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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.2 Porto dez. 2022  Epub 30-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.19841 

Pesquisa empírica

Uma análise sobre a saúde de trabalhadores que estão no enfrentamento à Pandemia

Un análisis de la salud de los trabajadores que se enfrentan a la pandemia

Une analyse de la santé des travailleurs face à la pandémie

An analysis of the health of workers facing the pandemic

1Universidade Federal da Paraíba, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - Campus I, Castelo Branco, João Pessoa, CEP 58051-900, Brasil. thais.maximo@academico.ufpb.br

2 Universidade Estadual da Paraíba - Rua Luís Soares, Bairro Centro, Campina Grande-Paraíba, CEP 58400016, Brasil. erickidalino.psicologia@gmail.com

3 Departamento de Psicologia, Universidade Federal da Paraíba - Rua Irmã Elvira Malaguti, 51, Bairro dos Estados, João Pessoa, Brasil. tltorres2@gmail.com

4Universidade Federal da Paraíba; Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - Campus I, Castelo Branco, João Pessoa, CEP 58051-900, Brasil. anisiojsa@uol.com.br

5Universidade Federal da Paraíba; Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - Campus I, Castelo Branco, João Pessoa, CEP 58051-900, Brasil.paulozamsouza@yahoo.com.br

6 Universidade Federal da Paraíba - Campus I Lot. Cidade Universitária, PB, 58051-900, Brasil. rianenedino2@gmail.com


Resumo

Este estudo analisou a relação entre trabalho e saúde de pessoas que realizaram a sua atividade em serviços de saúde que atuaram no enfrentamento à COVID-19. Participaram 108 profissionais na Paraíba - Brasil. Um questionário foi utilizado a fim de caracterizar a saúde, a organização e condições de trabalho, o acesso a treinamentos e a Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Os resultados produzidos, analisados com o aporte da Clínica da Atividade, apontam que havia pouca oferta de formações e treinamentos para atuar frente à pandemia e que eles vivenciaram condições e organizações do trabalho que não priorizaram sua saúde mental. Além disso, houve pouco reconhecimento social, baixa remuneração e problemas na gestão da pandemia pelo poder público e por instituições de saúde, o que impactou negativamente sua atividade de trabalho.

Palavras-chave: trabalho na saúde; COVID-19; saúde do trabalhador

Resumen

Este estudio analizó la relación entre el trabajo y la salud de los trabajadores de la salud que trabajan en la lucha contra la pandemia de COVID-19. Participaron 108 profesionales del estado de Paraíba - Brasil, a través de un cuestionario destinado a caracterizar las condiciones de salud, organización y trabajo, acceso a la formación y a Equipos de Protección Individual (EPI) de estos profesionales. Los resultados producidos, reflejados a la luz de la Clínica de la Actividad, indican que los trabajadores experimentaron condiciones laborales insatisfactorias y una organización del trabajo que no priorizaba la salud mental y que presentaba dificultades para ofrecer formación y capacitación para actuar frente a la COVID-19. Además, existe poco reconocimiento social, baja remuneración de estos profesionales y problemas en la gestión de la pandemia por parte del gobierno y las instituciones de salud, lo que impactó negativamente en la actividad laboral de estos trabajadores.

Palabras clave: trabajo en salud; COVID-19; salud del trabajador

Résumé

Cette étude a analysé la relation entre le travail et la santé de personnes qui ont exercé leur activité dans des services de santé face au COVID-19. Elle a compté avec la participation de 108 professionnels travaillant dans l’Etat de Paraíba - Brésil. Un questionnaire a été utilisé, afin de caractériser les états de santé, l’organisation et les conditions de travail, l'accès à la formation et la disponibilité des équipements de protection individuelle (EPI). Les données recueillies, analysées à l’aide du référentiel de la clinique de l'activité, soulignent qu'il y avait peu d'offre de formation et d’exercices pratiques permettant de mieux agir face à la pandémie. Par ailleurs, ces professionnels disent avoir vécu des conditions et des organisations du travail qui n'ont pas intégré les questions de leur santé mentale. Ont été également mentionnés : peu de reconnaissance sociale, de faibles rémunérations, ainsi que les effets négatifs, sur le plan de leur activité de travail, de problèmes de gestion publique et des établissements de santé.

Mots-clés: travail en santé; COVID-19; santé des travailleurs

Abstract

This study analyzed the relationship between work and health of COVID-19 frontline healthcare workers. 108 professionals from the state of Paraíba participated through a questionnaire aimed at characterizing the health, organization and working conditions, and the access to training and Personal Protective Equipment (PPE) of these professionals. The results, analyzed through the lens of the Activity Clinic, indicate that the workers experienced unsatisfactory working conditions and a work organization that did not prioritize mental health nor offered enough courses and training to act with COVID-19. In addition, there was little social recognition, low remuneration of these professionals and problems in the management of the pandemic by the government and health institutions, which negatively impacted the work activity of these workers.

Keywords: work in health; pandemic; worker's health

1. Introdução

A pandemia de COVID-19 tem provocado profundas transformações em todas as sociedades e especialmente nos mundos do trabalho, apresentando a necessidade de discutir as suas formas de organização e funcionamento, principalmente na relação entre atividade de trabalho, processos de saúde/doença e desenvolvimento económico.

O trabalho no século XXI vem sendo marcado pela precarização, resultado de um sistema político-econômico neoliberal que leva à retirada de direitos e à contínua flexibilização das relações trabalhistas como opções para o combate ao desemprego e à informalidade, acentuada ainda mais na pandemia (Antunes, 2020).

