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Motricidade

versão impressa ISSN 1646-107Xversão On-line ISSN 2182-2972

Motri. vol.20 no.1 Ribeira de Pena mar. 2024  Epub 18-Out-2024

https://doi.org/10.6063/motricidade.33968 

Artigo Original

Ser cuidador informal em cuidados paliativos

Being an informal caregiver in palliative care

1Centro Saúde Amarante, Unidade Local de Saúde Tâmega e Sousa – Amarante, Portugal.

2Câmara Municipal de Sintra – Sintra, Portugal.

3Universidade de Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas – Lisboa, Portugal.


RESUMO

Este estudo teve como objetivo compreender as perceções (dificuldades, necessidades, repercussões positivas e negativas, estratégias utilizadas e momentos significativos) de quem é cuidador informal de pessoas em cuidados paliativos e em fim de vida. Foi aplicado um inquérito por questionário online, tendo sido obtidas 70 respostas. Os dados recolhidos foram alvo de tratamento quantitativo e qualitativo, e os resultados revelam que a maioria dos inquiridos são portugueses, do sexo feminino, com idade média igual ou superior a 54 anos, elevadas habilitações literárias, tendo-se tornado cuidadores face a doença grave ou dependência de um familiar. Os resultados demonstraram que cuidar tem condições comuns, mas revelam que é um processo único, influenciado por múltiplas variáveis, entre as quais o suporte percebido. Tratando-se de cuidados em final de vida, representam uma maior sobrecarga sobre os cuidadores, embora cuidar seja um processo dinâmico, no qual interagem fatores facilitadores, protetores e outros dificultadores, estratégias adaptativas, dependendo dos recursos individuais, quer da pessoa cuidada, quer do cuidador, bem como de outros determinantes em saúde e suporte social, assim como o sentido de propósito, abnegação e utilidade experienciada pelo cuidador.

PALAVRAS-CHAVE: cuidados paliativos; cuidar; cuidadores informais

ABSTRACT

This study aimed to understand the perceptions (difficulties, needs, positive and negative repercussions, strategies used and significant moments) of informal caregivers of people undergoing palliative and end-of-life care. An online questionnaire survey was administered, obtaining 70 responses. The data collected were subject to quantitative and qualitative analysis. Data revealed that the majority of respondents are Portuguese, female, with an average age equal to or greater than 54 years, with high education and educational qualifications, having become caregivers in the face of a family member's severe illness or dependence. The results show that caring has common conditions but reveals a unique process influenced by multiple variables, including perceived support. In the case of end-of-life care, they represent a greater burden on caregivers, although care is a dynamic process in which facilitating, protective and other hindering factors interact, adaptive strategies, depending on individual resources, whether of the person being cared for, or of the caregiver, as well as other determinants of health and social support, as well as the sense of purpose, selflessness and usefulness experienced by the caregiver.

KEYWORDS: palliative care; to care; informal caregivers

INTRODUÇÃO

Sendo o final de vida um processo intrínseco à natureza humana, não deixa de ser um desafio para quem cuida e tem inerente a exigência de gestão das várias etapas e dinâmicas que lhe estão associadas (Ribeirinho & Fundação Aga Khan Portugal, 2022). O fim de vida e o processo de passagem são momentos intensos, quer para o doente, quer para a sua família, cuidadores e profissionais, causando, frequentemente, sentimentos de sobrecarga emocional. Desde meados do século XX, o cuidado em fim de vida tem vindo a ser reconhecido socialmente como um processo complexo que exige agentes especializados que tenham uma visão das diferentes dimensões implicadas nas circunstâncias da morte, nomeadamente, a pessoa doente e a sua família. A atenção tem recaído, principalmente, na garantia e reconhecimento da necessidade de respeitar a dignidade da pessoa doente que está no fim de vida (Cárcer, Gómez, Salas, & Gómez-Batiste, 2016), alargando também o foco para a família e cuidadores.

