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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.66 Lisboa jun. 2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.66a01 

O FUTURO DO OCEANO GLOBAL

 

Nota introdutória

Oceano global: quo vadis?

 

Aldino Santos de Campos* e Teresa Rodrigues**

* NOVA FCSH | Avenida de Berna 26 C, 1069-061 Lisboa | aldino.campos@gmail.com

** NOVA FCSH | Avenida de Berna 26 C, 1069-061 Lisboa | trodrigues@fcsh.unl.pt

 

Vivemos num mundo com características únicas. Olhando para os corpos celestes numa enciclopédia facilmente concluímos que o objeto mais diferenciador do nosso planeta é a sua hidrosfera. Esta vasta entidade líquida cobre cerca de 70% da superfície terrestre e, no conjunto dos seus mares e oceanos, designamo-la por oceano global.

Global não só porque se estende a todos os cantos da esfera terrestre, mas também porque representa a maior fronteira natural do mundo, separando fisicamente, mas interligando simultaneamente, 209 Estados e territórios. Com efeito, apenas 41 landlocked States (Estados sem litoral) não têm acesso ao mar e, deste conjunto, destacam-se dois designados por double landlocked States, por ser necessário atravessar dois Estados para aceder ao mar (Liechtenstein, na Europa, e Uzbequistão, na Ásia) (figura 1).

 

 

A figura 1 contempla divisões geográficas de acordo com a publicação da Organização Hidrográfica Internacional S23 – The Limits of Oceans and Seas1. No mapa, são igualmente visíveis os Estados que partilham o oceano global como fronteira (branco), os Estados sem litoral (cinza) e os Estados duplamente interiores (cinza-escuro).

A partilha do mesmo meio físico por cerca de 80% dos Estados soberanos levanta questões de especial importância, nomeadamente quando consideramos uma geopolítica num mundo finito, quer em dimensões físicas quer em recursos disponíveis, face a uma crescente dimensão e dinâmica populacional.

O oceano global é assim visto como uma última fronteira e, ao nível das relações internacionais, os Estados deverão estar à altura de desenvolverem políticas globais para resolver problemas globais. O fracasso desta abordagem deverá conduzir à instabilidade global assente no binómio cooperação-competição em relação ao oceano global. Contudo, e espelhando a realidade atual, o Oceano também é global porque é o suporte efetivo da presente globalização, viabilizando o comércio internacional numa escala sem precedentes. Na realidade, de acordo com os dados estatísticos da Review of Maritime Transport 20192, cerca de 80% do volume, e mais de 70% em valor, do comércio global são transportados por mar e processados por portos à escala global, uma percentagem que tem vindo a aumentar de forma sustentada nos últimos anos, independentemente das oscilações e crises da economia. Estes valores são ainda mais elevados na grande maioria dos países em desenvolvimento3.

Porém, e acima de tudo, é global porque engloba diversas dimensões fundamentais para o atual modelo de vida humana. Entre outras, podemos identificar as dimensões económicas, securitárias4, científicas, ambientais, sociais e de desenvolvimento. Estas dimensões, que suportam o atual regime dos oceanos, são alicerçadas num pilar fundamental e internacionalmente aceite como a «Constituição para os Oceanos»5 – a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM)6 – e que necessita forçosamente de ser compreendido para que se possa empreender um oceano global sustentável entre os povos do mundo.

E é exatamente sobre esse assunto que iniciaremos a nossa jornada pelo oceano global, com o artigo sobre o regime dos oceanos, designado «A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar de 1982», no qual Paulo Neves Coelho retrata a fundo e de uma forma compreensível o percurso histórico do direito do mar até ao presente, abordando o regime das zonas marítimas estabelecido pela CNUDM. Segundo o autor, é hoje inquestionável que a CNUDM constitui a moldura jurídica de referência do direito internacional do mar contemporâneo e que, pese embora alguns Estados não a tenham ratificado, muitas das normas nela contidas têm vindo a ser reconhecidas como fazendo parte do direito costumeiro internacional, ganhando, dessa forma, um âmbito de aplicação ainda mais amplo.

