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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.57 Lisboa mar. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.57a02 

RECENSÃO

 

A América Latina encerra o seu capítulo mais bem-sucedido?

 

Marcelo Camerlo

ICS-UL | Instituto de Ciências Sociais, Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189 Lisboa | marcelo.camerlo@ics.ulisboa.pt

 

MARCELO LEIRAS, ANDRES MALAMUD e PABLO STEFANONI, ¿Por qué retrocede la izquierda?, Capital Intelectual/Le Monde Diplomatique, 2016, 117 páginas, ISBN 978-987-614-519-0

 

Durante a primeira década e meia do século XXI, a América Latina experimentou uma situação sem precedentes. Pela primeira vez na sua história, a região foi totalmente governada por presidentes democráticos (exceto Cuba) que não só conseguem completar seus mandatos (exceções específicas ocorrem no Paraguai e nas Honduras), como o fazem com uma alta aprovação dos cidadãos. Em todos os casos onde a Constituição o permitia, ou onde esta pôde ser reformada, os seus presidentes foram reeleitos. Onde isso não foi possível, foram os partidos destes presidentes que venceram as eleições. Um ator destacado neste cenário, povoado de líderes eleitoralmente bem-sucedidos, é formado pelos governos, considerados por muitos como de esquerda. A sua mera emergência envolveu, em vários países, uma alteração estrutural do sistema político existente e, durante os seus respetivos mandatos, a maioria introduziu inovações significativas. Essa «nova esquerda» (ou novo populismo para os seus detratores) parece estar hoje em declínio claro, com o chavismo e o petismo como seus casos mais estrondosos. As razões de tal retirada são o objeto da obra ¿Por qué retrocede la izquierda?. Esta é a primeira publicação da Serie La Media Distancia do Le Monde Diplomatique, uma série que se propõe pensar «questões urgentes» desde uma abordagem a meio caminho entre a análise da conjuntura e o estudo académico. A obra é composta de três capítulos de diferentes autores: «Economía y política en los gobiernos de izquierda de América Latina» (Marcelo Leiras), «¿Por qué retrocede la izquierda en América Latina?» (Andrés Malamud) e «¿Alba o crepúsculo? Geografías y tensiones del “socialismo del siglo XXI”» (Pablo Stefanoni). Enquanto cada um deles aborda de modo diferente a questão que dá título ao livro, os três coincidem em afrontar, mais ou menos explicitamente, três perguntas relacionadas: a) quem são esses governos de esquerda e o que é que têm de esquerda?; b) quais são as causas da sua chegada e manutenção no poder?; c) quais são as consequências da sua passagem pelo poder?

A primeira pergunta bate com uma dificuldade conceptual bem conhecida na região: a da aplicação de etiquetas ideológicas. Poucos governos e líderes de peso se autodefinem explicitamente como de esquerda (menos ainda de direita), e ao contrário do que acontece para uma grande parte da Europa, as denominações idiossincráticas da maioria dos partidos políticos não ajudam na tarefa. Os três autores evidenciam as limitações no uso da etiqueta, reconhecendo a ampla diversidade interna das experiências que cobre (Stefanoni), criticando o seu uso superficial (Leiras), ou ainda negando-o por momentos, como categoria analítica (Malamud). Nas suas respetivas argumentações, os autores introduzem diversos elementos analíticos. Stefanoni observa o fenómeno como parte de um processo de ressignificação de uma esquerda marxista clássica num contexto pós-neoliberal. Leiras trabalha com um sentido mais restrito, para quem «ser de esquerda é reconhecer abertamente o objetivo de reduzir a desigualdade e adotar as medidas para o alcançar» (p. 43), e enfatizando as suas implicações positivas para o progresso político da região. Por sua parte, Malamud despoja a categoria dos seus elementos substantivos característicos afirmando que, na América Latina, o que valida o rótulo é simplesmente «o facto de que alguém se identifique com uma ideologia e que os outros o reconheçam como membro do clube» (p. 50). Assim, tanto a atribuição quanto os conteúdos da etiqueta são dados pelos seus próprios usuários. Com relação aos casos efetivamente estudados, os capítulos oferecem tratamentos diferentes. Leiras apresenta uma análise empírica exploratória de todos os governos do período 2000-2014. Os outros dois autores seguem uma distinção recorrente que divide esta esquerda em dois grandes grupos (boa/má, social-democrata/populista, ortodoxa/heterodoxa, moderada/radical, reformista/revolucionária, etc.). Assim, Malamud constrói boa parte de seu argumento usando como referências empíricas o caso mais ressonante de cada um dos dois grupos (Brasil e Venezuela), enquanto Stefanoni se concentra nos casos mais importantes do segundo grupo (Venezuela, Equador e Bolívia).

