Introdução
Durante o processo de crescimento e desenvolvimento do indivíduo, vários fatores, genéticos e epigenéticos, atuam na formação do complexo craniofacial, determinando assim a posição dos maxilares. A ocorrência de uma interferência neste processo pode desencadear uma desarmonia nos maxilares, interbasal ou com as restantes estruturas da base do crânio, surgindo aquilo a que se designa por Deformidade Dentofacial (DDF).1 A DDF é caracterizada geralmente por uma má oclusão, que pode estar associada a alterações estéticas e funcionais, afetando, desta forma, a qualidade de vida dos doentes.2,3A correção das DDF pode incluir a cirurgia ortognática, que permite alterar as relações esqueléticas e tegumentares, a oclusão e a estética facial. As alterações topográficas decorrentes da cirurgia também afetam as estruturas circumaxilares, podendo desencadear alterações nas dimensões das vias aéreas superiores.4-6 A dimensão destas alterações está dependente da técnica cirúrgica utilizada, da quantidade e da direção dos movimentos esqueléticos, bem como da idade e do sexo do doente.5
A osteotomia maxilar horizontal Le Fort I é um procedimento comum na cirurgia ortognática, tendo sido originalmente descrita por Von Langenbeck em 1859. Posteriormente em 1901, Le Fort descreveu a separação da maxila a partir da face média de forma completa e temporária, sendo conhecida desde então como a Osteotomia Le Fort I. Esta técnica cirúrgica pode afetar os seios maxilares, uma vez que estes estão incluídos na linha de osteotomia.7,8
O anatomista inglês Nathaniel Highmore descreveu o seio maxilar como o maior dos seios paranasais. Este desempenha diversas funções estruturais essenciais, nomeadamente a redução do peso do crânio, ressonância da voz, isolamento térmico do encéfalo, equilibram a pressão da cavidade nasal nas variações barométricas e, coadjuvam a função olfativa. No que diz respeito ao seu volume, presume‑se que, em média, possuam um volume entre 11000 a 18000 mm3, podendo surgir variações entre sexos, com o sexo masculino a apresentar volumes superiores.9,10,11
Apesar de diversos estudos na literatura referirem que as alterações no seio maxilar após osteotomia Le Fort I são inevitáveis, as alterações tridimensionais do mesmo ainda são pouco conhecidas.8,12,13
A literatura tem reportado uma diminuição do volume do seio maxilar após movimentos cirúrgicos, nomeadamente, no avanço e na impactação do maxilar superior.14‑16 Recentemente, Akbulut e colaboradores sugeriram que a diminuição do volume e o espessamento da membrana sinusal podem predispor o desenvolvimento de patologias sinusais, como a detioração da atividade ciliar e falha de drenagem.16 Contudo, ainda permanecem desconhecidas as implicações clínicas da diminuição do volume do seio maxilar.17 Por outro lado, os estudos publicados apresentam uma grande heterogeneidade na sua amostra em termos de tipologia de cirurgia (bimaxilar ou unimaxilar) ou de movimentos cirúrgicos incluídos (bimaxilar, unimaxilar de avanço e/ou impactação do maxilar), o que pode traduzir‑se num aumento do viés na avaliação do volume do seio maxilar.
As hipóteses nulas deste estudo foram: 1) A cirurgia ortognática com Osteotomia Le Fort I de avanço não altera o volume dos seios maxilares; 2) O sexo não influencia a alteração do volume dos seios maxilares após a cirurgia ortognática com Osteotomia Le Fort I de avanço.
Material e métodos
Para a realização deste estudo retrospetivo, recorreu‑se ao arquivo imagiológico do Instituto de Ortodontia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, entre novembro de 2020 e 6 de março de 2021 A seleção da amostra teve em conta os critérios de inclusão e exclusão apresentados na Tabela 1. Para cada doente foram selecionadas duas tomografias computorizadas de feixe cónico (do inglês Cone‑beam computed tomography - CBCT), sendo: T0 - CBCT pré‑operatório, realizado 2 semanas antes da cirurgia ortognática; e, T1 - CBCT pós‑operatório realizado entre 6 a 12 meses após a intervenção cirúrgica.
Este estudo foi realizado de acordo com a Declaração de Helsínquia e o protocolo (CE‑049/2020) foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Todos os indivíduos deram o seu consentimento informado antes da sua participação no estudo.
Para a realização da mensuração do volume do seio maxilar, o CBCT foi realizado através de um scanner i‑CAT Vision (Imaging Sciences International, Hatfield, Pensilvânia, EUA) por um profissional calibrado para a realização deste exame.