Em março de 2020, a partir do decreto de situação pandêmica pela Organização Mundial de Saúde (OMS), governos de todo o mundo precisaram discutir medidas de contenção da proliferação do coronavírus com objetivo de minimizar ou impedir a curva de contágio. No Brasil, a pandemia de COVID-19 se somou ao pregresso desinvestimento na saúde pública, precarização e desmonte do Sistema Único de Saúde (SUS) (Ribeiro et al., 2020), marcada pela escassez de equipamentos de proteção individual (EPI), de desenvolvimento de ações de prevenção nos espaços de cuidado, de profissionais especializados para os serviços de urgência e de treinamento para equipes (Lana et al., 2020), impondo uma demanda extra por estrutura, insumos e recursos humanos.

Devido à falta de acordo entre os governos nos diversos níveis da administração pública brasileira em torno das medidas de isolamento social a serem adotadas e ao início tardio do processo de vacinação no ano de 2021, as curvas de contágio e de morte estiveram em contínuo aumento durante meses, somando mais de 600 mil óbitos no Brasil. Nesse contexto, os trabalhadores da saúde se apresentaram como grupo especialmente exposto ao vírus:

“(...) os profissionais de saúde constituem um grupo de risco para a COVID-19 por estarem expostos diretamente aos pacientes infectados, o que faz com que recebam uma alta carga viral (milhões de partículas de vírus). Além disso, estão submetidos a enorme estresse ao atender esses pacientes, muitos em situação grave, em condições de trabalho, frequentemente inadequadas” (Teixeira et al., 2020, p. 3466).

Nesse cenário, os profissionais da saúde se põem na linha de frente no combate à pandemia, não deixando de atender a população adoecida de outras enfermidades. Esta emergência sanitária trouxe a necessidade de repensar a proteção à saúde desses trabalhadores, tanto em nível individual como coletivo, uma vez que os ambientes de trabalho podem ter um papel relevante na disseminação do vírus (Silva et al., 2020), ocasionando em diferentes implicações psicológicas, vivências de sofrimento e de adoecimento.

Em consonância com essa discussão, um estudo realizado com 21.480 pessoas de 2.395 diferentes municípios de todo o Brasil sobre as condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da COVID-19 revelou excesso de trabalho (50%) e a existência de mais de um vínculo empregatício para sobreviver (45%), medo generalizado para realizar o trabalho (18%), problemas de sono (15.8%), irritabilidade/choro frequente (13.6%) ((Fiocruz, 2022)).

No entanto, mesmo diante desse contexto, sabemos que a dimensão do trabalho continua sendo central em nossa vida social, produzindo sentidos e significados e atuando como construtor de subjetividades. O trabalhar é uma atividade decisiva e construtiva da espécie humana, possuindo uma função psicológica específica (Clot, 1999), interferindo desse modo nos processos de saúde/adoecimento.

De acordo com (Clot 2017), o poder de agir dos trabalhadores está intimamente relacionado com a saúde. Portanto, quando a passividade se impõe aos trabalhadores, neutralizando sua implicação na atividade de trabalho, há um desinvestimento e desafetação, ocasionando sofrimento e adoecimento. A atividade impedida frustra o desenvolvimento dos sujeitos, produzindo retraimento destes e de suas possibilidades no trabalho realizado, inibindo o livre confronto do indivíduo e do coletivo com o objeto de seu trabalho (Bendassolli, 2011; Lhuilier, 2021). Entretanto, a possibilidade de reflexão por parte dos trabalhadores sobre o seu trabalho potencialmente desvela meios de restabelecer a saúde dos trabalhadores, a partir de uma criação profissional que ofereça visibilidade para os conflitos e espaço para pensar sobre essa dissonância flagrante.

A Clínica da Atividade também se preocupa com a questão do reconhecimento. (Clot 2010) sublinha a importância de uma intersubjetividade do reconhecimento, realçando a centralidade desta enquanto constitutiva do ofício. Para o autor, os gêneros de trabalho permitem que o sujeito se sinta pertencente a um coletivo que serve como ferramenta de ação. É a partir do coletivo que os pares se reconhecem, comunicam e atuam conjuntamente. O julgamento emitido pelas hierarquias forma, junto ao julgamento expresso pelos pares, uma teia que age no sentido de conferir um sentimento de utilidade e pertença ao ofício.

É importante destacar que a compreensão acerca do reconhecimento, para a Clínica da Atividade, não se limita nem ao tempo atual onde as interações de troca coletiva ocorrem, nem ao relacionamento com outros sujeitos. Afinal, o coletivo de trabalho também se situa para além do "aqui e agora" da cooperação entre os trabalhadores, enquanto gênero profissional: a história transpessoal do coletivo de trabalho internalizada nos indivíduos, que passa a funcionar como um interlocutor coletivo interno, uma forma de memória profissional disponível no íntimo de cada sujeito implicado na atividade, orientando-os. Também é possível encontrar reconhecimento para além do gênero profissional, através do resultado prático da sua ação, no nível da qualidade e da utilidade social dos objetos fabricados ou serviços prestados pelo trabalhador (Clot, 2010).

Para (Clot 2010), a saúde deve se encontrar no centro das preocupações nas clínicas do trabalho. Segundo o autor, “a saúde é um poder de ação sobre si e sobre o mundo, adquirido junto dos outros. Ela está ligada à atividade vital de um sujeito, àquilo que ele consegue, ou não, mobilizar de sua atividade pessoal no universo das atividades do outro” (p. 111).

Diante do exposto, esta pesquisa teve como objetivo analisar a relação entre o trabalho e a saúde de trabalhadores da saúde que atuam no enfrentamento à pandemia, considerando as suas condições, organização do trabalho, treinamentos e riscos do trabalho, além dos sentidos atribuídos ao trabalhar nesse contexto.