O tratamento da segunda pergunta (causas da chegada e manutenção no poder) incorpora muito das interpretações em voga, que inclui elementos que melhor dialogam com a realidade europeia contemporânea. Leira apresenta uma reconstrução articulada de uma destas interpretações, a qual enfatiza as capacidades dos atores para: a) canalizar a rejeição das políticas neoliberais de desregulação e privatização da década de 1990 e, uma vez no poder e com um contexto económico internacional excecionalmente positivo, b) implementar políticas de emprego e de expansão da previdência social. O autor oferece uma análise empírica consistente com essa interpretação, embora defenda a necessidade de uma abordagem complementar que ponha em evidência a diversidade interna das diferentes experiências. Esta abordagem está presente no capítulo de Stefanoni, onde a análise dos três casos estudados agrega como fatores explicativos o quadro global da queda do socialismo real e o quadro latino-americano dos golpes de Estado e a repressão dos anos 1970. Malamud apresenta uma abordagem complementar para essas interpretações, enfatizando a importância saliente da geopolítica, particularmente do papel desempenhado pela China como o maior importador de fontes primárias. Adicionalmente, os três autores concordam em destacar a importância do sucesso de programas de transferência social e monetária, da mobilização social, do fortalecimento do Estado e, nalguns casos, da perfeição das organizações partidárias em matéria de inserção territorial.

Teorizar sobre as consequências dos governos de esquerda é uma tarefa difícil, tanto por causa da diversidade das experiências quanto porque algumas delas ainda estão em processo de recuo. Os dois legados do governo são, em grande parte, o resultado de uma reconstrução social que precisa de tempo e distância. No geral, a avaliação tende a ser ambivalente. Do lado positivo destacam-se aspetos relacionados com o aumento da inclusão social, a redução da pobreza, o fortalecimento do Estado, e a estabilidade dos governos. Leiras, por exemplo, coloca a ênfase nos impactos futuros que terá a recuperação alcançada em matéria de emprego, estimando que este sucesso «irá condicionar as políticas económicas que serão adotadas no futuro, da mesma forma que as reformas tributárias e as privatizações da década de 1990 pararam por completo o regresso às formas de regulação e intervenção direta do Estado na economia» (p. 43). No lado negativo, a lista inclui a colonização do Estado e a deterioração das práticas republicanas, a reprimarização produtiva, o hiperpresidencialismo, tanto na arena doméstica como internacional, e a fragmentação regional que fica expressada na intrincada superposição de múltiplas organizações supranacionais.

E então, por que é que a esquerda latino-americana está em retrocesso? A resposta dada pelos autores não é, como era de esperar, nem única nem definitiva. Trata-se de um fenómeno difícil de apreender, ainda ativo e em processo de ressignificação social. Uma nota interessante que ilustra a complexidade da questão é dada pelo número atual de governos de esquerda. Bolívia, Chile e Uruguai atualmente têm os mesmos presidentes que quando a onda estava no seu auge, e o Equador e a Venezuela mantêm no poder os mesmos partidos. O grupo é reduzido em apenas um caso, uma vez que «a viragem à direita» na Argentina – único caso de alternância clara – e no Brasil é parcialmente compensada pela entrada da Costa Rica. Assim, surpreendentemente, o número de governos de esquerda hoje é semelhante ao de uma década atrás e, no entanto, a sensação de recuo é altamente compartilhada. ¿Por qué retrocede la izquierda? propõe uma interessante variedade de argumentos, dados e interpretações para entender uma tendência regional complexa, com pontos de contacto nem sempre imediatos com o cenário europeu contemporâneo. Este livro constitui, assim, leitura recomendável para o público neófito, ao mesmo tempo que oferece dicas estimulantes para académicos e especialistas. 

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