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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.67 Lisboa set. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.67a02 

Populismos: uma introdução

Eleições, integridade eleitoral e populismo: Uma análise dos pontos críticos

Elections, electoral integrity and populism: an analysis of the critical points

Carla Luís1 

1 CES-UC | Praça Dom Dinis 77, 3000-104 Coimbra Portugal| carlaluis@ces.uc.pt


Resumo

Neste artigo salientamos a importância dos diversos componentes do ciclo eleitoral, abrangendo todos os intervenientes no processo, que são fundamentais para a integridade eleitoral. Estando as eleições cada vez mais presentes na retórica populista, analisamos de que forma a inobservância da sua integridade, em áreas específicas, pode colocar em risco a democracia e conduzir a resultados problemáticos. Propomos sublinhar a crescente importância de uma análise cuidada a todos os aspetos centrais de uma eleição e aos seus diversos intervenientes, com especial ênfase na disseminação de informação.

Palavras-chave: eleições; democracia; populismo; integridade eleitoral.

Abstract

In this article we highlight the importance of the electoral cycle and its components, including all electoral stakeholders. With elections ever more present in the populist rhetoric, we analyse how violations of electoral integrity can lead to problematic outcomes and a threat to democracy in itself. We suggest that greater attention should be given to all aspects of the electoral cycle, including all electoral stakeholders. The dissemination of information, both through civic and voter education is key, as a paramount source of trust and electoral integrity.

Keywords: elections; democracy; populism; electoral integrity.

Introdução

As eleições têm assumido um papel central no conceito de democracia. São sinónimo de legitimidade dos poderes públicos, cujos titulares são eleitos através do voto, num claro sinal a nível interno e externo quanto à fonte da sua legitimidade. As eleições podem ser também uma forma de canalização de conflito violento através de meios pacíficos, em que anteriores adversários dirimem perspetivas diferentes através do voto1.

Especialmente após a queda do Muro de Berlim, a democracia tornou-se o paradigma dominante, sendo as eleições um elemento inquestionável. A assistência eleitoral cresceu em número e extensão, tornando-se comum a nível internacional, num paradigma de cooperação praticamente incontestável. Missões de assistência eleitoral de diversas instituições tornaram-se frequentes e os standards internacionais consolidaram-se e viram-se reforçados no seu padrão de normatividade. Eleições genuínas, livres e justas são expressões que radicam na Declaração Universal dos Direitos Humanos, e o termo integridade eleitoral veio nos últimos anos incorporar e consolidar estes conceitos e fontes de normatividade.

Desenvolvimentos recentes vieram, no entanto, colocar em risco este paradigma. Ironicamente a ameaça parece ter começado nas chamadas democracias consolidadas do Ocidente, com grave risco de contaminação a nível global. O consenso acerca da integridade eleitoral foi criticamente posto em causa, de forma mais ou menos assumida. O negligenciar dos standards internacionais passou a ser quase assumido, deixando desprotegidas áreas importantes do processo eleitoral. As dinâmicas populistas exploraram estas áreas de uma forma perigosa, alavancando o poder de disrupção sobre o processo eleitoral, os standards eleitorais e muitas vezes sobre o próprio sistema democrático e os seus elementos-chave. O desrespeito pela integridade eleitoral, com particular ênfase para áreas específicas do ciclo eleitoral, permitiu beneficiar indevidamente candidaturas populistas, daí resultando um sério risco para o sistema democrático como um todo.

Neste artigo exploramos em detalhe estes aspetos, articulando os pontos mais problemáticos da integridade eleitoral com as dinâmicas populistas. O objetivo principal é chamar a atenção para a importância dos standards internacionais que regulam uma eleição, em toda a sua amplitude, e a importância de todos eles para a integridade de uma eleição e, no limite, para o próprio sistema democrático. O negligenciar destes aspetos, ainda que nas chamadas democracias consolidadas, tem deixando em aberto brechas importantes, exploradas com vantagem pelos movimentos populistas. Este ciclo vicioso põe em crise o processo eleitoral e, no limite, a democracia. A educação cívica e a educação de votantes, enquanto forma de disseminação de informação e conhecimento sobre o processo eleitoral e standards internacionais são a chave, em nosso entender, devendo abranger todos os potenciais intervenientes no processo eleitoral. Só um melhor conhecimento acerca destes aspetos permite reforçar uma vigilância ativa da integridade eleitoral. As democracias ocidentais têm descurado estes aspetos, mas são uma fonte preciosa de disseminação de informação, ferramenta necessária no combate ao populismo, reforçando assim a integridade eleitoral.

