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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.77 Lisboa mar. 2023  Epub 31-Mar-2023

https://doi.org/10.23906/ri2023.77a11 

Artigos

A relevância da economia para a autonomia estratégica do país

The relevance of economy for Portugal’s strategic autonomy

Vítor Bento1 

1 Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, Av. da República, 35, 5.º, 1050-186 Lisboa, Portugal | vabento@iscsp.ulisboa.pt


Resumo

A economia, sobretudo desde meados do século passado, tem demonstrado ser um relevante teatro estratégico, onde os países edificam poder e influência nas relações internacionais. Através dos desenvolvimentos das respetivas economias, os Estados nacionais adquirem ou perdem relevância no plano internacional, alargam ou estreitam a sua autonomia estratégica, ganhando ascendência ou criando vulnerabilidades. Além de que o poder económico aí adquirido lhes permite alargar poder noutras áreas, como seja, por exemplo, a área militar (onde o caso chinês é paradigmático).

Palavras-chave: economia; poder económico; autonomia estratégica; Portugal

Abstract

The economy, especially since the middle of the last century, has proved to be an important strategic theatre where countries build power and influence in international relations. Through the development of their respective economies, national states acquire or lose relevance at the international level, broaden or narrow their strategic autonomy, gaining ascendancy or creating vulnerabilities. Besides the economic power acquired allows them to extend power to other areas, such as, for example, the military area (where the Chinese case is paradigmatic).

Keywords: economy; economic power; strategic autonomy; Portugal

Introdução

A economia, sobretudo desde meados do século passado, tem demonstrado ser um relevante teatro estratégico, onde os países edificam poder e influência nas relações internacionais, competindo entre si e em confronto com uma multiplicidade de poderosos e dispersos atores não estatais, comummente subsumidos na simplista expressão de «forças de mercado». Exemplos paradigmáticos da importância desse teatro são, entre outros: i) o colapso económico da União Soviética, que levou à implosão do regime político e, consequentemente, do chamado «império soviético» e à correspondente derrota «não violenta» na Guerra Fria; ii) a ascensão da China, de país subdesenvolvido ao estatuto de segunda maior economia mundial e potência tecnológica, que lhe permitiu tornar-se no principal challenger estratégico dos Estados Unidos da América (EUA); iii) a influência dominante que a Alemanha adquiriu na Europa (e no mundo), através do seu poder económico e apesar de não dispor de armas nucleares ou de capacidade militar particularmente distintiva.

Através dos desenvolvimentos das respetivas economias, os Estados nacionais adquirem ou perdem relevância no plano internacional, alargam ou estreitam a sua autonomia estratégica, ganhando ascendência ou criando vulnerabilidades. Além de que o poder económico aí adquirido lhes permite alargar poder noutras áreas, como seja, por exemplo, a área militar (onde o caso chinês é paradigmático).

Em livro recente, e face à confusão que tem envolvido o conceito, sobretudo na Europa, propus como definição de autonomia estratégica

«a margem de manobra de que o ator estratégico dispõe para escolher, adotar e perseguir fins estratégicos exequíveis, no quadro temporal disponível, tendo em conta os meios (capacidades ou instrumentos de poder) ao seu alcance e a sua eficácia nas circunstâncias prevalecentes»1.

Também o conceito de estratégia subjacente à abordagem que ali faço é amplo e compreende todo o espectro da ação do ator estratégico, o que no caso do Estado compreende todo o espaço da ação política interna e externa. Assim como tem implícitas todas as disputas competitivas, confrontacionais (as menos frequentes) ou de emulação, não violenta, de capacidades e realizações (as mais frequentes). Nesse sentido, a definição de estratégia que adotei foi a de um

«processo dialético pelo qual um Estado articula racionalmente fins desejáveis, meios necessários e modos de os usar, com o propósito de preservar a sua existência e de melhorar a sua posição no ambiente competitivo internacional, prosperando em segurança, assegurando os seus interesses e promovendo a sua influência»2.

Neste âmbito de abordagem, os instrumentos de poder relevantes para a autonomia estratégica são todos os de que o ator estratégico disponha ou possa mobilizar, e em que releva especialmente o poder económico, de que dependem praticamente todas as outras capacidades.

Cingindo-nos apenas ao poder económico e à sua relevância para a autonomia estratégica, os países ganham autonomia através, nomeadamente, da dimensão das suas economias e da edificação e uso eficiente dos recursos de que esta dinamicamente depende, do aproveitamento ou domínio das redes de comércio internacional e tecnológicas, da acumulação de capital, através da poupança, e do uso do seu sistema monetário. E perdem-na através de dependências constituídas naqueles mesmos domínios, decorrentes sobretudo de uma descuidada governance estratégica, revelada principalmente na incapacidade de edificar e usar os meios ao seu alcance e na desatenção às vulnerabilidades que decorrem da sua localização e recursos naturais disponíveis ou que são desencadeadas pela imprudência das suas próprias ações.

Veremos, então, nas três secções seguintes, como estes três fatores se manifestam na autonomia estratégica de Portugal (o País). O sistema monetário não é abordado, na medida em que este já não é nacionalmente controlável.

Dimensão económica

No que toca à dimensão da sua economia, Portugal está naturalmente condicionado pela dimensão do seu território e da sua população, de que decorrem incontornáveis limites. Mas, mesmo contando com estes limites naturais, a dimensão económica do País está muito aquém do que o seu potencial poderia permitir, como resulta facilmente da comparação com países das chamadas «economias avançadas», sujeitos aos mesmos limites. De facto, das 40 economias consideradas avançadas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), e selecionando, para comparação, as nove que têm praticamente a mesma população de Portugal, ou que, tendo população inferior, têm um produto interno bruto (PIB) superior, verifica-se que apenas a Grécia tem uma dimensão económica (medida pelo PIB) um pouco inferior à de Portugal. E que o PIB português se situa 30% abaixo da média das outras nove economias (cf. quadro 1). Portugal tem, por conseguinte, uma dimensão económica inferior à sua potencialidade, aferida esta pelo resultado conseguido por outros países com condições naturais comparáveis.

Quadro 1 > PIB de 2021, em paridades de «poder de compra» (PPP) correntes, e «limites naturais», de Portugal e dos países comparáveis 

Fonte: «População» e «PIB»: International Monetary Fund; «Área»: World Bank3.

Mais preocupante é que em termos de dinâmica, Portugal tem perdido dimensão relativa dentro desse grupo. Se recuarmos ao início do século, Portugal ocupava, em 2000, a sexta posição neste grupo de dez países, tendo, entretanto, descido três posições (cf. quadro 2). Uma parte dessa perda de posição relativa é explicável pelo crescimento populacional de outros países do grupo, como é o caso de Israel e de Singapura. Mas o essencial da explicação, mesmo no caso desses países, deve-se à maior eficiência no uso dos seus recursos económicos, como é comprovável pela progressão dos respetivos PIB per capita4. Mais uma vez, em termos de eficiência económica, só a Grécia tem um desempenho pior do que Portugal, durante os últimos vinte anos.

Quadro 2 > Evolução da dimensão económica (PIB, em PPP de 2017) de Portugal e países comparáveis, entre 2000 e 20215  

Fonte: International Monetary Fund6.

No mesmo livro que já referi, identifiquei como principais contribuintes para a variação da dimensão económica dos países, o stock de capital produtivo7, o emprego (quantidade de trabalhadores) e o capital humano (a qualidade dos recursos humanos, aferida pelos níveis de educação). O emprego está essencialmente associado à população8 e, por conseguinte, à limitação natural que esta representa, pelo que as outras duas variáveis - capital produtivo e capital humano - são as principais alavancas estratégicas para atuar sobre a dimensão da economia, superando os limites demográficos.

Como se pode verificar no quadro 3, Portugal tem um stock de capital produtivo por trabalhador que é pouco mais de um terço da média dos restantes e só a República Checa apresenta um valor (marginalmente) inferior ao de Portugal. No que respeita à qualidade do capital humano, Portugal apresenta o valor mais baixo do grupo, correspondendo a cerca de 70% da média dos restantes9.

Quadro 3 > Fatores determinantes da variabilidade da dimensão económica (2021) 

Fontes: «PIB»: International Monetary Fund; «capital por trabalhador»: AMECO; «índice de capital humano»: Penn World Table 9.010.

Outra forma de perceber a fragilidade nestas duas formas de capital, numa perspetiva mais vasta, é ver como os respetivos stocks per capita comparam com os das demais economias avançadas, independentemente da sua dimensão, e para as quais há informação disponível e comparável11 (cf. gráficos 1 e 2). Nestas comparações, Portugal apresenta valores correspondentes a 57% e 43% da média, respetivamente para o capital produtivo e o capital humano, demonstrando bem a deficiência dos recursos produtivos gerados endogenamente.

Tendo Portugal também uma das mais baixas taxas de investimento entre as economias avançadas (cf. gráfico 3), a insuficiência de capital produtivo tende a agravar-se. Ao mesmo tempo que a incapacidade de reter o talento que as universidades têm vindo a formar se continuará a refletir na insuficiência de capital humano.

Sobre esta incapacidade, registe-se que o volume de emigração portuguesa registado na última década é da mesma ordem de grandeza da emigração da década de 60 do século passado (cf. gráfico 4). Só que nessa década saíram do país trabalhadores sem qualificação, o que, através da reorganização económica, permitiu um considerável salto na produtividade do País - o maior de que há registo. Mas, na última década, a emigração tem sido constituída sobretudo por jovens com formação superior, estando o País a exportar o seu recurso mais valioso - o talento -, com sacrifício da produtividade potencial, do desenvolvimento económico e do bem-estar dos que ficam, sobre os quais recairá, além do mais e apesar da menor produtividade média, o encargo de sustentar o Estado social e pagar a dívida, entretanto acumulada pelo País.

Gráfico 1 > Stock de capital humano per capita nas economias avançadas12. Fonte: World Bank13

Gráfico 2 > Capital produzido per capita nas economias avançadas14. Fonte: World Bank15

Gráfico 3 > Taxa de investimento nas economias avançadas (média 2000-2021). Fonte: International Monetary Fund16

Gráfico 4 > Variação da população residente entre censos e emigração17. Fontes: PORDATA 18 e estimativa própria (para os anos em que não há dados da emigração). 

Dito de outra forma, enquanto na década de 1960 Portugal «exportou» apenas quantidade de trabalho, na última década, além de ter também «exportado» quantidade desse recurso, «exportou» ainda qualidade de trabalho (capital humano), descapitalizando-se.

O capital produtivo e o capital humano são, portanto, as grandes insuficiências de Portugal para aumentar a sua dimensão económica, dentro das suas limitações naturais e, com ela, ganhar poder económico e autonomia estratégica. E são também, por conseguinte, as principais alavancas estratégicas para se poder ganhar peso económico, aproveitando melhor as potencialidades do País.

Comércio externo

Ao longo dos últimos anos, o grau de abertura da economia portuguesa ao exterior - medido pelo peso das exportações e das importações no PIB - tem aumentado, como pode ser visto no quadro 4 e no gráfico 5, permitindo ao País aumentar a sua escala produtiva, especializar-se e alargar mercados. Por outro lado, e depois de uma sucessão de várias décadas com consideráveis posições deficitárias nesse comércio, que muito contribuíram para o elevado endividamento externo de Portugal, referido na secção seguinte, a balança de bens e serviços trocados com o exterior equilibrou-se, na sequência do duro ajustamento por que passou a economia no início da década passada. Muito desse reequilíbrio deveu-se, porém, à troca de serviços, de onde sobressai o boom turístico dos últimos anos, pois que o comércio de bens continua deficitário, ainda que em menor grau.

Quadro 4 > Comércio externo de Portugal - principais agregados 

Fonte: PORDATA 19.

Gráfico 5 > Evolução do comércio externo total (% PIB). Fonte: PORDATA 20

Em termos de contrapartes, Portugal tem cerca de três quartos do seu comércio externo concentrado na União Europeia (UE). Individualmente, o principal parceiro económico é a Espanha, cujo peso no nosso comércio externo tem crescido ao longo dos anos, e relativamente ao qual o País tem uma crónica situação deficitária (cf. quadro 5 e gráfico 6), com a consequente vulnerabilidade daí decorrente.

Em termos de produtos transacionados, aqueles em que Portugal apresenta situações mais deficitárias são os «químicos e borrachas» e os «minérios e minerais», em que pesam os produtos energéticos, e as máquinas. De salientar, contudo, que a taxa de cobertura de praticamente todos os produtos tem aumentado ao longo das últimas décadas, com especial relevo, pelo seu peso, para os produtos agroalimentares.

