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Relações Internacionais (R:I)

versión impresa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.70 Lisboa jun. 2021  Epub 30-Jun-2021

https://doi.org/10.23906/ri2021.70a01 

O balanço da era Merkel

Nota introdutória. O balanço da era Merkel

Patricia Daehnhardt1 

Madalena Meyer Resende2 

1IPRI-NOVA - Rua de D. Estefânia, 195, 5.º D.to, 1000-155 Lisboa, Portugal, patricia.daehnhardt@ipri.pt

2FCSH-NOVA - Avenida de Berna, 26-C, 1069-061 Lisboa, Portugal, madalena.resende@fcsh.unl.pt


As eleições alemãs de 2021 marcam o fim de uma era: passados trinta anos da reunificação alemã em 1990, nos quais dezasseis se passaram sob a liderança de Angela Merkel, estamos em posição de fazer uma apreciação sobre a evolução da política externa da Alemanha reunificada. As vésperas destas eleições são por isso um momento privilegiado para tentar caracterizar o poder da Alemanha reunificada na Europa e num mundo em transição de poder. Os resultados das eleições gerais de setembro de 2021 irão certamente influenciar a perceção que se fará da chanceler - com a fragmentação do voto e a derrota histórica da CDU que se advinha a perspetivarem um ponto de viragem na política externa da Alemanha. Este dossiê da R:I faz um primeiro balanço da herança de Angela Merkel no momento da sua saída de cena.

Em 2020, especialmente durante a Presidência do Conselho da União Europeia, o papel central que o país - e a chanceler - ganharam no contexto europeu foi consolidado. Ao leme da União Europeia (UE) durante a resposta à pandemia, Merkel foi determinante para a adoção de uma resposta da União à crise pandémica e económica. Do fundo de recuperação NextGenerationEU resultou um possível embrião de uma União fiscal europeia. A resposta de Merkel à crise pandémica fechou uma década e meia de crises. Logo em 2005, o processo de integração sofreu uma das suas principais crises com o fracasso do tratado que estabelece uma Constituição para a Europa; cinco anos depois, a crise das dívidas soberanas pôs em causa os fundamentos do euro. A crise dos refugiados e o Brexit em 2015 e 2016, respectivamente, agravaram a perceção de que se tinha tornado cada vez mais difícil encontrar soluções para problemas de coordenação na Europa. Entretanto, cresce a perceção de que a Alemanha se tornou, de acordo com Simon Bulmer e William E. Paterson, «o Estado-Membro indispensável» da Europa1.

Além de se focar na dimensão europeia da política externa alemã, este número especial também aborda os vínculos de Berlim com as principais potências. Apesar das fortes linhas de continuidade da política externa da chanceler e do pendor pragmático, Merkel foi também protagonista de um período de grande turbulência nas relações com os Estados Unidos durante a Presidência de Donald Trump. Com a ascensão da China na última década e meia, o papel da Alemanha e da chanceler foi crescentemente assertivo, tendo a parceria económica entre as duas potências causado tensões na relação transatlântica.

Avançar no balanço das diferentes dimensões da política externa da chanceler Merkel requer, contudo, um exercício de recuo, que tome em conta não só a direção da política externa alemã no período pós-unificação, como as características estruturais da República Federal da Alemanha no Pós-Guerra. Logo, para além da caracterização da liderança de Merkel, neste número especial também abordamos até que ponto os elementos estruturais do poder da Alemanha determinam a direção tomada pela política externa nestes últimos meses.

O presente número especial da R:I recolhe artigos de vários autores nacionais e internacionais sobre as diversas facetas da política externa de Angela Merkel e o seu impacto no posicionamento da Alemanha no sistema europeu e internacional. Com estas contribuições, pretendemos fazer um retrato não só da política externa de Merkel, mas também refletir sobre a natureza do poder da Alemanha e abordar as definições de hegemonia incompleta, ou semi-hegemonia, e da sua utilidade para compreender o papel da Alemanha como potência central na UE e no espaço euro-atlântico.

O artigo de Patricia Daehnhardt e Madalena Meyer Resende sintetiza as relações da Alemanha com a UE e as relações de Berlim com as principais potências mundiais: Rússia, China e Estados Unidos. Para além de caracterizar a política externa alemã em relação às diferentes potências, o artigo também apresenta um balanço global da ação da Alemanha reunificada na última década e meia. Como referem as autoras, na condução da política externa da Alemanha, Angela Merkel não definiu uma «grande política», antes seguiu «uma política reativa às crises à medida que estas surgiam». Por outras palavras, apesar de hábil gestora de crises, Merkel

«não definiu uma grande estratégia para a integração europeia, nem uma visão excessivamente ambiciosa da Europa, preferindo decidir as suas políticas em torno de respostas concretas às crises que iam surgindo. Assim, o que para alguns foi louvado como flexibilidade de adaptação na reação a crises, foi para outros criticado como sendo uma política meramente reativa limitada a respostas táticas.»2