Cuidar pressupõe, quer uma disposição, quer uma atividade, que se consubstancia em processos que envolvem pelo menos um cuidador e uma pessoa cuidada, cada um com a sua própria identidade. Trata-se, deste modo, de um processo relacional, "pois é uma ação voltada para o outro, geralmente com o objetivo último de promover o seu bem-estar" (São José, 2016, p. 68).

Os cuidados paliativos envolvem uma abordagem interdisciplinar especializada e humanizada, que visa intervir no sofrimento de pessoas que estão a passar por doenças graves, avançadas ou irreversíveis, atendendo também às necessidades das suas famílias e cuidadores (Neto, 2017).

Não obstante a dificuldade de definição, é assumido pelo Eurocarers (2020) que o termo prestador de cuidados informais está associado aos cuidados prestados por um conjunto de pessoas, quer tenham ou não relação de parentesco com a pessoa cuidada, tais como parentes, cônjuges, amigos e outros.

No contexto português, os cuidadores informais tiveram reconhecido o seu estatuto jurídico, nomeadamente a função de cuidar e a de prestar cuidados, muito recentemente, através da Lei n.° 100/2019, que define o Estatuto do Cuidador Informal, a qual reconhece dois tipos de cuidadores: o cuidador informal principal e o cuidador informal não principal (Portugal, 2019). Esta lei não abrange os cuidadores informais sem relação de parentesco com a pessoa cuidada, não os assumindo como sujeitos de direitos ao abrigo deste estatuto. Constata-se, no entanto, a existência de cuidadores sem relação de parentesco, que cuidam de pessoas em situação de dependência, identificadas na literatura como amigos, vizinhos e voluntários (Eurocarers, 2020; Teixeira et al., 2017).

Os cuidadores informais são pessoas que cuidam, baseando-se numa relação informal, sem formação profissional prévia, sem vínculo contratual e sem qualquer remuneração. Desempenham também uma função crucial na salvaguarda dos direitos das pessoas que beneficiam dos seus cuidados, bem como no respeito aos princípios éticos da vida. Além disso, atuam como um elo com a estrutura formal dos sistemas sociais e de saúde (Teixeira et al., 2017). Cabe ao cuidador informal o desempenho de diversas tarefas que implicam conhecimento e técnicas específicas, nomeadamente a realização de atividades quotidianas, a resolução de problemas, várias tomadas de decisões, bem como tarefas que requerem competências de comunicação e organização (Schumacher, Beck, & Marren, 2006).

Ao assumir esse papel, a maior parte dos cuidadores não possui experiência prévia, o que amplia os riscos de enfrentarem sobrecarga emocional, física, social e financeira.

Apesar da aprovação do Estatuto do Cuidador Informal, o Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, em 2021, levou a cabo um estudo que revelou que apenas 40.9% dos cuidadores tinham conhecimento do estatuto e que cerca de 81,3% referiu que os apoios são insuficientes. As principais dificuldades e desafios associados ao papel de cuidador informal prendiam-se, entre outros, com o apoio emocional e psicológico (64,6%), com apoios sociais, nomeadamente, apoios do Estado, associações ou do próprio estatuto do cuidador (59,1%), ou falta de formação e capacitação do cuidador informal (51,8%). No mesmo estudo, que reuniu 1133 respostas, verificou-se que a grande maioria, 86,6%, são do género feminino e a maioria tinha mais de 55 anos, correspondendo a 47,8% da amostra (Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, 2021).

No que concerne aos aspetos positivos associados ao ato de cuidar, na sua pesquisa, Sommerhalder (2001) identificou vários sentimentos experienciados pelos cuidadores, entre eles, a perceção de crescimento pessoal e de realização, bem como o facto de se sentirem orgulhosos e mais capazes para enfrentar desafios. Foi também referido um melhor relacionamento interpessoal (tanto com o doente dependente, como com outras pessoas), o aumento do significado da vida, assim como sentimentos de prazer, satisfação, retribuição e bem-estar com a qualidade do cuidado prestado.