2. Procedimentos metodológicos

O presente estudo1 tem um caráter misto (quantitativo e qualitativo) e um delineamento exploratório e descritivo, do tipo levantamento/produção de informações. Para tal, construímos um questionário online a partir de pesquisas anteriores realizadas pelo Grupo de Pesquisas Subjetividade e Trabalho (GPST) sobre trabalhadores da saúde. Para a construção desse, também foram realizadas análises de manuais, portarias de orientação e informações sobre segurança e prevenção para profissionais da saúde no contexto da pandemia de COVID-19 a fim de proporcionar o mapeamento das condições de trabalho e de sofrimento psíquico dos profissionais da saúde do estado da Paraíba localizado na região nordeste do Brasil. O instrumento permitiu respostas dissertativas e de múltipla escolha, sendo que estas últimas não eram auto excludentes.

As questões objetivas compreendiam os temas relacionados aos dados sociodemográficos dos participantes, como: formação (inclusive no combate à pandemia); histórico profissional; características do local onde trabalhavam e do trabalho que realizavam; ações para a saúde mental dos profissionais de saúde; condições de trabalho e sentidos do trabalho. Nesta última categoria de perguntas havia um espaço para que os profissionais participantes da pesquisa pudessem acrescentar algo a mais sobre os desafios de atuar na linha de frente do combate à pandemia.

A escolha do uso de questionários se fez necessária em razão da intensificação da pandemia da COVID-19 que impossibilitou a utilização do uso de outras técnicas e ferramentas na condução da pesquisa de maneira presencial em razão do necessário isolamento social, da dificuldade de acesso aos locais de trabalho e do aumento de sobrecarga dos trabalhadores da saúde. E embora não tenhamos utilizado métodos tradicionais da Clínica da Atividade, como a Instrução ao Sósia ou Autoconfrontação, que nos permitiria uma análise do trabalho, e de compreendermos as limitações existentes no uso de um questionário para alcançar a subjetividade dos trabalhadores; naquele momento da pandemia (final do ano de 2020), fora a ferramenta que se mostrou possível em um contexto no qual os trabalhadores necessitavam de espaços de expressão acerca do seu trabalho e da sua saúde, atuando como espaço de reflexão e confrontação, possibilitando um diálogo interior. Como afirma (Clot 2010), “a função do interveniente é, pois, central para remobilizar o diálogo do sujeito consigo mesmo, para solicitar os subdestinatários e para fazer falar as vozes interiores” (p. 251). Principalmente na questão que deixamos livre para a resposta dos trabalhadores, vários aspectos subjetivos foram evocados, inclusive com teor de denúncia acerca da atividade de trabalho. Por isso, compreendemos que, naquele momento, “um diálogo interior surge neles a partir do diálogo com o exterior” (Clot 2010), p. 252).

A presente pesquisa faz parte de um projeto multicêntrico intitulado “A saúde dos trabalhadores da saúde no contexto da pandemia da COVID-19: prevenção e cuidado”, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e Ministério da Saúde do Brasil. De acordo com os critérios de inclusão/exclusão, participaram dessa pesquisa um total de 108 trabalhadores de saúde, divididos em diferentes categorias profissionais que atuavam no combate à COVID-19. Como critérios de inclusão, os trabalhadores precisavam trabalhar ou ter trabalhado no atendimento a vítimas de COVID-19 em hospitais ou espaços de saúde de referência para o atendimento desses casos no estado da Paraíba.

O contato com os participantes foi realizado via divulgação pela internet nos canais e redes sociais do grupo de pesquisa ao qual o projeto está vinculado, do próprio projeto e de parceiros, uma vez que o agravamento da pandemia não permitiu o contato e aplicação do instrumento presencialmente. A coleta de dados ocorreu do mês de novembro de 2020 a fevereiro de 2021.

Para análise das respostas objetivas foram utilizadas estatísticas descritivas e de associação entre variáveis (X²). Por sua vez, a pergunta aberta do questionário, que versou sobre o sentido de trabalhar na pandemia, foi analisada a partir do método de análise temática proposto por (Minayo 2012). O procedimento envolveu a leitura flutuante das respostas dos participantes; o resgate dos objetivos de pesquisa; a identificação, seleção, recorte e compilação de temas relacionados e a posterior separação em duas categorias temáticas. De acordo com (Minayo 2012), o percurso analítico e sistemático torna possível a objetivação de um tipo de conhecimento que tem como matéria-prima opiniões, crenças, valores representações e ações humanas e sociais sob a perspectiva dos atores em relações intersubjetivas, reconhecendo-os em sua singularidade e individualidade, mas com vivência e experiência de história coletiva de um grupo e sociedade.

A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE 31141120.3.0000.5188), utilizou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido preenchido pelos participantes, resguardando sua identidade.

Os resultados estão divididos em duas subseções. A primeira refere-se à apresentação dos resultados e discussão dos dados quantitativos da pesquisa. A segunda subseção compreende a análise e discussão dos materiais qualitativos vinculados à questão aberta do instrumento de pesquisa, a saber: “Você gostaria de acrescentar algo mais sobre os desafios de trabalhar na linha de frente do combate à pandemia?”

3. Resultados e discussão

3.1. Perfil dos trabalhadores da saúde e do seu trabalho no contexto da pandemia

Participaram um total de 108 trabalhadoras e trabalhadores2 da saúde do estado da Paraíba, sendo que 91 (84.3%) eram mulheres e 17 (15.7%) homens, maioritariamente atuantes no enfrentamento da pandemia na Região Metropolitana (71.3%), seguido pelo interior do estado (26.9%). Dos 108 participantes, 2 (1.9%) haviam trabalhado tanto na Região Metropolitana como no interior do estado durante a pandemia.

