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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.69 Lisboa Mar. 2021  Epub Mar 31, 2021

https://doi.org/10.23906/ri2021.69a05 

Os Estados Unidos de Biden: uma nova política externa?

Os Estados Unidos e a América Latina: de Biden a Trump1

The US and Latin America: from Trump to Biden

Abraham F. Lowenthal1 

1 925 yale street, Santa Monica, CA 90403, Estados Unidos da América. afl@usc.edu


Resumo

As perspetivas da Administração Biden de melhorar as relações com a América Latina são limitadas pelos problemas profundos desta região. A pandemia está a afetar a América Latina de forma mais intensa do que outras regiões, e provocou uma queda acentuada do PIB regional (9%) e, na maioria dos países, diminuiu a confiança em governos, partidos, políticos, especialistas e elites. Tendo em conta o papel desempenhado como membro destacado da Comissão de Relações Exteriores do Senado e como Vice-Presidente, Joe Biden entra na Casa Branca com um melhor conhecimento da realidade americana em comparação com outros presidentes recentes dos Estados Unidos. No entanto, a Administração Biden não tem capacidade de lançar um plano visionário para reconstruir as relações entre os Estados Unidos e a América Latina.

Palavras-chave: Estados Unidos; América Latina; Administração Biden; covid-19

Abstract

The new administration’s prospects for improving inter-American cooperation will be limited by Latin America’s own profound problems: the pandemic itself, which has affected Latin America more harshly than any other region; a 9% regional drop in GDP; and radically diminished trust in most countries of governments, political parties, politicians, experts and elites. As Chairman of the Senate Foreign Relations Committee, and Vice-President, Joe Biden will enter the White House with more experience in and knowledge of Latin America than most previous US presidents. Despite this personal background, the Biden administration cannot credibly rescue Latin America nor propose a major new program to rebuild US-Latin American relations.

Keywords: USA; Latin America; Biden’s administration; Covid-19

Joe Biden encontra-se perante uma conjugação tremenda de desafios e constrangimentos. As suas prioridades têm de ser internas: reduzir a polarização dolorosa do país, consolidar a sua base de apoio, derrotar a pandemia e reabrir a economia, ao mesmo tempo que reduz as desigualdades e combate o racismo.

Mas Biden também terá de lidar com uma agenda internacional complicada: reconstruir a confiança dos parceiros, restabelecer as relações com importantes instituições multilaterais e fortalecê-las, travar a proliferação de armas nucleares e impedir o seu uso, combater as alterações climáticas e responder aos desastres naturais que estas já estão a causar, alargar o comércio livre e o acesso aos mecanismos financeiros internacionais, e controlar o tráfico de drogas e o seu impacto. Biden tem ainda de galvanizar o apoio internacional para uma resposta efetiva ao rápido crescimento e às cada vez maiores ambições internacionais da China, bem como estabilizar as relações dos Estados Unidos com a Rússia, o Irão e a Coreia do Norte, de forma a reduzir os riscos que estes países colocam à segurança norte-americana. A América Latina é muito importante para estes desafios internos e globais serem superados.

A influência internacional dos Estados Unidos - em especial o seu soft power, ou seja, a sua capacidade de persuadir e promover alianças para confrontar os problemas globais - tem vindo a diminuir ao longo dos últimos cinquenta anos. Este processo acelerou com as decisões nacionalistas, unilaterais, mercantilistas e populistas de Donald Trump. As medidas da Administração Trump - enfraquecer e, em alguns casos, sair de instituições multilaterais, intimidar tanto aliados como adversários e minar a cooperação internacional - deixaram uma herança danosa. O mesmo pode ser dito do esvaziamento deliberado do Departamento de Estado e das agências de informações e segurança nacional. A deterioração da posição global dos Estados Unidos é particularmente visível na América do Sul, onde tanto a China como a União Europeia têm vindo a aprofundar a sua influência económica, diplomática e cultural, ao mesmo tempo que a dos Estados Unidos tem diminuído.