Sendo praticamente incontornável a dependência energética - pelo menos enquanto os combustíveis fósseis mantiverem a sua relevância -, é de registar, como limitadora da autonomia estratégica do País, a vulnerabilidade decorrente da dependência alimentar, cujos produtos Portugal continua a importar mais do que exporta, não obstante o enorme progresso registado.

Quadro 5 > Comércio externo de Portugal - principais contrapartes e produtos 

Fonte: PORDATA 21.

Gráfico 6 > Evolução do comércio externo com Espanha (% PIB). Fonte: PORDATA 22

O turismo de estrangeiros em Portugal, que progrediu muito nos últimos anos, tem sido um contributo muito importante, quer para a dinamização da atividade económica, quer para as exportações (de bens e serviços), quer ainda para o equilíbrio da balança de trocas de bens e serviços com o exterior. Em 2019 (ano antes da pandemia), o turismo representou 19% das exportações, o que compara com 14% de média entre 1996 e 2014, e contribuiu (em termos líquidos entre entradas e saídas) com 6% do PIB para o saldo da referida balança, comparando com menos de 3% no mesmo período de referência. Dada a volatilidade que esta atividade pode representar, estes níveis de contributo positivo para a economia podem também ser vistos como uma potencial vulnerabilidade a choques adversos.

Autonomia financeira (poupança e dívida)

A poupança gerada num país é fundamental para financiar o investimento em capital produtivo - uma das principais alavancas estratégicas da economia, como se viu - e acumular riqueza. Na ausência de poupança própria, os países sacrificam o seu potencial de crescimento, investindo menos do que seria necessário, ou têm de recorrer a financiamento externo para investir, cedendo aos aforradores externos direitos de saque sobre a produção futura do país. O financiamento externo pode ter lugar através de investimento direto - cedendo direitos de propriedade sobre empresas nacionais, com problemas para a governance estratégica do país - ou de dívida - sentando os credores à mesa distributiva do rendimento futuro, com a consequente projeção de instabilidade social.

Em termos de poupança, Portugal tem um rácio face ao PIB quase dez pontos percentuais inferior à média das economias avançadas (média entre 2000 e 2021), só superando, marginalmente, o de Chipre e o do Reino Unido e, mais substancialmente, o da Grécia (cf. gráfico 7).

Gráfico 7 > Taxa de poupança (poupança/PIB) das economias avançadas (média 2000-2021)23. Fonte: International Monetary Fund24

Da insuficiente geração de poupança, que tem efeitos cumulativos, resulta a carente acumulação de capital produtivo, já referida a propósito da dimensão da economia, um crescente e constrangedor endividamento externo do País e uma gradual perda de controlo sobre importantes centros (privados) de decisão estratégica da economia portuguesa.

No que respeita ao endividamento externo, decorrente da falta de poupança interna para atender às necessidades da economia, ressalta-se que Portugal é o sétimo país do mundo com maior endividamento líquido perante o exterior, em percentagem do PIB, e o quarto entre as economias avançadas, em que só é ultrapassado pela Grécia, pela Irlanda e por Chipre (cf. gráfico 8).

Gráfico 8 > 50 países mais endividados ao exterior. Fonte: International Monetary Fund25

A fonte deste endividamento é fácil de verificar, comparando as taxas médias de investimento (20,6%) e de poupança (15,3%) neste século. Apesar de realizar um esforço de investimento inferior ao das demais economias avançadas, Portugal carece ainda dos meios próprios de financiamento desse investimento, e que só a poupança pode gerar, tendo por isso que depender, recorrentemente, do financiamento externo.

Registe-se, todavia, que este endividamento e esta falta de capital próprio ocorreram apesar de Portugal, desde a sua adesão à hoje UE, ter beneficiado de transferências financeiras unilaterais, líquidas, numa média de 4,3% do PIB ao ano, resultantes da adição de 2,6% de remessas de migrantes e 1,7% de transferências da UE (cf. gráfico 9).

