.

Para tanto, retoma-se a segunda vertente da expressão que dá mote ao presente capítulo, a «neutralização dos efeitos». A neutralização dos efeitos consegue-se através da gestão do risco, avaliando o impacte das agressões27 nos interesses a proteger ou nos objetivos a alcançar, e desenvolvendo mecanismos de controlo (do risco) para minimizar essas consequências. No caso vigente, a imprevisibilidade, porque associada à dúvida relativamente ao tempo e ao espaço, determina que as respostas tenham de se desencadear com rapidez, ou com prontidão. A incerteza traduz a dificuldade em estimar modalidades de ação e a forma como estas evoluem, o que requer que se preveja um leque alargado de opções, capaz de desencadear qualquer tipo de resposta que se venha a mostrar adequada. A incerteza combate-se, por isso, com a flexibilidade. A interdependência significa que mesmo quando determinado ator não é diretamente envolvido numa ocorrência, será potencialmente afetado pelas suas consequências, o que poderá compeli-lo a atuar para além do seu espaço de interesse próximo. Reconhecer a interdependência equivale a aceitar a necessidade de atuar longe, ou seja, de dispor de capacidade de projeção.

Reduzir o risco da imprevisibilidade, da incerteza e da interdependência, determina assim que se desenvolva a prontidão, a flexibilidade e a capacidade de projeção (alcance), o que significa reduzir distintas visões e perceções a uma abordagem sustentada em (apenas) três variáveis singulares. Esta aproximação permite criar uma base de pensamento comum quanto ao que é preciso fazer, dando mais coerência transversal aos processos de decisão (vontade), e estimulando a criação de um conjunto crescente de critérios padronizados que vai servir para o desenho dos sistemas de força (capacidade). Este reforço da vontade e da capacidade num plano alargado traduz-se, potencialmente, no aumento do poder28 de ação conjunta.

Apesar de a prontidão e a flexibilidade incrementarem a capacidade de resposta, per se não permitem antecipar necessidades, continuando as soluções a desenvolver-se de forma reativa. Por outro lado, mesmo admitindo a necessidade de projeção, a motivação para agir não deixa de estar muito mais subordinada aos interesses particulares do que a outros quaisquer juízos, o que não nos permite tirar o verdadeiro partido do reforço da vontade a que atrás se aludiu. Neste contexto, o «conhecimento situacional», que se sustenta na partilha, assume-se não só como um importante catalisador para antecipar situações e para desencadear ações preventivas, como também para promover os elevados níveis de confiança que são críticos para os processos colaborativos. Da mesma forma, a consciência sobre distância e alcance não retira da equação as considerações quanto à propriedade dos meios, ou à hierarquia dos interesses, que, como se vem afirmando, dificulta que se estabeleça uma visão integrada sobre o valor e impacte dos perigos, condicionando a vontade de agir em conjunto.

 

O CONHECIMENTO SITUACIONAL MARÍTIMO

Estar consciente» não é o mesmo que «conhecer»!

Com esta frase pretende-se distinguir os conceitos de «consciência situacional» e de «conhecimento situacional», pese embora a sistematização que se propõe possa não ser universalmente acolhida.

A melhor forma de sensibilizar uma audiência para uma mensagem que pretendemos transmitir é fazendo uso de uma situação prática que seja fácil de apreender. E é isso mesmo que nos propomos.

Imagine que participa numa conferência e que lhe é dito que irá ser feita uma prova do sistema de alarme de incêndios. Quando o teste ocorre não se inquieta, pois o aviso que lhe foi feito permitiu que ficasse consciente de que a situação iria ocorrer. Não reage pois para efeitos do seu processo de reação a um estímulo, o teste não é uma situação anormal ou inesperada. Não sabe por que é que ele teve de ser conduzido naquela altura em particular, nem se haveria possibilidade de o adiar para um momento em que não interrompesse a conferência. Para tal teria de ter contactado com o diretor do hotel e perceber o contexto e as razões da experiência. Ou seja, estava consciente da situação mas não conhecia os seus contornos.

Consciência e conhecimento situacional correspondem ambos «à perceção cognitiva dos elementos ambientais circundantes no que se refere às suas circunstâncias de tempo ou de espaço, envolvendo a compreensão do respetivo significado e a sua projeção num futuro próximo, depois de uma das variáveis ser subitamente alterada»29. Mas enquanto a consciência situacional faz realçar o atípico do ordinário, possibilitando que nos concentremos em comportamentos anormais, o conhecimento concede-nos um grau de interpretação situacional que nos permite avaliar e antecipar ocorrências.

