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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.67 Lisboa set. 2020  Epub 31-Dez-2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.67r02 

Recensões

Recensão: A arte de nomear

Gonçalo Mendes Pinto1 

1 NOVA FCSH | Avenida Berna 26 C, 1069-061 Lisboa Portugal| 90215goncalopinto@gmail.com

SILVA, PATRÍCIA. ,, A Arte de Governar. ,, Lisboa: ,, Imprensa de Ciências Sociais, ,, 2018. ,, 286p. páginas. ISBN, ISBN: 978-972-671-500-9.


A tensão entre critérios meritocráticos e formas de patronagem nos processos de nomeação para cargos públicos, surge enquanto uma problemática central na Ciência Política, captada de forma irrepreensível no livro A Arte de Governar de Patrícia Silva, publicado em 2018 pela Imprensa de Ciências Sociais.

A obra resulta de uma abordagem dos processos de nomeações nas estruturas políticas, que se esforçou por alargar o terreno de análise de forma horizontal - com a inclusão de uma fatia significativa das áreas da administração pública - e vertical - procurando navegar comparativamente patamares diferentes da hierarquia -, sem nunca olvidar o contexto europeu em que nos inserimos.

Composto por nove capítulos, A Arte de Governar insere-se nos atuais debates científicos dedicados à compreensão da patronagem enquanto fenómeno político, introduzindo uma metodologia de análise alicerçada em dados estatísticos e entrevistas que, de forma ambiciosa, procura responder a um conjunto de questões relacionadas com esta temática.

O estudo em questão debruça-se sobre um período temporal relativamente alargado - de 1991 a 2009 -, enquadrando seis legislaturas e quatro primeiros-ministros diferentes (p. 25), tendo como objeto de análise um total de 9821 nomeações executivas, distinguidas entre fasquias diferentes da hierarquia da administração pública (p. 27).

Ao longo da obra, denota-se a preocupação da autora em compreender não só através de que mecanismos legais e formais emana o fenómeno da patronagem - e a sua tensão com impulsos que visam introduzir critérios meritocráticos nos métodos de nomeação -, mas também quais os seus objetivos, motivações e resultados, nunca deixando de parte o contexto histórico português, essencial para uma compreensão holística desta problemática.

A Patronagem

Seguindo uma lógica weberiana de análise das relações da esfera política com a burocracia, a problemática por trás do presente estudo remete, precisamente, para as tensões constantes relativas à introdução de práticas meritocráticas na nomeação de cargos públicos - um reforço da profissionalização -, e da necessidade de os governos partidários em exercer o seu controlo sobre uma administração pública que, quanto mais independente, mais escapa ao controlo do executivo. Por outras palavras, a crescente burocratização das estruturas políticas do Estado pode redundar numa certa inércia institucional, consequente de uma administração pública mais robusta e independente, que, em certas circunstâncias, torna-se um travão à execução das prerrogativas políticas provindas dos governos partidários. A patronagem surge, assim, enquanto peça fundamental para «olear as engrenagens» do Estado.

A patronagem define-se enquanto os mecanismos que os governos partidários têm para, através das nomeações para cargos na administração pública, resolver um conjunto de potenciais problemas governativos. Apesar da literatura, por vezes, entender a patronagem enquanto paliativo, a autora interpreta-a também enquanto instrumento governativo, que cumpre um conjunto de funções que facilitem a concretização de objetivos políticos definidos pelos governos partidários (pp. 38-39). Da mesma forma, apesar de a administração pública ser cada vez mais independente, tal não significa que esta não tenha preferências políticas, e que, portanto, possa funcionar enquanto travão ou acelerador na execução das prerrogativas executivas, dependendo da consonância entre as suas preferências e as do governo que se encontra no poder. Assim, os governos partidários são impelidos a colonizar a administração pública através de mecanismos de patronagem, para tornar as preferências desta mais coerentes com as do executivo.

O Contexto Histórico Português

Após os dois capítulos iniciais, a autora segue a sua investigação com o debate do legado histórico do Estado Novo, e com uma análise da função da patronagem na transição para o período democrático. Neste terceiro capítulo, é avançada a ideia de que, durante o período ditatorial, o papel da administração central em funções de coordenação e controlo era evidente, característica esta que é um dos principais legados do Estado Novo até aos dias de hoje (p. 67).