Situado no escopo destas preocupações, mas de forma mais focalizada nos cuidadores informais em cuidados paliativos e em fim de vida, este artigo teve como ponto de partida uma investigação desenvolvida no âmbito de uma Comunidade de Práticas em Cuidados Paliativos, apresentada parcialmente nas I Jornadas Para uma Humanização em Cuidados Paliativos, que decorreu no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Universidade de Lisboa, em outubro de 2022.

A investigação teve como objetivo compreender as perceções dos cuidadores informais em cuidados paliativos e em fim de vida, caracterizando-os, primeiramente, sócio demograficamente. Numa segunda e terceira dimensões o estudo recaiu sobre questões mais subjetivas, nomeadamente, as circunstâncias em que se tornaram cuidadores e as perceções dos mesmos sobre a vivência de cuidar de uma pessoa em cuidados paliativos.

MÉTODO

Neste estudo de natureza exploratória, optou-se por uma metodologia predominantemente quantitativa, através da aplicação de um inquérito por questionário.

Amostra

O estudo dirigiu-se à população em geral, residente em Portugal continental e ilhas, e maiores de 18 anos, cuidadores informais no momento da resposta ao inquérito por questionário, ou que já o tivessem sido em algum momento.

Foram obtidas 70 respostas válidas (60 cuidadores do sexo feminino e 10 do sexo masculino). Os participantes no inquérito são na totalidade residentes em Portugal continental. Dos 70 inquiridos, 68 possuem nacionalidade portuguesa, sendo dois de nacionalidade estrangeira (uruguaia e brasileira).

Instrumentos

Com o objetivo de compreender as vivências dos cuidadores informais e as suas experiências, foi construído um questionário com 17 questões (fechadas, abertas e mistas), que se organizou em três partes: (1) dados sociodemográficos; (2) circunstâncias e contexto de cuidado; (3) e perceção dos cuidadores sobre a experiência de cuidar.

A primeira parte do questionário incidiu nos dados sociodemográficos, nomeadamente sexo, idade, estado civil, habilitações literárias, nacionalidade e profissão. A segunda dimensão do questionário foi relativa a questões relacionadas com as circunstâncias em que os inquiridos se tornaram cuidadores; o tipo de relação com a pessoa cuidada; as necessidades e preocupações sentidas pelo cuidador; se fizeram alguma formação específica para cuidar; e se recorreramo a alguma rede de suporte. Por fim, na terceira parte do questionário, as questões procuraram averiguar as perceções dos cuidadores sobre a vivência de cuidar de uma pessoa em cuidados paliativos, nomeadamente através de questões relacionadas com os sentimentos ligados ao processo de cuidar; as dificuldades sentidas, o seu significado e impacto; as estratégias que utilizaram no decorrer do tempo; o momento mais significativo na experiência de cuidar; e quais foram as aprendizagens mais importantes que retiraram dessa experiência.

Os participantes prestaram previamente o consentimento informado, sendo informados do objetivo da investigação e salvaguardadas todas as questões éticas de anonimato. Importa realçar que não foram identificados conflitos de interesses nesta investigação.

Procedimentos

O questionário foi elaborado pela equipa de investigação, de forma a que permitisse aferir as perceções e experiências dos cuidadores. Foi enviado por e-mail e por outros canais digitais (Facebook, WhatsApp) para cuidadores de pessoas em cuidados paliativos e/ou em fim de vida, através dos contactos profissionais e pessoais dos membros da Comunidade de Prática. Foi respondido online via Google Forms, diretamente pelos cuidadores, tendo estado disponível durante dois meses, entre 2 de agosto e 5 de outubro de 2022, e obtidas 70 respostas válidas.