Lidar com A América Latina

As perspetivas da Administração Biden de melhorar as relações com a América Latina são limitadas pelos problemas profundos desta região. A pandemia está a afetar a América Latina de forma mais intensa do que outras regiões, e provocou uma queda acentuada do PIB regional. Grande parte da América Latina enfrenta uma crise de governança e uma estagnação económica resultante da diminuição da competitividade. No México e no Brasil, presidentes populistas com poder considerável são apoiados pelos mesmos setores, antiglobalistas e voltados para dentro, que serviram de base a Trump. Respostas divergentes à globalização, às alterações climáticas e às questões geopolíticas enfraqueceram as instituições regionais - incluindo a Organização dos Estados Americanos, que abrange todo o hemisfério, e várias organizações sul-americanas, centro-americanas e caribenhas.

Joe Biden entra na Casa Branca com um melhor conhecimento da realidade americana do que outros presidentes recentes dos Estados Unidos. Como membro destacado da Comissão de Relações Exteriores do Senado, ajudou a aprovar o controverso mas altamente eficaz Plano Colômbia, que visava derrotar as persistentes insurgências naquele país. Enquanto Vice-Presidente, fez 16 visitas à América Latina e assumiu um papel de liderança na defesa da Aliança para a Prosperidade, em resposta aos problemas estruturais do triângulo norte da América Central (El Salvador, Guatemala e Honduras) - as causas profundas do rápido crescimento da emigração. Em todas estas situações, Biden ajudou a forjar abordagens bipartidárias.

Apesar destas vantagens, a Administração Biden não tem capacidade de lançar um plano visionário para reconstruir as relações entre os Estados Unidos e a América Latina. O que pode e deve fazer - rapidamente e de forma unilateral - é começar por reverter as atitudes e políticas contraproducentes impostas por Trump, incluindo o muro ao longo da fronteira entre os Estados Unidos e o México, as ameaças e imposições de tarifas, e a retórica desrespeitosa. Pode então incentivar o envolvimento e a participação dos países da América Latina numa resposta comum a um mundo em mudança radical, tornando claro que Washington procura abordagens colaborativas e multilaterais na resposta a problemas prioritários: a pandemia de covid-19, as mudanças climáticas, as migrações, as relações com a China (reconhecendo a importância do comércio e investimento chinês para as economias latino-americanas), e o fortalecimento das instituições regionais e globais.

Um apelo inicial por parte do Presidente Biden no sentido de uma maior cooperação regional contra a covid-19, de forma a assegurar que as vacinas são administradas de forma generalizada, célere e eficaz no território das Américas, ajudaria não só a salvar vidas e reduzir o sofrimento, mas também serviria para fortalecer as pressões internas no Brasil e no México para que estes países sigam as boas práticas internacionais de saúde pública, até agora largamente ignoradas. A Administração Biden deve propor uma cooperação bilateral mais intensa contra a covid-19 em ambos os lados da fronteira entre os Estados Unidos e o México, de forma a facilitar a vacinação e a testagem. A boa gestão dos recursos hídricos poderia também servir para fazer a diferença.

Combater o aquecimento global será um aspeto fundamental da política internacional de Biden, mas esta questão é complexa para o Brasil e o México, pois os governos destes países estão comprometidos com a energia baseada no petróleo e com a proteção nacionalista dos recursos soberanos. John Kerry, o enviado especial do Presidente dos Estados Unidos para as mudanças climáticas, deve encontrar-se em breve com os seus congéneres destes países e de outros nas Américas para discutir estes problemas, respeitando tanto a soberania nacional como o imperativo de proteger a floresta da Amazónia e outras regiões vulneráveis. Talvez a Organização dos Estados Americanos possa servir de fórum para que as pessoas certas no continente consigam decidir o que fazer. A preparação para desastres naturais apresenta outra oportunidade para uma maior cooperação regional, especialmente na região do mar das Caraíbas.