A revolução do 25 de Abril de 1974 caracterizou-se por ter sido uma transição de regime não negociada, o que implicou que os dirigentes do regime anterior fossem colocados de parte, levando a uma «limpeza» da parte superior da hierarquia política (p. 74). Uma das mais importantes marcas do período pós-revolucionário - 1974-1976 -, foi o facto de os partidos democráticos que surgiram, como o PSD ou o PS, terem assumido uma parte de relevo nos governos transitórios, pouco tempo depois de terem sido fundados, e antes de haverem construído uma base popular que lhes permitisse um enraizamento social forte. Desta forma, a construção das estruturas partidárias que o PS e o PSD apresentam hoje deve muito ao facto de estes as terem montado através de recursos do Estado (pp. 73-75).

Após a solidificação do novo regime democrático, observou-se um gradual e constante engordar das estruturas do Estado. O número de efetivos na administração central que se fixava nos 196 mil em 1970, ultrapassou os 500 mil em 1996 (p. 88), somando-se ao número de institutos públicos que passou de 22 em 1974, para 350 em 2007 (p. 93). O aumento exponencial do tamanho da administração pública nas décadas que se seguiram à transição democrática foi um natural catalisador de formas de patronagem, mecanismos estes que colidiram com uma crescente pressão, por outro lado, para a transparência e meritocracia na nomeação de cargos públicos.

Estas duas forças encontram-se, desde então, em rota de colisão constante: os impulsos para a transparência e profissionalização das nomeações - catalisadas pela pressão de outros partidos políticos, do escrutínio de instituições da sociedade civil e de organizações internacionais como a União Europeia -, são contrastados com a necessidade de os executivos manterem certas formas de patronagem, necessidade essa despoletada pela sua procura de controlo de uma administração pública cada vez mais robusta.

Do outro lado da bancada, a autora relata uma situação relativamente paradoxal. Por um lado, os governos partidários - sejam do PS ou do PSD -, mostraram uma certa abertura em multiplicar os mecanismos de travagem à patronagem, através da criação de legislação que fomentasse a transparência e a profissionalização. Por outro, estes revelavam, também, uma certa inércia partidária na implementação de leis demasiado ambiciosas no combate à patronagem. Por outras palavras, os governos partidários, permeáveis à pressão externa, veem-se forçados a implementar medidas que fomentem a profissionalização, mantendo, contudo, uma certa margem de manobra das nomeações, permitindo conservar parte do controlo sobre a administração pública.

No seguimento deste raciocínio, a autora desenvolve, no quarto capítulo, o conceito de discricionariedade política formal, algo que se refere, precisamente, à capacidade legal ou margem de manobra dos governos partidários no controlo das nomeações para cargos na administração pública (p. 99). A discricionariedade política formal decresce, portanto, com a introdução de documentos legais que cimentem regras e critérios baseados em parâmetros predefinidos, na escolha de indivíduos para ocuparem cargos públicos.

No quinto capítulo, a autora debruça-se sobre a discricionariedade política formal ao longo do período democrático português, através da análise da legislação promulgada. Na Lei 13/97, são legislados concursos nas nomeações para cargos de direção intermédia, mantendo-se, contudo, diversas modalidades de «exceção». Dois anos mais tarde, é passada a Lei 49/99, estabelecendo que critérios de formação profissional não são obrigatórios na nomeação das estruturas intermédias, mas que poderão servir enquanto condição de preferência. Apenas na Lei 2/2004 é estabelecida a formação profissional enquanto critério formal nos concursos para a fasquia intermédia da hierarquia. Nesta mesma lei, é finalmente introduzida a obrigatoriedade de publicação das nomeações para cargos intermédios e superiores em Diário da República, algo que possibilitou o aumento da transparência. Por fim, a Lei 64/2011 consagra o maior golpe na discricionariedade política formal, introduzindo concursos para todos os níveis hierárquicos, a par da criação da CRESAP (Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública), uma comissão independente responsável pela fiscalização das nomeações para cargos de direção superior (pp. 140-142). Apesar de diversos esforços no sentido da profissionalização, estas leis - que foram paulatinamente introduzidas ao longo do período democrático - acusam, contudo, a necessidade de os governos partidários manterem uma certa margem de manobra nos processos de nomeação.

