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Relações Internacionais (R:I)

versión impresa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.79 Lisboa set. 2023  Epub 31-Dic-2023

https://doi.org/10.23906/ri2023.79r02 

Recensão

Recensão: A questão subteorizada da visão de mundo nas abordagens de consolidação da paz

Catarina Milhazes1 

11 CES, Colégio de São Jerónimo, Apartado 3087, 3000-995 Coimbra, Portugal | catarinamilhazes@ces.uc.pt

Bollaert, Cathy. ., 2019. ., Reconciliation and Building a Sustainable Peace: Competing Worldviews in South Africa and beyond. ., , Nova Iorque: ,, Palgrave Macmillan, , 2019,, 209 páginasp. . DOI:, 10.1007/978-3-030-03655-3,


A obra Reconciliation and Building a Sustainable Peace, de Cathy Bollaert, defende a necessidade de considerar as análises de visão de mundo nos processos de reconciliação. O estudo de Bollaert demonstra que a falha em fazê-lo pode reforçar as próprias leituras discriminatórias do «outro» que geraram o conflito e que podem causar a sua reincidência. O livro situa-se nas discussões académicas sobre a interseção dos sistemas de produção de sentido e de construção da paz. Baseando-se na África do Sul enquanto estudo de caso, o livro vem preencher uma lacuna em relação a um tópico bastante subteorizado, o da importância das análises de visão de mundo na construção da paz e nos processos de justiça transicional. Aborda questões-chave que comprometem a paz, nomeadamente a cultura, a identidade e a crença, que ainda carecem de um exame mais aprofundado na teoria e na prática atuais da construção da paz. As suas descobertas são relevantes, em particular, para académicos, estudantes e profissionais que trabalham a interdisciplinaridade para compreender a dinâmica de transformação e reconciliação em sociedades emergentes de conflitos e violência.

O livro está estruturado em oito capítulos. Os capítulos iniciais analisam as relações intergrupais passadas e atuais na África do Sul, indo além das interpretações baseadas na raça e procurando mostrar a pertinência do quadro de visão de mundo. O capítulo 4 aponta como as abordagens liberais ocidentais têm estado afastadas da necessidade de estudar as diferenças ontológicas e epistemológicas entre grupos-alvo nos processos de construção da paz. Mostra como diferentes sistemas de produção de sentido levaram a diferentes interpretações do processo de recuperação da verdade na África do Sul, que muitas vezes entraram em conflito. Os capítulos 5 a 7 desvelam a pesquisa empírica em que o livro se baseia, explorando a interseção de diferentes valores sociais e o caminho para a reconciliação na África do Sul. As evidências apresentadas sublinham o modo como as medidas de promoção da igualdade podem, involuntariamente, gerar novas formas de desigualdade. O último capítulo apresenta uma visão geral das contribuições oferecidas pela estrutura de visão de mundo, tanto para a teoria quanto para a prática da construção da paz, dentro e fora da África do Sul.

Um mundo a preto e branco

No livro, o alvoroço causado em 2012 por uma pintura do Presidente Zuma retratado com os seus genitais expostos desencadeia uma análise sobre até onde o processo de paz da África do Sul chegou. O episódio enfatiza como diferentes grupos favorecem valores diferentes: os «brancos» insistiam na liberdade de expressão (a produção criativa não deveria ser censurada), os «negros» destacavam o respeito (a pintura insultava a nação). O incidente serve para sublinhar dois aspectos: i) que a forma como os confrontos são abordados na África do Sul ainda é maioritariamente dual (nós contra eles); ii) que as reações às atitudes do outro continuam a basear-se em entendimentos identitários essencializados, até racistas (para uns, defender a liberdade de expressão significava desrespeitar o Presidente e, por extensão, a identidade dos africanos «negros»; para outros, bloquear a liberdade de expressão significava aderir a princípios bárbaros de censura autoritária). Este tipo de confronto, defende Bollaert, é consequência de um processo de paz comprometido que não foi capaz de ter em conta os diferentes sistemas de produção de sentido que exis- tem na África do Sul.