Gráfico 9 > Transferências financeiras líquidas do exterior (% PIB). Fonte: PORDATA 26

A falta de autonomia financeira, com a enorme dependência do financiamento externo, é a principal vulnerabilidade estratégica do País e o principal, e mais poderoso, constrangimento à sua autonomia estratégica. Vale a pena recordar que foi devido a esta vulnerabilidade que, nos últimos cinquenta anos, Portugal teve, por três vezes, de ser financeiramente resgatado, por instituições internacionais, de uma inevitável bancarrota. E que foi por isso, e não por qualquer ameaça militar, que esteve essas mesmas vezes, e durante algum tempo, sob «tutela estrangeira», entendendo-se por tal a subordinação das suas escolhas de política económica e social à função de preferência dos credores do resgate. E que a subordinação das escolhas nacionais às funções de preferência de credores ou de outras entidades tutelares, como as instâncias da UE, paira permanentemente sobre o País, enquanto o seu endividamento se mantiver nos níveis periclitantes em que se encontra e não for possível gerar a poupança interna necessária para garantir a autonomia financeira.

Quanto à perda de controlo estratégico nacional sobre o tecido empresarial - outra grave consequência da falta de autonomia financeira e da necessária acumulação de capital - é difícil quantificar o seu impacto. Por um lado, o capital estrangeiro tem já uma relevância dominante no controlo das grandes empresas nacionais (cf. gráfico 10). Embora a informação do gráfico já tenha alguma antiguidade, tudo sugere que se alguma evolução houve, entretanto, não foi para melhor. Por outro lado - e este efeito, sendo mais difícil de medir, tem porventura mais impacto -, é bastante percetível a redução do número de centros de decisão estratégica empresarial no País, sugerindo a sua transferência para o exterior, acompanhada da consequente «sucursalização» da economia nacional e da sua subordinação a centros estratégicos alinhados com os interesses de outros Estados.

Tal redução é acompanhada pela diminuição de oportunidades de emprego qualificado, e sobretudo daquilo a que poderíamos chamar de «estado-maior» empresarial, e é notória, por exemplo, na dificuldade de Portugal em reter o talento jovem que as nossas universidades produzem anualmente, como já foi referido.

Gráfico 10 > Controlo estrangeiro da economia portuguesa. Fonte: Informa (Dun & Bradstreet)27

Sobre a propriedade estrangeira no tecido empresarial português, ou mais propriamente sobre o papel do investimento direto estrangeiro, importa referir, para não gerar mal-entendidos, que não há nada de intrinsecamente mal nesse papel ou nessa propriedade. Antes pelo contrário, o investimento estrangeiro traz consigo inovação, competição e diferentes perspetivas operacionais e de negócio, além da integração em cadeias de valor mais vastas, de que pode resultar, para benefício do país recetor, uma maior eficiência económica e assim o conduzir a uma maior prosperidade. Os problemas que lhe podem estar associados são de quantidade e qualidade. O problema da quantidade é idêntico ao que pode tornar uma substância química num remédio, que melhora a saúde de um doente, ou num veneno, que a põe em risco ou com ela acaba: sola dosis facit venenum. Ou seja, o bem ou o mal que possa fazer depende da quantidade utilizada. Do ponto de vista da qualidade, eventuais problemas, sobretudo associados à integração em cadeias de valor multinacionais, residirão na partilha do valor gerado nessas cadeias. Assim como poderão residir numa demasiada concentração geográfica da origem desses investimentos, suscetíveis de gerar vulnerabilidades estratégicas para o País, que acabarão por ir para além da associada dependência económica.

Conclusão

Portugal tem, no campo económico, duas grandes vulnerabilidades estratégicas, que em muito limitam a sua capacidade de realizar objetivos desejáveis, nessa e noutras frentes, ou seja, que limitam a sua autonomia estratégica.

A primeira, e mais premente, vulnerabilidade é financeira e decorre da insuficiência de poupança, que tem levado, entre outras coisas, a um elevado endividamento externo e a uma perda do controlo estratégico de importantes centros de decisão sobre a economia nacional.