No que se refere ao relacionamento com as grandes potências, as autoras concluem que «a Alemanha de Merkel não assumiu um posicionamento claro face à Rússia e à China, o que submeteu os governos da chanceler, principalmente o último, a duras críticas de sitting on the fence e de não querer tomar partido na competição cada vez mais visível entre Estados Unidos e China, optando por tentar conciliar os interesses económicos defendidos nas suas relações com a Rússia e a China com interesses securitários garantidos pela sua relação com os Estados Unidos, num jogo de equilíbrio que alguns políticos e parte da indústria alemã consideram insustentável a médio prazo e numa ambiguidade estratégica que alguns preveem poder não terminar com a saída de Merkel do poder».

A conclusão é que Berlim continua a ser uma «potência incerta»: apesar do papel cada vez mais central como gestora das crises europeias, a Alemanha, o estilo da chanceler e a falta de apoio dos Estados Unidos durante a Administração Trump, limitaram as capacidades de decisão da política externa de Berlim. Como argumentam as autoras,

«a Alemanha permanece uma “potência incerta”, porque lhe continua a faltar a visão estratégica na conduta da sua política externa, necessária ao exercício do poder enquanto potência europeia e transatlântica, num sistema internacional em fluxo e de competição hegemónica».

No seu artigo, Alberto Cunha centra a análise na reflexão sobre como classificar a natureza do poder da Alemanha nas crises da UE da última década e se a Alemanha é o poder hegemónico da Europa e como funciona a «hegemonia alemã». Usando o conceito de «hegemonia relutante» de Bulmer e Paterson3, Cunha argumenta que

«a “relutância” da Alemanha pode ser [...] interpretada de forma mais crítica e até em alguns aspetos “egoísta”: seguindo acima de tudo, apesar da retórica sobre a Europa, o que são os seus interesses nacionais, os ditames da opinião pública alemã, o equilíbrio político alemão ou os limites impostos por alguns dos poderes “de veto” do sistema político alemão».

Cunha conclui que na «crise tripla» da década passada verificou-se «uma continuidade muito mais clara nas ações da Alemanha [...] a Alemanha só fornece liderança quando lhe convém, o que não é incomum para um Estado poderoso - e isso também pode ajudar a explicar algumas das características da preeminência alemã na Europa».

Mathias Jopp e Katrin Böttger também abordam o tema da hegemonia alemã quando analisam no seu artigo o desenvolvimento de décadas de política europeia alemã. Como afirmam os autores,

«a posição da Alemanha na gestão da crise da zona euro nessa altura reacendeu o debate sobre os perigos da hegemonia alemã na Europa e levou mesmo à tese de um Quarto Reich na Itália [...] No mínimo, a tese de uma “hegemonia relutante” sugeriu-se, mesmo que o comportamento da Alemanha como “economia dominante” na crise também se aproximasse do jogador de veto. Contudo, a relação com os Estados-Membros do Sul (Itália, Espanha, Portugal e Grécia) foi, de qualquer forma, permanentemente danificada».

Mesmo assim, concluem os autores, «a forte continuidade da política europeia alemã numa perspetiva de longo prazo» permite afirmar que a Alemanha acredita no aprofundamento da integração europeia, o que ficou demonstrado durante a Presidência alemã da UE em 2020, principalmente face aos Estados-Membros do Sul, com uma preferência renovada pelo reforço dos mecanismos supranacionais para fazer face às consequências económicas da pandemia de covid-19.

Jopp e Böttger concluem que

«Os desafios mais recentes que tiveram um impacto significativo na política europeia da Alemanha podem ser vistos em duas mudanças centrais: por um lado, a mudança fundamental no equilíbrio de poder dentro da UE e, por outro, a ascensão geopolítica da Rússia como fator de poder. A saída dos britânicos marca o fim do equilíbrio triangular interno da UE entre Londres, Paris e Berlim. A Alemanha não só está a perder um parceiro que deu uma contribuição importante para o financiamento do orçamento da UE como também quis limitar as despesas da UE. [...] Pode assumir-se que sem o Reino Unido, o equilíbrio de poder na União Europeia irá deslocar-se um pouco para a França».

Nesse sentido os autores acrescentam que a UE «é o quadro de ação preferido para a prossecução das preferências e interesses nacionais. A Alemanha tem as maiores oportunidades de influência na União Europeia, ao contrário da nato, onde os Estados Unidos são a principal potência, ou da ONU, onde a Alemanha não é um membro permanente do Conselho de Segurança».