Colocando em perspetiva as diferentes fases de geração do conhecimento (situacional marítimo), o primeiro patamar centra-se na deteção e seguimento de contactos, o que nos dá informação sobre «quem», «quando», «onde» e «o quê», e nos confere a possibilidade de monitorizar e reagir a alterações do panorama; num segundo patamar situa-se a consciência situacional (situational awareness), que acrescenta a parcela «como» aos quatro elementos de informação antes referidos. O desenvolvimento de consciência situacional pressupõe já a coleção, integração, tratamento e apreciação de múltiplas fontes, o estudo e a análise comportamental. Através da consciência situacional é já viável aprender, adaptar e estimar necessidades; no último patamar encontra-se o conhecimento situacional (situational knowledge), nível onde, ao «quem», «quando», «onde», «o quê» e «como» se adiciona o «porquê». Neste degrau torna-se possível antecipar requisitos de ação e atuar preventivamente.

Reportando-nos ao exemplo do alarme de incêndios, percebe-se que o conhecimento depende da partilha e do contacto entre atores, estando mais dependente do relacionamento humano do que de outra coisa qualquer. A edificação de um panorama situacional e o desenvolvimento da consciência situacional assentam em elevados níveis de automação, e requerem poderosas ferramentas de processamento e de tratamento de dados. Não obstante, a geração de conhecimento constrói-se sobre informação já tratada, logo em cima dos processos automáticos de coleção e tratamento de dados e de informação, não sendo totalmente independente daqueles.

Dispor de um adequado grau de conhecimento situacional é crítico para as respostas operacionais, tendo-se referido que esse é também um dos fatores que contribui decisivamente para o sucesso da organização SAR. Outro é a omissão de interesses particulares em prol de um entendimento comum sobre o que deve ser feito. Considerando, como proposto, a SAR um estudo de caso (case study), e tendo-se no capítulo anterior sugerido uma visão agregadora sobre as modalidades de ação, estaremos agora em condições de procurar extrapolar algumas das conclusões a que se chegou para avaliar potenciais soluções, no plano organizacional e na vertente funcional, que se possam aplicar às outras componentes da segurança marítima.

 

CRIAR A MOTIVAÇÃO PARA AGIR EM CONJUNTO: MODELOS E SOLUÇÕES INTEGRADAS

As constatações mais importantes a que se chegou para explicar as dificuldades de gerar a motivação para a ação colaborativa são a persistência de interesses e de objetivos próprios, e a noção de soberania e de posse sobre espaços, recursos, etc. A simples redução dos requisitos de ação a um denominador comum, como se propôs anteriormente, não é, ainda assim, suficiente para subtrair tais variáveis ao processo de decisão. No modelo de organização SAR, esses fatores estão omissos e foram substituídos pelo estabelecimento de um vínculo de obrigatoriedade, consubstanciado num compromisso, logo na assunção de uma responsabilidade, perante a comunidade internacional.

A organização SAR assenta num modelo do tipo federado, em que cada Estado atua no respeito por um conjunto de normas regulatórias emanadas de uma organização central, com a qual não estabelecem qualquer relação de hierarquia. Como então referido, os estados têm total liberdade para decidir sobre a organização, os agentes e as formas de empenhamento nacionais, subordinando-as ao que entenderem ser mais eficiente e eficaz, mantendo todas as suas competências e independência para agir como melhor entenderem. Atento o enorme grau de autonomia que lhe é característica, dificilmente uma solução federada pode ser opção para a gestão integrada da problemática da segurança marítima, pois ela encoraja as prioridades individuais e a sobrevalorização dos interesses das partes sobre as do coletivo.

Já uma lógica de «sistema de sistemas», construindo sobre, e otimizando, as mais-valias de cada parte (considerada como um subsistema do todo), parece mais consentânea com o objetivo a que nos propomos. Um sistema de sistemas pressupõe que as partes se organizem segundo uma lógica de unidade de propósito, fazendo com que as capacidades do sistema, no seu conjunto, se não possam referenciar diretamente às propriedades individuais (o todo deverá ser sempre maior que a soma das partes). Apesar de não exigir que se estabeleçam relações de hierarquia, impõe, ainda assim, alguma disciplina para assegurar uniformidade na ação. Assentando já num princípio integrador, para que tal racional funcione teremos de encontrar uma forma de redirecionar vontades sustentadas em interesses próprios, substituindo-as por uma qualquer espécie de compromisso que vincule os atores a colaborar sem reticências.