Análise estatística

Os dados recolhidos foram alvo de tratamento quantitativo (análise estatística descritiva simples através de Excel) e qualitativo (análise de conteúdo temática). A primeira parte do questionário era composta de questões fechadas ou mistas, tendo os dados sido inseridos numa base de dados em Excel e posteriormente analisados de forma descritiva. As questões abertas, por sua vez, foram exploradas através de um processo de análise de conteúdo, procurando aferir os significados atribuídos pelos inquiridos à sua ação de cuidar designadamente sobre as suas perceções, necessidades e dificuldades no processo de cuidar.

RESULTADOS

A maioria dos cuidadores tem mais de 54 anos (47,1%), a faixa etária dos 45 aos 54 anos constitui 34,3% dos cuidadores e 14,3% têm entre 35 e 44 anos. Os cuidadores com idades compreendidas entre os 25 e 34 anos são a faixa etária menos representativa. Relativamente ao estado civil, 55,7% dos cuidadores são casados ou vivem em união de facto, sendo que 20% são divorciados e 18,6% viúvos.

Relativamente às habilitações literárias, 44,3% dos cuidadores possuem o ensino superior, 41,4%, o ensino secundário e os que possuem o ensino básico representam 12,9% do total dos inquiridos.

Quanto às profissões, a maioria dos inquiridos (39,3%) são profissionais de educação, engenharias, profissionais de saúde ou terapias. Em relação aos restantes inquiridos: 13,1% exercem profissões administrativas; 13,1% classificam a sua profissão como cuidadores; 11,5% são reformados; 8,2% são trabalhadores não qualificados; 8,2% desempenham outro tipo de profissões não discriminadas; e 6,6% desempenham funções relacionadas com cuidados pessoais e similares.

Circunstâncias e contexto do cuidar

Quando questionados sobre as circunstâncias em que se tornaram cuidadores, as respostas dividiram-se em dois grupos, um relacionado com a existência de uma doença crónica, e outro com a dependência do familiar a quem é prestado o cuidado. Em relação à necessidade de apoio por doença crónica do familiar, 28,6% dos cuidadores reportaram que a dependência estava relacionada com um quadro de demência, 19% referiram situações de paralisia cerebral, 19% acidente vascular cerebral, 14,4% doença oncológica e 4,3% por dependência decorrente de diagnósticos de esclerose lateral amiotrófica. Cerca de 14,3% não apontaram a causa. Quanto às circunstâncias relacionadas com a dependência do familiar, 55,9% dos inquiridos referiram a maior dependência ou o envelhecimento como principal motivo de se terem tornado cuidadores informais, 23,5% descreveram circunstâncias de doença não especificada, 11,8% situações resultantes de acidentes ou cirurgias (8,8%).

No que diz respeito à relação com a pessoa cuidada, constatou-se que a totalidade dos inquiridos são familiares, sendo que 47 cuidadores coabitavam com a pessoa cuidada, 18 não viviam na mesma casa, e apenas 5 inquiridos residiam ocasionalmente com a pessoa cuidada.

Em relação às principais necessidades ou preocupações sentidas, a maioria dos cuidadores (32,9%) assinalou como maiores dificuldades o apoio com cuidados básicos, tais como higiene e alimentação, cerca de 29,4% destacou as questões de mobilidade e 27,1% apontou as dificuldades de apoio médico e acompanhamento a consultas. Uma percentagem de 5,5% referiu dificuldades de sociabilização e 3,5% afirmou que sentiu falta de apoio emocional.

Relativamente à existência de formação específica para cuidar, 83,3% dos inquiridos não fizeram formação, verificando-se que do total dos inquiridos, cerca 61% dos cuidadores sentiram necessidade de formação.

Sobre a existência de alguma rede de suporte durante o processo de cuidar, 49% respondeu que não teve e apenas 21% respondeu afirmativamente. Sobre os meios utilizados para o apoio, verificou-se que a maioria dos cuidadores recorreu à família e amigos.