A segunda - e que se traduz numa dimensão económica do País inferior à que as suas potencialidades naturais poderiam proporcionar - decorre sobretudo da carência de capital, quer «produtivo», quer humano, e da sua eficiente utilização nos processos produtivos. A carência de capital produtivo é o resultado da insuficiente geração e acumulação de poupança (fonte do capital), para além da má utilização que lhe tem sido dada, e de onde ressaltam as vultuosas destruições verificadas nas últimas décadas. E a carência de capital humano é consequência, por um lado, dos (relativamente) baixos níveis de educação da população e, por outro, da «exportação» de talento a que se tem assistido nos últimos anos, pela falta de oportunidades que o País oferece para a sua retenção.

Para adquirir mais autonomia estratégica, ganhar poder económico e com ele aumentar a sua capacidade de defender e promover os interesses nacionais e exercer influência nos assuntos internacionais, as três principais alavancas estratégicas que Portugal precisa acionar são a poupança, o capital produtivo e o capital humano. Estas alavancas não são acionáveis diretamente pelo Estado, senão na pequena escala do seu contributo direto para as mesmas (v.g. investimento público e saldos orçamentais). Mas podem ser acionáveis através da criação de incentivos e de adequadas políticas económicas que induzam o alinhamento das decisões dos agentes privados com os subjacentes objetivos de uma estratégia nacional.

Para isso, porém, é necessário que Portugal disponha de uma estratégia nacional, ou de um conceito estratégico nacional, compreendendo todas as áreas que possam desenvolver e maximizar as potencialidades nacionais, e deixe de navegar à vista as circunstâncias de cada momento, como é o hábito há muito instituído, confiado nas muito celebradas, mas altamente ineficientes, «habilidades nacionais» do improviso e do desenrascanço. E que essa estratégia seja assumida pela liderança política.

Para ter uma estratégia nacional, porém, é necessário muito mais do que definir objetivos, que é sempre a parte mais fácil e inconsequente do processo. É necessário, primeiro, ter uma instância de governance estratégica dedicada, compreendendo organizações de estudo, prospetiva e planeamento - capacidade há muito perdida no Estado - e organizações de avaliação e controlo. Depois, saber definir objetivos alcançáveis (e não apenas ambições olímpicas), em função dos recursos disponíveis ou mobilizáveis, no horizonte temporal disponível. E programar, naquele tempo e nos modos também disponíveis, a edificação e mobilização dos meios necessários à prossecução dos objetivos escolhidos. Num trabalho que, cabendo ao Estado, não pode deixar de envolver a própria sociedade.

Aliás, e sobre a governance estratégica, sobretudo no que diz respeito ao poder económico, fundamento das demais capacidades, e cuja propriedade e controlo é disperso pela multitude de agentes privados que asseguram o funcionamento da economia,

é essencial que o Estado, em articulação com a sociedade civil, disponha da capacidade, mais soft do que hard, de articular as diversas fontes desse poder por forma a alinhar os seus interesses próprios com os interesses do Estado nacional, delas extraindo eficácia estratégica. Ou, dito de outra forma, como defendo no livro que tenho vindo a mencionar, de modo a conseguir que o poder económico que existe no País funcione como poder económico do País e assim contribua efetivamente para a sua autonomia estratégica.

Bibliografia

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1 BENTO, Vítor - Strategic Autonomy and Economic Power: The Economy as a Strategic Theater. Londres: Routledge, 2022.

2Ibidem.

3 INTERNATIONAL MONETARY FUND - «World Economic Outlook Database». Atualizado em: outubro 2022. Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2022/October; World Bank - «Databank». Disponível em: https://databank.worldbank.org.

4Um maior PIB per capita significa, grosso modo, que com o mesmo número de pessoas se produz mais riqueza, conseguida com maior eficiência económica.

5Note-se que, no quadro 1, o PIB está expresso em preços correntes, neste quadro está expresso em preços de 2017 para isolar as variações dos efeitos da variação de preços.

6 INTERNATIONAL MONETARY FUND - «World Economic Outlook Database».

7O capital que, à falta de melhor designação, chamo de produtivo (embora outras formas de capital, como o humano, também sejam produtivas, em sentido literal) corresponde aos ativos tangíveis (máquinas, edifícios, equipamentos e terrenos) e intangíveis (software, patentes e outros) utilizados nos processos produtivos.

8Esta é influenciada, além do seu saldo natural (nascimentos - mortes), pelos fluxos migratórios, mas a sua relevância para superar o limite natural da população, sem criar sérias perturbações políticas, é reduzida, e certamente muito inferior à ação das outras variáveis.