A abordagem do ciclo eleitoral e integridade eleitoral

As eleições são um fenómeno complexo e duradouro. Durante muito tempo o dia da eleição assumiu uma preponderância excessiva na análise destes processos. No entanto, no dia da eleição, e no período imediatamente anterior, muitos dos aspetos determinantes, como o quadro legal ou o recenseamento, decorreram já, sem que muitas vezes possam ter sido alvo da devida análise. Para reverter esta tendência, a abordagem do ciclo eleitoral foi concetualizada em 2005, no âmbito do International IDEA2, de forma a abranger todos estes aspetos, mapeando as fases fundamentais de uma eleição e frisando os seus pontos essenciais. Constituiu desde então o paradigma de trabalho na área eleitoral, sendo uma matriz de referência para todos os que com ela contactam.

A eleição divide-se assim em três grandes períodos, posteriormente subdivididos: o período pré-eleição, eleição e pós-eleição. O período pré-eleição compreende as grandes áreas como o quadro legal, planeamento e implementação, formação e educação, recenseamento e campanha eleitoral. O período da eleição abrange as grandes áreas das operações e votação, contagem e resultados, recursos e reclamações. O período pós-eleição, por sua vez, inclui as fases de avaliação, reforço institucional e eventuais ajustes e reformas. Todas estas áreas formam um contínuo natural, sendo a integridade de cada uma delas suscetível de afetar as demais, com impacto natural na integridade da eleição como um todo.

Fonte: Aceproject.org.

Figura 1 A abordagem do ciclo eleitoral 

A abordagem do ciclo eleitoral enquanto concetualização teve um impacto generalizado na área. Esta matriz foi adotada em áreas como a assistência eleitoral, na qual se insere a observação eleitoral, bem como na implementação do processo eleitoral ou a nível teórico e académico. A ferramenta online disponibilizada pelo IDEA elenca ainda osinternational standardsaplicáveis a cada uma destas fases, fornecendo assim uma grelha de aferição da respetiva integridade eleitoral. A abordagem ampla de uma eleição compreendendo todas estas fases do processo eleitoral tornou-se o paradigma, estendendo as áreas de análise muito para além do dia da eleição.

A importância dos Electoral Stakeholders e a necessidade de inclusão

Uma eleição não existe no vácuo, e o cruzamento da abordagem do ciclo eleitoral com a matriz dos intervenientes no processo eleitoral (electoral stakeholders) fornece uma síntese do que uma eleição deve ser. No entanto, estes dois aspetos nem sempre são tomados em conta, mais uma vez deixando em aberto elementos importantes em ambos os campos. Os intervenientes no processo eleitoral são inúmeros, com diversos papéis, poderes e deveres, e o seu envolvimento é igualmente importante.

Existem intervenientes com um interesse direto na eleição, como os partidos políticos, candidatos e integrantes de candidaturas. A administração eleitoral desempenha também um papel importante, nela se incluindo toda uma multiplicidade de agentes que levam a cabo estas complexas tarefas. Instituições como o parlamento e o governo têm um papel importante na determinação do quadro legal, por exemplo. O sistema judicial, incluindo os órgãos de adjudicação de queixas, asseguram uma tutela jurisdicional efetiva. Os observadores, nacionais e internacionais, têm um papel amplo de contribuir para uma maior transparência do processo. A comunicação social contribui, desejavelmente, para este objetivo, informando a sociedade civil e criando ferramentas de análise crítica. Por último, o público em geral, incluindo o eleitorado, e jovens e futuros eleitores, são os destinatários do processo, mas também os principais intervenientes, por ser a vontade popular, expressa em votos, a fonte de legitimidade dos poderes públicos. Cada um destes grupos deelectoral stakeholderspode posteriormente ser subdividido em grupos mais pequenos, com necessidades eventualmente mais específicas. Por exemplo, dentro da sociedade civil podemos encontrar eleitores com deficiência, minorias, ou grupos específicos de população. O ponto importante é que uma eleição deve ser inclusiva, em todas as suas fases, e abranger todos os intervenientes no processo eleitoral, tendo em conta o seu papel e necessidades particulares.