A respeito da cor/raça, metade dos participantes declararam ser de cor parda, seguido de 38.9% de brancos; pretos (7.4%) e amarelos (3.7%). Referente à profissão dos participantes da pesquisa, percebemos uma variedade de profissões, com a presença expressiva de Enfermeiros(as), que representam 27.8% da amostra, seguido por Psicólogo(as) com 10.2%, Assistente Social (9.3%), Médicos(as) (9.3%), Técnicos/Auxiliar de Enfermagem (8.3%), Agente Comunitário de Saúde (8.3%), Farmacêutico(a) (7.4%), Fisioterapeuta (7.4%), Nutricionista (5.6%) e Terapeuta Ocupacional (2.8%) e outros tipos de profissões com 3.6%. Alguns participantes ainda especificaram seus cargos como profissionais de saúde e outras formações, com a presença de Recepcionista, Diretor, Gerentes, Coordenadora, Técnicos de Radiologia e de Laboratório.

Nesse sentido, as informações expõem o caráter heterogêneo dos participantes com a presença expressiva de enfermeiras(os) e técnicas(os) de enfermagem, o que pode contribuir para uma análise mais ampla das relações entre a atuação como profissional de saúde e os diferentes contextos nos quais esses trabalhadores estão envolvidos. De acordo com (Teixeira et al. 2020), a diversidade de categorias profissionais que atuam direta ou indiretamente no enfrentamento da pandemia pode determinar formas diferentes de exposição aos riscos e diferentes condições de trabalho.

Quanto ao tempo de formação, cerca de 51.9% dos trabalhadores relataram ter se formado há menos de 10 anos, sendo que os outros 48.1% possuem 10 anos ou mais de conclusão de sua formação. Sobre a remuneração, a maioria (65.8%) dos participantes recebe até três salários mínimos (Figura 1).

Figura 1 : Variável Salário Liquido compilado em 3 categorias (porcentagens de trahadores) 

Os participantes da pesquisa possuem diferentes tipos de vínculo empregatício. Quando indagados sobre os tipos de contrato, 47.2% responderam que são efetivos, 53.7% que são contratados e 7.4% se encontram sob o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Por outro lado, 5 pessoas responderam que seus vínculos de trabalho não correspondiam a nenhum dos 3 tipos elencados pela pesquisa, que compreendiam ocupantes de cargos comissionados, prestadores de serviços eventuais e residentes. Os tipos de contrato variam e podem expressar contratos com ou sem tempo determinado e contrato oral, associados às Secretarias de Saúde, Empresas Privadas e/ou Administração Pública.

Os dados sobre o vínculo de trabalho demonstram a existência de diferentes tipos de contratos de trabalho dentro de um mesmo contexto de trabalho (profissionais da saúde). Essas várias formas de vinculação profissionais trazem impactos significativos para esses trabalhadores, demonstrando por parte das instituições a precarização e flexibilização do trabalho na saúde, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS). Em uma pesquisa realizada em 2016 em um dos distritos de saúde de Campina Grande no estado da Paraíba, Brasil, já se encontrava a diferenciação de vínculos diferentes de trabalho dentro de uma mesma categoria de profissional (Oliveira Sobrinho, 2017). Ao mesmo tempo, no contexto de pandemia, (Nóbrega e Teodosio 2020) afirmam que um dos maiores desafios para a Secretaria do Estado de Saúde da Paraíba foi o número reduzido de profissionais de saúde, o que levou à contratação de novos profissionais e servidores, a fim de suprir a demanda dos serviços.

Cerca de 48.1% dos trabalhadores receberam treinamentos para atuar no combate da COVID-19, mas 51.9% não receberam. Quanto à disponibilidade de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), 50.9% afirmaram que os equipamentos recebidos foram suficientes para a sua atuação enquanto que 49.1% afirmaram que não foram suficientes. Não houve diferença significativa na relação entre as variáveis categóricas de “localidade” e “suficiência dos EPIs” (X² = 0.427; p = 0.513), inferindo semelhanças no fornecimento de EPIs em ambas localidades de atuação (Região Metropolitana e Interior do Estado) no estado da Paraíba. No entanto, essas informações expõem dados alarmantes que envolvem diretamente a segurança e a saúde dos trabalhadores que atuam no enfrentamento à COVID-19, uma vez que uma grande parcela dos profissionais não recebeu treinamentos (50.4%) nem considerou a quantidade de EPIs suficientes (49.1%).

Diante disso, a pandemia nos mostra a fragilidade das leis e normas que asseguram a saúde e a segurança do trabalhador. Percebemos a necessária a destinação de recursos para as medidas de proteção, capacitação e a oferta de condições de trabalho adequadas para os profissionais de saúde, como o aumento de contratação, ações que foquem na reflexão e organização de processos de trabalho, a aproximação da gestão com o trabalho real em saúde e com os trabalhadores, formações eficientes em consonância com a demandas dos profissionais, dentre outras ações. Constata-se e põe-se em evidência a necessidade do uso de EPIs e da adoção de espaços de diálogo junto aos profissionais para promover uma escuta em torno do cotidiano de trabalho enfrentado na pandemia, como a morte e o luto, fortalecendo a capacitação e a proteção para todos os trabalhadores considerados essenciais no combate à pandemia (Barroso et al., 2020).

Ainda assim, cerca de 25.9% afirmam que sempre usam os EPIs disponibilizados, mas que já aconteceu de não usarem algum dos EPIs porque eles estavam machucando ou incomodando. Esses dados corroboram com outras pesquisas referenciadas por Teixeira et al. (2020), que demonstram os efeitos adversos do uso do EPIs e dos cuidados necessários para se evitar ou minimizar os riscos de infeção pela COVID-19, como o surgimento de complicações cutâneas e dermatite; propensão de lesão na pele e nas mucosas.