Um sistema desta natureza, tal como o idealizamos, deverá englobar quer os empenhamentos operacionais, quer o contributo para a geração, num plano macro, de conhecimento situacional. Num e noutro caso sobrevém para a postura de cada Estado a questão da propriedade dos sistemas, logo a faculdade de decidir sobre a sua utilização prioritária. Subordinando-se as decisões a análises de risco e a critérios de racionalidade que não possibilitam cobrir todas as situações de planeamento, os empenhamentos colaborativos podem ser entendidos na ótica de reforçar essas lacunas – quando se beneficia diretamente da solução – ou como uma forma de desviar recursos necessários à prossecução de interesses próprios –, quando cabe atribuir meios a operações conjuntas ou a fazê-los deslocar para palcos distantes.

A partilha dos custos de investimento, entre as organizações supranacionais e os estados, e a afetação de recursos e de meios numa ótica de time-sharing, proporcional à percentagem dos custos suportados, vincularia logo à partida as partes perante as necessidades de ação combinada30. De certa forma é já um modelo que existe ao nível da UE, julgando-se que precisa apenas de melhor estruturação, especialmente no que respeita às metodologias de planeamento.

As medidas de controlo do risco que se identificaram no capítulo quatro seriam, nesta perspetiva, uma referência essencial para a elegibilidade dos investimentos. Para assegurar a prontidão, os requisitos de construção e de operação dos meios teriam de permitir elevados níveis de disponibilidade, o que se consegue com ciclos operacionais prolongados – em que as fases de manutenção planeada representam apenas uma pequena parte do período total – e reduzidas necessidades de formação e de treino dos operadores. Para garantir a flexibilidade, a aptidão para emprego num conjunto alargado de situações de planeamento, incluindo a faculdade de adaptação à possível reorientação da missão quando em teatro, teria de ser parte integrante dos requisitos operacionais. E a capacidade de projeção teria de ser asseverada pela adesão a rigorosos critérios de interoperabilidade, material31 e funcional32, e a processos de manutenção em teatro pouco complexos33.

Num modelo como o que se sugere, incumbe aos estados assegurar a disponibilidade dos meios, e demais recursos, de acordo com as necessidades e o calendário acordado, conduzir as operações e reportar os resultados à estrutura coordenadora. No plano supranacional elabora-se a análise de risco, identificam-se as necessidades (Combined Joint State of Requirements – CJOR) e coordena-se a mobilização de todos os meios e recursos para a área de operações34.

No que respeita à partilha de informação, crucial, como se procurou demonstrar, na edificação do conhecimento situacional, o sucesso das soluções existentes, como o Common Integrated Sharing Environment (CISE), verdadeiro paradigma do conceito de «sistema de sistemas», depende também das contribuições voluntárias dos estados, seja ao nível da ligação dos sistemas nacionais ao ambiente de partilha, seja na alimentação deste com informação relevante. A este propósito identificam-se ainda resistências no que respeita à partilha de informação, muitas vezes porque esta é coligida e processada com recurso a investimentos avultados e a complexos processos de análise muito consumidores de recursos, que são suportados pelos estados. Ademais, a informação constitui uma vantagem competitiva de que não se quer abdicar, não obstante seja amplamente reconhecido que as atividades de vigilância marítima seriam menos dispendiosas e mais eficazes se sustentadas num ambiente de partilha.

Caminhar da lógica de «necessidade de conhecer» para um conceito de «obrigatoriedade de partilhar» não pode residir na vontade individual, nem na repetição, ainda que assente em argumentos muito racionais, de buzz words. Também neste plano se poderia beneficiar de uma repartição dos custos e da transferência da «propriedade dos sistemas» para o nível supranacional. A edificação de um ambiente de informação partilhada deverá assentar na integração de sistemas, estes também desenvolvidos e implementados segundo um modelo de investimento cujas despesas possam ser divididas entre todos os participantes. A contrapartida, até porque a propriedade do sistema, e das suas frações, seria agremiada, materializar-se-ia na responsabilidade de prover o ambiente comum com a informação coligida pelos sistemas singulares.