A componente de informação, particularmente através da educação cívica e da educação de votantes, tem sido amplamente descurada ao longo dos processos eleitorais, em especial nas democracias ditas consolidadas. Largas fatias do eleitorado têm sido deixadas de fora, sem que haja um cuidado em disseminar informação específica sobre o processo eleitoral ou o sistema democrático, de forma ampla. O descurar de largas camadas do eleitorado cruza-se na prática com uma das teses que mais explica os populismos: a tese docultural backlash- inversa à tese de que o apoio a movimentos populistas advém de grupos economicamente em perda3. A tese docultural backlashdemonstra que a adesão a movimentos populistas é explicada por fatores culturais, como atitudes anti-imigração, desconfiança nas instituições nacionais e internacionais e apoio a valores autoritários4. Em particular, grupos que veem o seu paradigma social e cultural em crise, com crescente apoio aos direitos das mulheres, multiculturalismo, entre outros, tendem a aderir mais a estes movimentos.

A inclusão de todos oselectoral stakeholders, em particular através da disseminação de informação sobre os processos eleitorais e a democracia em sentido amplo, assume ainda mais relevância neste contexto. A sua ausência pode deixar alienados grupos específicos, com riscos crescentes de radicalização do discurso, e em particular num contexto em que asfake newsatravés das redes sociais são um meio de acesso constante, como adiante desenvolveremos. Estes fatores são suscetíveis de pôr em crise a integridade eleitoral, com potencial dano para o sistema democrático como um todo.

Integridade eleitoral e populismo

A expressão «integridade eleitoral» é atualmente o termo utilizado para aferir a qualidade de uma eleição. A concetualização tem sido avançada principalmente por Pippa Norris5e o termo «integridade eleitoral» refere-se ao conjunto consensual a nível internacional de princípios, valores e standards relativos às eleições, que se aplicam de forma universal a todos os países ao longo do ciclo eleitoral6. O termo «integridade eleitoral» foi avançado de forma a poder ser operacionalizado, e o índice de Perceções de Integridade Eleitoral foi desenvolvido com base neste conceito, no âmbito do The Electoral Integrity Project7. O projeto aferiu a integridade eleitoral das eleições gerais ocorridas no mundo desde a segunda metade de 2012 e até finais de 2018, de acordo com uma grelha de análise e uma escala uniformes. Esta aferição é feita tendo por base também a abordagem do ciclo eleitoral, com um conjunto de 11 dimensões: leis eleitorais, procedimentos eleitorais, delimitação dos círculos eleitorais, recenseamento, registo de partidos e candidaturas, cobertura jornalística, financiamento de campanhas, processo de votação, contagem dos votos, resultados e administração eleitoral. Os resultados foram agregados e estão acessíveis através de uma base de dados quantitativa, sendo apresentados numa escala de zero a 100 pontos possíveis, de modo uniformizado8. Os resultados do índice das Perceções de Integridade Eleitoral são por isso uma grelha de referência importante, permitindo um cruzamento com outras áreas de análise.

As áreas mais problemáticas quanto à integridade eleitoral tornam-se bastante claras através da análise dos resultados agregados9. As áreas menos problemáticas (68 a 61 pontos, por ordem decrescente) são precisamente as que giram em torno do dia da eleição: contagem dos votos, procedimentos e resultados, logo seguidas da administração eleitoral. Num campo intermédio (57 a 50 pontos, por ordem decrescente) situam-se o registo de partidos e candidaturas, círculos e leis eleitorais, procedimentos de votação e recenseamento. Por último, as duas áreas mais problemáticas são a cobertura jornalística (47 pontos) e o financiamento das campanhas (37 pontos), num campo francamente negativo. O financiamento das campanhas e a cobertura jornalística são precisamente os pontos que mais se relacionam com os populismos em matéria eleitoral, como acima referido. No ponto seguinte analisamos um possível conceito de populismo, relacionando-o com o conceito de integridade eleitoral e analisando de que forma a falta de uma análise integrada ao processo eleitoral pode contribuir para o seu crescimento.