9O índice de capital humano usado no quadro corresponde à «média do número de anos de escolaridade e retornos obtidos pelo trabalhador pela educação». Cf. FEENSTRA, Robert C.; INKLAAR, Robert; TIMMER, Marcel P. - «What is new in PWT 9.0?». University of Groningen. Junho de 2016, p. 12. Disponível em: https://www.rug.nl/ggdc/docs/what_is_new_in_pwt90.pdf.

10INTERNATIONAL MONETARY FUND - «World Economic Outlook Database»; Comissão Europeia - AMECO Database. Atualizado em: novembro de 2022. Disponível em: https://economy-finance.ec.europa.eu/economic-research-and-databases/economic-databases/ameco-database_en; FEENSTRA, Robert C.; INKLAAR, Robert; TIMMER, Marcel P. - «The next generation of the penn world table». In American Economic Review. Vol. 105, N.º 10, 2015, pp. 3150-3182. Disponível em: www.ggdc.net/pwt.

11A comparação numa base per capita elimina as diferenças decorrentes das diversas dimensões populacionais dos países comparados.

12O capital humano é calculado, pelo Banco Mundial, como o valor presente dos ganhos futuros da população trabalhadora ao longo de suas vidas. Os valores são medidos às taxas de câmbio de mercado em dólares americanos constantes de 2018, usando um deflator do PIB específico do país.

13 WORLD BANK - The Changing Wealth of Nations 2021: Managing Assets for the Future. 27 de outubro de 2021. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/entities/publication/e1399ed3-ebe2-51fb-b2bc-b18a7f1aaaed.

14O capital produzido, na terminologia do Banco Mundial, inclui o valor de máquinas, edifícios, equipamentos e terrenos urbanos residenciais e não residenciais. Os valores são medidos às taxas de câmbio de mercado em dólares americanos constantes de 2018, usando um deflator do PIB específico do país.

15WORLD BANK - The Changing Wealth of Nations 2021….

16INTERNATIONAL MONETARY FUND - «World Economic Outlook Database».

17Só há distinção entre emigração permanente e temporária a partir de 1976. Valores permanentes entre 1971 e 1975 foram estimados como 88٪ da emigração total (proporção idêntica aos imediatamente posteriores).

18PORDATA - «População Residente por Censos». Disponível em: https://www.pordata.pt/portugal/populacao+residente+segundo+os+censos+total+e+por+sexo-1; PORDATA - «Migrações em Portugal». Disponível em: https://www.pordata.pt/subtema/portugal/migracoes-34.

19PORDATA - «Comércio Internacional». Disponível em: https://www.pordata.pt/subtema/portugal/comercio+internacional-253.

20Ibidem.

21Ibidem.

22Ibidem.

23Estão excluídas do gráfico, por falta de dados, economias não independentes, como Hong Kong, Macau e Puerto Rico, e «microeconomias», como San Marino e Andorra.

24INTERNATIONAL MONETARY FUND - «World Economic Outlook Database».

25INTERNATIONAL MONETARY FUND - «Balance of Payments Statistic». Dados extraídos de IMF Data Warehouse. Consultado em: 10 de outubro de 2022. Disponível em: https://data.imf.org/?sk=388dfa60-1d26-4ade-b505-a05a558d9a42.

26PORDATA - «Balança de Pagamentos». Disponível em: https://www.pordata.pt/subtema/portugal/balanca+de+pagamentos-264.

Recebido: 01 de Dezembro de 2022; Aceito: 12 de Fevereiro de 2023

Vítor Bento Professor catedrático convidado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa e na Universidade Católica Portuguesa. Presidente da Associação Portuguesa de Bancos. Doutor em Estudos Estratégicos e certificado em Corporate Governance pelo INSEAD. Ocupou cargos executivos e não executivos em várias empresas, liderou a Direção-Geral do Tesouro e a Agência de Gestão da Dívida (IGCP), foi diretor do Banco de Portugal, participou em órgãos da União Europeia, representando instituições oficiais portuguesas, e foi administrador executivo da Autoridade Monetária de Macau. Foi também membro do Conselho de Estado (2009-2016). Autor de vários livros sobre economia, assuntos europeus e estratégia.

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