A genealogia moderna do conceito de autonomia demonstra a dificuldade extrema de estabilizar uma definição consensual ou sequer de o referir a um domínio circunscrito.
Com efeito, a autonomia começa por ser a condição do exercício da soberania dos Estados nacionais emergentes, cuja independência reclama a capacidade de escolherem as suas políticas livremente ou, em todo o caso, sem esta- rem subordinados a constrangimentos inapropriados. Na visão de Rousseau, a liberdade do Estado exclui qual- quer forma de dependência externa que possa condicionar a vontade geral da comunidade política: quem depende de outrem e não controla os seus próprios recursos não pode ser livre1.
No momento seguinte, a autonomia passa a ser a condição do exercício da cidadania, restrita aos indivíduos que possam garantir por meios próprios a sua subsistência sem estarem inibidos por fatores externos, uma vez que de outra forma não podem assegurar a independência necessária ao seu esta- tuto como colegisladores. Na fórmula de Kant, a autonomia da vontade política reclama a independência (Selbstandigkeit) do cidadão que deve a sua existência não ao arbítrio de outrem, mas aos seus próprios direitos e às suas próprias forças como membro da comunidade republicana2.
No século passado, a autonomia é a condição das entidades não soberanas cuja independência política se limita aos assuntos internos dos Estados federados, dos Estados associados, dos Estados coloniais ou dos protetorados, que não têm uma personalidade internacional própria. Na definição de Hannun e Lillich, a autonomia é determinada pelo grau de independência real ou formal da entidade não soberana no seu processo de decisão política, que exclui as políticas externas e de defesa normalmente reservadas aos governos centrais ou nacionais3.
A autonomia estratégica, que é uma marca de referência nas doutrinas de segurança nacional contemporâneas da Índia, da França ou, mais recentemente, da Turquia, não tem nem uma definição conceptual, nem uma definição jurídica, nem uma definição política estabilizada. A imprecisão conceptual acentuou-se nos últimos anos, quando as instituições da União Europeia decidiram cooptar o termo para enquadrar, sucessivamente, as suas políticas de defesa, as suas políticas de segurança sanitária e energética e as suas políticas industriais4.
Ato contínuo, os «europeístas profissionais» investiram a fundo no conceito de autonomia estratégica5 e, posteriormente, na procura da «soberania europeia», quando o Presidente Emmanuel Macron e, mais tarde, a coligação governamental alemã, passaram a usar esse termo na sua retórica oficial6. A «soberania europeia» é uma construção semântica aparentemente necessária para dar sentido à «autonomia estratégica europeia» que é a condição da emergência de uma entidade supra-estatal com legitimidade para prevalecer sobre a soberania nacional dos Estados-Membros da União Europeia. Esse exercício foi interrompido pela invasão da Ucrânia pela Rússia e, no choque com a realidade, a autonomia estratégica europeia acabou mesmo antes de ter começado7.
Como dizia T. S. Eliot a propósito da democracia, quando um termo é universalmente santificado deixa de ter significado por ter demasiados significados8. Vítor Bento, pela sua parte, decidiu definir e operacionalizar o conceito de autonomia estratégica dos Estados na primeira monografia publicada, até à data, sobre esta problemática9.
A autonomia estratégica é a condição que determina a margem de liberdade da decisão política necessária para assegurar a sobrevivência do Estado na ordem anárquica do sistema internacional. Vítor Bento faz à partida uma distinção funda- mental: a autonomia estratégica não é a soberania do Estado, nem a independência nacional, mas nem por isso deixa de ser a condição de existência de uma entidade política soberana. A independência e a soberania são situações binárias, a autonomia é gradual e variável10 - é uma questão de grau e, sobretudo, um processo de acumulação dos instrumentos de poder indispensáveis para garantir a realização dos objetivos concretos (achievable ends) escolhidos pela decisão política.
A sua prioridade é operacionalizar o conceito de autonomia em função de cinco dimensões: o poder, que define o campo de possibilidades da ação estratégica; os recursos, que limitam os meios disponíveis; a eficácia e a eficiência, que condicionam a conversão das capacidades em instrumentos de poder; as circunstâncias impostas pelo sistema internacional, que decidem quais são os meios mais relevantes; e o horizonte temporal, que faz variar o leque de oportunidades e a capacidade de resposta do Estado perante os condicionalismos externos. Nesses termos, a autonomia estratégica é a margem de manobra do Estado «para escolher, adotar e prosseguir os seus objetivos num período relevante, tendo em conta as capacidades disponíveis e a sua eficácia nas circunstâncias existentes»11.