Populismo como ameaça à integridade eleitoral

O populismo não tem uma definição unânime, existindo uma vasta literatura sobre o tema. O termo surge muitas vezes intrinsecamente ligado a processos eleitorais. Muitas dinâmicas populistas emergem no contexto eleitoral com especial impacto, noutros casos optam por submeter-se a sufrágio, com vista à conquista de poder formal nas instituições do Estado. Os graus de observância dos standards eleitorais são variáveis, bem como a legitimidade democrática destes representantes eleitos. No entanto, pouca atenção tem sido dada a este aspeto, nomeadamente o seu grau variável de observância da integridade eleitoral.

Não é abundante a literatura que relaciona os dois conceitos, nomeadamente dissecando o conceito de integridade eleitoral e analisando as áreas que mais podem ser contaminadas ou favorecer os populismos no âmbito de um processo eleitoral. A influência dos populismos tem sido crescente nos últimos anos, mesmo nas chamadas democracias consolidadas, e ainda que partidos ou líderes populistas possam ter uma baixa representação eleitoral, como aconteceu, por exemplo, no caso do Brexit10. A retórica populista entrou não só na dinâmica da campanha eleitoral, mas também no processo eleitoral em si mesmo, colocando sérios desafios - e um forte teste - à integridade do sistema. Os movimentos populistas têm vindo a causar grande pressão nos sistemas democráticos11, com particular ênfase também na área eleitoral, e nos múltiplos standards internacionais pelos quais se rege uma eleição.

Não existe uma definição consensual do termo «populismo» (ou populismos), sequer quanto à sua natureza, nomeadamente se se trata de uma ideologia, uma práxis ou outra. Cas Mudde tem sido um dos autores mais influentes na área12, identificando algumas das características principais dos populismos, nomeadamente: carácter antissistema, autoritarismo e nativismo13. Na retórica populista, o sistema é visto como sendo corrupto, devendo a liderança populista ser a voz forte que defende o povo, tratado como sendo uno e único, salvando-o das elites corruptas14. Neste processo, o Estado de direito e os direitos humanos são muitas vezes desrespeitados, como forma de assegurar a ascensão e poder da liderança populista, pondo em causa aspetos centrais de uma democracia, como o Estado de direito, a limitação de poderes ou os direitos das minoras15.

Tem sido crescente o impacto do populismo nas eleições, especialmente nas áreas mais vulneráveis no que se refere à integridade eleitoral. A erosão da confiança nas notícias, e nos meios de comunicação social em geral16, tem sido um aspeto explorado à exaustão por movimentos e candidaturas populistas, numa tentativa mais ampla de destruição da credibilidade dos média. A tentativa de diminuição da comunicação social leva também a uma potencial diminuição do escrutínio público, elemento-chave em qualquer democracia - e fonte importante de formação da opinião pública, especialmente em período eleitoral.

A disseminação de notícias falsas (fake news) tem contribuído para este fenómeno, num campo ausente de regulação, alimentando teorias não comprováveis, e consumida por uma determinada faixa potencial de eleitorado. Ao mesmo tempo, a adesão ao populismo parece justificar-se mais precisamente por fatores culturais (atitudes anti-imigração, paradigma cultural tradicional dominante em causa, apoio a valores autoritários, entre outros), e não por eventuais desfavorecimentos económicos17, o que reforça o possível impacto destes aspetos.

Fenómenos com o Cambridge Analytica combinam precisamente as áreas mais vulneráveis, invisíveis e desreguladas relativamente a uma eleição, como atrás salientámos: a cobertura mediática e a regulação do financiamento. Estes fenómenos combinam aspetos como recolha indevida de dados pessoais, vulnerabilidade da segurança quanto a dados pessoais, falta de transparência na disseminação de mensagens eleitorais e total opacidade no financiamento de atividades de campanha. O financiamento ilegal tem sido, aliás, um problema constante para diversos líderes populistas um pouco por todo o mundo18. O financiamento não regulado, incluindo a falta de deteção das fontes e a proveniência geográfica, leva também a suspeitas de interferência estrangeira na campanha eleitoral, nomeadamente por parte de regimes autoritários19.