A gestão da política de imigração irá exigir reformas internas nos Estados Unidos, assim como uma diplomacia cuidadosa, que abra as portas à cooperação entre os países americanos. A Administração Biden já começou a reverter a retórica e o conteúdo das políticas de imigração de Trump, em especial as práticas desumanas na fronteira, como a separação das crianças de suas famílias, os maus-tratos a menores não acompanhados, e a morosidade dos processos de candidatura para o estatuto de refugiado. Recorrendo a ordens executivas, Biden já providenciou um estatuto de residente claro e um caminho para a cidadania para os «Dreamers», que chegaram aos Estados Unidos enquanto crianças, e para os trabalhadores de primeiros-socorros a quem o país tanto deve. Agora, deve propor caminhos específicos de residência legal e eventual cidadania para aqueles que residem nos Estados Unidos há mais tempo, bem como procedimentos para assegurar que trabalhadores temporários autorizados possam adquirir um estatuto legalmente reconhecido.

Porém, na prática, melhores políticas de imigração só serão sustentáveis se a temperatura do discurso nacional e internacional for reduzida. Atingir este objetivo implica tratar os imigrantes de forma humana e reconhecer o seu contributo, mas também um compromisso firme por parte dos Estados Unidos para controlar as suas fronteiras através de uma cooperação consistente e reforçada com o México, os países da América Central e Caraíbas, e também os da região setentrional da América do Sul, que sofreram o impacto mais profundo da emigração maciça vinda da Venezuela. O México, os Estados Unidos e a Colômbia partilham um interesse fundamental em reduzir e gerir de forma humana a pressão da emigração da Venezuela, da América Central e do Caribe. Esta convergência de interesses deve orientar a abordagem de Biden para com o Presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador (AMLO).

A Administração Biden deve usar a IX Cimeira das Américas, que irá realizar-se nos Estados Unidos em 2021, para dar uma atenção genuína às perspetivas latino-americanas para resolver estes e outros problemas comuns: desenvolvimento infraestrutural e económico; tráfico ilegal de armas ligeiras, de pessoas e drogas; políticas de segurança pública e anticorrupção; e proteção e fortalecimento da governança democrática. Se a Administração Biden mostrar um interesse em incorporar propostas latino-americanas exequíveis na resolução de assuntos identificados como prioritários, seria uma mudança muito positiva, e surpreendente, em relação à postura recente dos Estados Unidos.

Relações bilaterais: México, Venezuela, Cuba e Brasil

A América Latina é constituída por 34 países que se relacionam de forma muito distinta com a economia global, a diplomacia internacional e os Estados Unidos, o que exige portanto atenção específica às relações bilaterais.

Em primeiro lugar, Biden deve debruçar-se assim que possível sobre as relações entre os Estados Unidos e o México. Os dois países são profundamente interdependentes, com muitos e estreitos laços a nível demográfico, comercial, nos investimentos, na cultura, na educação e na sociedade civil. Antes de Trump, durante mais de vinte anos, os dois países vinham fortalecendo a cooperação em várias áreas, incluindo comércio e investimento, direitos ambientais e laborais, gestão de águas, migrações para norte (e o movimento de reformados dos Estados Unidos para sul), saúde pública, educação, manutenção da ordem pública, segurança, informações e gestão de fronteiras. No entanto, nos últimos três anos, com líderes populistas nos dois lados da fronteira, o foco das relações entre os Estados Unidos e o México restringiu-se a uma cooperação a nível comercial e nos movimentos migratórios (largamente nos termos defendidos por Trump), à custa de uma agenda mais alargada, na qual se registou um retrocesso da cooperação.

A captura de uma alta patente militar mexicana por parte das autoridades norte-americanas (sem qualquer aviso prévio às congéneres no México) no aeroporto LAX em Los Angeles, em outubro de 2020, é um exemplo claro de que o crime e a impunidade são questões altamente controversas no México e nas relações Estados Unidos-México. Detido por suposto envolvimento com um cartel mexicano, o oficial foi devolvido ao México para investigação criminal após decisão do procurador-geral dos Estados Unidos, mas foi rapidamente libertado sem quaisquer acusações pelas autoridades mexicanas. Estas questões exigem uma coordenação mais aprofundada entre várias agências governamentais dos Estados Unidos e as suas congéneres no outro lado da fronteira, cooperação essa que se tornou mais difícil na sequência das medidas recentes por parte do México de limitar a atuação de forças policiais norte-americanas no território mexicano.