Perceção sobre a experiência de cuidar

Quando solicitado aos cuidadores que qualificassem a experiência de cuidar, 34,8% considerou que foi positiva, e 30,4% revelou uma posição neutra. Cerca de 18,8% referiu que foi ou é muito positiva e, finalmente, os restantes inquiridos mencionaram que foi uma experiência negativa ou muito negativa.

Ao serem questionados sobre quais os sentimentos associados ao ato de cuidar, os cuidadores referiram sentimentos negativos, tais como cansaço físico e psicológico, sentimentos de impotência, desgaste e sobrecarga, ansiedade, medo e preocupação, anulação e dúvidas, desmotivação e o não saber como agir. Foram também referidos relatos de esgotamento/burnout, tristeza e depressão, assim como sentimentos de frustração por considerarem não conseguir assumir o papel de cuidador da forma que desejavam. Estes relatos expressam que a vida dos cuidadores informais de pessoas em situações de doenças graves ou terminais e em cuidados paliativos é afetada, tal como a vida dos doentes a quem prestam cuidados.

Alguns cuidadores encaram essa responsabilidade como um sacrifício substancial, devido ao considerável investimento de tempo e recursos pessoais, emocionais, espirituais, sociais e financeiros envolvidos. Por outro lado, outros cuidadores assumem o cuidar como uma bênção, uma experiência irrepetível envolta em transformação e amor. Foram ainda mencionadas experiências positivas que implicaram sentimentos de utilidade e força, bem como que esta vivência ajudou ao desenvolvimento de uma maior valorização da vida, ou a descoberta de que se nasceu para cuidar.

Em relação às dificuldades sentidas pelos cuidadores, nomeadamente no que concerne ao seu significado e impacto, foram mencionadas dificuldades relacionadas com a própria prestação de cuidados, com a relação com a pessoa cuidada, dificuldades económicas, dificuldades relacionadas com a conciliação da vida pessoal/familiar/profissional, assim como desafios que se prenderam com a relação com os profissionais, com as instituições ou com os apoios. Para alguns inquiridos, o confronto com a imprevisibilidade do futuro representou também uma dificuldade.

No que diz respeito à falta de preparação/formação para prestar cuidados, os inquiridos revelaram dificuldades devido ao desconhecimento sobre onde e a quem pedir ajuda. A falta de preparação refletiu-se também na insegurança em relação à prestação de cuidados, nomeadamente no medo de não conseguir estar à altura das suas necessidades devido ao cansaço físico e psicológico. Os desafios relacionados com a falta de preparação ou formação para prestar cuidados também foi referido relativamente aos cuidados de higiene e conforto, à possibilidade de ter de prestar cuidados mais específicos, como a mobilização de um doente acamado, ou até mesmo no facto de existirem desafios relacionadas com o não ter uma casa adequada à prestação de cuidados.

No que concerne às estratégias utilizadas pelos cuidadores, foram referidas soluções relacionadas especificamente com a prestação de cuidados, com a família/amigos, com o autocuidado e também foi referido o recurso a apoio profissional ou institucional. Alguns inquiridos procuraram formação específica que os dotasse de mais competências, bem como conhecimento relacionado com a doença da pessoa cuidada. Para facilitar a prestação de cuidados, os familiares mencionaram ainda outras estratégias como a organização da medicação, adaptação do domicílio e a aquisição de produtos de apoio. Em relação à pessoa cuidada, foi mencionada a necessidade de maior estimulação e de comunicação sobre o processo que estavam a viver. Sobre o recurso à família e amigos, os cuidadores indicaram que a estratégia utilizada foi pedir mais apoio, implicando-os na gestão e prestação dos cuidados. Recorreram, também, em algumas situações, à rede de vizinhança.

No plano do autocuidado, foi referido o recurso a práticas como o Reiki, o Mindfulness, ou outras técnicas de respiração, treino de pensamento positivo e de aceitação. Alguns cuidadores mencionaram um maior investimento no seu desenvolvimento pessoal e espiritual, bem como a importância de encontrar tempo para si mesmo, nomeadamente através de hobbies.

