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Relações Internacionais (R:I)

Print version ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.69 Lisboa Mar. 2021  Epub Mar 31, 2021

https://doi.org/10.23906/ri2021.69r02 

Recensão

Recensão: Um olhar feminista sobre as políticas da União Europeia: O caso da Turquia

Pâmela Mossmann de Aguiar1 

1 Departamento de Estudos Políticos, NOVA FCSH, Av. de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal. pmaguiar@campus.fcsh.unl.pt

Lu-Kürüm, Rahime Süleymanoğ; Cin, F. Melis. (orgs.),, Feminist Framing of Europeanisation. ,, Cham: ,, Palgrave Mcmillan: ,, 2020. ,, 294 páginasp.


A série de livros «Género e Política», publicada pela editora Palgrave Macmillan e idealizada pelas organizadoras da série, Johanna Kantola e Judith Squires, foi lançada em 2011, na Conferência Europeia sobre Política e Género (ECPG, na sigla em inglês), que teve lugar em Budapeste. Contextualizados na Europa, Estados Unidos e América Latina, os livros que fazem parte desta série fornecem descobertas empíricas e impulsionam as fronteiras da pesquisa conceptual e teórica feminista e política. Suas contribuições perpassam os debates sobre intersecionalidade e diversidade, igualdade de género, movimentos sociais, europeização e institucionalismo, governança e normas, políticas, e instituições políticas.

Com o título Feminist Framing of Europeanisation, suas organizadoras, Rahime Süleymanog˘lu-Kürüm e F. Melis Cin, acreditam que suscitam novos debates e novas perspetivas feministas para o campo das políticas de igualdade de género, ocasionando mudanças significativas na vida das mulheres no longo prazo. Para isso, o livro mostra a importância de o processo de europeização ocorrer em conjunto com o feminismo, seja por meio da sua teoria, seja dos seus agentes ou da formação dos chamados triângulos feministas, pois assim será possível formular políticas de igualdade de género sustentáveis para desenvolver um alternativo imaginário no mundo real. Os exemplos de políticas em diversas áreas apresentados no livro mostram como a europeização afeta as vidas e políticas dentro da União Europeia (UE) e nos países terceiros, como a Turquia, que é o caso analisado no livro.

O livro divide-se em duas partes: a primeira parte compreende os capítulos 2 a 5, com foco nos debates teóricos e conceptuais e o envolvimento com a UE e a literatura feminista; a segunda parte abarca os capítulos 6 a 12, unindo compreensão teórica, análise empírica e considerações de diferentes áreas políticas. A Introdução (capítulo 1) e a Conclusão (capítulo 13) são assinadas pelas organizadoras. Os demais capítulos contam, para além das organizadoras, com outros contribuidores.

Porquê a Turquia, a UE e a igualdade de género?

Desde 1999 a Turquia é candidata à entrada na UE, o que a torna mais provável de ser influenciada pelo bloco europeu. Além disso, desde 1959 este país mantém relações económicas, políticas, culturais e sociais com a Comissão Europeia (CE) e a UE, o que o coloca como um parceiro mais antigo do que muitos dos Estados-Membros da UE.

Outro tópico que posiciona a Turquia como um caso de estudo para a temática tem a ver com as questões de género e o desenvolvimento das mulheres. Aspetos que têm particular importância para este país, e para os quais são necessárias uma compreensão e uma consciência abrangentes, caso a Turquia queira internalizar os valores democráticos da UE.

A decisão pela temática da UE e a igualdade de género é justificada pelas organizadoras pelo crescente número de estudos a respeito da europeização das políticas de igualdade de género, ou da UE e a igualdade de género. De facto, o tema da igualdade de género tem cada vez maior presença nas produções das mais variadas áreas científicas, associando a ciência à análise sob os olhos da teoria feminista. A série de livros da qual Feminist Framing of Europeanisation faz parte é um exemplo disso, assim como outros artigos científicos e livros de outras editoras, que promovem a intersecionalidade de temas debatidos há muito na academia, porém com narrativas e visões hegemónicas, que desconsideram as necessidades particulares de minorias, como as mulheres e a comunidade LGBT+, por exemplo.

O conceito de europeização, que permeia todo o livro, é colocado como o processo de construção, difusão, institucionalização de regras, procedimentos, padrões de políticas, estilos, «jeito de fazer as coisas» e crenças partilhadas formais e informais, que são primeiro definidos e consolidados pelos tomadores de decisão da UE, para a seguir serem incorporados na lógica do discurso, identidades, estruturas políticas e políticas públicas do âmbito doméstico de cada Estado-Membro.