Eleições e populismo: redes sociais, financiamento e ausência de regulação

As redes sociais têm sido uma área de pressão quanto à integridade e standards eleitorais. Não obstante, não existe ainda uma tentativa de regulação eficaz destas matérias, nomeadamente a nível da União Europeia (UE) (Parlamento Europeu, 2020).

A utilização das redes sociais tem assumido um papel preponderante em muitas eleições. Entre estas, o Facebook tem estado no centro de graves problemas quanto à violação da integridade eleitoral20. No entanto, esta rede social continua amplamente por regular. A nível da UE, a título de exemplo, têm sido vários os grupos de trabalho na matéria, em particular na preparação para as eleições para o Parlamento Europeu, no início de 2019. Foram feitas várias reuniões com os Estados-Membros, abordando as questões da desinformação através das redes sociais, em estreita ligação com a integridade eleitoral. Não obstante, não existe ainda qualquer regulação a nível comunitário (Parlamento Europeu, 2020). As audições junto da sociedade civil prosseguem, com diversas iniciativas e instituições, mas está apenas anunciada para o final de 2020 uma proposta de regulação posta a consulta pública.

A autorregulação, em particular do Facebook, tem sido a única alteração notória neste campo. A compra de patrocínios a publicações tem regras mais apertadas, estabelecidas exclusivamente pela própria plataforma, no âmbito daquilo que o próprio Facebook designa como «anúncios políticos», e à margem de qualquer regulação nacional. Na definição do Facebook, «anúncios políticos» podem abranger publicações patrocinadas de candidatos ou candidaturas a determinada eleição, mas também publicações patrocinadas contendo expressões como «as mulheres devem ter direitos iguais»21(categoria «direitos civis», classificada como anúncios políticos) ou de empresas de energias renováveis (categoria «assuntos ambientais», igualmente anúncios políticos na definição do Facebook). A categorização varia geograficamente, de acordo com as regras que o próprio Facebook estabeleceu e independentemente de qualquer legislação nacional. A biblioteca de anúncios passa a integrar todos os anúncios pagos que se incluam nesta definição, indicando o montante despendido e o autor do patrocínio, informação publicamente disponível pelo período de sete anos. Por fim, os anúncios considerados políticos podem apenas ser dirigidos a um único país, estando vedada a possibilidade de campanhas que envolvam mais do que um Estado.

A ligação próxima entre redes sociais e populismo tem ficado evidente em eleições recentes. As redes sociais permitem uma área não regulada, onde a retórica é muitas vezes inflamada, sem mecanismos que assegurem o contraditório ou a reposição da veracidade de factos. Estas plataformas permitem também uma disseminação de conteúdos de ódio racial ou outro, pondo muitas vezes em causa direitos das minorias, aspeto contrário a qualquer Estado de direito democrático. A compra de espaços pagos de propaganda é também problemática: permite uma assimetria na utilização de meios económicos pelas candidaturas, ao mesmo tempo que não garante cumprimento pelas regras de regulação das fontes de financiamento destes meios. Não obstante, as únicas alterações têm tido origem na autorregulação, em especial por parte do Facebook, e descurando completamente qualquer regulação nacional - como é o caso em Portugal, por exemplo. Atores como a UE têm feito esforços tíbios no sentido de uma regulação que possa ser eficaz, estando este processo alegadamente em curso desde o início de 2019, sem que se preveja uma regulamentação concreta e que possa ter força suficiente para ser implementada.

A cobertura mediática e o financiamento são os aspetos mais problemáticos a nível da integridade eleitoral, como analisámos, e ambos se cruzam de forma evidente na utilização das redes sociais, em particular no âmbito de dinâmicas populistas, permanecendo por regular. O contexto atual de pandemia veio agravar o potencial peso destes aspetos, e a necessidade de regulação, conforme analisamos de seguida.

Eleições em contexto de pandemia: novos desafios?