O Contexto Europeu

No sexto capítulo, a autora efetua o exercício de enquadrar o presente estudo no contexto europeu. Em primeiro lugar, Patrícia Silva questiona uma ideia avançada pela literatura que assumia que a patronagem seria mais comum em democracias mais recentes - como os países da Europa do Sul ou de Leste - e, tautologicamente, menos comum em democracias mais antigas (p. 157).

Ao analisar a legislação de 19 países europeus, a autora conclui que tal afirmação não se coaduna com a realidade. Os resultados mostram que, por exemplo, enquanto a França - uma democracia mais antiga -, apresenta o índice de discricionariedade formal mais elevado da amostra, a Bulgária - uma democracia recente -, partilha com o Reino Unido o índice mais reduzido. Portugal, por outro lado, encontra-se colado à média da amostra utilizada (p. 159).

Apesar de a correlação entre antiguidade democrática e discricionariedade política não se verificar, a autora sugere que, pelo contrário, parece haver um alinhamento entre uma alta discricionariedade e um histórico de cooperação entre os partidos de governo dos países respetivos (p. 160). Da mesma forma, é reforçada a ideia de que a entrada na União Europeia e a submissão a regras comuns poderá ter exercido uma força convergente, que redundou numa maior proximidade entre os índices dos países europeus (p. 160).

Apesar dos importantes resultados obtidos através do exercício efetuado neste capítulo, a autora adverte-nos para que o índice de discricionariedade política formal «reporta-se apenas às possibilidades legais, uma vez que a existência de um quadro legal que permita um elevado grau de discricionariedade não implica que seja utilizado na prática» (p. 159). Por outras palavras, a regulação legal da patronagem através do índice de discricionariedade política formal pode não captar uma fotografia completa da mesma, sendo necessário, portanto, recorrer a uma forma de avaliar a patronagem que não se alicerce exclusivamente na análise da legislação.

A conclusão determinada por estes resultados motiva a autora a dedicar o próximo capítulo à compreensão da perceção da patronagem em Portugal, focando-se agora nas entrevistas a mandatários políticos1, ao invés de recorrer ao índice de discricionariedade política formal que, como este capítulo conclui, pode não captar de forma precisa a realidade deste fenómeno.

A patronagem em Portugal: motivações e objetivos

O sétimo capítulo d’A Arte de Governar debruça-se sobre o entendimento da perceção da patronagem em Portugal, sobretudo, no que toca aos critérios que definem os padrões da patronagem, e quais os objetivos da mesma enquanto instrumento político ao serviço dos governos partidários.

Após a obtenção dos resultados das entrevistas, conclui-se que a patronagem em Portugal segue maioritariamente um critério de competência técnica, o que indica um esforço pela profissionalização nas nomeações para cargos públicos. Contudo, o critério da competência técnica é seguido por outros como o passado político, a confiança política, o conhecimento pessoal e a experiência partidária (p. 178). Apesar de os diferentes critérios indicarem objetivos e formas de decisão sobre as nomeações distintos, a autora realça que estes podem coexistir.

Dados os resultados obtidos nesta primeira análise, a autora foca-se em captar, agora, as principais motivações da patronagem. Como está explanado acima, a patronagem define-se enquanto instrumento governativo, que cumpre um conjunto de funções e objetivos definidos pelo topo da estrutura executiva, dentro dos quais destacaremos a recompensa e o controlo. A primeira diz respeito à nomeação para cargos na administração pública que são motivados por lógicas compensatórias que procuram, portanto, fomentar formas diversas de lealdade pessoal e melhorar o funcionamento interpartidário. A patronagem de controlo, por outro lado, tem como foco facilitar o processo de policy making, tornando os interesses das estruturas da administração pública mais coerentes com os do executivo, funcionando, assim, enquanto mecanismo que permita uma maior capacidade de controlo na implementação de políticas públicas, evitando a inércia institucional que uma administração pública contracorrente pode, eventualmente, efetuar (pp. 184-186). Os resultados, observados enquanto um todo, acusam um certo equilíbrio entre os dois objetivos centrais da patronagem que destacámos, evidenciando-se, contudo, uma ligeira preferência pela patronagem de controlo (pp. 182-183).