Sendo possível ponderar uma situação como a que se adianta, prevalece a questão do exercício da autoridade quando as intervenções são conduzidas nos espaços marítimos sob soberania ou jurisdição de um Estado, sobrevindo em primeiro lugar a questão da legitimidade para intervir. Se, neste contexto, qualquer solução multinacional tenha de ter a anuência do Estado ribeirinho, ou ser desencadeada a seu pedido, também a atuação de meios de bandeira estrangeira deve obedecer à presença a bordo de agentes de autoridade daquele Estado. Este é um procedimento já implementado atualmente, sendo disso exemplo as missões de patrulhamento e de vigilância por meios da Polícia Marítima Portuguesa no mar Egeu, que se desenrolam sempre com a presença de um elemento da Guarda Costeira Grega embarcado. Desta forma, apesar de se poder transferir a posse dos instrumentos de vigilância, de processamento de informação e de intervenção no mar para um nível supranacional, mantém-se o respeito aos princípios da legalidade e da legitimidade para atuar no plano do coletivo, salvaguardando as questões de soberania que importam a cada ator individualmente.

Por último, interessa referir que o tipo de soluções a que nos referimos só é aplicável num plano «regional», como o da UE e de outras instituições congéneres, que agregue estados ligados por uma vontade de viver coletivo assente num mesmo conjunto de valores e de princípios e unidos por espaço que compreendem como comum. Um «sistema de sistemas» globalizado não é, com toda a certeza, uma opção realista.

 

SÍNTESE CONCLUSIVA

As visões dissimilares e a distinta valorização relativamente aos fatores que afetam a segurança do mar, no mar e dos marítimos, firmada numa forte noção de poder e de propriedade, reflete-se de forma negativa na motivação dos estados para atuar em conjunto. Os problemas de segurança marítima, quando tratados num plano supranacional, dependem da vontade individual e de contributos voluntários, o que não permite saber em antecipação se será ou não possível reunir todas as condições necessárias ao desencadear de uma determinada operação.

Tal não acontece contudo quando examinamos a organização SAR, onde a ação se realiza, de forma colaborativa e articulada, a despeito de quaisquer considerandos relativos a soberania ou a jurisdição sobre os espaços marítimos. Com base nesta constatação, procurou extrapolar-se a lógica subjacente à SAR (safety) para as restantes vertentes (security) da segurança marítima, o que, em génese, passa por tentar retirar da equação as variáveis condicionantes, substituindo-as pela noção de compromisso, de forma a gerar uma obrigatoriedade.

A solução35 adiantada materializa-se não apenas na lógica da partilha do esforço36 (operacional), mas num processo de planeamento e de edificação de capacidades em que os custos de investimento são repartidos entre os estados («fiéis depositários» dos «bens») e as instituições supranacionais. Aceitando esta metodologia, o emprego dos meios subordinar-se-ia a um racional de partilha (time-sharing), estando os estados obrigados a uma atribuição periódica a operações conjuntas ou combinadas, sendo responsáveis pela sua condução, e aquelas instituições garantes do respetivo planeamento e apoio. No processo, propôs-se uma sistematização das ameaças segundo os seus «efeitos funcionais», os quais, servindo para elaborar sobre as medidas de controlo do risco, são igualmente válidos para a identificação dos requisitos que tornam os meios elegíveis para investimento partilhado.

Tratou-se de desenvolver um ensaio com base no desafio de dissertar sobre «visões cruzadas» (relativas à «segurança marítima»), e de como agregar vontades em prol de uma ação coletiva e articulada, sem as condicionantes próprias daquela dissemelhança.

 

BIBLIOGRAFIA

ARAÚJO, António – Consciência de Situação – Um Ensaio sobre The Falling Man. Lisboa: Editorial Abysmo, 2017.

CONVENÇÃO das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982.

THE ECONOMIC costs of piracy». (Consultado em: 14 de março de 2018). Disponível em: https://www.theigc.org/project/the-economic-costs-of-piracy/.

 

Data de receção: 10 de janeiro de 2018 | Data de aprovação: 20 de fevereiro de 2018

 

NOTAS

1 Uma solução pode ser adequada, exequível e aceitável em termos de custo-benefício, mas inadmissível porque viola o quadro de valores que se professa, situação em que não será prosseguida.

2 A expressão, do inglês constabulary, revela-se mais adequada para a ideia que se propõe transmitir, pois incide sobre o conjunto alargado de funções de guarda costeira, não necessariamente todas desempenhadas por forças policiais.

3 Consoante nos referimos a «relações de poder» ou ao «emprego do poder».

4 Na ótica da proteção das atividades, dos navios e das rotas de navegação marítimas.

5 Ainda que com outro objeto, há uma expressão utilizada por um antigo chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, o almirante Mendes Cabeçadas, que, com algum humor à mistura, ilustra bem a correlação entre as diferentes disciplinas num fórum multinacional como a União Europeia: «quem não contribui para os esforços de segurança (comum), não discute depois o “preço do leite” em Estrasburgo».