Um desafio crucial para a Administração Biden, e que requer paciência e habilidade, será ignorar as provocações do Presidente López Obrador (evitando ao mesmo tempo provocações por parte dos Estados Unidos), de forma a avançar para uma cooperação o menos ruidosa possível em várias áreas. Uma das piores coisas que poderia acontecer durante a presidência de Joe Biden seria os Estados Unidos e o México sucumbirem ao mesmo tempo ao aumento da pobreza e ao acentuar da desigualdade, da doença, violência, corrupção, impunidade, ressentimento e eventual repressão. Ajudar os dois países a evitar esta situação através da cooperação, sempre que possível e caso a caso, deve ser um imperativo para ambos os governos. Estes esforços devem começar por questões que são manifestamente do interesse de ambas as partes, e em linha com as prioridades de AMLO, incluindo saúde pública, gestão de fronteiras, água e relações com a América Central.

Em segundo lugar, a Administração Biden não pode ignorar a violação sistemática das normas democráticas, dos direitos humanos e do Estado de direito na Venezuela, assim como em Cuba, na Nicarágua, nas Honduras e em El Salvador. Biden deve articular de forma clara e coerente o seu compromisso para com os direitos políticos fundamentais, incluindo eleições livres e justas e liberdade de expressão, de associação e de imprensa, todos eles inscritos em acordos válidos para todo o hemisfério. Mas Biden deve demarcar-se da Administração Trump, tornando claro que os Estados Unidos não irão intervir militarmente na Venezuela para substituir a autodeterminação interna por uma imposição externa, nem recorrer a sanções económicas amplas que levem a sofrimento generalizado. Os Estados Unidos devem reforçar sanções multilaterais mais específicas contra os responsáveis por violações de direitos humanos, enquanto apoiam uma abordagem focada na justiça de transição, evitando assim vinganças e represálias. Devem trabalhar em conjunto com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos na defesa e proteção de direitos fundamentais.

Se conseguir desanuviar o ambiente poluído pelas políticas e fanfarronice de Trump, a Administração Biden poderia ajudar a abrir um caminho para negociações internacionais produtivas entre o Governo venezuelano e os seus apoiantes, as várias fações da oposição democrática, as Forças Armadas e a sociedade civil - incluindo o setor privado, as universidades, as organizações religiosas e as ordens profissionais. Estas negociações devem almejar em primeiro lugar a libertação de presos políticos e a proteção dos seus direitos, o apoio humanitário e a promoção da coexistência pacífica entre venezuelanos. Esta fase deve levar ao início da reconstrução económica e, não de um dia para o outro mas gradualmente, à organização de uma série de eleições livres e justas a nível municipal, estadual e nacional, garantindo a proteção da integridade física e dos direitos fundamentais dos detentores de cargos públicos e da oposição. Para que se chegue a este ponto, serão necessárias concessões difíceis por parte de vários quadrantes. O sucesso irá também depender de compromissos mutuamente reforçados por parte de Cuba, da Rússia, da China e dos Estados Unidos, cada um deles protegendo os seus próprios interesses, bem como do apoio de outros parceiros importantes da América Latina, do Canadá e dos membros da União Europeia. A Administração Biden deve oferecer o seu apoio a mediadores internacionais respeitados (talvez o Governo da Noruega) para que estes colaborem com as fações venezuelanas, e deve lidar diretamente com outras potências internacionais interessadas.