O doente foi instruído a posicionar‑se na posição natural da cabeça. O aparelho de raios‑x foi calibrado com os seguintes parâmetros da imagem: 120 kVp, 5mA, tempo de varredura 4 segundos com uma espessura de camada axial de 1 mm, campo de visão de 16 x 10 cm e tamanho de voxel de 0,3 mm3. Os dados obtidos foram guardados e armazenados sob o formato Digital Imaging and Communications in Medicine (DICOM). Os volumes dos seios maxilares direito e esquerdo de 19 indivíduos foram posteriormente medidos e analisados recorrendo a um software tridimensional (ITK‑SNAP, versão 3.8.0., National Library of Medicine, EUA). As medições foram realizadas de acordo com o método de segmentação semiautomática,18 pela seguinte ordem:
A) Identificação da região de interesse (ROI) e, orientação nos três planos de referência (sagital, coronal e axial);
B) Definição dos parâmetros para proceder à segmentação do seio maxilar (escala no intervalo de ‑ 100 a ‑ 150 unidades de Hounsfield);
C) Colocação de “bolhas de expansão” na superfície interna do seio maxilar;
D) Estabelecimento dos contornos ativos e eliminação das conexões anatómicas entre o seio maxilar e as cavidades nasais e paranasais;
E) Cálculo do volume do seio maxilar, em milímetros cúbicos, através da confluência dos cortes previamente realizados (Figura 1).
A medição foi realizada para o seio maxilar direito e esquerdo, de forma independente.
As informações extraídas de cada indivíduo incluíram: sexo; data da realização dos CBCT; volume do seio maxilar direito e esquerdo pré e pós‑operatório e a quantidade de avanço maxilar.
Todas as medições foram avaliadas pelo mesmo investigador. Por forma a avaliar a concordância, o investigador repetiu as medições um mês após a primeira observação.
A análise estatística dos dados foi realizada no Statistical Package for the Social Sciences, versão 24.0 para Windows (SPSS Inc., Chicago, Illinois, EUA). Adotou‑se um nível de significância estatística de 0,05. Os volumes e as diferenças pré e pós‑operatório dos seios maxilares foram apresentados sob a forma de média e desvio padrão (DP) mínimo e máximo. Após se ter verificado a normalidade das variáveis por intermédio do teste de Shapiro‑Wilk, a análise do efeito da osteotomia Le Fort I de avanço no volume dos seios maxilares foi realizada pelo teste t‑Student para amostras emparelhadas. A correlação entre os volumes pré e pós‑operatório foi analisada através do coeficiente de correlação de Pearson e a sua concordância foi avaliada pelo coeficiente de correlação intraclasse. De modo a explorar as possíveis diferenças entre os sexos, recorreu‑se ao teste t‑Student para amostras independentes. A potência atingida na comparação de ambos os seios antes e após cirurgia foi calculada através do software R e o pacote ICC.19 A concordância intraoperador foi avaliada pelo coeficiente de intra‑ classe (ICC).
Resultados
O diagrama de fluxo representa a da seleção da amostra (Figura 2). A amostra integrou indivíduos submetidos a osteotomia Le Fort I de avanço, no período de tempo compreendido entre Janeiro de 2016 e Março de 2019. A amostra final englobou 19 doentes, 8 indivíduos do sexo masculino e 11 do sexo feminino. A média do avanço da osteotomia Le Fort I foi de 5±1,27 mm.
O ICC obtido para a análise intra‑operador correspondeu a 0,974 (p<0,001), indicando uma concordância muito forte entre as medições. Os resultados obtidos sugerem que o tratamento ortodôntico‑cirúrgico não provoca alterações significativas no seio maxilar direito (p=0,631) e esquerdo (p=0,640). As diferenças volumétricas entre o volume pré e pós‑operatório dos seios maxilares, direito e esquerdo, não apresentaram diferenças estatisticamente significativas (p=0,494) (Tabela 2), e os coeficientes de correlação apontam para uma correlação positiva fraca (Tabela 3
O sexo masculino demonstrou diferenças estatisticamente significativas (p=0,037) apenas no seio maxilar direito. A média de volume dos seios maxilares antes e após a cirurgia foi de 12009,9±3323,9 mm3 e 14249,0±3797,5 mm3, respetivamente. Relativamente ao sexo feminino, não se verificaram diferenças estatisticamente significativas para o seio maxilar direito (p=0,150) e esquerdo (p=0,370). No período pós‑operatório, o seio maxilar direito apresentou diferenças estatisticamente significativas em relação ao sexo (p=0,003) (Tabela 4). Por fim, o coeficiente intra‑ classe para o volume dos seios maxilares antes e após a cirurgia foi de 0,419 (p=0,053), com uma potência de 77,5%.