De modo a manter a coesão dos pensamentos expressos em Feminist Framing of Europeanisation, as organizadoras optaram por seguir as bases teóricas do trabalho de Frank Schimmelfennig e Ulrich Sedelmeier no livro coordenado pelos autores, sobre a europeização da Europa Central e de Leste, que definem três modelos de abordagem da influência da UE: (i) orientação por interesses, (ii) orientação por normas, e (iii) orientação por lições. Dessa forma, os resultados advindos desses três modelos podem ser de dois tipos: a adoção de normas, que consiste na aprovação das normas e procedimentos da UE enquanto instrumentos legais/teóricos por cada Estado-Membro, e a implementação de normas, que se concretiza com a colocação em prática dessas normas e procedimentos. Ou seja, o facto de um país adotar as políticas recomendadas pela UE não garante que as mesmas sejam implementadas. Além disso, esses resultados podem ocorrer a três níveis: positivo, negativo ou seletivo. Ao longo dos capítulos, os diversos autores dão os seus contributos com base nesses atributos, o que facilita a compreensão e o raciocínio do leitor.

A influência da UE sobre os seus estados-membros e países terceiros

A primeira parte do livro apresenta exemplos de como a UE influencia ou pode influenciar a adoção e implementação de políticas para a igualdade de género nos países que compõem a sua estrutura, candidatos e possíveis candidatos para aceder ao seu grupo (capítulo 2). O capítulo seguinte analisa o poder de influência da UE sobre os países terceiros, e apresenta o paradoxo de as relações externas da UE, ao mesmo tempo que procuram incentivar a implementação das políticas de género na relação com países terceiros, aceitarem que dentro de seus próprios Estados-Membros ainda persistam muitos problemas no incentivo a essas políticas e promoção do gender mainstreaming.

O capítulo 4 apresenta uma visão feminista para a europeização tanto dentro da UE, quanto na sua relação com países terceiros. As autoras afirmam que na UE há uma maior preocupação na formulação das leis, mas não em verificar como essas leis e outras políticas de género atuam sobre o empoderamento feminino na prática.

O capítulo 5 - o último da parte i do livro - aborda as políticas de género na UE, as quais, segundo a autora, seguem uma abordagem integracionista para promover o gender mainstreaming como parte de objetivos políticos abrangentes. Isto é, o gender mainstreaming é adotado como uma estratégia para atingir as metas políticas existentes e complementado pela adoção parcial de uma compreensão feminista do gender mainstreaming.

Análise empírica das políticas de género na Turquia

A parte ii do livro traz a análise de sete exemplos de políticas de género adotadas ou implementadas na Turquia. O capítulo 6 versa sobre a história dos direitos das mulheres e do movimento feminista na Turquia, que não pode ser separado do contexto internacional e, especialmente, da influência da UE, principalmente após a formalização da candidatura da Turquia para aceder à UE, em 1999. No entanto, a autora também denuncia o «fechar de olhos» da UE para o recuo democrático no país, no intuito de que o Governo turco mantivesse a sua promessa em relação à crise migratória síria. Desse modo, além das críticas internas à falta de uma perspetiva feminista nas políticas de género turcas, a UE demonstra uma abordagem seletiva na orientação de adoção de suas normas de gender mainstreaming (sem necessariamente a sua implementação), visto que para atender a um de seus interesses - o afastamento de migrantes e refugiados sírios do seu território -, faz vista grossa ao retrocesso democrático num dos países candidatos a integrar o seu grupo.

Também tocando no tema dos refugiados sírios, o capítulo 12 discorre sobre as políticas de migração e asilo feitas em cooperação entre a UE e países terceiros, sob a ótica feminista. A autora afirma que os resultados de sua pesquisa indicam que a UE tem de melhorar as suas políticas de migração e asilo sob a perspetiva de género, uma vez que as mulheres são as mais vulneráveis neste processo, e o seu número neste estado tem aumentado. Sendo assim, um enfoque feminista faz-se necessário para proteger não só as mulheres, mas também as crianças, nomeadamente as meninas, que passam pela experiência do refúgio e asilo.

O capítulo 7 trata das cherry-pick policies, classificadas como orientadas por normas e seletivas. A autora critica a atuação da UE, que desconsidera o contexto nacional na adoção das suas políticas de igualdade de género, e a Turquia, que está sob o «domínio» dos partidos Conservador e Islâmico (Aliança Popular). Esses partidos não estão alinhados com o empoderamento feminino, mas sim com os seus interesses, e por isso escolhem as políticas que beneficiam os seus interesses para manter e exercer o seu poder.

Mais ou menos na mesma linha, contudo com um enfoque positivo, o capítulo 9 fala da adoção e implementação do gender-responsive budgeting (GRB) pelo governo local da cidade de Tekirdag Suleymanpasa e nacional da Turquia como uma indicação da orientação ao gender mainstreaming. A autora classifica a adoção do GRB como normativa e positiva, ao nível local, e normativa e seletiva, ao nível nacional. O diálogo com os membros da UE ajudou no desenvolvimento da consciência e aprendizado das formas como o GRB poderia ser adotado e implementado, todavia a autora ressalta que as políticas sensíveis ao género têm sido aplicadas ao nível local graças a uma variedade de fundos e apoio de ONG (organizações não governamentais), e não devido à UE. Dessa maneira, a autora defende que a UE deve reforçar a sua posição como um ator imparcial e normativo, que facilita a aprendizagem social, oferecendo mais espaço para a comunicação e interação entre os decisores políticos a nível da UE, nacional e local.