Em muitos países, as transições de regimes autoritários ocorreram através de compromissos negociados internamente, reforçados por pressões e apoio internacional, à medida que as diferentes partes reconhecem a necessidade de um acordo e os opositores ao regime autoritário constroem uma visão e uma estratégia unificadas e credíveis, passíveis de serem apoiadas pela comunidade internacional. Frequentemente, estes processos demoram muito tempo, e não parecem uma possibilidade até terem acontecido. A experiência da Venezuela e de muitos outros casos anteriores sugere que uma negociação bem-sucedida não vai ocorrer simplesmente por causa de pressões externas ou de manifestações de rua, mas irá exigir concessões ao nível dos interesses fundamentais de ambas as partes. A Administração Biden deve nomear um alto responsável para coordenar uma política para a Venezuela que envolva todas as esferas do Governo. Deve reduzir progressivamente as sanções gerais à economia venezuelana, à medida que avança ao nível da cooperação na ajuda humanitária, da recuperação económica e de um acordo político negociado que permita eleições livres.

Em terceiro lugar, as possibilidades de uma solução democrática e pacífica para o trágico impasse na Venezuela seriam fortalecidas se a Administração Biden retomasse a abordagem de Barack Obama em relação a Cuba: trabalhar para pôr fim a seis décadas de hostilidade mútua entre as duas nações. Os Estados Unidos devem procurar uma relação com Cuba que reconheça as soberanias nacionais e o direito internacional, que se baseie nas complementaridades económicas, que explore interesses convergentes em questões internacionais, e que resolva disputas através de negociação. Washington deve defender o princípio dos direitos humanos e da democracia, mas abster-se de intervir na política interna de Cuba.

Uma aproximação total a Cuba não será alcançada rapidamente devido aos constrangimentos políticos internos de ambos os lados, mas o progresso no sentido de alcançar este objetivo exige que sejam dados passos nessa direção. Em vez de perpetuar mentalidades antiquadas que prendem Cuba e os Estados Unidos a uma situação de afastamento permanente, a Administração Biden deve construir a base para uma cooperação pragmática em questões como a covid-19 ou a resposta a desastres naturais. Deve começar por reverter algumas das sanções mais punitivas que a Administração Trump continuou a endurecer mesmo nas suas últimas semanas; estas incluem a designação infundada de Cuba enquanto Estado apoiante de terrorismo internacional, e a redução drástica das remessas permitidas aos americanos de origem cubana para as suas famílias na ilha. Outras sanções devem ser levantadas à medida que questões pendentes são resolvidas. Se tiver incentivos, Cuba pode bem desempenhar um papel construtivo na Venezuela, tal como o fez no processo de paz da Colômbia.

Em quarto lugar, a Administração Biden deve tentar fortalecer a aliança estratégica de longo prazo com o Brasil, a maior e mais poderosa nação da América Latina, mas não poderá fazê-lo de forma radical. A relação foi enfraquecida pela abordagem e políticas nacionalistas e antiglobalistas do Presidente Jair Bolsonaro. A rejeição por parte do eleitorado brasileiro de quase todos os candidatos apoiados por Bolsonaro nas eleições municipais de novembro de 2020 e a descida dos seus índices de aprovação em sondagens recentes podem ser um presságio do fim do seu Governo em 2022, ou em alternativa podem levar Bolsonaro a rever algumas das suas políticas mais extremadas. Entretanto, a Administração Biden deve sublinhar a importância de o Brasil desempenhar um papel de liderança nos esforços globais para combater as mudanças climáticas e outros problemas, ao mesmo tempo que se concentra em projetos concretos com outros países amazónicos para combater a desflorestação. Os Estados Unidos devem mostrar a sua abertura para uma cooperação caso a caso com o Governo, o setor privado e as organizações da sociedade civil do Brasil em questões como saúde pública, educação, segurança pública, comércio e relações com a China. Os dois países devem avançar para um possível acordo de livre comércio, já discutido durante a Administração Trump, que incorpore abordagens já previstas no acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), mas os Estados Unidos devem esperar por mudanças políticas no Brasil antes de retomarem a parceria.

Recentrar o foco na América do Norte e na sua «vizinhança próxima»

Sempre que possível, os esforços para reforçar a cooperação entre os Estados Unidos e o México devem ser alargados para refletirem de que forma os Estados Unidos, o México e o Canadá podem ajudar a resolver os desafios económicos, sociais e políticos dos vizinhos da América Central e Caraíbas, que estão profundamente ligados às três nações norte-americanas. Chegou a altura de as potências norte-americanas juntarem esforços e darem a devida atenção aos países e territórios da América Central e do mar das Caraíbas, e chegou a altura de estes últimos pensarem na melhor forma de aproveitar as vantagens de uma interação mais saudável e de longo prazo com as potências regionais.

