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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.68 Lisboa Dec. 2020  Epub Dec 31, 2020

https://doi.org/10.23906/ri2020.68r01 

Recensão

Recensão: O lugar do Presidente da República no sistema político português

Rui Graça Feijó1 

1 CES - UC. Praça Dom Dinis 77, 3000-104 Coimbra. Portugal. ruifeijo@gmail.com

Franco, Vasco. ,, Semipresidencialismo: Perspetiva Comparada e o Caso Português. Os Poderes Presidenciais na Interação com o Governo e a Assembleia da República (1982-2016). ,, Lisboa: ,, Assembleia da República, ,, 2020. ,, 371 ppp.


A Assembleia Constituinte (1975-1976) adotou como matriz do sistema político português um tipo de regime - hoje em dia geralmente designado por semipresidencialismo - com escasso lastro histórico, uma vez que depois da sua «invenção» na República de Weimar (1919) poucos foram os países que optaram por um modelo baseado na eleição paralela do Presidente da República (PR) e de um governo que responde perante a Assembleia (assumindo que esta definição proposta por Robert Elgie responde aos traços distintivos deste sistema). Quarenta e cinco anos volvidos, o semipresidencialismo em todas as suas variantes (e são bastantes) tornou-se uma forma popular de organização do Estado, e vigora um pouco por todo o mundo, com especial relevo na Europa democrática. Na sua já longa viagem pelo mundo real, o semipresidencialismo suscitou animadíssimos debates, quer entre políticos e decisores públicos, quer entre a comunidade académica. O malogrado Robert Elgie sublinhou que, com exceção do inglês e possivelmente do italiano, o português é a língua em que mais estudos foram escritos desde o início do processo de esclarecimento sobre o que constituiria a essência, as modalidades, as virtudes e os pecados do modelo. Recorde-se que pouco após a publicação dos estudos seminais de Maurice Duverger (sendo que o seu livro Xeque-Mate tem logo em 1979 uma edição portuguesa com um prefácio específico que procura abordar o caso do nosso país), Luís Salgado de Matos participa num importante seminário (1983) donde viria a sair uma obra relevante, e que inscreveria a presença do caso português no coração dos debates. Creio que Portugal nunca mais perderia um estatuto especial no mundo académico, ao passo que o seu exemplo haveria de se estender - por influência direta - a muitos países de expressão oficial portuguesa, onde ainda permanece como modelo dominante.

É assim num contexto particularmente exigente por estar estribado numa profusão de estudos que surge agora o novo livro de Vasco Franco. A sua chegada é motivo da mais viva saudação: não só faz jus à tradição que entretanto se desenvolveu, como aporta um olhar meticuloso e atento ao caleidoscópio de questões que a análise do semipresidencialismo português suscita. Trata-se de um notável estudo que se tornou incontornável para quem queira compreender os mecanismos próprios do sistema político português.

Quadro constitucional e agência política

O livro de Vasco Franco nasceu como tese de doutoramento (2018) em Ciência Política, que aliás completou com brilhantismo, ele que não provém da tradição académica mas antes possui um longo trajeto no universo da intervenção cívica e política. Desde cedo o autor nos avisou que não se deveria esperar do seu trabalho uma perspetiva disciplinarmente vincada; pelo contrário, Vasco Franco convoca o saber do constitucionalismo e estabelece um diálogo entre a análise política e o direito, ou seja, entre a agência que os atores emprestam à sua práxis e o carácter normativo e institucional que baliza o exercício do poder. É um cruzamento fértil, que nem sempre se encontra em escritos sobre o nosso sistema político. Recordo, a título de mero exemplo, a questão das circunstâncias que permitem ao PR demitir o primeiro-ministro (PM), sendo que este é, nos termos constitucionais, duplamente responsável perante o PR e a Assembleia da República (AR). Para Vasco Franco, essa dupla dependência não desmente o facto de que «só ao presidente caiba avaliar as circunstâncias excecionais em que deve exercer [esse poder]» (p. 123). Fica assim dada uma resposta ao argumento de que a dupla dependência é assimétrica, sendo que seria estritamente política no que toca à ar, e meramente institucional no que ao PR diz respeito. O facto de uma decisão presidencial neste domínio não ser contestável juridicamente enfraquece significativamente tal argumento, e realça a sua natureza intrinsecamente política.