Em relação às estratégias relacionadas com o apoio de profissionais, os cuidadores referem ter recorrido a enfermeiros, psicólogos ou outros profissionais qualificados. Indicaram, também, a necessidade de contratação de outros colaboradores ou o recurso ao Serviço de Apoio Domiciliário.

Quando questionados sobre qual foi o momento mais significativo na experiência do cuidar, os cuidadores indicaram momentos relacionados com o cuidado prestado à pessoa doente, com o próprio cuidador, com acontecimentos críticos e com o processo da morte. No que se refere à prestação de cuidados, a maior parte dos inquiridos apontou os momentos da higiene pessoal, a perceção de "dever" cumprido, e o sentimento de solidão e de isolamento. Realçaram ainda a tomada de consciência da dependência do seu familiar e da irreversibilidade do quadro clínico, bem como o facto de sentirem que seria importante passar mais tempo com a pessoa cuidada. Os cuidadores mencionaram também como o acontecimento mais significativo o processo de morrer e o momento da morte. Nas palavras dos cuidadores, foi importante "a fase final da vida", ou "poder estar ao lado da pessoa cuidada quando partiu".

Relativamente às aprendizagens mais significativas realizadas pelo cuidador, estas podem ser agrupadas em três categorias: aprendizagens existenciais, aprendizagens relacionadas com o facto de ser cuidador e aprendizagens através de uma reflexão sobre o estado dos cuidados. As aprendizagens existenciais verificam-se nos relatos que mencionaram: a inevitabilidade da morte e a consciência da própria finitude, a decisão de mudar o rumo da própria vida, a importância do amor incondicional e a importância da compaixão e da empatia, encarando de maneira diferente a forma como o país trata as pessoas idosas e as pessoas em situação de dependência. No âmbito das aprendizagens decorrentes do facto de se ter tornado cuidador, constata-se que, depois desta experiência, houve uma consciência de que se tornaram mais fortes, mais resilientes, mas também sobre a importância do autocuidado. Relativamente à reflexão que alguns cuidadores fizeram sobre o estado dos cuidados, foram mencionados comentários como o facto de o Estado não apoiar quem cuida e quem é cuidado; a desilusão em relação ao Estatuto do Cuidador Informal; a falta de apoios económicos, psicológicos; a falta de formação e de informação; e a urgência em alterar a perceção social negativa acerca das pessoas idosas e/ou em situação de dependência.

Apesar de se ter constatado que a maioria dos registos reportam o impacto de momentos difíceis no processo do cuidar, a experiência da realização pessoal, moral, cívica e espiritual na entrega no cuidado ao outro também está patente. Isso reflete-se, nomeadamente, no facto de os inquiridos referirem o amor que recebem da pessoa que cuidam, a autodescoberta de novas capacidades ou o reconhecimento.

DISCUSSÃO

Assumir o papel de cuidador informal de uma pessoa em final de vida e/ou em cuidados paliativos pode ser muito desafiante, especialmente se o cuidador informal não tiver o devido suporte e/ou formação para o efeito. A prestação de cuidados neste âmbito tem inerente um esforço mental, físico, psicológico e emocional e ser cuidador implica, muitas vezes, o desempenho de tarefas difíceis e complexas. Neste sentido, foi evidente o reconhecimento de que a relação de cuidados se baseia na interdependência e reciprocidade, podendo ser tanto negativa, quanto positiva (Fonseca, 2008; São José, 2016). Desta forma, há cuidadores que demonstraram sentimentos de impotência diante da dor da pessoa cuidada, enquanto outros assumiram a consciência de que podem ser úteis na minimização do sofrimento (Cunha, Freitas & Oliveira, 2011) e, simultaneamente, encontrar um sentido para a sua própria vida. Neste contexto em particular, a vivência deste tipo de processos tem inerente em si a tomada de consciência da sua própria finitude (Azevedo, 2016). Ao se confrontarem com esta realidade tão desafiante e complexa, é natural que muitos cuidadores não se sintam preparados para lidar com as questões relacionadas com a morte, uma vez que existe, muitas vezes, a perceção de que o processo de finitude representa fracasso ou impotência (Kovács, 2008; Percival & Johnson, 2013).