Minna Ålander foca-se na Presidência alemã do Conselho da UE, descrevendo os seus sucessos e fracassos, mas também avaliando de que forma a gestão da Presidência por Merkel não é apenas uma coroação do seu papel na Europa, mas resume o seu legado como líder europeia. Ålander considera que «nestas circunstâncias excecionais, a Alemanha deparou-se com expetativas extraordinariamente elevadas de que iria ser uma gestora de crise eficiente, conduzindo a UE para fora do cenário de incerteza causado pelas primeiras reações de pânico por parte dos Estados-Membros ao surto de covid-19». Apesar da sua capacidade de gestão, Merkel tem sido criticada pela falta de visão - tanto para o seu país como para a Europa. Também em termos da política externa da União, a autora considera que «faltou ao desempenho da Presidência a resolução que demonstrou sobre questões internas da UE. [...] Em nenhum destes conflitos a Presidência conseguiu manter o bloco unido» e que «um Estado-Membro influente como a Alemanha poderia ter assumido uma posição mais ativa na coordenação da política externa».

O ensaio de José Lamego aborda vários dos temas centrais da política interna e externa da Alemanha na era Merkel, avançando também algumas previsões. Lamego considera que «A Alemanha - e a UE no seu conjunto - vão necessitar de uma política industrial (e de reindustrialização) ajustada às novas realidades geopolíticas: isto pode abrir algumas perspectivas de atracção de investimento para países da União de rendimento médio». Numa análise da relação da Alemanha com a Rússia, o autor considera que

«No plano energético, como em relação a outros sectores da economia, tanto Berlim como Moscovo estão conscientes das situações de interdependência entre os dois países». O que ressalta dos artigos que compõem este número especial sobre a Alemanha e o fim da era Merkel é que, mais de três décadas após a sua unificação, a Alemanha continua a procurar definir a sua posição na Europa e no mundo, entre ambiguidades e incertezas que a definem ora como potência hegemónica relutante, ora como poder hesitante, apesar do seu poderio económico, da sua preferência pelo multilateralismo e da sua posição enquanto potência central europeia.

BIBLIOGRAFIA

Bulmer, Simon, Paterson, William E.- «Germany’s role in the handling of the European monetary and refugee crisis». In Jahrbuch der Europäischen Integration 2016. Consultado em: 2 de Novembro de 2016. Consultado em 2 de maio de 2021. Disponível em: http://iep-berlin.de/en/wp-content/uploads/sites/2/2016/10/Simon- Bulmer- and-William-Paterson_-Germanys-role-in-the-handling-of the-European-monetary-and-refugee-crisis.pdf.2016 [ Links ]

Bulmer, Simon, Paterson, William E. - Germany and the European Union: Europe’s Reluctant Hegemon?. Macmillan, 2019. [ Links ]

Daehnhardt, Patricia - «Angela Merkel». In Baltazar, A., Cunha Lousada, I., coord. - Dicionário As Mulheres e a Unidade Europeia. Lisboa: Assembleia da República, 2021, vol. I, p. 232. [ Links ]

Notas

1 BULMER, Simon; PATERSON, William E. - «Germany’s role in the handling of the European monetary and refugee crisis». In Jahrbuch der Europäischen Integration 2016. Consultado em: 2 de Novembro de 2016. Consultado em 2 de maio de 2021. Disponível em: http://iep-berlin.de/en/wp-content/uploads/sites/2/2016/10/Simon-Bulmer-and-William-Paterson_-Germanys-role-in-the-handling-of-the-European-monetary-and-refugee-crisis.pdf.

2 DAEHNHARDT, Patricia - «Angela Merkel». In BALTAZAR, A. Cunha; LOUSADA, I., coord. - Dicionário As Mulheres e a Unidade Europeia. Lisboa: Assembleia da República, 2021, vol. I, p. 232.

3 BULMER, Simon; PATERSON, William E. - Germany and the European Union: Europe’s Reluctant Hegemon?. Macmillan, 2019.

4

Patricia Daehnhardt Investigadora do IPRI-NOVA. Doutorada em Relações Internacionais pela London School of Economics and Political Science, com uma dissertação sobre a política externa da Alemanha após a unificação. Foi membro da coordenação da Secção de Relações Internacionais da Associação Portuguesa de Ciência Política (2012-2014), e diretora da Secção de Relações Internacionais da Associação Portuguesa de Ciência Política (2014-2016). A sua investigação centra-se na política externa da Alemanha, Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) da União Europeia, nato e segurança europeia, relações transatlânticas, a política das grandes potências, Estados Unidos, Rússia, China e a ordem internacional. Publicou vários artigos em revistas nacionais e internacionais.

5

Madalena Meyer Resende Professora auxiliar no Departamento de Estudos Políticos da FCSH-NOVA e investigadora do IPRI-NOVA, especializada em instituições e estudos europeus. Doutorada em Ciência Política pela London School of Economics (2005). É presidente da Associação Portuguesa de Ciência Política (APCP) e vice-presidente da International Political Science Association. Foi assessora na Embaixada Portuguesa em Berlim para a Presidência portuguesa da União Europeia. Tem numerosas publicações nacionais e internacionais.

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