Outro aspecto se refere ao cuidado à saúde desses trabalhadores de forma preventiva. De acordo com os participantes, 73.1% afirmaram que não receberam nenhuma ação específica relacionada ao cuidado na saúde mental, enquanto 26.9% afirmaram ter recebido. Com relação aos dados sobre infeção por COVID-19 entre os profissionais, os boletins epidemiológicos do estado da Paraíba não trazem muita especificidade sobre os dados de adoecimento e quantidade de óbitos pela COVID-19 em profissionais de saúde. No entanto, cerca de 68.5% dos respondentes da pesquisa afirmam que não foram contaminados. Dos 108 respondentes da pesquisa, quase 1/3 dos participantes foram contaminados durante a sua atuação no combate à COVID-19. No contexto da pandemia, a necessidade de proteção dos profissionais de saúde ganhou destaque, porém não há bases de dados e levantamentos oficiais do governo que retratem os impactos da COVID-19 na saúde desses trabalhadores. Quando acontece, a divulgação dessas informações acontece maioritariamente através da mídia e dos representantes de classe (Silva et al., 2020).

Neste sentido, é perceptível a precarização do trabalho em saúde. Sabendo que os profissionais da saúde constituem em um grupo de risco prioritário, a falta de dados oculta a realidade da incidência de adoecimento e morte desses profissionais, revelando outros aspectos da precarização do trabalho. Ademais, como aponta Oliveira Sobrinho (2017), a precarização do trabalho chega até as políticas públicas de uma maneira intensa e vai se expressar no setor da saúde por meio de contratos temporários por tempo determinado, na inexistência de concursos públicos, na falta de investimento nas condições de trabalho, nos baixos salários, na falta de planos de progressão, na terceirização, dentre outros aspectos.

Quanto ao sentido do trabalho para os trabalhadores, 70.4% concordam que se trata de um trabalho arriscado e perigoso, cansativo e exaustivo (63%) que não garante o sustento (65.7%) e que não é estruturante da identidade (77.8%), mas que não é um trabalho que paralisa ou que deixa impotente (90.7%) e não é solitário e isolado (79.6%). Uma parcela dos trabalhadores da saúde não percebe que seu trabalho é reconhecido socialmente (83.3%) ou pela sua família (78.7%). Os dados são detalhados na Tabela 1.

Tabela 1 : Porcentagens e frequência da concordância da categorias de sentido do trabalho 

De acordo com (Bendassolli e Gondim 2014), em algumas teorias psicológicas, como a sócio-histórica, os sentidos e significados se relacionam dialeticamente e fazem parte de uma mesma totalidade, e cada termo preserva sua singularidade e distinção. Nesse sentido, o significado é a objetivação de uma interpretação sobre um dado objeto e o sentido é um processo de construção subjetiva singular dentro de um universo compartilhado. A atividade de trabalho como função psicológica expõe o seu caráter constituidor dos sujeitos, desenvolvendo uma função de mediação específica interjogo entre significados e sentidos mediados pelo trabalho. Não obstante, é preciso compreender que esses sentidos e significados do trabalho são construídos a partir de um lugar. Eles não são fenômenos abstratos, descontextualizados da realidade social e histórica. Pelo contrário, são delineados a partir da realidade concreta e material.

Diante disso, é importante compreender quais são os sentidos construídos e compartilhados, permitindo o desenvolvimento de ações que possam levar em conta o coletivo de trabalhadores de saúde na reflexão de seu próprio trabalho. De acordo com Bendassolli (2011), para a Clínica da Atividade todo sujeito trabalhador tem a capacidade de lidar com qualquer situação, desde que tenha oportunidade de confrontar-se consigo mesmo e receber o apoio do coletivo de trabalho, permitindo ao sujeito se inscrever em uma história coletiva, a de reorganização da tarefa pelo coletivo de trabalhadores (Clot, 2015; Lhuilier, 2021). Na próxima seção serão discutidos os resultados qualitativos da pesquisa a partir da análise de conteúdo temática.

3.2. Dados Qualitativos: as categorias temáticas

Cerca de 40 profissionais responderam à questão aberta opcional “você gostaria de acrescentar algo mais sobre os desafios de trabalhar na linha de frente do combate à pandemia?”, o que corresponde a 37% dos participantes. A partir da análise temática das respostas, foi possível realizar a separação dos temas em duas grandes categorias, a saber: 1) Gestão, condições e organização do trabalho durante a pandemia; 2) Sentidos e relação do trabalho com a própria saúde. Os trabalhadores serão identificados por seu gênero, idade, profissão e área de atuação para uma melhor contextualização das situações a que possam estar submetidos. Foram adotados pseudônimos a fim de preservar a identidade dos participantes.

3.2.1. Gestão, condições e organização do trabalho durante a pandemia

A primeira categoria se refere aos aspectos relacionados à gestão hospitalar e poder público no combate à pandemia de COVID-19, às condições de trabalho às quais esses trabalhadores estão submetidos e à organização do próprio trabalho em saúde. Um dos aspectos apontados pelos respondentes é a falta de preparo da gestão pública e hospitalar nos processos que envolvem o combate ao COVID-19, como a oferta de cursos de capacitação e a educação permanente, inexistência de reservas de EPIs, dificuldade nas testagens dos profissionais de saúde, falta de fiscalização das condições de trabalho, mudanças nos protocolos de atendimento, como pode ser observado na resposta de Marta “(…) falta de organização do serviço para as demandas do isolamento, mudanças de protocolo sem aviso ou capacitação da equipe, protocolo produzido por quem não vivencia a realidade do serviço, RH limitado ou inexperiente” (Feminino, 33 anos, Enfermeira, Interior do Estado).