Os capítulos 8, 10 e 11 abordam as políticas de combate à violência contra a mulher, inserção de mulheres no mercado de trabalho, e igualdade de género na educação, respetivamente. O capítulo 8 investiga e apresenta a contribuição da UE a países terceiros no incentivo à eliminação da violência contra a mulher, centrando esta análise na Turquia. A autora reconhece que a UE aumentou o seu engajamento e o uso da condicionalidade para a eliminação da violência contra a mulher na Turquia. Contudo, além do engajamento da UE, os triângulos feministas (sociedade civil, companhias privadas e o público), fortalecidos pelo financiamento, também desempenharam um papel crítico na conceção, aprovação e aplicação das reformas e políticas. E assim, a união de forças entre os triângulos feministas e organizações como a UE, o Banco Mundial e a ONU (Organização das Nações Unidas), converte-se num grande aliado das mulheres e dos movimentos de mulheres na Turquia e noutros países terceiros.

O capítulo 10 aborda as políticas públicas focadas no mercado de trabalho na Turquia, especialmente na inserção de mulheres em postos gerenciais em PME (pequenas e médias empresas), analisando a importância das instituições informais nessa luta. Os resultados apresentados pelas autoras indicam que as mulheres que participam do mundo dos negócios sofrem com a diferença de salários, o teto de vidro (glass ceiling), o desequilíbrio entre vida pessoal e profissional, o assédio sexual e a segregação de género. Os resultados revelam que o país ainda está longe das normas da UE, quando se trata do estatuto da mulher que trabalha fora de casa. As autoras ressaltam que neste caso as políticas da UE e as melhorias empreendidas pela Turquia não são o bastante, e que se faz necessária uma transformação da perceção de género dentro da sociedade turca, além do incentivo a projetos que promovam o estatuto social e económico das mulheres, em cooperação com as ONG e com os governos locais, de forma a promover uma discriminação positiva para a mulher nas empresas, como a implementação de quotas para mulheres gerentes em níveis gerenciais superiores; apoio à educação de meninas, tendo em consideração a nova ordem social e económica, que é pautada pela indústria 4.0; e dando orientação na escolha de carreiras e apoio ao empreendedorismo feminino.

O capítulo 11 vai ao encontro, de certo modo, do capítulo anterior, já que versa sobre a igualdade de género na educação na Turquia, área que tem sido liderada por triângulos feministas em colaboração com organizações internacionais, nomeadamente o Banco Mundial, a UNICEF (Fundo de Emergência Internacional das Nações Unidas para a Infância) e a UE. Apesar desse esforço conjunto, as mudanças não têm sido internalizadas pela sociedade turca, dado que há um «choque cultural». Desse modo, o sistema educacional turco continua a manter o status quo e as identidades de género (homem = provedor da família / mulher = responsável pelo bem-estar da família). Portanto, falta a transformação profunda das estruturas educacionais do país, com comprometimento com o feminismo, que cesse a perpetuação das desigualdades de género.

O livro termina com as conclusões das suas organizadoras, com base no conteúdo apresentado por todos os autores colaboradores. Süleymanog˘lu-Kürüm e Cin destacam as duas importantes descobertas indicadas pelos capítulos empíricos (parte ii): (i) a inclusão de mulheres em posições de representação, por si só, não cria nenhuma igualdade, mas aprofunda mais a desigualdade de género, à medida que tais representações «garantidas» manifestam-se nas relações de poder entre homens e mulheres; e (ii) a importância e a influência do papel exercido pelos velvet triangles (organizações do Estado, sociedade civil, universidades e consultorias) para a implementação de políticas de gender mainstreaming. As organizadoras também relembram a função e a importância dos movimentos feministas e das femocratas para pressionar e negociar a aprovação de reformas de combate à violência contra as mulheres. Todos esses atores, junto ao poder de negociação da UE, são relevantes na adoção e implementação de políticas de gender mainstreaming, com o intuito de alcançar a igualdade de género na nossa sociedade.

Bibliografia

Rahime Süleymanoğ Lu-Kürüm e F. Melis Cin (orgs.), Feminist Framing of Europeanisation, Cham, Palgrave Mcmillan 2020 [ Links ]

Pâmela Mossmann de Aguiar Doutoranda em Ciência Política na NOVA FCSH. Os seus interesses de investigação incluem os estudos de género, com especial foco na desigualdade de género relativamente à discriminação de preços baseada no género (ou taxa rosa).

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