A evolução de uma tese académica para um livro ao dispor do grande público faz-se com sentido económico, sem com isso perder o impressionante aparelho teórico e empírico presente na primeira (que permanece como algo para que o autor remete os leitores mais ávidos de pormenores e análises detalhadas). A literatura académica sobre o semipresidencialismo (incluindo as questões da sua definição e das variantes que comporta) é tratada com desenvoltura, e no segundo capítulo apresenta-se uma panorâmica sobre a evolução histórica que explica o surgimento em 1976 de um modelo político até então pouco usual. Há ainda um terceiro capítulo que procura balizar o caso português por referência a modelos supostamente situados em polos opostos do contínuo do semipresidencialismo: a França (onde os poderes presidenciais são mais expressivos) e a Áustria, onde, pelo contrário, tem uma expressão mais residual e simbólica (se bem que circunstâncias históricas precisas possam acordar alguns poderes «dormentes»).

A análise da experiência portuguesa - que representa a parte mais apetecível desta obra - tem uma virtude: foca-se explicitamente no estatuto do PR e na sua relação com o governo e a ar, partindo sempre da consideração dos poderes presidenciais e do modo como foram efetivamente exercidos. Não é por acaso que num sistema democrático baseado na distinção de poderes, e na existência de mecanismos de freios e contrapesos, a Constituição - e grande parte da opinião pública - concedem ao PR um lugar cimeiro, consagrando-o como «chefe do Estado». O PR e a caixa de ferramentas dos seus poderes é o centro da análise proposta - e essa clareza é uma virtude. Obviamente, o sistema de governo poderia ser encarado a partir, por exemplo, do lugar de PM - uma análise possível uma vez que a este está confiado o essencial do poder executivo. A opção aqui foi distinta, e creio que o leitor tem a ganhar com ela. É sobre ela que se alicerça um dos contributos originais de Vasco Franco, a saber, a ideia de que a relação entre o PR e o PM pode e deve ser analisada em função de duas perspetivas complementares que, sendo pressentidas em vários estudos, ganham aqui estatuto explícito: sentido e intensidade. Esta proposta é tão mais relevante quanto no modelo político - mas não institucionalmente obrigatório - que vigora entre nós, é suposto o PR ser uma personalidade «independente», ou seja, que não assume uma articulação entre si e o governo ou a ar mediada por partidos políticos (embora possa nominalmente ser membro de um). Contrariamente a outros modelos em que a filiação partidária do presidente é um dado de base (vide o caso francês), em Portugal a relação entre o PR e o governo admite uma variedade de situações de complementaridade/confronto que as duas dimensões acima mencionadas contribuem para iluminar.

Na sua dimensão analítica, a proposta de Vasco Franco é, pois, inovadora. Lidando com as insuficiências dos modelos de tabulação dos poderes presidenciais mais em voga na literatura da Ciência Política e que tão úteis são para iniciar estudos comparativos (como sejam os de Shugart e Carey, de Siaroff e de Metcalf), e sobretudo sentido o desconforto com a oposição binária «poderes legislativos/poderes não legislativos» que percorre essas propostas, o autor apresenta-nos uma tipologia afinada que contempla as seguintes categorias: «poderes de refrescamento sistémico», «poderes de intervenção no processo legislativo», «outros poderes com relevância sistémica», «poderes excecionais» e «poderes informais». Trata-se do esqueleto do que é a sua análise subsequente do caso português, relevante para futuros estudos de natureza comparativa, e que comprova que o autor, mais do que aplicar modelos com fama no mercado académico, entendeu ir mais longe e questioná-los no sentido de os tornar mais eficazes.

O trabalho de Vasco Franco é meticuloso e pormenorizado. Veja-se um exemplo que serve também para ilustrar o ponto que acabo de suscitar: o do veto presidencial. Para Franco não há só uma leitura do exercício do poder de veto - mas sim seis! Há que saber distinguir a sua natureza entre vetos «políticos», «jurídicos» ou «de transição», e o seu sentido entre «cooperante», «conflitual» ou «neutro» (pp. 204 e seguintes). Este quadro analítico permite elaborar um quadro muito mais fino do que usualmente se encontra na literatura, onde não é raro ver todos estes vetos amalgamados num só. Só uma grande proximidade com a realidade estudada e uma subtil inclinação para modular realidades complexas explicam que o autor tenha podido aperceber-se que sob o manto diáfano de um só vocábulo se esconde um universo de variação, e iluminar as suas consequências.