De acordo com Gandra et al. (2021), o desenvolvimento humano no trabalho, por meio de capacitações e educação permanente, ainda é um problema crônico, com a escassez de programas de formação, o que pode elevar o risco de infeção e o despreparo das equipes ao lidar com casos suspeitos e confirmados. Neste sentido, a falta de formações estaria relacionada diretamente com a possibilidade do aumento de acidentes e a exposição a riscos no trabalho. As mudanças nos protocolos de atendimento sem aviso prévio aparecem de maneira recorrente, apontando a sua construção hierarquizada, que ignora a situação e os conhecimentos adquiridos pelos trabalhadores durante a sua experiência de trabalho. Essas mudanças sem aviso prévio e sem a devida capacitação podem atrapalhar o fluxo de atendimento.

Somadas às mudanças repentinas, a invisibilidade dos riscos aos quais os trabalhadores da saúde estavam submetidos e a desumanização dos mesmos, trazem nas narrativas um sentimento de impotência: “poucos trabalhadores para muita demanda. Somos tratados como máquinas que não adoecem, nem física nem mentalmente. Falta empatia com o profissional e cuidado” (Feminino, 32 anos, Enfermeira, Região Metropolitana).

Para a Clínica da Atividade, a atividade impedida faz sofrer e adoecer. Ela compreende a atividade bloqueada, que pode ser desencadeada por vários motivos, quando a organização de trabalho não autoriza que os sujeitos possam agir de forma adaptada, quando fragmenta e desarticula os coletivos de trabalho (Clot, 1999). Quando aos trabalhadores da saúde, percebidos como máquinas, não se permite contar com seu coletivo de trabalho, deixando-os sozinhos e impotentes, a atividade de trabalho pode ser impedida, porque o processo de adaptação e mudança do trabalho, não está mais nas “mãos” dos trabalhadores.

(Clot 2010) afirma que a saúde é um poder de ação sobre si e sobre o mundo, adquirido junto aos outros. Nesse sentido, o impulso de vida que se constitui a atividade, é cerceado por outros aspectos das condições e organização do trabalho, que podem dificultar a construção de novas normas de vida, de trabalho e, consequentemente, de saúde. Diante disso, percebe-se que a atividade de outros (do poder público, gestão hospitalar) torna-se um aspecto central em que os profissionais de saúde estão em contínuo embate, expressando-se na falta: falta de capacitações, de EPIs, de testes para os profissionais, de fiscalização, de estrutura física, dentre outros. As gestões pública e hospitalar não dispõem de condições adequadas para o desenvolvimento da atividade de trabalho de uma parcela dos profissionais de saúde, alinhando-se a isso a burocratização do Estado.

Uma pesquisa realizada com Técnicos de Enfermagem já apontava a perspectiva de escassez pela falta de acesso a testes e EPIs, insuficiência de recursos humanos e a ausência de programas de formação para o desenvolvimento desses profissionais, somados aos riscos, insegurança e precarização do trabalho anteriores à pandemia, não existindo recursos materiais suficientes para se realizar o que é requerido enquanto são submetidos a ritmos de trabalho cada vez mais intensos (Chinelli et al., 2019). Esses aspectos expressam o caráter estrutural da precarização do trabalho, que se desenvolve anteriormente à pandemia, mas ganha diferentes configurações durante o período iniciado no ano de 2020.

De acordo com os respondentes, as condições e organização do trabalho envolvem a qualidade e a disponibilidade de EPIs, desorganização dos serviços e de estrutura para as demandas do atendimento, falta de lugares de repouso, de apoio psicológico, de ações de saúde do trabalhador, sobrecarga de trabalho, baixa-remuneração e pouco reconhecimento por parte da gestão, exemplificado por Kátia “deveria haver pagamento de insalubridade ou gratificação aos profissionais de todas as categorias que trabalham com COVID-19. Considero injusto apenas determinadas categorias receberem gratificação quando há uma equipe multiprofissional se empenhando na assistência e se expondo ao risco” (Feminino, 56 anos, Enfermeira, Região Metropolitana).

Os problemas decorrentes do subfinanciamento do SUS, dos congelamentos dos gastos no setor, da deterioração dos serviços e da precarização da força de trabalho e seus efeitos negativos na prestação de serviços, são seriamente afetados pelas mudanças na lógica do financiamento ocorridas nos últimos anos. Esses aspectos levam a uma crise permanente do sistema de saúde brasileiro, fortemente afetada pela reorientação das políticas de saúde, marcadas por uma concepção político-econômico neoliberal, que envolve o financeirização da saúde, ajuste fiscal, privatização do sistema público e desmonte do sistema público de saúde, tal como foi proposto e legitimado na Constituição Federal de 1988 (Teixeira & Paim, 2018; (Teixeira et al., 2020).

Diante disso, a pandemia trouxe à tona agudização da crise institucional e da política brasileira vigente, em que há dificuldade de se estabelecer uma coordenação eficiente entre os diferentes entes federativos, que levou às consequentes fragmentação e caos do sistema de saúde e contribuindo para o insucesso da política de combate à pandemia de COVID-19 (Shimuzi et al., 2021). No entanto, os desafios não se referem somente às necessárias alterações de infraestrutura das unidades de saúde que estão sucateadas e não equipadas corretamente, mas também aos desafios históricos constituídos por precariedades no SUS e pelo aprofundamento das crises econômica, social e sanitária anteriores à pandemia (Nogueira & Lacerda, 2020).

