SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número75Instituições para emergências e a emergência das instituições: O caso da comunidade de inteligência nos Estados Unidos (1947-1960) índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.75 Lisboa set. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.23906/ri2022.75r01 

Recensão

Recensão: Tensões, ambiguidades e equívocos de uma relação pragmática

David Castaño1 

1 IPRI-NOVA, Rua de D. Estefânia, 195, 5.º Dt.º, 1000-155 Lisboa, Portugal, davidcastano@fcsh.unl.pt

Marcos, Daniel. ., 2022. ., Entre o Império e a NATO: Portugal e os Estados Unidos da América (1949-1961). ., Lisboa: ,, Imprensa de História Contemporânea, ., 309 páginasp. . ISBN:, ISBN: 978-989-8956-24-8.


Mais de uma década após ter defendido a sua tese de doutoramento «Uma Aliança Circunstancial: Portugal e os Estados Unidos nos Anos 1950», Daniel Marcos publica, com a chancela da Imprensa de História Contemporânea, uma versão revista e atualizada do seu estudo dedicado às relações luso-americanas entre 1949 e 1961.

Baseado num rigoroso trabalho de pesquisa de fontes primárias em arquivos nacionais (de Defesa Nacional, da Força Aérea, Histórico-Diplomático, Histórico-Militar, Oliveira Salazar) e internacionais (do Presidente Eisenhower, do Presidente Truman, do Departamento de Estado, do Foreign Office), a que se juntam diversas fontes impressas (publicações oficiais de documentação diplomática), imprensa e um significativo corpo de fontes secundárias que contextualizam o relacionamento bilateral luso-americano no contexto da Guerra Fria e articulam a política externa dos dois países com as respetivas dinâmicas das políticas internas, o livro agora publicado traça um retrato exaustivo e rigoroso, abrangente e esclarecedor, desta que continuava a ser uma década pouco estudada da história das relações luso-americanas.

Compactados entre a turbulenta década de 1940 e a ameaçadora década de 1960, os anos 50 do século passado não têm atraído muitas atenções dos investigadores que se dedicam ao estudo deste relacionamento bilateral sob o prisma da história das relações internacionais portuguesas. A aparente estabilidade e continuidade destes anos terá afastado aqueles que privilegiaram, e bem, analisar os pontos de rutura ou de inflexão, de mudança e de instabilidade, ou a participação portuguesa em organizações internacionais multilaterais que impactaram a dinâmica bilateral luso-americana1. No entanto, sob a ilusória aparência de um mar plano e chão, foi nesta década que se começaram a registar importantes conflitos e tensões que emergiriam à superfície no início da década seguinte.

O que este livro nos mostra são esses conflitos e tensões numa dupla dimensão. Por um lado, na dimensão bilateral, marcada pela coexistência da partilha de visões e estratégias comuns em relação à necessidade de contenção da ameaça soviética no espaço europeu e norte-atlântico, sendo que esse entendimento e aproximação não se estendia a outras geografias, nomeadamente ao subcontinente indiano ou a África, ficando patentes as diferenças entre uma ex-colónia, que se procurava afirmar como a grande potência democrática à escala mundial, e um pequeno país europeu, onde vigorava um regime autoritário que pretendia assegurar a herança de um vasto império colonial, jurídica e teoricamente transformado em nação pluricontinental, numa derradeira tentativa de adaptação à dinâmica descolonizadora. Por outro lado, e essa é uma das mais-valias do livro, ficam bem patentes as divergências existentes no interior da própria Administração norte-americana relativamente à qual a melhor estratégia a adotar face à política colonial do Estado Novo, englobando a questão portuguesa na mais ampla estratégia dos Estados Unidos da América (EUA) em relação ao binómio Europa/África.

Ou seja, no difícil e prolongado processo de escolha entre a manutenção das boas relações dos EUA com os seus tradicionais aliados europeus, muitos deles potências coloniais que se mostravam renitentes em abandonar esse estatuto, e os esforços pela promoção de uma nova etapa no relacionamento dos EUA com o continente africano, perante o crescente empenho e envolvimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Essa nova etapa deveria ser impulsionada, alimentada e executada, segundo uma cada vez mais influente corrente que se afirmava no Departamento de Estado norte-americano, através de um claro apoio à aplicação do princípio da autodeterminação, de crítica ao colonialismo e de aproximação aos movimentos independentistas mesmo que, em última análise, essa postura pudesse colocar em causa os interesses das potências europeias e as relações entre a América do Norte e a Europa Ocidental.

Uma vez que o livro tem como ponto de partida a integração de Portugal, na qualidade de membro fundador, no Pacto do Atlântico, o autor sustenta que as relações luso-americanas não evoluiriam nos anos seguintes «para um patamar de aprofundamento mais avançado do que aquele que derivava da ligação entre Portugal e os Estados Unidos no âmbito da nato» e que tal se deveu «à dificuldade em harmonizar as posições luso-americanas na Europa e no Terceiro Mundo, fruto dos interesses internos particulares de cada Estado» (p. 32). Sendo verdade que essa difícil harmonização impediu um aprofundamento do relacionamento bilateral, o que se extrai da sua leitura é que, em vez de uma intensificação, o que esteve quase sempre no horizonte ao longo dos anos 50 do século XX foi uma degradação da relação bilateral, que apenas seria travada por três grandes fatores: a importância estratégica das bases açorianas, a existência dos aludidos pontos de vista divergentes no interior da máquina administrativa norte-americana sobre a política a adotar para o continente africano e a postura benevolente do Presidente Eisenhower em relação à política colonial da ditadura portuguesa.