Discussão
Este estudo pretendeu avaliar o impacto do tratamento ortodôntico‑cirúrgico, nomeadamente a Osteotomia Le Fort I de avanço, no volume dos seios maxilares. Os resultados obtidos sugerem que o tratamento ortodôntico‑cirúrgico não provoca alterações significativas nos seios maxilares. Estes resultados estão de acordo com o estudo de Panou e colaboradores que não encontraram uma correlação entre a alteração volumétrica total dos seios maxilares e a quantidade de impactação ou avanço maxilar.12 No entanto, outros estudos publicados na literatura referem uma redução volumétrica sinusal após cirurgia ortognática.5,14,15 Nocini e colaboradores elaboraram um estudo, no qual incluíram 64 doentes (40 com classe III esquelética; 24 com classe II esquelética), submetidos a cirurgia ortognática de avanço com/sem impactação maxilar, envolvendo a osteotomia Le Fort I. Neste estudo, a análise dos CBCT pré e pós‑operatórios, demonstrou que 9% dos seios maxilares apresentaram um aumento de volume e 91% apresentaram uma diminuição do volume de ar. Os autores concluíram que a diminuição do volume sinusal pode ser explicada pelos movimentos sagitais de avanço que podem provocar uma modificação na parede posterior do seio maxilar, alterando a morfologia da cavidade sinusal. Por outro lado, a impactação associada ao avanço sagital, potencia a diminuição do volume sinusal, uma vez que reduz a altura das paredes do seio.14 A discrepância entre os resultados do nosso estudo com os publicados na literatura pode ser explicada pela seleção da amostra, uma vez que os estudos não são homogéneos na escolha da tipologia da classe esquelética, da quantidade e direção dos movimentos esqueléticos bem como da idade e sexo do doente.5,6
O objetivo secundário deste estudo foi avaliar o efeito do sexo no volume dos seios maxilares. No período pré‑operatório, observou‑se similaridade no volume dos seios maxilares. Relativamente às diferenças entre sexos no período pré e pós‑operatório, verifica‑se que o volume de ambos os seios é similar no período pré‑operatório, mas há diferenças no seio direito no período pós‑operatório. O sexo masculino apresenta um volume de seio maxilar direito maior do que o sexo feminino, no período pós‑operatório.
Estes resultados contrariam as conclusões de Panou e colaboradores que descreveram a existência de uma redução volumétrica sinusal, estatisticamente significativa no sexo masculino, em doentes ortodôntico‑cirúrgicos com classe III esquelética.7 Os dados obtidos por este autor podem ter sido influenciados pelo período de follow‑up escolhido (aproximadamente 4 meses). Baeg e colaboradores verificaram que a presença de alterações patológicas nos seios maxilares permanece, pelo menos, 6 meses após a cirurgia ortognática, pois a recuperação do seio maxilar é lenta e, por vezes, irreversível.7 No presente estudo, por forma a mitigar o período de recuperação do seio maxilar, as alterações volumétricas pós‑operatórias foram avaliadas após um intervalo de tempo não inferior a 8 meses.
De ressalvar, que o CBCT é uma ferramenta ideal para o diagnóstico do volume dos seios maxilares e, tem sido o método de escolha em diversos estudos clínicos.5,7,14 Este estudo não acarretou uma exposição adicional de radiação, uma vez que este exame de diagnóstico faz parte do protocolo de controlo radiográfico pós‑cirúrgico utilizado no Instituto de Ortodontia da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra.
Outro ponto forte deste estudo é a escolha do software utilizado na medição do volume dos seios maxilares, uma vez que este já se encontra validado em diversos estudos presentes na literatura.5,15 A medição individual dos seios maxilares em detrimento da medição do volume rinossinusal total permite uma melhor compreensão das alterações do volume dos seios maxilares e da fossa nasal, após cirurgia ortognática com osteotomia Le Fort I de avanço.15 É importante referir que todos os procedimentos cirúrgicos apresentaram estabilidade funcional com fixação interna e que estes foram realizados pela mesma equipa de cirurgiões experientes.
Este estudo apresenta algumas limitações, nomeadamente em relação às diferenças na quantidade dos movimentos cirúrgicos. Por outro lado, apesar deste estudo só incluir doentes submetidos a cirurgia ortognática com Osteotomia Le Fort I de avanço, não é possível excluir a possibilidade de ter ocorrido algum movimento no plano vertical, o que pode afetar a avaliação do volume dos seios. Estas limitações podem explicar o valor da potência atingida (77,5%). Futuramente, os estudos devem incluir uma avaliação pós‑operatória com um follow‑up não inferior a 6 meses, de modo a permitir a recuperação do seio maxilar, evitando os efeitos decorrentes do pós‑operatório imediato, como o edema. A seleção da amostra dos futuros estudos também deve ser mais homogénea, principalmente na escolha do tipo e quantidade do movimento cirúrgico bem como na idade e sexo do doente, uma vez que estes fatores podem alterar o volume do seio maxilar. Adicionalmente, futuros estudos prospetivos para avaliação do seio maxilar devem combinar diagnóstico clínico (por exemplo, questionário clínico ou avaliação endoscópica) com análise do CBCT.
Conclusões
Tendo em consideração os resultados deste estudo, pode‑se concluir que não existem diferenças estatisticamente significativas entre o volume dos seios maxilares antes e após a osteotomia Le Fort I de avanço. No período pós‑operatório, o seio maxilar direito foi o único que apresentou diferenças estatisticamente significativas em relação ao sexo.