Durante o processo de cuidar, podem emergir, assim, vários sentimentos experienciados por parte dos cuidadores de doentes em fim de vida, nomeadamente a tristeza, a raiva, sentimentos de culpabilidade ou ansiedade. Fruto das diversas alterações e reconfigurações da sua vida com que são confrontados, bem como das novas exigências e obrigações, como, por exemplo, uma nova organização do seu quotidiano ou o assumir de múltiplos papéis, os cuidadores podem vivenciar momentos de grande intensidade e sentimentos contraditórios. Estas evidências corroboram o pressuposto de que o trajeto de cada doente e da pessoa que cuida é único e incomparável e dependem de mecanismos individuais de perceção, controle e expressão, e de outros fatores exógenos, entre os quais, fatores sociais, econômicos, materiais, culturais, ecológicos e espirituais.

Neste estudo, a este propósito, foi evidente o sentimento de desinvestimento percebido pelos cuidadores em relação às políticas, serviços e apoios sociais e de saúde a que estão sujeitos. Decorre, assim, deste estudo, o reforço do proposto por Batista e Sapeta (2023), isto é, a necessidade de um maior investimento em redes de apoio domiciliário, de equipas comunitárias paliativas de continuidade de cuidados e outras que apoiem os doentes e famílias nas atividades diárias, e diminuem a sobrecarga do cuidador.

Apesar de se ter constatado que a maioria dos registos reportam o impacto de momentos difíceis no processo do cuidar, verifica-se que a experiência de realização pessoal, moral, cívica e espiritual na entrega no cuidado ao outro também está patente. Isso reflete-se, nomeadamente, no facto de os inquiridos referirem o amor que recebem da pessoa cuidada, a autodescoberta de novas capacidades ou o reconhecimento.

Outro aspeto muito expressivo, e que corrobora vários estudos na área dos cuidados informais (embora não especificamente na área dos cuidados paliativos), decorre de a maioria dos inquiridos neste estudo ser do sexo feminino. Apesar de estarmos perante uma amostra reduzida, são corroboradas as constatações presentes no estudo de Maciel et al. (2021). Na investigação em causa, verificou-se a presença maioritária da figura feminina como protagonista da prestação de cuidados, continuando a verificar-se que à mulher é culturalmente atribuído o papel de cuidar.

Limitações, potencialidades do estudo e possíveis sugestões para futuras investigações

Atendendo à complexidade do tema deste estudo e às suas múltiplas dimensões, o mesmo teria beneficiado de uma amostra mais extensa, nomeadamente através de uma divulgação mais ampla, deixando-se, a este nível, duas hipóteses futuras de investigação (passíveis de serem agregadas numa única): i) abrangência de uma amostra mais extensa tendo em vista uma maior cobertura geográfica do estudo que permitisse o cruzamento entre zona do país onde residem os cuidadores e as redes de suporte formais de que dispõem, analisando a correlação entre estes dois indicadores e os seus impactos no ato de cuidar; ii) de uma abordagem de natureza mais qualitativa e compreensiva, através de entrevistas semi estruturadas diretas com os cuidadores, onde fosse possível captar de forma mais aprofundada as suas perceções sobre o que é ser cuidador em cuidados paliativos, captando com maior profundidade as suas narrativas.