A falta de reconhecimento social e organizacional (gerência) também foi um dos aspectos apontados pelos respondentes, como escreve Rosângela “falta reconhecimento dos gestores com o corpo de enfermagem” (Feminino, 39 anos, Tec/Auxiliar de Enfermagem, Região Metropolitana). Sobre a vontade das profissionais em serem reconhecidas pela gestão é possível argumentar, com Clot (2010), que tal desejo já é resultado de um maltrato do gênero profissional. Impossibilitados de se reconhecerem no resultado do seu fazer, isso é, na qualidade do serviço prestado, a atividade dessas profissionais é desestabilizada, originando assim um desejo de reconhecimento desenraizado, que é deslocado para tais hierarquias superiores. Essas hierarquias, quando falham em promover uma organização do trabalho na qual os demais fatores que o reconhecimento implica estejam presentes, são não só incapazes de oferecer a tão desejada apreciação legítima da atividade, como podem até mesmo ser as principais responsáveis pelo descaso e negligência imposta aos gêneros profissionais.

Observa-se ainda, a ênfase dada por parte dos profissionais referente aos aspectos monetários, como baixo salário e a falta de insalubridade para algumas categorias. Assim, identificou-se no estudo elementos da precarização do trabalho, que interferem diretamente no sentimento de reconhecimento, como pode ser observado nas categorias de sentido do trabalho na Tabela 1.

3.2.2. Sentidos e implicações do trabalho para a saúde

Esta categoria temática compreende os sentidos e significados atribuídos ao trabalho em saúde durante a atuação no combate à pandemia da COVID-19. As análises do conteúdo das respostas dos profissionais da saúde apresentam uma série de sentidos negativos ao trabalho, como o sentimento de solidão, insegurança, medo, angústia, tristeza e incerteza, relacionados principalmente à possibilidade de contaminação pela COVID-19 de si e de membros de sua família e ao isolamento da sua família a fim de evitar a propagação do vírus, conforme Isabela que escreve “sentimos muito medo de contaminar nossos familiares” (Feminino, 38 anos, Assistente Social, Região Metropolitana).

No entanto, precisamos chamar atenção ao fato de que nem sempre o sofrimento no trabalho não está necessariamente relacionado a quadros de transtornos mentais. As situações de vivência de sofrimento neste contexto de trabalho, como as questões relacionadas ao luto, incompreensão por parte da família dos pacientes, o agravamento da pandemia e incompreensão por parte da população e profissionais no uso medidas de prevenção à COVID-19 impactam diretamente na saúde mental desses profissionais, exemplificada pela resposta à pesquisa de uma trabalhadora que diz que sua saúde mental está “em pedaços”, como Daniela que afirma que a “parte física conta muito, mas a psicológica é a que maltrata, angustia e às vezes dá vontade de desistir” (Feminino, 29 anos, Téc. de Radiologia, Região Metropolitana).

É importante destacar os aspectos de saúde mental evidenciados relatos, que expõem uma realidade invisibilizada do trabalho em saúde. A demanda elevada de apoio psicológico vai ao encontro dos aspectos apontados nos dados da pesquisa: ao mesmo tempo em que existe uma alta cobrança e sobrecarga de trabalho e a existência de demandas em saúde mental, não há ações específicas para os trabalhadores que estão atuando na linha de frente da COVID-19, em que cerca de 73,1% dos trabalhadores afirmam que não receberam práticas voltadas ao cuidado e promoção de saúde. De acordo com (Santana et al. 2020, p. 6):

“a pandemia está possibilitando o desvelamento, abertura e escancaramento das chagas dos profissionais de saúde, que precedem a este período e atualmente urge para amparo, zelo e socorro. Ela tem revelado, de forma crua e inequívoca, o perverso retrato das condições de trabalho desigual, segregacionista e nefasto para a saúde humana a que os profissionais estão expostos e clamam por mudanças e reconhecimentos que resultem em melhorias efetivas de trabalho e valorização profissional”.

De acordo com os dados apresentados na Tabela 1, 79.6% dos respondentes não concordam que o trabalho em saúde seja solitário e isolado. No entanto, é válido refletir e discutir as possíveis dificuldades enfrentadas pela parcela que concorda com a afirmativa (20.4%), entendendo cada trabalhador em sua subjetividade e que permita um olhar amplo sobre as situações às quais estão submetidos. Como também sobre quais os tipos de sociabilidade presentes nestes contextos, no sentido de se estabelecer ou se consolidar um coletivo de trabalhadores. Assim, percebe-se que o trabalho em saúde pode desenvolver um processo de sofrimento psíquico de seus trabalhadores, evidenciado pela presente pesquisa. Observa-se que, especificamente entre os trabalhadores da saúde, houve um fortalecimento dos coletivos de trabalho no sentido de compartilhamento de informações sobre a doença e maior união das equipes diante da complexidade do cenário. Essa situação aproxima-se da compreensão defendida pela Clínica da Atividade, que o que gera o sofrimento no trabalho não está nos sujeitos ou na relação entre os sujeitos, mas no próprio trabalho (Clot, 2015).

Os sentidos do trabalho em saúde envolvem o seu caráter exaustivo, difícil e inseguro. No entanto, alguns sentidos positivos foram apontados, como a gratificação em salvar vidas, o caráter desafiador da nova situação que trouxe coragem, forças e aprimoramentos e que expõe a realidade que os profissionais da saúde são essenciais em cada área. Ainda assim, os aspectos e sentimentos positivos são minoria nesta categoria, presentes em apenas 3 respostas, a saber: a resposta de Suzana “Acredito que esse é um trabalho que faz de todos os profissionais da saúde essenciais em cada área” (Feminino, 35 anos, Nutricionista, Região Metropolitana e Interior do estado); de Eliza “é gratificante, ajudando a salvar vidas” (Feminino, 40 anos, Psicóloga, Região Metropolitana); e Solange “trabalhar com algo que até então era novo e desafiador. Que trouxe muita coragem, força e aprimoramentos” (Feminino, 34 anos, Enfermeira, Interior do estado).

Dessa forma, destacamos o fato de os trabalhadores da saúde não se sentirem heróis, tendo, na verdade, uma visão do seu trabalho mais como desgaste do que como satisfação ou reconhecimento social. Ainda assim, podemos perceber que, mesmo diante das implicações do trabalho em saúde no contexto da pandemia, os trabalhadores da saúde utilizam de seu poder de agir e realizam a sua atividade de trabalho. De acordo com a Clínica da Atividade, a dinâmica de reconhecimento perpassa pelos indivíduos também se reconhecerem no que fazem para além do reconhecimento pelos outros (Clot, 2021).

Por fim, alguns profissionais apontaram que sofreram preconceito e discriminação por estarem na linha de frente do COVID-19 tanto por parte da população em geral como dentro da própria instituição de saúde, daqueles que não estão atuando na linha de frente, a exemplo da resposta de Rafaela: “Preconceito por parte de colegas na mesma instituição que não atuam no isolamento” (Feminino, 33 anos, Enfermeira, Interior do Estado).

É imprescindível estarmos atentos aos diversos aspectos que envolvem a atividade de trabalho em saúde a partir de um olhar amplo que compreenda as diferentes implicações dentro e fora do contexto de trabalho. De acordo com (Bendassolli 2011), mais do que uma categoria psicológica, o sofrimento parece ter se transformado em uma nova chave para se entender o trabalho, o seu significado, como também as formas que se estruturam os laços sociais e a dinâmica das sociedades.

4. Considerações finais

Por meio das respostas dadas pelos trabalhadores ao questionário identificamos as problemáticas inerentes ao trabalho em saúde, como a exposição a riscos, dinâmicas de reconhecimento social e organizacional, acentuadas no contexto de pandemia. Também, podemos destacar que os trabalhadores trouxeram contradições relativas ao cuidado na saúde: ao mesmo tempo que atuam no cuidado à saúde alheia, não observam que o poder público e a gestão hospitalar disponibilizam ações que possibilitem o cuidado à sua própria saúde.

Nesse sentido, é de extrema importância que o poder público esteja atento às situações e condições de trabalho e saúde para os trabalhadores que atuam(ram) na linha de frente da COVID-19, compreendendo a partir de uma perspectiva em saúde do trabalhador em que exista um olhar específico sobre o trabalho em saúde. As ações devem estar de acordo com a política pública de saúde do trabalhador, com intervenções que envolvam a prevenção, promoção, tratamento e fiscalização em saúde, evitando iniciativas pontuais e episódicas. É importante também que haja um deslocamento da perspectiva que vê as causas do sofrimento dos sujeitos ou da relação entre esses para uma que permita enxergar os aspectos deletérios do próprio trabalho, dando uma maior atenção aos processos de sofrimento psíquico, principal dificuldade enfrentadas pelos profissionais de saúde.

As ações devem privilegiar metodologias participativas que permitam a reflexão das situações, condições e sobre o próprio trabalho, onde os sujeitos trabalhadores sejam os protagonistas, com foco no desenvolvimento e/ou manutenção dos coletivos e do gênero, um dos principais recursos para ação individual, permitindo a manutenção e desenvolvimento do poder de agir dos trabalhadores. A dinâmica de reconhecimento deve estar além de meros aspectos publicitários, que possa envolver e que permita que os trabalhadores se reconheçam no centro de sua atividade, em condições adequadas para o exercício profissional.

Recomenda-se a realização de mais pesquisas que permitam avaliar esses aspectos, privilegiando métodos qualitativos e reflexivos. Ainda nesse sentido, faz-se necessário realizar pesquisas que possam permitir uma compreensão mais ampla sobre as formas de administração a partir da perspectiva da própria gestão, como também identificar as ações em saúde do trabalhador no geral e a saúde mental em específico. A universidade, por sua vez, pode contribuir a partir de ações de extensão voltadas especificamente a esta categoria profissional, principalmente voltada ao apoio no cuidado à saúde mental e no auxílio na construção dessas ações.

As limitações desta pesquisa residem no fato de não ter havido uma análise da atividade, uma vez que a ferramenta utilizada (questionário) não permite o contato com a dinâmica do real. Mesmo assim, diante de um contexto de isolamento social, esta pesquisa permitiu a aproximação, mesmo que minimamente, da realidade enfrentada pelos trabalhadores de saúde que atuam (atuaram) no enfrentamento à pandemia da COVID-19. Somado a isto, a pesquisa foi utilizada pelos trabalhadores, como espaço para denuncia pelos profissionais das condições de trabalho em que estão inseridos a partir da produção de dados que expressam a percepção dos próprios trabalhadores.

Por fim, a Clínica da Atividade permitiu a discussão dos achados da pesquisa a partir da discussão sobre sofrimento no trabalho e saúde mental, na íntima relação entre trabalhador-trabalho.

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1Agradecimento ao CNPQ, que financiou esta pesquisa por meio da Chamada MCTIC/CNPq/FNDCT/MS/SCTIE/Decit Nº 07/2020 - Pesquisas para o enfrentamento da COVID-19, suas consequências e outras síndromes respiratórias agudas graves

2Salienta-se a importância da discussão entre trabalho e gênero na área da saúde, compreendendo que os diferentes marcadores sociais, além de permitirem uma análise mais completa sobre a realidade, possibilitam desvelar aspectos relacionados à divisão sexual do trabalho na sociedade. No entanto, optamos pela utilização do termo “trabalhadores da saúde” porque não realizamos efetivamente a análise de gênero ao decorrer do artigo, uma vez que não é o foco do artigo

Recebido: 31 de Março de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

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