A recente situação de pandemia veio trazer novos desafios, incluindo na área eleitoral. Os processos eleitorais foram em geral adiados, com especial ênfase a partir de março de 2020 (IDEA, 2020). A Coreia do Sul foi uma das exceções, tendo constituído um dos primeiros casos de estudo22quanto à organização de eleições neste contexto. A descrição é detalhada, e com forte impacto do ponto de vista logístico e operacional, especialmente exigente para a administração eleitoral. No entanto, e no caso específico da Coreia do Sul, as atividades de campanha ficaram por realizar nos moldes tradicionais, tendo a campanha sido conduzida exclusivamente online. O paradigma atual, em finais de 2020, é já o da realização de eleições, com as adaptações ao contexto pandémico23. No entanto, as atividades de campanha e de preparação de candidaturas em geral, podem ser fortemente afetadas pelas restrições de movimentos, de organização social e de conforto da população, independentemente de qualquer regulação que possa ou não existir. É de esperar, por isso, que as redes sociais assumam novamente uma preponderância na disseminação da mensagem política.

A utilização predominante destes meios pode colocar questões de exclusão de algumas camadas do eleitorado, incluindo população mais idosa, exclusão essa que se pode cruzar com fatores de risco face à covid-19. A prevalência das redes sociais como meio de campanha pode não favorecer o debate, contribuindo ao invés para um afunilamento das perspetivas, potencialmente suscetíveis de ser influenciadas pelo algoritmo e respetiva seleção de conteúdos. A pandemia acentua assim a necessidade de regulação das plataformas, as quais podem assumir um papel determinante na disseminação da mensagem política. Mais uma vez, as questões relativas ao tempo mediático das candidaturas, bem como quanto ao financiamento, podem estar novamente sob forte pressão, explorada pelos populismos, e constituindo um forte teste à integridade eleitoral.

Eleições e pandemia: necessidades especiais de confiança, informação e inclusão

A situação de pandemia de 2020 veio colocar as democracias e as eleições sob forte pressão, a diversos níveis. Uma eleição é um fenómeno iminentemente político, mas deve observar um apertado número de parâmetros técnicos, no que diz respeito à sua integridade, como acima analisado. A situação de pandemia veio colocar sérios desafios à realização dos processos eleitorais e em muitos países existiram alterações legislativas com vista a acomodar a nova realidade, algumas em contexto de estado de emergência. Em alguns casos estas limitaram-se às alterações necessárias face à situação sanitária; houve no entanto desenvolvimentos preocupantes quanto a aspetos centrais da democracia, sob o pretexto da situação atual (IDEA, 2020). Analisamos seguidamente os desenvolvimentos em torno dos mecanismos especiais de votação, acentuados um pouco por todo o mundo face à situação atual, e como a sua implementação ou utilização pode ser suscetível de ter impacto na integridade eleitoral. Em contextos com elevados índices de integridade eleitoral existe uma maior probabilidade de os mesmos serem bem-sucedidos. Ao invés, em sociedades polarizadas ou com baixos níveis de conhecimento, a sua utilização pode ser fonte de disrupção do próprio processo. Mais uma vez, a informação e o envolvimento dos intervenientes eleitorais parecem desempenhar um papel fundamental.

Na atual situação de pandemia, assistiu-se a um crescimento dos mecanismos especiais de votação. São exceções à chamada «regra de ouro» em eleições, que consiste no exercício do direito de voto no dia da eleição e através da introdução do voto em urna, numa mesa de voto organizada pela administração eleitoral. Este ambiente controlado, e organizado de acordo com regras próprias, permite acautelar aspetos como o segredo do voto, a pessoalidade, ou a ausência de coação, entre outros, essenciais ao genuíno exercício do direito de voto. Estas formas especiais de votação podem assumir formas muito diversas, tais como o voto antecipado, voto postal, voto por via eletrónica, ou até mecanismos especiais de votação para categorias específicas de pessoas, tais como as afetadas por doenças contagiosas24. Existe um conjunto de standards a que estes devem obedecer25e que, dadas as especificidades em que estes tipos de votação podem ocorrer, se revestem de especial importância, pois acrescentam uma garantia a estes processos de votação, muito embora possam implicar novos requisitos procedimentais quanto ao seu exercício. A disseminação de informação, bem como a educação cívica e educação de votantes são, mais uma vez, fundamentais. É sobretudo através da informação que se pode construir uma ponte de confiança com o eleitorado e a sociedade em geral. Um elemento-chave em todo o processo eleitoral, eventualmente o mais importante, é a questão da confiança. A perceção de integridade eleitoral, por parte da sociedade em geral e dos intervenientes no processo eleitoral, é o aspeto fundamental numa eleição. Esta confiança inclui aspetos tão importantes como a administração eleitoral, e as entidades a quem compete a implementação do processo eleitoral, as quais são muitas vezes determinantes quanto à integridade do mesmo. Relativamente aos mecanismos especiais de votação, esta confiança é também muitas vezes construída ao longo do tempo, e através da utilização destes mecanismos durante vários ciclos eleitorais.

O novo contexto veio exigir dos intervenientes eleitorais um grau de confiança elevado, para o qual contribuem também elevados graus de conhecimento e literacia em geral. As eleições recentes nos Estados Unidos podem ser disso exemplo. Houve recurso a mecanismos especiais de votação, como o voto postal, sendo fulcral a necessidade de familiarização geral e de confiança no processo. Mais uma vez, níveis elevados de informação, abrangendo todos os intervenientes no processo eleitoral, são determinantes, causa e consequência da observância dos standards internacionais ao longo de toda a utilização destes mecanismos. É necessário por isso ter em conta o carácter sensível das eventuais alterações em matéria eleitoral em contexto de pandemia. A situação cria pressão sobre as sociedades, especialmente sobre setores mais vulneráveis, e alterações a procedimentos existentes, por mais cirúrgicas que possam ser, podem abrir caminho a ser exploradas com fins não democráticos. Na Polónia, por exemplo, tentativas de alterações na forma de votação, passando a exclusivamente postal, parecem ter lançado o alerta, tendo como reação uma taxa de participação eleitoral bastante baixa, suscetível de pôr em causa a legitimidade da eleição. Questões como a implementação do sistema por uma entidade não eleitoral (os serviços de correios, por exemplo), e por isso não necessariamente balizada pelos mesmos princípios de neutralidade, imparcialidade, independência e transparência, podem contaminar a perceção de confiança quanto à sua organização. O contexto em que a eleição se desenrola é pois determinante, incluindo a nível institucional ou social, constituindo um forte indício quanto à compatibilidade das alterações propostas com os standards internacionais. Mais uma vez, a componente técnica é essencial, e a sua observação uma garantia acrescida do carácter democrático do processo eleitoral.

Frequentemente, a utilização destes mecanismos não é, por si só, suscetível de pôr em causa uma eleição, sendo ao invés também manifestação da saúde das instituições em sentido amplo, do clima de confiança ou falta desta, e da forma como o sistema eleitoral como um todo funciona. A suficiência de meios ou a respetiva falta são outro ponto essencial, no caso inserida numa cadeia hierárquica que pode não oferecer as mesmas garantias de independência e imparcialidade. Estes elementos moldam também os níveis de confiança do eleitorado, numa relação que se alimenta mutuamente. A educação de votantes, a educação cívica e a informação em geral são assim aspetos-chave, também nesta área. Uma sociedade civil devidamente informada tem ao seu dispor ferramentas críticas de avaliação dos mecanismos especiais de votação, que lhe permitem avaliar as motivações da sua adoção, o desenho institucional, e a forma como os mesmos podem ou não funcionar na prática. Estes podem ser fatores determinantes no grau de confiança no processo, o qual se manifesta por sua vez (ainda que não exclusivamente) na taxa de participação eleitoral, fator essencial na legitimidade democrática do órgão eleito.

Conclusões

Uma eleição é um fenómeno complexo e duradouro no tempo, envolvendo uma multiplicidade de intervenientes. A integridade eleitoral agrupa os standards internacionais que uma eleição deve observar, estabelecidos numa base sólida. Recentemente, o populismo veio trazer novas ameaças à integridade eleitoral, explorando com vantagem as suas debilidades ao longo do ciclo eleitoral. O financiamento político e a cobertura mediática são algumas destas áreas, exacerbadas pela ausência de regulação, em particular quanto às redes sociais, ou ineficácia na aplicação da mesma. As redes sociais, em especial o Facebook, permitem um cruzamento destas áreas problemáticas também a nível eleitoral, colocando seriamente em causa a integridade eleitoral. No atual contexto de pandemia, também o ciclo eleitoral sofreu alterações na forma de implementação. A redução de atividades físicas de campanha levou a um aumento do poder das redes sociais na transmissão das mensagens, com os riscos que isso acarreta. As formas especiais de votação tornaram-se mais frequentes, exigindo das instituições, eleitorado e sociedade em geral, elevados graus de informação e confiança. Todos estes aspetos reforçam a importância da transmissão de informação relativa à eleição, através da educação cívica e da educação de votantes, abrangendo todos os intervenientes no processo eleitoral, para um reforço da integridade eleitoral de uma forma ampla.