Destaca-se como potencialidades deste estudo a importância de dar voz e visibilidade a quem cuida, as suas perceções, dificuldades e potencialidades, bem como as aprendizagens mais significativas relatadas pelos cuidadores. A análise do conjunto destas perceções é um importante contributo para trazer ao debate à reflexão acadêmica, no sentido de poder alimentar a conceção e operacionalização de políticas públicas que desenvolvam estratégias e redes de suporte, tornando assim o mais positiva possível a experiência da prestação de cuidados nesta fase tão complexa da existência humana.

CONCLUSÕES

Este estudo de natureza exploratória, tinha como objetivo compreender as perceções de quem cuida de pessoas em cuidados paliativos e em fim de vida, especificamente dos cuidadores informais, caracterizando-os sociodemograficamente, as circunstâncias em que se tornaram cuidadores e as perceções dos mesmos sobre a vivência de cuidar de uma pessoa em cuidados paliativos. Dos 70 respondentes — 60 homens e 10 mulheres — a totalidade era cuidador informal de um familiar, quase 50% tinham mais de 54 anos, e a mesma percentagem tinha habilitações literárias superiores, com profissões diferenciadas. Os principais motivos pelos quais se tornaram cuidadoras foram a situação de doença e/ou dependência de um familiar. A tarefa de cuidar situa-se maioritariamente nas atividades de vida diária (básicas e instrumentais), bem como o acompanhamento a consultas e outros locais. Uma maioria significativa (80%) teve formação específica para cuidar, já depois de se ter tornado cuidador e quase metade dos inquiridos não tem qualquer rede de suporte. No que diz respeito à perceção da experiência de cuidar, cerca de um terço dos cuidadores considera-a positiva, outro terço, neutra, situando-se os restantes inquiridos nos outros dois extremos (muito positiva ou muito negativa). Os sentimentos vivenciados neste processo são muito diversificados e vão desde a sobrecarga física, emocional, financeira, com impactos na vida pessoal e profissional do cuidador, na sua maioria, mas também de sentimentos de amor, abnegação, valorização da vida e utilidade. As dificuldades vivenciadas por estes cuidadores decorrem precisamente dos sentimentos expressos, aos quais acresce a fragilidade do suporte social recebido (quer da família e rede de amigos e vizinhança, quer das instituições, serviços e profissionais). Este quadro leva a que estes cuidadores desenvolvam um conjunto de estratégias de enfrentamento desta situação, das quais se destacam o recurso à formação, a apoio familiar, profissional e institucional, mas também de autocuidado e desenvolvimento pessoal e espiritual.

As constatações decorrentes da análise dos dados neste estudo estão alinhadas com a revisão da literatura efetuada sobre cuidados e cuidadores, embora a literatura sobre este tipo de cuidadores informais em situações de final de vida e cuidados paliativos sejam escassos. Verificou-se, assim, que os cuidados informais a pessoas em cuidados paliativos são processos dinâmicos, nos quais interagem fatores facilitadores, protetores e outros dificultadores, estratégias adaptativas a cada caso, dependendo dos recursos individuais de cada pessoa envolvida, quer da pessoa doente, quer do cuidador, bem como de outros determinantes em saúde.

Conclui-se a necessidade de um maior apoio aos cuidadores informais, especialmente em processos de doença grave e irrecuperável, concretizado na ampliação de respostas estruturadas e focadas nos mecanismos protetores da sobrecarga emocional disponibilizadas aos mesmos, consubstanciados em políticas públicas de acesso universal e em programas sociais e de saúde, e na alocação de recursos profissionais e institucionais, de forma a garantir os direitos humanos de quem é cuidado e de quem cuida.

Financiamento:Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do Projeto UIDB/00713/2020.

AGRADECIMENTOS

A todos os participantes do estudo.

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Recebido: 15 de Dezembro de 2023; Aceito: 25 de Janeiro de 2024

*Autor correspondente: Centro Saúde Amarante, Unidade Local de Saúde Tâmega e Sousa – Rua Nova São Gonçalo – CEP: 4600-093 – Amarante, Portugal. E-mail: gracaafonsocosta@gmail.com

Conflito de interesses:

nada a declarar.

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