6 A oratória igualitária do mar como espaço comum, aliada ao argumento de que a «capacidade» deve preferir à «geografia», tem vindo, a passo, a ser trazida à colação.

7 Que engloba a «justiça» e o «bem-estar».

8 Que se reporta à exploração da geografia nas relações de poder.

9 Que se refere à exploração da geografia no uso do poder.

10 Utilizando-se a palavra «salvaguarda» em português para expressar a mesma ideia.

11 Recorrendo-se à expressão «proteção» em português, para ilustrar o conceito.

12 Como se procurou ilustrar anteriormente na menção a conflitos regionais.

13 Search and rescue.

14 O exercício da soberania acarreta consigo determinadas obrigações (responsabilidades) pelas quais os poderes políticos dos estados respondem perante os seus cidadãos.

15 Opção legítima desde que acordada entre os interessados e assumida em consciência.

16 Sistemas de vigilância, de coleção e análise de informação, de monitorização e de alerta, de comando e controlo, meios navais e aéreos, etc.

17 Entendidas, para efeitos da presente redação, relativamente aos espaços onde os estados exercem poderes de soberania ou de jurisdição.

18 Existem inclusive países que não ratificaram a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10 de dezembro de 1982, não reconhecendo as 12 milhas como limite para o mar territorial.

19 Um exemplo pode ser encontrado em: https://www.moillusions.com/harry-houdini-optical-illusion?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+OpticalIllusions+%28Optical+Illusions%29.

20 Empiricamente o «poder» pode ser entendido como o produto da «vontade» com a «capacidade» (poder = vontade x capacidade), ideia que pode ser facilmente explicada pelas regras da multiplicação: o produto cresce ou decresce quando qualquer dos fatores aumenta ou diminui, e anula-se quando, pelo menos, uma das variáveis é igual ao elemento absorvente (zero). Na prática, tal significa que um qualquer ator, mesmo quando muito capaz, não terá qualquer poder se não existir uma vontade firme para empregar as capacidades de que dispõe. E de pouco serve uma vontade férrea de fazer algo, se não existirem os instrumentos, lato sensu, para concretizar essa vontade.

21 Islamic State in Iraq and Syria.

22 A história deste grupo terrorista e do tempo em que dominou um vasto território no Médio Oriente ainda estará para ser feita.

23 Ao que acrescem os inúmeros refugiados da guerra civil na Síria.

24 Atualmente outras regiões do globo estão também identificadas como áreas de risco, como é o caso do golfo da Guiné, do estreito de Malaca e das Caraíbas.

25 https://www.theigc.org/project/the-economic-costs-of-piracy/, acedido em 14 de março de 2018.

26 Expressão que proponho em complemento do que são, efetivamente, os seus efeitos materiais (morte, destruição, negação de serviços, etc.).

27 Sejam resultado de atos intencionais, ou decorrentes de móbeis naturais.

28 Recordando que atrás se definiu: poder = vontade x capacidade.

29 Adaptado de Consciência de Situação – Um Ensaio sobre The Falling Man, de António Araújo (Lisboa: Editorial Abysmo, Setembro de 2017); segundo o autor, a expressão «consciência da situação» é utilizada a partir do livro 102 Minutos, de Jim Dwyer e Kevin Flyn (tradução portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 2005).

30 Porque as relações de hierarquia são independentes, é formalmente mais adequado referirmo-nos a uma solução combinada, pois a ação conjunta pressupõe a criação de uma linha de subordinação comum.

31 Combustíveis e lubrificantes utilizados, sobressalentes passíveis de obter na modalidade commercial off-the-shelf (COTS – aquisição direta no mercado sem depender da customização de critérios), etc.

32 Facilidade de interligação com redes de comunicações, a redes e a sistemas de informação.

33 A Polícia Marítima fez deslocar para a Grécia, onde participa na operação Poseidon sob os auspícios da agência Frontex, um contentor com sobressalentes e ferramenta. As avarias graves são resolvidas com a substituição de blocos inteiros, explorando, por exemplo, a natureza modular da instalação propulsora das embarcações de que lá dispõe.

34 Muito à semelhança do que são já hoje alguns dos domínios de competência da agência Frontex.

35 A ideia proposta constrói sobre, e aperfeiçoa, um modelo de gestão já em prática ao nível da ue, conferindo-lhe apenas maior robustez ao procurar discernir sobre os seus fundamentos.

36 No atual, os custos de operação e de manutenção acrescida são ressarcidos pela Frontex aos estados que cometem meios e recursos às operações da agência.

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