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Notas

1PRZEWORSKI, Adam - «Games of transition». In MAINWARING, Scott; O’DONNELL, Guillermo; VALENZUELA, Samuel, eds. -Issues on Democratic Consolidation.South Bend. University of Notre Dame Press, 1992.

2TUCCINARDI, Domenico; GUERIN, Paul; BARGIACCHI, Fabio; MAGUIRE, Linda -Making Electoral Assistance Effective: From Formal Commitment to Actual Implementation

3INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa -Trump, Brexit, and the Rise of Populism: Economic Have-Nots and Cultural Backlash

4 INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa -Trump, Brexit, and the Rise of Populism….

5 NORRIS, Pippa -Why Electoral Integrity Matters. Nova York: Cambridge University Press, 2014.

6 Ibidem, p. 36.

7 NORRIS, Pippa; WYNTER, Thomas; CAMERON, Sarah - «Perceptions of electoral integrity». InHarvard. 1 de março de 2018. [Consultado em: 1 de outubro de 2019]. Disponível em: https://dataverse.harvard.edu/dataset.xhtml?persistentId=doi:10.7910/DVN/Q6UBTH.

8 Ibidem.

9 Ibidem.

10 INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa -Trump, Brexit, and the Rise of Populism…, p. 30.

11 CONSELHO DA EUROPA -State of Democracy, Human Rights and the Rule of Law Populism: How Strong Are Europe’s Checks and Balances?. Relatório do Secretário-Geral do Conselho da Europa. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2017

12 MUDDE, Cas -Populist Radical Right Parties in Europe. 1.ª edição. Cambridge-Nova York: Cambridge University Press, 2007.

13 Ibidem.

14 Ibidem.

15 CONSELHO DA EUROPA -State of Democracy, Human Rights and the Rule of Law Populism….

16 NORRIS, Pippa; GRÖMPING, Max -Electoral Integrity Worldwide. Harvard: The Electoral Integrity Project, 2019, p. 10.

17 INGLEHART, Ronald; NORRIS, Pippa -Trump, Brexit, and the Rise of Populism

18 NORRIS, Pippa; GRÖMPING, Max- Populist Threats to Electoral Integrity: The Year in Elections, 2016-2017. Rochester, NY: Social Science Research Network, 2017; NORRIS, Pippa - «Why populism is a threat to electoral integrity».LSE Blogs. 16 de maio de 2017. [Consultado em: 1 de outubro de 2020]. Disponível em: https://blogs.lse.ac.uk/europpblog/2017/05/16/why-populism-is-a-threat-to-electoral-integrity/.

19 NORRIS, Pippa; GRÖMPING, Max -Populist Threats to Electoral Integrity….

20 Ibidem.

21 Ver «Biblioteca de Anúncios», na página do Facebook.

22 SPINELLI, Antonio -Managing Elections under the covid-19 Pandemic: The Republic of Korea’s Crucial Test. Estocolmo: International Institute for Democracy and Electoral Assistance, 2020. Disponível em: https://www.idea.int/publications/catalogue/managing-elections-under-covid-19-pandemic-republic-korea-crucial-test.

23 JAMES, Toby S.; ALIHODZIC, Sead - «When Is it Democratic to postpone an election? Elections during natural disasters, covid-19, and emergency situations». In Election Law Journal: Rules, Politics, and Policy. Vol. 19, N.º 3, 2020, pp. 344-362.

24 OSCE/ODIHR - «Alternative voting methods and arrangements». osce/odihr. 12 de outubro de 2020. [Consultado em: 27 de outubro de 2020]. Disponível em: https://www.osce.org/odihr/elections/466794.

25 Ibidem.

Recebido: 07 de Setembro de 2020; Aceito: 01 de Outubro de 2020

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