Embora o processo de paz do país não tenha seguido um modelo liberal normativo (pois não envolveu atores internacionais), deu, no entanto, ênfase aos aspectos estruturais da construção da paz. Para Bollaert, os aspectos estruturais são importantes para fazer face ao racismo institucional, à opressão e à desigualdade, mas insuficientes para dar resposta às questões complementares do que representam o bem-estar, a segurança e o sentimento de pertença para cada grupo étnico. Estes, na visão do autor, referem-se aos pilares relacionais da construção da paz (relacionados com os diferentes modos de estar no mundo e interpretar a realidade), que estão interligados com os pilares estruturais. Bollaert argumenta que menos ênfase nos pilares relacionais da construção da paz (por exemplo, a reabilitação social, uma visão compartilhada do futuro, o perdão) significa pouca noção de como as paisagens políticas e institucionais, por um lado, e as identidades, por outro, mudam ao longo do tempo, não necessariamente ao mesmo ritmo. Assim, medidas políticas que visem a igualdade social podem, de facto, traduzir-se num retrocesso, se os diferentes grupos sociais não adquiriram a capacidade de compreender a visão de mundo do outro, ou seja, a maneira como o outro entende o mundo em geral e as ações do próximo em particular. Bollaert fornece exemplos per- tinentes para mostrar que, quando a própria compreensão da paz não é facilmente visível nas ações do outro, existe a tendência para aderir a e reforçar os estereótipos existentes relativos ao «outro». Por exemplo, o livro aborda a forma como as políticas de black economic empowerment, voltadas para a redistribuição económica, contribuíram para que alguns grupos questionassem o interesse do Congresso Nacional Africano na construção de uma nação justa e holís- tica. De facto, políticas como a black economic empowerment enfatizaram a necessidade de reparar injustiças passadas; no entanto, não lograram apontar um futuro para o bem comum, para todos, independentemente da identidade de cada um. Tornou-se claro que o seu foco ainda refletia os termos binários opressor/oprimido do passado. Isso não só contribuiu para o desenvolvimento de novas fraturas entre «negros» privilegia- dos e mais desfavorecidos e para que alguns

«negros» oprimissem outros grupos («indianos», «de cor», «migrantes»), assim como levou os «brancos» (especialmente as gerações mais jovens que não contribuíram para o regime do apartheid) a adotar uma postura defensiva perante uma noção de unidade que ecoava principalmente perspetivas «negras». Como mostra Bollaert, a falha em considerar as perceções do outro, a forma como o outro interpretará e reagirá a uma determinada ação, contribui para manter perceções intergrupais estigmatizadas, levando ao que os sul-africanos chamam de rainbowism, uma reconciliação superficial.

tura privilégio versus pobreza. Como aponta Bollaert, o discurso em torno da reconciliação deve então passar da essencialização das identidades raciais para análises mais complexas das dinâmicas de privilégio e desvantagem. O modelo de visão de mundo questiona os valores subjacentes às políticas de transição e mostra que uma sociedade não pode tornar-se inclusiva se as suas políticas forem construídas com base em interpretações históricas da identidade. Numa sociedade em que o racismo está profundamente enraizado, as diferenças tenderão a ser interpretadas em termos raciais. Isto, no entanto, torná-la-á cega em relação ao que se encontra a um nível mais profundo. Manterá o pensamento racista à superfície e continuará a não conseguir resolver os problemas de desigual- dade e exploração mais vastos. É apropriado ter em mente, a este respeito, que o racismo é uma consequência da exploração, não a sua causa. As motivações económicas geram comportamentos discriminatórios e não o contrário.

A análise da visão de mundo é apresentada como uma forma de contribuir para processos de paz que acomodem diferentes sistemas de crenças, evitando o favoreci- mento de determinados grupos identitários. Bollaert defende um maior reconhecimento da interligação entre pilares estruturais e relacionais da construção da paz. O autor propõe uma maior atenção à análise da visão de mundo e ao envolvimento de intérpretes de visões de mundo nos processos de construção da paz. Esses intérpretes são uma peça ausente na prática atual de construção da paz, bem como nas abordagens teóricas. Como Bollaert neste livro, eles ajudam a interpretar a comunicação intergrupal em sociedades pós-conflito divididas e diversas. O discurso sobre análise de conflitos e reconciliação deve evitar o reforçar de identidades baseadas na raça. Deve alcançar uma maior complexidade, nas interpretações coletivas e individuais da paz e da justiça, ao nível comunitário, por meio de metodologias de encontro e envolvimento, incluindo diferentes grupos sociais. Deve dar espaço para que as identidades mudem e se desenvolvam, ao mesmo tempo em que lida com as desigualdades do passado com ramificações no presente. Em última análise, Bollaert destaca o que alguns não conseguiram ver: que a unidade resultará (não de assumir que todos partilham os mesmos valores, mas) do envolvimento em debates sobre cultura, crenças, prioridades coletivas/ individuais e justiça, por mais receio que se possa ter de confrontar o politicamente correto ou soar desajustado, ignorante e até racista por não conseguir compreender o outro. Na África do Sul, embora essas discussões pudessem ter sido aprofundadas em 1994, o recente décimo aniversário do massacre de Marikana, um dos piores episódios de brutalidade policial desde o apartheid, e as próximas eleições gerais, em 2024, são certamente momentos de viragem para retomar e expandir o debate, tanto dentro da academia como no espaço público - mais um motivo para recomendar o livro de Bollaert.

Bibliografia

Bollaert, Cathy . 2019. Reconciliation and Building a Sustainable Peace: Competing Worldviews in South Africa and beyond. Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2019, 209 páginas. DOI: 10.1007/978-3-030-03655-3 [ Links ]

Catarina Milhazes Doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos na Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. É também consultora de cooperação internacional e desenvolvimento, com foco nas relações UE-África.

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