Apesar dos resultados apresentados, a autora não se abstém de examinar se os objetivos da patronagem variam entre as diferentes hierarquias da função pública. A autora adianta que os padrões de nomeação para as fasquias intermédias e inferiores da hierarquia servem objetivos distintos daqueles que regem as nomeações para cargos superiores. Nos primeiros, a conjugação de requisitos técnicos menos exigentes com um menor escrutínio por parte de comissões independentes, oposição partidária e média, faz sobressair um tipo de patronagem mais focada em lógicas compensatórias. Por outro lado, sabendo que as hierarquias superiores têm um maior acesso ao poder, e que são alvo de um constante escrutínio, sobressai, aqui, uma maior incidência da patronagem de controlo à qual é exigida, naturalmente, maiores padrões de transparência.

Por fim, a autora cruza as nomeações para os diferentes patamares da hierarquia da administração pública com o timing das nomeações ao longo das legislaturas. Os resultados apontam para uma maior incidência de nomeações para as hierarquias superiores no início das legislaturas, e, por oposição, um maior desfasamento temporal nas nomeações para as fasquias intermédias e inferiores. Esta distinção acusa, novamente, a diferente natureza do objetivo das nomeações entre as fasquias superiores da administração pública e as intermédias e inferiores. A necessidade de controlo que motiva as nomeações para a hierarquia superior coaduna-se com uma maior incidência das mesmas numa fase inicial das legislaturas. Por outro lado, a natureza compensatória - mais presente nas nomeações para as hierarquias intermédias e inferiores - alinha-se com uma maior irrelevância do timing das mesmas, o que, portanto, explica o porquê de estas surgirem de forma mais espalhada no decorrer das legislaturas.

Conclusões

O livro que aqui discutimos, presenteou o estudo da patronagem em Portugal com um substancial e importante contributo. A análise multidimensional que a autora propõe, avaliando os objetivos e motivações da patronagem ao longo de um substancial período temporal, enquadrados em diferentes patamares da administração pública, despoletou um forte potencial heurístico para a matéria sobre a qual incide.

O aumento gradual do tamanho da administração pública e a sua crescente profissionalização, impeliu os partidos de governo a contrapor os esforços para a diminuição da patronagem com mecanismos que permitissem a manutenção de uma certa margem de manobra na tutela das nomeações. Na verdade, denota-se a existência de um «acordo tácito» entre o PS e o PSD na definição de prerrogativas comuns relativas, precisamente, à manutenção de um certo poder dos partidos de governo nas nomeações.

Na prática, o presente estudo revelou que bastantes presunções da literatura relativas à patronagem não se coadunam com a realidade. No contexto internacional, esta obra veio desmentir pressupostos relativos às diferenças nos padrões de patronagem entre os países europeus, elucidando que nos últimos anos se destaca um movimento convergente entre estes, e que a antiguidade das democracias não surge como fator determinante nos padrões da patronagem. Da mesma forma, enquanto a literatura dá especial ênfase à patronagem enquanto mecanismo de recompensa, a autora vem demonstrar como essa afirmação não capta uma completa fotografia do fenómeno em questão, se não dissecarmos a administração pública pelas suas diferentes hierarquias. Pelo contrário, o reforço gradual da profissionalização e de critérios meritocráticos nas nomeações vem atribuir à patronagem de controlo um peso cada vez maior, dado que uma administração pública independente escapa mais facilmente ao domínio dos governos partidários.

Esta obra vem, de certa forma, dar ênfase a uma dinâmica governativa que, tendo em conta o contexto que atualmente vivemos, ganha uma importância acrescida. Fenómenos como a patronagem têm um peso cada vez maior num mundo onde os populismos crescem, e onde a qualidade e a confiança na democracia em muito dependem de uma perceção de transparência nas nomeações para cargos públicos.

Bibliografia

BEARFIELD, Domonic. A. - «What is patronage? A critical reexamination.». In Public Administration Review. Vol. 69, N.º 1, 2009, pp. 64-76. [ Links ]

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DI MASCIO, Fabrizio; JALALI, Carlos; PAPPAS, Takis; VERGE, Tânia; GÓMEZ, Raúl - «Southern European party patronage in comparative perspective». In PSA Conference Edimburgo. Vol. 29, 2010, pp. 1-24. [ Links ]

WEBER, Max - A Ciência e a Política como Ofício e Vocação. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2017. [ Links ]

Nota

1 Os entrevistados foram distinguidos entre detentores de cargos políticos, dirigentes, académicos e detentores de outros cargos.

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