Dentro do campo jurídico destacam-se diversos problemas emergentes face às novas ameaças globais. Conseguimos facilmente identificar algumas questões contemporâneas que não faziam parte da ordem de trabalhos dos anos 1970, altura em que ocorreu a Terceira Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (1973-1982), mas que hoje são uma ameaça global. Entre outras, as alterações climáticas, com a consequência direta sobre a subida do nível do mar e implicações indiretas nas populações costeiras que veem assim ameaçadas as suas vidas7. É dentro desse domínio que Rodrigo More identifica, com base na sua observação empírica, um movimento de evolução e resposta do direito do mar, do direito internacional, de instituições e dos Estados aos fenómenos naturais, tais como as mudanças climáticas, que já afetam a vida, a economia e as relações entre os povos do planeta. No segundo artigo deste número da R:I, o autor exemplifica com o caso emergente que se regista atualmente na região do Pacífico, onde muitos países podem bater às portas dos tribunais internacionais no curto prazo, especialmente sobre os efeitos do aumento do nível dos oceanos sobre a delimitação marítima. O texto de Rodrigo More propõe a avaliação da adoção de cláusulas de mudanças climáticas em acordos de delimitação de fronteiras marítimas para prover previsibilidade, certeza e segurança às relações entre Estados.

Outro aspeto fundamental, e amplamente debatido durante a conferência que deu origem à CNUDM, é o conhecimento científico e a transferência tecnológica. Para melhor compreender o Oceano há que conhecê-lo e dar a conhecer. É inegável que o conhecimento científico e a literacia conseguem fazer a diferença. Sem um não há o outro, e sem elevarmos esse conhecimento científico à escala global através do estímulo da literacia, o oceano global fica certamente desequilibrado. Revisitando a teoria do caos, e aplicando-a ao oceano global, se tivermos uma fonte de contaminação num determinado ponto do planeta que polua o Oceano, ainda que nessa zona, certamente que vai afetar o Oceano interligado no seu todo. Aqui é onde o conhecimento entra, dando mote aos dois artigos seguintes. O primeiro traz-nos pela mão de Carlos Ventura Soares exemplos reais da relevância que o conhecimento científico tem para os assuntos do Oceano. O autor analisa a abordagem europeia, com base na Política Marítima Integrada, focando uma maior atenção à bacia atlântica. Numa dimensão mais global, Ventura Soares avalia a iniciativa das Nações Unidas da Agenda 2030 no contexto para o desenvolvimento sustentável (United Nations Sustainable Development Goals), com especial foco no objetivo 14 – «Proteger a vida marinha» (Life bellow water). A compreensão desta iniciativa é fundamental, na opinião do autor, para o estabelecimento da Década das Ciências do Oceano 2021-2030.

Sob uma outra perspetiva, podemos olhar o Oceano como um meio capital para alavancar a economia global. Neste domínio, Miguel Marques, no artigo intitulado «Economia, motor da interação humana com o Oceano», alerta para o facto de que o ritmo da utilização do Oceano começa a ser superior ao ritmo dos consensos entre os povos do mundo, diferenças estas que causam divergências que colocam os oceanos num caminho gerador de tensões ambientais, sociais e económicas, de consequências imprevisíveis. O autor exemplifica com vários casos reais de poluição marinha atualmente verificados no oceano Pacífico, no oceano Índico, bem como no Golfo e na América Central. O texto sublinha ainda a necessidade de garantir a proteção ambiental e económico-social, resultante da interação do homem com o mar, através do reforço das agências já existentes para o efeito.

Do ponto de vista das políticas marítimas nacionais e internacionais, Ricardo Serrão Santos, atual ministro do Mar (XXII Governo), retrata-nos o presente quadro da política do mar, enquadrado no seu desenvolvimento das últimas cinco décadas. Neste contexto é demonstrado como o Mar fez Portugal e, do outro dado da moeda, como Portugal faz o Mar, nomeadamente através das suas contribuições para este bem comum. Um ponto alto para o atual ano, 2020, designado pelo autor como o «superano» do Oceano, traria a Lisboa a Segunda Conferência das Nações Unidas sobre os Oceanos, organizada por Portugal e pelo Quénia. Este momento alto, dada a atual crise pandémica que assolou o mundo no final de 2019, terá eventualmente lugar em 2021, coincidindo com o ano em que se inicia a Década das Nações Unidas da Ciência do Oceano para o Desenvolvimento Sustentável. O autor conclui com uma afirmação de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, em que este salienta que o atual momento é o da ciência e da solidariedade, sendo estes dois elementos igualmente identificados como eixos norteadores para o Oceano, quer a nível nacional, quer internacional.