Propostas contraintuitivas

O interesse maior de um livro como este não é o de nos proporcionar um extenso «estado da arte» e/ou de retomar de forma sistemática asserções que correm no espaço público, académico ou político. Pelo contrário, espera-se que quem se aventura nas águas da pesquisa nos proporcione um confronto entre o que se tem por adquirido e as bases em que tais asserções podem assentar. Vasco Franco não foge ao desafio, e são várias as conclusões que propõe em confronto com ideias vulgarmente divulgadas, algumas das quais aparecem como hipóteses que, sendo apresentadas no início da investigação como instrumentos que hão de guiar a pesquisa, se vem a verificar terem menos base de sustentação do que se imaginava. Podemos até dizer: as sugestões de Vasco Franco são, até certo ponto, contraintuitivas. Vejamos brevemente dois casos.

O capítulo IV dedica-se aos poderes formais e informais do pr. Nele se põe em evidência a existência frequente de níveis significativos de conflitualidade entre o PR e o governo que pertence à sua família política - sendo certo que Vasco Franco propõe na conclusão que essa conflitualidade não é uma característica maior do nosso sistema, pelo menos tal como tem sido interpretado pela maioria dos pr. O facto de essa conflitualidade poder ser mais expressiva no caso de relacionamento com governos de outra cor política não invalida o sublinhado da importância da sua verificação em casos de sintonia presumida. Tal constatação mereceria que o autor explorasse mais detalhadamente situações como a da adequação do conceito de «coabitação» - tão importante em países como a França e mesmo nalguns PALOP - ao caso português, ou as implicações da ideia de que o PR em Portugal é um agente «independente».

O segundo caso diz respeito ao presumido aumento da capacidade de intervenção do PR estar associado a um diferencial de popularidade com o PM. Segundo Franco, «verifica-se uma muito ténue relação entre a intensidade de interação e os períodos temporais em que é mais elevada a diferença entre a popularidade do presidente e do primeiro-ministro, a qual não tem valor estatístico relevante» (p. 302).

Um livro amigo do leitor

Não posso terminar sem uma palavra de reconhecimento pelo esforço de Vasco Franco em nos apresentar um livro (como ora se diz) amigo do leitor. As figuras, quadros e tabelas são numerosos e quase sempre muito pertinentes e claros; talvez se possa discutir uma tendência para usar termos «quantitativos» em muitos quadros, sendo que essa tradução numérica exprime muitas das vezes uma codificação da realidade - e enquanto codificação deve ser lida - e não realidades empiricamente mensuráveis. A extensa bibliografia aparece compartimentada em secções temáticas, e as referências ao longo do texto - muito numerosas e significativas, eventualmente pecando por saturar o argumento com este tipo de apoio, como se o autor temesse parecer pouco credível quando estamos longe desse defeito - são facilmente identificáveis. O volume conclui com um bem-elaborado índice remissivo - instrumento precioso para se navegar as mais de 350 páginas de texto.

Cada presidente interpreta a seu modo o múnus do seu ofício - e por isso o estudo do sistema de governo em Portugal é uma empresa sem limites. Para os que irão continuar a acompanhar o desenvolvimento da nossa democracia, tanto entre nós como no plano internacional, este livro de Vasco Franco constitui um marco incontornável, que facilita - e muito - essa tarefa. Porque, com indisfarçável modéstia, nos ensina muito sobre o modo como o sistema funcionou sob três presidentes (e ainda em parte sob um outro). Um sentido agradecimento por tão precioso contributo, na expetativa de que continue a brindar-nos com estudos deste calibre.

Bibliografia

Franco V. Semipresidencialismo: Perspetiva Comparada e o Caso Português. Os Poderes Presidenciais na Interação com o Governo e a Assembleia da República (1982-2016), Lisboa, Assembleia da República, 2020. [ Links ]

Rui Graça Feijó Licenciado em História (Coimbra, 1978), doutorado em História Moderna (Oxford, 1984) e agregado em Democracia no Século XXI (Coimbra, 2017). Investigador no CES - Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, e investigador associado no IHC - Instituto de História Contemporânea, Universidade Nova de Lisboa. Em 2005-2006 foi assessor da Presidência da República em Timor-Leste, ao tempo de Xanana Gusmão. Tem-se dedicado a estudos de natureza histórica, política e social sobre Timor-Leste, com acentuado foco na construção da democracia numa perspetiva comparada. Publicou vários artigos, capítulos de livros e monografias, dos quais se salientam O Semi-Presidencialismo Timorense (Almedina, 2014), Dynamics of Democracy in Timor-Leste (Amsterdam University Press, 2016), Democracia: Linhagens e Configurações de Um Conceito Impuro (Afrontamento, 2018) e, recentemente, Presidents in Semi-presidential Regimes: Moderating Power in Portugal and Timor-Leste (Palgrave, 2020).

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