Essa definição é complementada por uma distinção adicional entre autonomia estratégica e autonomia política: a primeira é um conjunto de objetivos que define o quadro de possibilidades e limita as escolhas disponíveis; a segunda é a liberdade de escolha dos responsáveis políticos pela condução do Estado de acordo com as suas prioridades e as suas preferências ou, na fórmula de Mearsheimer citada pelo autor, a autonomia do processo decisório do Estado12.
A parte mais original da sua definição é a importância atribuída à dimensão temporal, tipicamente esquecida nos estudos estratégicos. O tempo é a dimensão mais dinâmica nas relações internacionais - «todo o mundo é composto de mudança» - e condiciona decisivamente as estratégias dos Estados. A regra do autor estipula que quanto mais curto for o tempo dispo- nível, maior é a dependência do Estado em relação às circunstâncias externas, quanto mais longo for o tempo disponível, menor é a dependência em relação aos condicionamentos exteriores e maiores são as oportunidades para acumular recursos13. Adicionalmente, no sistema internacional, onde a incerteza é a única certeza, o Estado deve preservar o máximo de recursos que possam garantir a sua autonomia na resposta às surpresas estratégicas14.
A preocupação constante de Vítor Bento são os Estados menores, nomeadamente as relações assimétricas entre um Estado pobre e um Estado rico vizinho - além de Portugal, há poucos Estados que só tenham como único vizinho um Estado maior. Nesse contexto, é relevante a distinção entre «autonomia condicionada» e «autonomia completa»: a primeira resulta da necessidade de ter de contar com aliados não só para aumentar os recursos dispo- níveis e expandir a autonomia estratégica do Estado, como para garantir a sua sobre- vivência em período de guerra; a segunda reclama um controlo soberano sobre todos os instrumentos de poder que sustentam a autonomia estratégica do Estado15.
A tese principal do autor é a importância crucial da economia, quer para garantir a autonomia estratégica do Estado, quer como teatro principal da competição entre os Estados no sistema internacional em tempo de paz. A autonomia estratégica depende do tamanho da economia, habitualmente medida pelo seu produto interno bruto, da sua inserção nas redes comerciais e tecnológicas e da sua qualidade financeira - as crises das dívidas soberanas demonstraram a importância da estabilidade financeira e o peso excessivo da dívida é uma limitação permanente à autonomia estratégica do Estado e à sua credibilidade internacional, mesmo no caso de uma potência nuclear como a França. Nesse quadro, o crescimento económico é uma prioridade permanente do Estado, que depende de três alavancas: o capital físico, o capital humano e a eficiência produtiva16.
O pressuposto de Vítor Bento é que a centralidade da economia na definição da balança do poder tende a ser permanente, uma vez que as armas nucleares tornam menos provável o recurso à guerra para resolver as divergências entre os Estados, e é mais provável - e mais sensato - concentrar a competição internacional no domínio económico, que substitui o primado do domínio militar17. Nesse contexto, o regresso da guerra tem uma dupla consequência, com a secundarização da dimensão económica da competição entre os Estados, que tende a ser subordinada à lógica da guerra num estado de exceção, e com a mudança na natureza do conflito, um duelo cujo desfecho passa a ter consequências existenciais para os contendores.
O livro termina com a análise de dois casos paradigmáticos - as estratégias nacionais da Alemanha e da China no Pós-Guerra18. Vítor Bento sublinha as afinidades eletivas entre as duas potências continentais: dois processos de reconstrução de países cuja autonomia estratégica foi drasticamente reduzida na Segunda Guerra Mundial; dois Estados divididos pela competição entre os Estados Unidos e a União Soviética durante a Guerra Fria; e duas economias centradas na exportação. Em ambos os casos, para lá das suas divergências políticas e das diferenças que separam as suas circunstâncias, o regime comunista em Pequim e o regime democrático na República Federal convergem na demonstração da centralidade da economia para restaurar a autonomia estratégica das duas potências.
Essa história ainda não chegou ao fim. A ascensão da China pode não só antecipar que a sua economia ultrapassa a economia dos Estados Unidos, como fazer com que a principal potência continental do nosso tempo possa herdar o programa de expansão imperialista que dominou sucessivamente a Alemanha e a Rússia no século XX.