As diferentes opiniões e óticas de abordagem que procuramos incluir neste número da R:I permitem-nos, não obstante, observar e quantificar o oceano global de diferentes ângulos e concluir que, no limite, o mesmo se trata do suporte de vida do nosso planeta. Foi aqui que a vida começou e acabando com a vida do Oceano certamente estamos a condenar-nos a nós próprios. Para tal, é imperativo que os povos do mundo se unam em torno de um consenso e instituam um conceito de governança mais alargado à totalidade do Oceano.

Sobre esta matéria, no último artigo, da autoria de Aldino Santos de Campos, revisitamos o modo como a implementação da CNUDM veio criar um oceano geográfico repleto de divisões políticas, às quais são consignados diferentes níveis de soberania e de jurisdição, dificultando assim a implementação de um conceito de governança pura sobre o oceano global. Esse será um desafio que estará para além das agendas e políticas individuais dos Estados em prol de um Oceano mais sustentável para as gerações vindouras.

 

BIBLIOGRAFIA

FREESTONE, D.; PETHICK, J. – «Sea level rise and maritime boundaries: international implications of impacts and responses». In Maritime Boundaries. Routledge, 2002, pp. 87-104. (Consultado em: 8 de setembro de 2019). Disponível em: https://www.taylorfrancis.com/books/e/9780203036396/chapters/10.4324/9780203036396-12.

GENERAL ASSEMBLY UNITED NATIONS – United Nations Convention on the Law of the Sea. Division for Ocean Affairs and the Law of the Sea, 1982. (Consultado em: 10 de janeiro de 2020). Disponível em: http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf.

INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION – Limits of Oceans and Seas. Número especial, 23. 3.ª edição. Mónaco, 1953. Disponível em: https://iho.int/uploads/user/pubs/standards/s-23/S-23_Ed3_1953_EN.pdf.

SCHOEDINGER, S.; TRAN L.; WHITLEY, L. – «From the principles to the scope and sequence: a brief history of the ocean literacy campaign». In NMEA Special Report. N.º 3, 2010, pp. 3-7.

SHI, Wenming; LI, Kevin – «Themes and tools of maritime transport research during 2000-2014». In Maritime Policy & Management. Vol. 44, N.º 2, 2017, pp. 151-169.

SWING, John Temple – «What future for the oceans». In Foreign Affairs. N.º 82, 2003, p. 140.

 

NOTAS

1 INTERNATIONAL HYDROGRAPHIC ORGANIZATION – Limits of Oceans and Seas. Número especial, 23. 3.ª edição. Mónaco, 1953. Disponível em: https://iho.int/uploads/user/pubs/standards/s-23/S-23_Ed3_1953_EN.pdf.

2 (Consultado em: 6 de maio de 2020). Disponível em: https://unctad.org/en/PublicationsLibrary/rmt2019_en.pdf. A Review of Maritime Transport é uma publicação preparada pelo secretariado da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento desde 1968, com o objetivo de fomentar a transparência dos mercados marítimos e analisar os desenvolvimentos relevantes.

3 SHI, Wenming; LI, Kevin – «Themes and tools of maritime transport research during 2000-2014». In Maritime Policy & Management. Vol. 44, N.º 2, 2017, pp. 151-169.

4 As questões securitárias não serão observadas neste número da R:I, pois foi um assunto amplamente debatido no n.º 57 («Que Segurança Marítima temos e queremos»), publicado em março de 2018.

5 SWING, John Temple – «What future for the oceans». In Foreign Affairs. N.º 82, 2003, p. 140.

6 GENERAL ASSEMBLY UNITED NATIONS – United Nations Convention on the Law of the Sea. Division for Ocean Affairs and the Law of the Sea, 1982. (Consultado em: 10 de janeiro de 2020). Disponível em: http://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf.

7 FREESTONE, D.; PETHICK, J. – «Sea level rise and maritime boundaries: international implications of impacts and responses». In Maritime Boundaries. Routledge, 2002, pp. 87-104. (Consultado em: 8 de setembro de 2019). Disponível em: https://www.taylorfrancis.com/books/e/9780203036396/chapters/10.4324/9780203036396-12.

8 SCHOEDINGER, S.; TRAN L.; WHITLEY, L. – «From the principles to the scope and sequence: a brief history of the ocean literacy campaign». In NMEA Special Report. N.º 3, 2010, pp. 3-7.

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