Este objetivo deve ser uma prioridade de médio prazo da Administração Biden. Estrategicamente, serviria para reconhecer a relação próxima entre as suas políticas interna e externa. Serviria também para que os Estados Unidos, o México e o Canadá contribuíssem para e beneficiassem de uma maior estabilidade na vizinhança, apoiando deslocalizações para perto em novas circunstâncias geopolíticas e geoeconómicas. Serviria para dar maior relevo a questões transnacionais e a questões que envolvem facetas internas e externas em resultado da grande interdependência. Também serviria de contexto para Washington lidar com as crescentes dificuldades e dilemas de Porto Rico - algo que deve sem dúvida fazer. Se durante a Administração de Joe Biden fossem alcançados progressos concretos para esta nova visão, seria uma conquista importante.

Os Estados Unidos e a América Latina num mundo transformado

A Administração Biden deve também trabalhar para melhorar as suas relações com as nações andinas (Colômbia, Peru, Equador e Bolívia), e com os países do Cone Sul (Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai). Os países andinos, cada um diferente dos outros, enfrentam desafios de governança e corrupção, e a maior parte também lida com tensões profundas entre o desenvolvimento baseado na extração de recursos e os direitos indígenas. Cada um destes países tem instituições políticas frágeis, ainda que a diferentes níveis, mas todos transitaram gradualmente de uma forma local de populismo para uma competição centrista. Se esta trajetória continuar, o Equador e talvez mesmo a Bolívia poderão juntar-se à Colômbia e ao Peru enquanto parceiros fiáveis dos Estados Unidos. No Cone Sul, os partidos e elites tradicionais estão profundamente descredibilizados e, em consequência, as instituições políticas enfrentam grandes desafios. Porém, a Argentina, o Chile e o Uruguai demonstraram grande resiliência e podem voltar a ser importantes parceiros dos Estados Unidos na construção de consensos regionais em matérias importantes, dentro e para além do continente americano.

Os Estados Unidos já não têm capacidade de determinar as dinâmicas políticas e a condução macroeconómica da América Latina, tal como o fizeram ao longo do século XX na região das Caraíbas e no período entre a Segunda Guerra Mundial e o final da década de 1990 na maior parte da América do Sul. Washington vai competir por influência e mercados com potências externas ao hemisfério, em especial com a China, tal como competiu anteriormente com as nações europeias, desde o século XIX até à Segunda Guerra Mundial. Em vez de invocar, de forma quixotesca, a Doutrina Monroe em resposta à China, tal como a Administração Trump tentou fazer sem sucesso, Biden deve orientar as suas relações com a América do Sul para a resolução de problemas concretos, procurando soluções baseadas na cooperação e evitando tensões desnecessárias que prejudicam as possibilidades de uma atuação conjunta. Escutar, em vez de dar lições, deve ser o primeiro passo. Em vez de constituir uma luta infrutífera no sentido contrário às mudanças globais, esta abordagem apoiaria os esforços dos Estados Unidos no sentido de consolidar a ordem internacional liberal. Este é o principal desafio do nosso tempo para a política externa dos Estados Unidos.

Tradução: João Reis Nunes

Bibliografia

Lowenthal, Abraham F. Estados Unidos y Latinoamérica: de Trump a Biden. Foreign Affairs Latinoamérica, Volumen 21, Número 1, 2021. [ Links ]

Notas

1 Uma versão anterior deste ensaio foi publicada em espanhol na revista Foreign Affairs Latinoamerica e em inglês na revista Democracy: A Journal of Ideas.

Recebido: 12 de Janeiro de 2021; Aceito: 23 de Fevereiro de 2021

Abraham F. Lowenthal Professor emérito na University of Southern California, foi fundador e diretor do Latin American Program do Wilson Center, do Inter-American Dialogue e do Pacific Council on International Policy.

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