Apenas esta conjugação de dinâmicas impediu um retrocesso no relacionamento entre os dois países, que sofreu vários testes de stress durante o período analisado: a tensão em torno da extensão a Macau do embargo económico imposto pelos EUA à República Popular da China no início de 1951 - que colocou em causa a principal razão de ser daquele território, como entreposto comercial -, o silêncio dos EUA perante a invasão dos enclaves de Dadrá e Nagar Aveli por forças apoiadas pela União Indiana em 1954, as repercussões da crise do Suez em 1956 e a ausência de um forte apoio dos EUA perante a crescente onda de críticas ao colonialismo português nas Nações Unidas ao longo da segunda metade da década de 1950, abalaram e colocaram em causa os alicerces de uma relação cimentada em torno de um grande elemento aglutinador - os Açores.

Foi essencialmente devido ao trunfo dos Açores, e das precárias e bem delimitadas no tempo concessões oferecidas por Portugal para a manutenção de forças militares norte-americanas em período de paz no território nacional a fim de se evitar a constituição de novos Gibraltares (p. 58), que as autoridades portuguesas conseguiram arrancar dos EUA uma declaração de apoio à política colonial do Governo de Lisboa (pp. 132, 182-183). Foi também graças a esse trunfo que Salazar se deu ao luxo de dar instruções para que fosse recusado o convite dirigido ao Presidente Craveiro Lopes para uma visita oficial aos EUA no final de 1954 (pp. 165-166).

Também importante foi o posicionamento do Presidente Eisenhower perante a crescente afirmação do setor africanista no interior da máquina diplomática norte-americana. Foi apenas uma decisão pessoal do Presidente norte-americano que travou o voto favorável dos EUA em relação à Resolução 1514 que, reafirmando os princípios fundamentais dos direitos do homem, condenava todas as formas de colonialismo, sublinhava o direito à autodeterminação e rejeitava a utilização de argumentos que visassem atrasar os processos de independência (p. 281). A visita do Presidente Eisenhower a Portugal em maio de 1960 sela esta relação pragmática não isenta de tensões, ambiguidades e equívocos. Entre estes últimos merece destaque o prognóstico do cônsul norte-americano em Luanda que, em janeiro de 1961, considerava inconcebível o deflagrar de uma contestação que colocasse em causa a presença de Portugal em África (p. 284).

Apesar de não ter passado imediatamente à forma de livro, a escassez de estudos dedicados a este tema neste período concreto e a qualidade da investigação levada a cabo justificam que vários dos aspetos abordados por Daniel Marcos na sua tese de doutoramento tenham sido já integrados na mais relevante e recente bibliografia dedicada à história das relações luso-americanas2 ou da história da política externa do Estado Novo3. Este facto não nos deve, contudo, levar a concluir que o trabalho agora publicado não merece uma leitura atenta. Pelo contrário, a presente edição deve servir de estímulo e ponto de partida para novas investigações dedicadas ao relacionamento bilateral luso-americano, às relações transatlânticas e à evolução registada na dinâmica triangular América do Norte-Europa-África.

Bibliografia

PEREIRA, Bernardo Futscher - Crepúsculo do Colonialismo. A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961). Lisboa: Dom Quixote, 2017. [ Links ]

RODRIGUES, Luís Nuno - Salazar e Kennedy: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963. Lisboa: Editorial Notícias, 2002. [ Links ]

RODRIGUES, Luís Nuno - No Coração do Atlântico. Os Estados Unidos e os Açores (1939-1948). Lisboa: Prefácio, 2005. [ Links ]

ROLO, Maria Fernanda - Portugal e a Reconstrução Económica do Pós-Guerra. O Plano Marshall e a Economia Portuguesa dos Anos 50. Lisboa: Instituto Diplomático, 2007. [ Links ]

SÁ, Tiago Moreira de - História das Relações Portugal-EUA (1776-2015). Lisboa: Dom Quixote , 2016. [ Links ]

TELO, António José - Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica. Lisboa: Cosmos, 1996. [ Links ]

1 RODRIGUES, Luís Nuno - Salazar e Kennedy: A Crise de Uma Aliança. As Relações Luso-Americanas entre 1961 e 1963. Lisboa: Editorial Notícias, 2002; RODRIGUES, Luís Nuno - No Coração do Atlântico. Os Estados Unidos e os Açores (1939-1948). Lisboa: Prefácio, 2005; ROLO, Maria Fernanda - Portugal e a Reconstrução Económica do Pós-Guerra. O Plano Marshall e a Economia Portuguesa dos Anos 50. Lisboa: Instituto Diplomático, 2007; TELO, António José - Portugal e a NATO: O Reencontro da Tradição Atlântica. Lisboa: Cosmos, 1996.

2SÁ, Tiago Moreira de - História das Relações Portugal-EUA (1776-2015). Lisboa: Dom Quixote, 2016.

3 PEREIRA, Bernardo Futscher - Crepúsculo do Colonialismo. A Diplomacia do Estado Novo (1949-1961). Lisboa: Dom Quixote, 2017.

David Castaño Investigador integrado do IPRI-NOVA e professor convidado no Departamento de Estudos Políticos da NOVA FCSH. Doutorado em História Moderna e Contemporânea pelo ISCTE-IUL.

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons