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Laboreal

On-line version ISSN 1646-5237

Laboreal vol.19 no.2 Porto Dec. 2023  Epub Dec 01, 2023

https://doi.org/10.4000/laboreal.20934 

Pesquisa empírica

Tocar e ensinar a tocar bateria: encontro de bateristas professores com a ergonomia

Tocar y enseñar a tocar la batería: encuentro entre bateristas profesores y ergonomía

Jouer et apprendre à jouer de la batterie : rencontre entre batteurs professeurs et l’ergonomie

Playing and teaching to play the drums: drummer teachers meet ergonomics

Flora Maria Gomide Vezzá1 
http://orcid.org/0000-0002-5160-7238

11 Universidade de São Paulo. Rua de d. Manuel II 70, 4C - 4050-342 Porto, Portugal. floravezza@gmail.com


Resumo

O setor da música destaca-se na Indústria Criativo-Cultural pelo faturamento e número de empregos. Apesar disso, as condições de trabalho e outras facetas da atividade musical ainda são pouco estudados. Este artigo traz resultados parciais de um projeto de produção de material de apoio ao ensino saudável de bateria e se baseia em entrevistas com bateristas professores que discutiram o aprendizado, a performance e o ensino de bateria. Quatro grandes grupos de temas foram identificados, dos quais o artigo discute o primeiro: tocar bateria. Para falar sobre a performance, os entrevistados abordaram diferentes dimensões da prática musical - o uso do corpo ao tocar, a respiração, os gêneros musicais, as relações entre ouvir e tocar, pensar e tocar, as causas das lesões. O artigo apresenta exemplos do que disseram e discute aspectos da corporeidade do performer e dos saberes de prudência, indicando futuros desenvolvimentos do estudo da atividade dos músicos para a ergonomia.

Palavras-chave: baterista; ergonomia; saberes de prudência; formação; performance

Resumen

El sector de la música destaca dentro de la Industria Creativo-Cultural por sus ingresos y número de puestos de trabajo. A pesar de ello, las condiciones de trabajo y otras facetas de la actividad musical aún están poco estudiadas. Este artículo presenta resultados parciales de un proyecto de producción de material para apoyar la enseñanza saludable de la batería y se basa en entrevistas con profesores bateristas que discutieron sobre cómo aprender, tocar y enseñar la batería. Se identificaron cuatro grandes grupos temáticos, de los cuales el artículo analiza el primero: tocar la batería. Para hablar de la interpretación, los entrevistados abordaron diferentes dimensiones de la práctica musical: el uso del cuerpo al tocar, la respiración, los géneros musicales, las relaciones entre escuchar y tocar, pensar y tocar, las causas de las lesiones. El artículo presenta ejemplos de lo que éstos han dicho y discute aspectos de la corporalidad y el conocimiento prudencial del intérprete, indicando desarrollos futuros en el estudio de las actividades de los músicos para la ergonomía.

Palabras clave: baterista; ergonomía; conocimientos prudenciales; formación; interpretación

Résumé

Le secteur de la musique se distingue dans l'industrie créative et culturelle par ses revenus et le nombre d'emplois. Malgré cela, les conditions de travail et autres facettes de l’activité musicale sont encore peu étudiées. Cet article présente les résultats partiels d'un projet visant à produire du matériel pour soutenir un enseignement sain de la batterie et est basé sur des entretiens avec des professeurs de batteur qui ont discuté de l'apprentissage, de l'interprétation et de l'enseignement de la batterie. Quatre grands groupes de thèmes ont été identifiés, dont l'article aborde le premier : le jeu de la batterie. Pour parler de performance, les interviewés ont abordé différentes dimensions de la pratique musicale - l’utilisation du corps dans le jeu, la respiration, les genres musicaux, les relations entre écouter et jouer, penser et jouer, les causes des blessures. L'article présente des exemples de ce qu'ils ont dit et discute des aspects de la corporéité et des connaissances prudentielles de l'interprète, indiquant les développements futurs dans l'étude des activités des musiciens pour l'ergonomie.

Mots clés: batteur; ergonomie; savoirs de prudence; formation; performance

Abstract

The music sector stands out in the Creative-Cultural Industry due to its revenue and number of jobs. Despite this, working conditions and other facets of musical activity are still little studied. This article presents partial results of a project to produce material to support healthy drumming teaching and is based on interviews with drummer teachers who discussed learning, performing, and teaching drums. Four major groups of themes were identified, of which the article discusses the first: playing the drums. To talk about performance, the interviewees addressed different dimensions of musical practice - the use of the body when playing, breathing, musical genres, the relationships between listening and playing, thinking and playing, the causes of injuries. The article presents examples of what they said and discusses aspects of the performer's corporeality and prudential knowledge, indicating future developments in the study of musicians' activities for ergonomics.

Keywords: drummer; ergonomics; prudential knowledge; training; performance

1. Introdução

Este artigo pretende discutir a performance e o ensino da bateria, a partir de resultados parciais de um estudo voltado à produção de material de apoio ao ensino saudável. O estudo iniciou na organização de uma série de entrevistas com bateristas que, além de tocarem em grupos musicais, também atuam como professores de bateria em diferentes contextos profissionais para alunos de diferentes idades e conhecimentos. Parte dos resultados destas entrevistas serão apresentados aqui, para discutir características da atividade dos bateristas e temas ligados ao aprendizado, ao ensino e à saúde no instrumento.

Os bateristas e outros músicos trabalham em uma atividade que é uma das mais requintadas expressões dos seres humanos e recurso fundamental para o desenvolvimento individual e social. São também parte da força de trabalho da chamada Indústria Criativa e Cultural1, que apenas recentemente começou a ser investigada em seus aspectos econômicos (European Commission, 2006). O relatório da conferência “Diversidade e Competitividade do Setor Musical Europeu” (2021) aponta que a música se destaca na Indústria Criativa Cultural: o setor é responsável por 4,4% do produto interno bruto anual Europa 27 e Reino Unido juntos e correspondeu a quase 82 bilhões de euros; cada euro gasto neste setor gera 2,2 euros em outras industrias. Além disso, o setor emprega dois milhões de pessoas, o dobro do tamanho do setor de TI (tecnologias de informação) e 16% maior do que o setor automotivo; 90% do setor consiste em PME e ele é um dos maiores empregadores de jovens (European Commission, 2022).

Vínculos de trabalho temporários ou informais fazem com que os músicos e outros profissionais do setor trabalhem em uma grande variedade de locais, horários e condições de trabalho. A falta de rendimentos regulares por vezes determina o duplo exercício profissional, em profissões ligadas ao setor - ou não. Estes fatores aumentam as dificuldades em caso de adoecimento, e interferem nas atividades de preparação para a atuação musical, nas práticas de estudo e possivelmente no desempenho público dos músicos.

A atenção dada à investigação e intervenção desta categoria de trabalhadores é nitidamente insuficiente. Estudos de cunho epidemiológico, sobretudo entre músicos eruditos e que passam por educação formal, apontam uma infinidade de queixas físicas e mentais. Se tais estudos permitem melhor compreender os problemas de saúde relacionados com o trabalho, suas causas e tratamentos, ainda são raras as pesquisas que investiguem as várias facetas ligadas ao exercício da atividade musical - formação, práticas de ensino e estudo, atuação profissional.

Este projeto decorre de uma pesquisa anterior (Vezzá, 2013, 2018) que investigou a formação de músicos orquestrais para compreender como a prevenção de distúrbios dolorosos poderia ser feita durante o período formativo, e que conteúdos deveriam ser abordados. Levantamentos epidemiológicos feitos junto a músicos de orquestra (Zaza, 1998; Oliveira & Vezzá, 2010, Kenny & Ackerman, 2015) revelam uma alta incidência de distúrbios dolorosos que são apontados como sendo relacionados ao tocar. Com efeito, a atividade dos músicos envolve o desenvolvimento de padrões motores altamente complexos e automatizados, apoiados em sinergias, isto é, ações coordenadas e conjuntas de músculos e grupos musculares, que são instrumento-específicas e muitas vezes pouco naturais. Além disso, as práticas de estudo envolvem práticas repetitivas em um trabalho corporal destinado a dominar as sinergias e torná-las automatizadas.

Embora os músicos sejam muitas vezes comparados a atletas, eles tendem a ser sedentários por causa da prática ao instrumento, que os obriga a uma imobilidade relativa. Sua preparação para a performance em geral envolve o trabalho na posição sentado; quando tocam em pé, é necessário um trabalho postural de estabilização do tronco para garantir movimentos específicos de partes do corpo, e não do corpo como um todo, razão pela qual têm sido designados como os “atletas dos pequenos músculos” (Andrade &Fonseca, 2000). Além destes aspectos biomecânicos, outras causas de problemas dolorosos indicadas pela literatura especializada são o excesso de tensão ao tocar (Pederiva, 2005; Alves, 2012) ou relacionado a longos ensaios, deslocamentos a carregar o instrumento, apresentações repetidas no mesmo dia (Oliveira & Vezzá, 2010) e ainda repertórios exigentes (Horvath, 2010).

A pesquisa anterior surgiu do questionamento sobre a prevenção de tais problemas e buscou compreender a formação dos instrumentistas, como os professores estruturam sua prática e mobilizam seus conhecimentos, como eles guiam o aluno na aquisição desta técnica corporal (Mauss, 2003), como este é solicitado e instruído a mover o corpo. A precisão de tal entendimento é fundamental para o planejamento de ações preventivas que sejam úteis pois, como está bem estabelecido pela ergonomia, recomendações demasiadamente genéricas sobre movimentos ditos corretos perdem as suas potencialidades por não considerarem a natureza da atividade nem suas condições concretas de realização - espaços, ritmos e variabilidade ao longo do tempo. No caso da performance musical, o período de aprendizagem, momento em que se estabelecem os padrões motores necessários ao instrumento e em que o aluno trabalha para sua automatização, é um momento crucial para que o instrumentista seja alertado e perceba os riscos ligados à performance de seu instrumento, aprendendo a proteger-se deles. Trata-se do aprendizado dos saberes de prudência, desenvolvidos coletivamente no exercício das profissões e decorrentes de um conhecimento implícito e aprofundado dos perigos de seu trabalho (Cru & Dejours, 1987), que se expressam tanto em regulações coletivas como “em sistemas de autorregulação [...] dos ritmos e dos modos operatórios individuais” (op cit, p. 31). O conhecimento dos riscos, transmitido durante o aprendizado, pode permitir que o aluno desenvolva padrões motores mais benéficos (sem excesso de tensão) e estratégias mais eficientes de estudo e preparação para a performance, que reduzam a repetitividade, acelerem a superação de problemas e facilitem a memorização. Isso, além de diminuir as solicitações sobre o sistema osteomuscular, também tem impacto positivo sobre a ansiedade de performance, pois o músico sente-se mais bem preparado.

Os saberes de prudência são estudados pela ergonomia para o desenvolvimento de formações profissionais no quadro de saúde e segurança, e colocam desafios particulares à explicitação e descrição. Como apontam Cru e Dejours (op.cit.), “estes procedimentos, estas estratégias, estes saberes de prudência são parte integrante do saber operário e são dele indissociáveis. Uma parte é consciente; uma outra, adquirida na arte da profissão, nas tradições, nos costumes e hábitos, é inconsciente” (p. 33). Eles frequentemente têm a ver com o uso do corpo, com o recurso a automatismos que se desenvolvem por ensaio e erro e pela constituição de configurações sensoriais que servem de indicador sintético da ação (Berthoz, 1997), mecanismos pouco afeitos à verbalização. Isso pode ser visto em trabalhos cujos resultados dependem profundamente da qualidade dos movimentos, do uso do corpo, do domínio de instrumentos de trabalho e da ação sobre eles, como a afiação de facas descrita por Ouellet e Vézina (2008) e a montagem da posição da mão para manipular o arco na performance musical de instrumentos de corda (Vezzá, 2013).

O aprendizado de instrumentos musicais envolve conteúdos e objetivos variados e de alta complexidade, entre os quais o trabalho corporal para dominar movimentos complexos e pouco naturais; o aprendizado de uma linguagem própria (a notação musical); a busca de precisão para reproduzir um ‘texto’ escrito pelo compositor na partitura em todos os seus elementos - intervalos, figuras rítmicas, dinâmica; a capacidade de aliar estes objetivos em um resultado artístico singular, dotado de beleza e permeado de afeto; a capacidade de sincronizar a performance individual à de outros músicos. Ao longo do processo, o estudante é também iniciado na cultura do métier, nos códigos e ritos da profissão de músico.

A formação na performance musical é caracterizada por um longo percurso de aprendizagem, que exigiria 10.000 horas de estudo para atingir um alto grau de desempenho (Ericsson et al, 1993). Ela se apoia principalmente: na experiência pessoal prática, que permite a identificação de parâmetros sensoriais, perceptivos e cognitivos para a execução e seu aprimoramento; na orientação de mestres ou por meio da troca com pares que podem orientar o noviço na aquisição de técnicas, partilhar conhecimentos, ‘macetes’ e truques que facilitam certas tarefas. Sabe-se que os professores de música, apesar de sua experiência prática, muitas vezes não têm formação específica para ensinar e atuam de maneira intuitiva, a partir de suas experiências com seus professores. O aprendizado do ofício de professor - que é distinto daquele ligado à performance, embora intimamente vinculado a ela - em geral se dá na relação com o aluno, uma relação singular entre dois indivíduos. Daí o interesse de investigar os saberes de prudência, trazendo-os a público nas histórias que eles contam.

Esse é o universo que se buscou explorar nas entrevistas realizadas com os bateristas professores: investigar o contexto de sua atuação como performer e como professor, como aprenderam a tocar, quais foram os momentos decisivos em seu percurso no instrumento. Pedimos que nos dissessem o que é fácil de tocar e o que não é, o que é fácil de ensinar e o que não é, o que é visível e o que é invisível quando tocam. O pressuposto desta pesquisa é, assim, que a saúde não pode ser dissociada daquilo que se faz, e que o conteúdo concreto da atividade é a base sobre a qual deve fundamentar-se uma ação em saúde e prevenção, o que justifica a investigação dos saberes de ofício e de prudência, numa primeira fase, por meio de entrevistas com instrumentistas/professores.

Este artigo, após explicitar a metodologia de investigação, apresenta as categorias criadas para agrupar os temas bordados pelos bateristas professores e faz o detalhamento da primeira categoria: tocar bateria. Na discussão dos temas a ela ligados, o artigo aborda a questão da corporeidade, expressividade e performance na produção de música. Nas considerações finais são sugeridas possibilidades de futuras investigações na ergonomia para esclarecer questões relativas aos saberes de ofício e de prudência.

2. As opções metodológicas no encontro com os entrevistados

Inicialmente, o projeto previa a realização de uma reunião em grupo dos professores, nos moldes do método de Análise Coletiva do Trabalho (desenvolvido por (Ferreira, 2015 e (Ferreira, 2014a), com o objetivo de promover um debate sobre o ensino de seu instrumento, a saúde, o impacto do instrumento sobre o corpo e como enfrentar os riscos a ele associados. No entanto, circunstâncias de ocasião determinaram que as entrevistas fossem individuais. Elas foram feitas em dupla por uma ergonomista e um baterista que também atua como professor, com profissionais muito experientes na performance e no ensino, e ocorreram entre 2021 e 2022.

O recurso à entrevista individual colocou desafios que são comuns aos investigadores que recorrem a este tipo de metodologia mas que, na verdade, têm sua especificidade quando está em jogo uma relação com o trabalho (Re, 2013). Como investigar o tipo de conhecimentos que nos interessava e escapar do risco de perguntas que induzem respostas e que nos afastariam do que buscávamos? Como apresentar aos entrevistados a ideia do que queríamos saber e contribuir para que tivessem liberdade de trazer à conversa temas e tópicos espontâneos, relevantes, que fizessem sentido para cada um deles? Fundamentalmente, como costuma o referir Alessandra Re, trata-se de encontrar um modo de diálogo entre duas linguagens, resultantes de lógicas distintas mas complementares (Re, 2013). Nossa opção, assaz pragmática, foi elaborar um roteiro de perguntas abertas bastante genéricas relacionadas ao ensino e à performance, que permitissem ter uma ideia da formação como instrumentista, do contexto de ensino, das exigências do instrumento e do ensino. Pedimos a eles que nos contassem sobre os momentos transformadores que viveram em seu desenvolvimento como instrumentistas - os divisores de águas, aqueles que provocaram mudanças tão importantes em sua forma de tocar ou na compreensão do instrumento que marcam a divisão em antes e e depois deles; finalmente, que falassem sobre o que é visível e invisível quando tocam / ensinam. As entrevistas foram iniciadas com uma apresentação dos entrevistadores, da origem e objetivos do projeto; também referimos o pressuposto da saúde como intimamente ligada ao que se faz, para esclarecer que o nosso objetivo era compreender a saúde, e não problemas de saúde: não queríamos discutir doenças específicas ou recomendações específicas para combatê-las. Na primeira entrevista, as perguntas foram sendo feitas ao longo do tempo. A partir da entrevista com o segundo baterista, optamos por apresentar todo o roteiro de perguntas logo no início, pois pareceu-nos que tal procedimento poderia contribuir para que os professores, conhecendo de antemão todas as perguntas, organizassem seu raciocínio de forma mais autónoma. A partir dessa apresentação, a conversa se estabelecia de acordo com o relato do professor, sendo que perguntas de esclarecimento, comentários sobre o que foi dito pelo entrevistado ou a recolocação de alguma das perguntas mantinham a conversa fluindo.

O projeto iniciou-se com uma reunião com um grupo de 2 bateristas e um percussionista, dos quais apenas 1 era professor. Esta reunião serviu como ponto de partida para a formulação do roteiro de perguntas que guiou entrevistas com 13 professores (Figura 1). Eles tinham entre 27 e 72 anos, formação universitária no instrumento (exceto dois), e ensinam ou ensinaram (dois professores não estavam atuando como tal no momento da entrevista) em conservatórios, universidades, escolas de ensino comum ou de música, ou ainda como professores independentes em aulas presenciais ou on-line, individuais e/ou em grupo. Seus alunos pertencem a uma ampla faixa etária e grau de conhecimento - de iniciantes a avançados, de crianças a adultos. Foram 11 entrevistas individuais e uma reunindo dois instrumentistas. As entrevistas (3 presenciais, as outras por videoconferência) resultaram em aproximadamente 14 horas de gravação, que transcrevemos e analisamos em um processo que buscou identificar, agrupar e compilar os temas surgidos.

Figura 1 Roteiro de entrevista utilizado. 

A escolha dos binômios de exploração que serviram de base para a entrevista - fácil ou difícil, visível ou invisível - foi feita com base em experiências anteriores de entrevista sobre a atividade de trabalho. Categorias abstratas se revelaram particularmente interessantes para incentivar o entrevistado a olhar para si, para sua performance e para as relações com seus alunos, e desvendar seus pensamentos sobre a performance e a profissão a partir de critérios e relatos pessoais, não induzidos pelas perguntas e que resultassem de uma reflexão autobiográfica. Isso pareceu uma estratégia adequada para capturar o conhecimento que se materializa no corpo, na ação, em processos cognitivos corporificados (Berthoz, 1997; Damásio, 2011) como os necessários para a performance musical, que resultam da experiência e percepção do mundo.

O primeiro binômio foi colocado tanto em relação ao tocar como ao ensinar: fácil/difícil de tocar, fácil/difícil de ensinar. Esta opção foi feita em primeiro lugar para estimular uma reflexão sobre as duas atividades distintas - a performance e o ensino; em segundo lugar, para tentar explorar um tipo de situação associada à tensão (o que é difícil de tocar gera tensão no instrumentista) que foi descrita por professores de música na pesquisa anterior (Vezzá, 2018). O segundo binômio, visível e invisível, foi uma escolha feita com o intuito de estimular a introspecção e o detalhamento de aspectos de sua atividade escolhidos livremente por cada um deles. Uma experiência de análise de uma atividade de trabalho, feita no quadro de um seminário de formação de sindicalistas (Ferreira, 2014b), mostrou a potência desta categoria no estímulo à reflexão sobre a realidade. Quanto à pergunta sobre algum ensinamento que foi um divisor de águas, ela buscou resgatar eventos, conteúdos ou descobertas inesquecíveis e desencadeadores de mudanças permanentes nas habilidades como performer e/ou como professor. No encerramento, como é habitual neste tipo de entrevista, ofereceu-se a oportunidade de que os bateristas professores trouxessem outros aspectos que consideravam dignos de nota e que não haviam sido abordados na entrevista.

Diremos que a metodologia que assim construímos permitiu descortinar um panorama da aprendizagem da técnica corporal, dos processos envolvidos e eventos significativos apoiados nas experiências individuais do próprio entrevistado ou de seus alunos; elas revelam descobertas que fizeram sobre o uso do corpo, a maneira de estudar ou de como superar dificuldades de execução ao instrumento. Revelam também aspectos ligados ao desenvolvimento da carreira como músico profissional, à postura determinada pela ética profissional e a responsabilidade para com alunos, músicos com quem tocam, contratantes, a comunidade à qual pertencem.

3. Resultados: tocar bateria, divisor de águas, o professor e seus segredos, o corpo e a bateria

A primeira leitura do material compilado resultou no estabelecimento de aproximadamente 80 temas de frequência variada que foram agrupados em quatro grandes categorias: tocar bateria, um divisor de águas, o professor e seus segredos, o corpo e a bateria. As categorias foram sendo definidas e revisadas conforme evoluía a leitura do material, e sua definição final atendeu tanto à coerência entre os temas quanto ao objetivo de estruturação dos resultados.

A primeira categoria - tocar bateria - refere-se aos fenômenos relativos ao aprendizado e à execução musical, e também às causas de problemas de saúde. Ela será apresentada em maiores detalhes a seguir. A segunda categoria, o divisor de águas, reúne os temas surgidos em resposta à pergunta específica sobre os ensinamentos, eventos ou descobertas cuja compreensão resultou em uma mudança permanente para melhor na forma de tocar o instrumento ou de ensinar. Aqui foram abordados aspetos corporais relevantes para seu desenvolvimento como performer (por exemplo rotinas de alongamento e aquecimento antes de tocar), atividades que os levaram a um patamar elevado de técnica e de expressão artística, maneiras particulares de estudar, desde rotinas e abordagem de músicas novas até estratégias para lidar com bloqueios no aprendizado; finalmente, descobertas que os ensinaram a ensinar melhor como descobrir e sentir o movimento.

O professor e seus segredos reúne temas ligados ao ofício de ensinar: relatos sobre como e porque se tornaram professores, a ética deste ofício e seu aprendizado, o quanto aprendem quando tornam-se alunos novamente; reflexões sobre diferentes situações de ensino (aulas individuais ou coletivas, presenciais ou à distância); a gestão constante de conhecimentos distintos sobre o instrumento, o corpo e a música necessários para adequar as aulas a si e aos alunos. Nesta categoria estão também reunidos os temas relacionados a truques e macetes para facilitar a jornada de aprendizado: como estudar, por onde iniciar, como planejar para que os resultados sejam melhores e mais consistentes, como atingir objetivos difíceis, como perceber o próprio corpo; como aquecer, como lidar com a dor, recomendações para um estilo de vida mais saudável com impacto positivo sobre a performance.

Finalmente, a última categoria diz respeito ao set de bateria que, dentro do conjunto de instrumentos musicais, é talvez o que que tem maiores possibilidades de variação em sua montagem. Trata-se de vários instrumentos diferentes que são selecionados para compor conjuntos distintos segundo o gênero musical, as preferências pessoais, o tipo de recinto em que se toca e o espaço disponível para o instrumento. Aqui os temas exploraram os requisitos de um bom banco, como os diferentes conjuntos podem ser arranjados no espaço para atender às características antropométricas e etárias do músico, à sua percepção e exigências de sonoridade, à interação com outros músicos e regente; as relações entre seu posicionamento no espaço e riscos de choques, posturas prejudiciais e visualização; dispositivos de auxílio ao estudo, em particular espelhos; a força da gravidade; rotinas favoráveis.

Neste artigo, optámos por privilegiar a primeira categoria desses resultados - tocar bateria - por reunir temas que se referem à performance, à execução musical em si e pelo interesse mais geral no campo da ergonomia do modo como estes músicos falam sobre sua atuação como atividade humana. Todos os temas mencionados foram espontaneamente levantados pelos entrevistados, e na síntese que a seguir apresentamos, tentamos transmitir o que nos foi descrito sem negligenciar as modulações das falas que deram vida ao nosso diálogo - recorrendo às vezes à citações literais (sempre colocadas entre aspas).

3.1. Tocar bateria, …

Os nossos interlocutores abordaram diferentes dimensões da sua prática musical - o uso do corpo ao tocar, a respiração, os gêneros musicais, as relações entre ouvir e tocar e também entre pensar e tocar, o aprendizado constante ao longo do tempo e os problemas de saúde e suas causas.

Nos nossos encontros, falou-se muito do ato de tocar bateria, de suas características como instrumento, da música que ela produz e das relações com os outros instrumentos. A bateria, embora possa atuar como solista, destaca-se como instrumento de conjunto, sendo “capaz de inspirar os outros músicos” e atuar como “o maestro do grupo”. Cada gênero musical tem características rítmicas marcantes, e a bateria é a responsável por garantir o ‘espírito’ da música e estabelecer a pulsação ligada ao gênero. Este núcleo rítmico é visto por eles como central na elaboração musical: “Costuma-se dizer que a base de um disco, de uma banda, é o ritmo, depois o baixo, depois os dois. Em conjunto os dois são o músculo da música, a alma e o espírito, a carne…” O baterista musical sabe como “fazer todos soarem melhor… e é capaz de inspirar os outros músicos a chegar mais além… ou destruir tudo: grandes músicos com um baterista ruim não serão uma grande banda”.

Mas do ponto de vista físico, o baterista enfrenta o “desafio do equilíbrio do corpo”: sentado sobre um assento diminuto, ele coloca em ação os quatro membros simultaneamente; os pés alternam entre duas posições, o ‘heel down’ (calcanhar apoiado no chão e ponta do pé elevada para tocar o pedal) ou ‘heel up’ (calcanhar sustentado no ar antes de percutir o pedal) e devem atuar com muita precisão; os braços são mantidos contra a gravidade e muitas vezes movimentam-se para atingir com as baquetas alvos na zona de alcance máximo. Tocar bateria determina por isso um gasto energético considerável devido à sustentação dos membros, que representam cerca de 40% do peso corporal; há também uma solicitação intensa da região lombar, tanto pelas exigências de estabilidade postural necessária à precisão rítmica como pela ação dos flexores de quadril, que em parte têm origem na coluna lombar e a utilizam como ponto de apoio para a elevação do membro inferior. O transporte, montagem e desmontagem dos instrumentos, feitos de acordo com os determinantes de contexto (o meio de transporte utilizado, distância deste até o local da performance, a ocorrência de escadas etc.) em geral envolve movimentação manual de cargas e posturas desequilibradas: “quando eu monto o kit a primeira coisa que eu tiro da mala é o banco, eu sento no banquinho e tento montar a bateria sentado, sem abaixar muito, porque eu acho que é o momento mais perigoso, de montar, desmontar e carregar”.

Alguns estilos musicais estão associados a exigências físicas particulares que exigem preparações específicas, por exemplo o Metal - um gênero extremo. Outros determinam interações com regentes e exigências de sonoridade muito precisas. Apesar do esforço físico, todos os entrevistados falaram sobre a importância de tocar “leve”, “relaxado”, tanto do ponto de vista físico como mental. Essa leveza é uma das coisas difíceis de ensinar - “O mais difícil [de passar para os alunos] eu acho que é isso, essa coisa do relaxamento. De você transformar tudo em leveza, o aluno entender que ele não precisa bater no instrumento, é uma troca”. Trata-se de algo que vai se aprimorando ao longo do tempo, pela prática consciente ao estudar e da descoberta de caminhos difíceis de descrever: “Uma coisa que nós próprios vemos, bateristas profissionais a tocar com muita tensão, muita força e acho que essa é a parte difícil, mesmo para mim às vezes sinto que estou mais tenso… E tento… relaxar um bocado. Ensiná-los (os alunos) a relaxar acho que é a parte mais difícil porque é um bocado também dentro do pensamento de cada um, pensar em descontrair… Estamos num momento de alta tensão mas [é preciso] pensar em relaxar o mais… o mais possível”.

No quesito corporal, a respiração foi abordada por vários entrevistados como um aspecto fundamental do uso do corpo no instrumento. A respiração revela a dificuldade enfrentada no exercício - “Há alunos que eu tenho que não necessitam ser chamados à atenção, porque eles já naturalmente se sentam no instrumento e parece que não estão a fazer nenhum esforço a tocar o instrumento; há outros que fecham os olhos e sustêm a respiração, cortam a respiração e quanto mais, quanto mais difícil o exercício é, mais… mais pressão põem no corpo e mais fechados ficam. E isso tem sido um dos temas das aulas, sempre: tocar relaxado e tentar que a expressão corporal não denuncie a dificuldade do exercício, por exemplo.” O movimento respiratório também permite encontrar o relaxamento, pelo recurso a práticas respiratórias meditativas (“os asanas do yoga passam por uma consciência corporal, a sustentação do corpo, a autonomia de sustentação, de força, de equilíbrio… É claro que não é só isso, é isso associado ao ato de meditação e de respiração, o que ajuda muito na performance, e aí a gente vê que a performance, a performance profunda, ela é um ato meditativo!”) ou utilizado como ferramenta no estudo de coordenações particularmente difíceis, como nos contou um dos bateristas. Frente a um exercício muito rápido, que levava à tensão, seu professor o ensinou a estudar incluindo a respiração como um dos elementos do estudo:

“Então é um exercício a mais, um exercício mais de coordenação, a respiração, se pensarmos, ou cantar, não é? Ou seja, os 4 membros estão ocupados e muitas vezes temos o nosso espaço mental só fechado nesses 4 membros. E, entretanto, quando dizemos ao aluno “Canta a melodia”, ele já vai ter que respirar, ok? Então… e já se abrem, é como se o exercício caísse abaixo outra vez, como se tivéssemos que montar novamente o puzzle e respirar, ou seja: fazer quatro tempos a inspirar, quatro tempos a expirar enquanto toca o instrumento é outro nível de dificuldade, também um exercício de coordenação”.

3.2. ouvir …

Ouvir é essencial, tanto para tocar em grupo como para, simplesmente, tocar: o músico deve ouvir a si mesmo, ao som que produz; deve ouvir “aos outros músicos e a como você soa junto a eles”, pois isso permite que ele seja capaz de tocar com diferentes conjuntos e adaptar seu som a eles rapidamente, a controlar a dinâmica (intensidade sonora) e a “levada “(a rítmica adequada ao gênero). O músico capaz de tudo isso tem mais oportunidades de trabalho profissional pois corresponde ao que dele se espera em uma gravação ou apresentação ao vivo. Finalmente, ele deve ouvir muita música, pois isso contribui para sua tranquilidade e reduz a tensão (“porque a música fica tão natural na nossa cabeça, o tipo de sonoridade… você ouve e quando vai tentar reproduzir … sai com uma naturalidade absurda”) e porque é muito difícil, quase impossível tocar aquilo que nunca foi ouvido - “instrumento musical não tem som de nada. O som está na sua cabeça, é você quem vai reproduzi-lo. O mais difícil [de tocar] é o que não está na sua cabeça”, “tocar o que não sente”.

3.3. e pensar (quando e como)?

Um comentário que nos chamou a atenção e foi feito por vários entrevistados é o de que pensar é algo que se faz ao estudar, mas que não deve acontecer durante uma performance, pois pode atrapalhar:

“Eu tenho uma coisa, eu nunca levo para o palco uma coisa que eu esteja ainda a teorizar na cabeça, porque quando eu subo no palco eu não vou pensar em nada [...] se eu subir no palco e pensar ‘ah, hoje vou tocar traditional grip’ e ficar pensando nisso, esquece! Isso vai me afastar da música”.

Na performance, o baterista precisa ser tomado por um estado de concentração e ‘não-pensamento’: “Na hora da performance acontece essa desligada súbita e é só o som. E é um exercício muito difícil também de abstrair, porque senão a gente começa a pensar, a voltar à teoria, às aulas, às coisas que você está treinando em casa… Se aquilo volta na hora do show já não corre muito bem, porque está pensando em alguma coisa que não é música! É movimento, é outra coisa”. O baterista que toca Metal nos contou que as performances são muito difíceis: trata-se de músicas longas (de até 12 minutos) e com repetições de movimentos extremamente rápidos envolvendo mãos e pés; o estilo do gênero - grande volume de som e de repetição - torna muito importante garantir o ritmo da banda, pois se eles perderem o ritmo é muito dificil de voltar. Trata-se de um desempenho fisicamente difícil, e às vezes ele teme não conseguir chegar ao fim. Para dar conta, ele contou o seu segredo: “tento sempre ou pensar em outra coisa… ou ficar totalmente à parte daquilo que estou a fazer e…e já estou a pensar... não sei!...muitas coisas! ou focar… Às vezes foco em um ponto e fico ali, e pronto. Chamam [a isso] ficar in the zone, ficar super focado mas completamente relaxado, focar só em um ponto, olhar para o vazio! Muitas vezes acontece mesmo sem querer, de eu ficar como que não estou a ver nada: estou só a olhar para ali mas estou completamente concentrado no que estou a fazer e em relaxar! Muitas vezes estou a pensar no que é que eu vou fazer para o jantar. Às vezes acontece!”

Por outro lado, pensar e planejar o momento de estudo é fundamental para superar problemas que foram identificados e conseguir melhorar a performance motora, trabalhar na “memória muscular”, ganhar resistência física e aprender a lidar com a fadiga: “Imagine que estamos a falar de pedal duplo, técnicas específicas de pedal duplo, usar o tornozelo mais, sem ser perto, só usar o tornozelo. Então vamos treinar isso, eu acho que é melhor treinar aquilo… hmmm sei lá, meia-hora mas mesmo focado e tirar um dia de folga tipo fazer dois dias e tirar um, ‘hoje não vou tocar aquilo, vou deixar e amanhã pego outra vez’ e fazer isso regularmente, durante muito tempo”. Este planejamento torna o estudo mais efetivo e contribui inclusive para que o estudante sinta-se mais em controle, reduzindo sua ansiedade.

O pensar também foi abordado no que diz respeito à segurança, à confiança em si e no seu potencial, algo em que os professores devem trabalhar ativamente: “O grande papel do professor também é fazer o aluno acreditar que ele é ele e tem um potencial como qualquer outro músico que seja uma referência para ele também.”

Um terceiro aspecto das relações entre pensar e tocar foi mencionado em relação a dificuldades de tocar que precisam ser superadas. Tais dificuldades podem estar ligadas à velocidade, à complexidade dos ritmos ou a outros aspectos da performance, e sua superação pode depender de um trabalho ‘mental’ específico: “Imagine o aluno que… consegue, tem uma postura boa, toca bem, tem uma técnica muito fixe, muito relaxada, mas já há ali uma parte… pronto, estamos ali a ver uma música X […] e ele quer fazer aquilo, e naquela velocidade…! Pronto! Imagina que ele tem aquilo tão focado que sempre que chega ali - bloqueia! Ou seja… o cérebro ao chegar naquela parte cria tensão e aquilo não sai dali! Pronto! Acho que é um bocado… é [preciso] um trabalho… da parte dele [de] dizer ‘ok’ para dentro no cérebro dele, ‘Ok, eu consigo… isto vai sair! Nesta parte não é assim tão difícil quanto parece, eu consigo…’ E tentar e ir fazendo e criar… criar maneiras de enganar o próprio cérebro e fazer aquilo…”

“Tomar consciência” foi uma expressão usada em vários contextos para demonstrar que o músico precisa perceber certas coisas de forma consciente - uma característica de sua performance, por exemplo - para poder agir sobre elas. No mestrado, um baterista já bastante experiente melhorou sua performance ao corrigir uma deficiência no seu ritmo - “eu tinha um vício do meu prato de choque, vinha sempre um pouquinho antes". Quando perguntado se fez exercícios para corrigir isso, a resposta foi rápida: “Sim, e faço. Mas o principal exercício é ter consciência do problema” - ele só se deu conta do problema quando o professor o apontou. Também é preciso consciência para desenvolver a capacidade de exprimir sua própria voz, estabelecer uma persona artística singular que se expressa ao tocar: “Basicamente as aulas com ele foram de consciência do que é que eu queria dizer no instrumento, ou seja, só um exemplo: na primeira aula ele pede-me para tocar, não é?, então eu toco algo e… e ele diz ‘OK, o que tu acabaste de fazer, não tens consciência do que estás a dizer, simplesmente o teu corpo tem uma memória muscular e estás dentro de um contexto musical, estás a tocar algo, mas não há uma consciência do que é que tu estás a tocar! E agora temos que ir devagar.’ Pronto, então foi lentamente, com pouca informação, tocar… e foi uma construção e essa construção ainda me acompanha, e é um exercício que está sempre presente, é uma consciência a mais…”

A performance musical é um artesanato feito internamente. A partir das experiências e trocas com seus mestres, cada um deve descobrir os caminhos para superar dificuldades e limites e tocar expressivamente: “Cada um tem que arranjar assim … as suas maneiras de escapar a esses bloqueios. Porque eu acho que … esses bloqueios são muito mentais … eu também tive durante muito tempo a cena do não conseguir, não conseguir, e tentar, e tentar… até que um dia… deixei de tentar! E a coisa começou a fluir mais…”

3.4. A saúde

O tema dos problemas de saúde e suas causas foi incluído dentro da categoria tocar bateria, porque, com exceção de lesões provocadas pela prática de esportes, a maior parte das causas estava ligada à performance. Eles manifestaram-se sobre o que se passou com eles próprios ou do que viram acontecer com seus alunos ou colegas, pois vários dos músicos nunca tiveram problemas relacionados ao tocar, e apontaram as causas possíveis para problemas físicos e para a ansiedade da performance. Esta última pode em parte estar relacionada às lesões que causam afastamento do instrumento e dos ensaios: a interrupção dos estudos provoca ou aumenta a insegurança sobre a qualidade do desempenho musical.

A gênese das lesões foi relacionada à prática ao instrumento sob óticas distintas:

- À forma como aprenderam, que ficou gravada em seu corpo: “Eu tinha 8 anos quando comecei e aprendi com um professor que havia pertencido a uma banda militar. Ele também tocava jazz - naquela época os professores vinham seja do lado do jazz, seja do lado militar e se curvavam sobre a bateria, e é algo que ainda faço e tento consertar o tempo todo [...] eu tenho a tendência de tocar com as costas redondas. Isso hoje em dia é algo que os professores dizem ‘Não! Não, não, não… É ruim, todos esses caras mais velhos, todos os professores têm ombros caídos, têm problemas nas costas e coisas assim, então é algo que a gente fala: ‘Vem para trás, endireite os ombros’. E eu sempre toco meio que me ajustando, puxando os ombros para trás…”

- A um processo inevitável ligado ao esforço constante durante o processo de envelhecimento: “Eu sempre pensei a minha vida inteira de [...] de usar [...] a maneira mais relaxada possível [para tocar] também pensando em não me lesionar e chegar à idade que eu estou em uma boa proficiência física e um bom desempenho físico, sem machucar. Mas a vida é tão… a vida é tão surpreendente que eu não me livrei disso, né, mesmo tendo esse critério todo, hoje eu tenho rizartrose nos dois polegares que é um tipo de artrose que dá por muito tempo de uso, eu toco há muitos anos! Então eu tenho um… um tipo de artrose nos polegares que você desenvolve e que dói bastante, mas eu consigo... eu consigo suplantar isso na hora de tocar! Eu tomo cuidado porque você vai perdendo a firmeza da pinça… e vai criando uma calosidade aqui e não é por ter estudado errado, é simplesmente pelo uso!”

- Às exigências inerentes à busca de excelência: “E isso é uma coisa que é importante dizer né, se você quer ser um músico… vamos dizer, ou um nadador, um bailarino de excelência - não estou falando aquela cara que toca no fim de semana e toca com os amigos, isso aí tá tranquilo! Agora, quem quer levar aquilo ali numa excelência - você vai levar o nível ao máximo do seu possível - você vai conviver com lesões, não tem como! Principalmente falando da bateria: não tem como! É lombar, é…”

A insuficiência técnica foi muito discutida, pois pode estar associada a padrões físicos ineficientes que gastam mais energia, aumentam a tensão muscular e, portanto, a fadiga e o risco de lesões. A capacidade de movimentar tanto o punho como os dedos de forma independente no comando das baquetas, a força empregada para sustentá-las, o recurso à da força da gravidade para facilitar o movimento e reduzir o esforço determinam um uso das mãos favorável ou desfavorável: mãos rígidas que se movem como um bloco e “estrangulam” as baquetas, posicionando-as sobre estruturas anatômicas frágeis à compressão localizada, levam a tendinites.

A prática de esportes pode causar lesões que interferem com a performance ao instrumento, por exemplo entorses de tornozelo relacionados ao futebol em campo sintético. Um baterista praticou halterofilismo quando jovem e credita a isso um histórico de epicondilite e outros problemas compressivos dos nervos no membro superior, que só foram superados com o apoio de um fisioterapeuta que o ensinou a alongar-se e fortalecer de forma específica para a performance na bateria. Falta de preparo físico, tensão muscular e falta de flexibilidade ou elasticidade também foram elencadas entre as causas de problemas, principalmente quando associados a sobrecargas pontuais muito comuns entre estudantes e profissionais, como as provocadas por períodos de exames ou participação em concursos, preparação para apresentações ou performances muito exigentes - “Aliás, com o N. [pianista], nós já tivemos uma situação muito traumática, uma experiência uma vez nos Açores em que durante três dias seguidos nós tocamos oito horas. Ou seja, tocávamos oito horas em um dia, com dois intervalos de quinze minutos, mais oito horas no dia seguinte, mais oito horas no terceiro dia. Foi um esforço descomunal, conseguimos aguentar, mas lembro-me que quando cheguei ao continente, passados dois dias comecei a sentir muito os efeitos daquilo. Um braço perdeu completamente a mobilidade e tive de fazer fisioterapia por três semanas, foi muito violento e ainda hoje tenho artrose e tendinite motivados por esse esforço que foi em 2018, se não me engano.”

A ansiedade da performance parece ter relações com a exposição pública de uma produção artística profundamente individual e afetiva, à avaliação de que não se sabe o suficiente e a um perfeccionismo, o desejo de fazer a melhor música possível que se opõe à percepção - algumas vezes desmesurada - das falhas cometidas. Um músico afirmou que “andava com uma guilhotina portátil, tudo eu me guilhotinava!” Foi preciso uma experiência em que o band-leader do grupo em que tocava evidenciasse a disparidade entre sua avaliação pessoal da performance (“achei que tinha tocado muito mal”) e a avaliação da plateia (que aplaudia sem parar após o show e vários bis) para que ele vencesse a exigência excessiva com relação a seu desempenho e valorizasse sua contribuição para o conjunto: “eu percebi que não sou eu, é o som, e está tudo bem, o grupo brilhou.”

Apenas dois dos músicos entrevistados abordaram perdas auditivas ou a ocorrência de zumbido no quesito das lesões: “E também o zumbido é uma coisa muito comum nos bateristas mais velhos, sabe? Praticar por horas em uma sala pequena com uma bateria, as ondas sonoras batendo e refletindo pela sala, isso pode facilmente danificar seus ouvidos. Estamos tentando incentivar o hábito de usar protetores de ouvido. Se você estiver ensaiando por muito tempo, coloque seus protetores de ouvido! Salve seus ouvidos!”

Mesmo quando são proficientes, os bateristas mencionam o aprendizado constante que vem da prática de outras técnicas corporais, como yoga ou artes marciais, de outros instrumentos musicais ou gêneros no mesmo instrumento, ou ainda de tratamentos de saúde para seus problemas dolorosos. Mesmo os alunos podem ensiná-los na arte de ensinar.

3.5. Visível é a beleza, invisível todo o trabalho que foi feito para tocar bonito

Quando perguntados sobre o que é visível ou invisível, foi surpreendente a concordância entre os entrevistados: visível é a beleza, o prazer que sentem ao tocar. O principal aspecto classificado como invisível ao tocar é “todo o trabalho que foi feito para tocar bonito.” A frase aborda uma característica importante do trabalho dos músicos, ligada à valoração e remuneração de sua capacidade performativa: “Por mais que as pessoas sejam supertalentosas, ninguém senta no instrumento e toca daquele jeito sem ter estudado muito, sem ter praticado muito, sem conhecer, sem saber como tirar aqueles efeitos. É a mesma coisa em qualquer instrumento, você pode tentar, você pode se comunicar, mas o preciosismo… E isso acontece muito na nossa profissão: às vezes o camarada chega pra gente e diz ‘E., no dia tal eu vou fazer uma gravação, você precisa ir lá para a gente gravar duas músicas.’ Às vezes parece que as pessoas fazem arte somente por gosto e o artista não precisa viver daquilo. Então tem aquele momento em que ele te pergunta quanto isso vai custar. Quando você fala - e eu ouvi muitas vezes isso - ele diz: ‘Mas poxa! Você vai ficar 4 horas no estúdio!’ E eu digo ‘É verdade! Eu vou ficar 4 horas no estúdio, e você vai pagar só 4 horas de estúdio, mas eu fiquei uma vida inteira estudando para ficar 4 horas. Você pode chamar quem você quiser que eu duvido que você vá ficar só 4 horas, e ainda com um resultado apenas mediano!’ Então isso é o invisível, entender o processo todo que é na vida de uma pessoa para ela estar ali naquele momento fazendo exatamente aquilo que você está ouvindo.”

Houve apenas uma menção explícita ao corpo na categoria invisível: “Essa coisa de aproveitar a energia do movimento nos outros movimentos. Isso é um pouco invisível, quando estamos tocando”. De certa forma isso parece natural, pois o corpo em movimento no espaço e a força da gravidade que rege este movimento são invisíveis para todos que estão saudáveis e capazes de realizar aquilo a que se propõem. O corpo, esta nave que habitamos na viagem pelo espaço tempo, é aquilo que somos - ou somos aquilo que vivemos e trazemos no corpo. O instrumento da nossa ação é tão determinante de tudo que somos que não o vemos separado de nós exceto quando ele falha, quando ele dói. Talvez seja por isso que usamos esse instrumento como se ele de nada precisasse: afinação, manutenção…

4. Discussão: corporeidade, expressividade e performance na produção da música

A investigação que foi feita para explorar a performance musical na bateria e o ensino deste instrumento permitiu o acesso a aspectos da corporeidade do performer e a dimensões da prática docente no instrumento relacionados, de alguma forma, aos conhecimentos de proteção da saúde - os saberes de prudência. Nesse sentido, o roteiro de entrevista elaborado parece ter cumprido seu papel de não induzir ou limitar os assuntos que poderiam ser abordados. Pelo contrário, talvez a combinação de tal roteiro com o fato dele ser utilizado em entrevistas individuais tenha estimulado a ampliação dos temas e tornado mais difícil estabelecer com maior precisão os conceitos fundamentais a serem trabalhados no desenvolvimento de conteúdos relevantes para o ensino saudável do instrumento.

De qualquer modo, os relatos obtidos possivelmente contribuirão para uma reflexão de estudantes e professores de bateria sobre dimensões da performance como a expressividade artística, a atuação em grupo, o ensino; eles também indicam vários pontos de atenção para todos aqueles preocupados em evitar armadilhas que podem resultar em sobrecargas e oferecem sugestões sobre como atingir uma performance melhor, como o estudo pode ser estruturado para vencer dificuldades e diferentes maneiras de preparar-se adequadamente para a fisicalidade do trabalho ao instrumento. Como muitos outros trabalhadores, os bateristas entrevistados estão cientes do esforço físico associado a seu ofício, mas não se demoram sobre este aspecto. Ao contrário, eles dão destaque a descobertas que fizeram, maneiras de trabalhar o corpo e a mente para serem capazes de produzir o resultado musical artístico que buscam com o menor esforço possível.

A escolha de apresentar aqui de maneira aprofundada os temas referentes à performance no instrumento permite descortinar detalhes da ação humana que normalmente não estão acessíveis à investigação por referirem-se a processos internos (por exemplo como ouvir, como pensar) que normalmente se escondem no silêncio do ser. Os bateristas conseguem apresentar esses detalhes por causa do constante escrutínio de si próprios e de seus alunos, da preocupação em compartilhar com eles suas descobertas sobre diferentes estados e processos internos. Na busca pelo movimento preciso, “leve”, capaz de expressar artisticamente o que eles querem dizer, os músicos são como fisiologistas do movimento, desenvolvem explicações requintadas sobre ele e empiricamente chegam a procedimentos que podem ser justificados por fenômenos neurofisiológicos.

Esse é o caso da respiração e suas relações com a coordenação motora. A respiração é um sistema caracterizado por um duplo controle, involuntário e voluntário. O sistema nervoso autônomo garante que este movimento fundamental para a vida se mantenha constante e se integre às respostas de conjunto do organismo ao esforço, à concentração ou às ameaças (a resposta de fugir ou lutar). Esta última poderia estar envolvida na reação de alguns estudantes a um exercício ou peça difíceis, de enrijecer-se e segurar a respiração. Como resposta involuntária e espontânea que prejudica a leveza da performance, só pode ser corrigida se o professor intervir, em primeiro lugar fazendo com que o estudante tome consciência dela, em segundo ajudando-o a encontrar ferramentas para ajustá-la.

Já o controle voluntário sobre a respiração, que envolve principalmente os músculos da caixa torácica, é em tudo similar ao exercido sobre os músculos dos membros e, portanto, passível de treino e de integrar-se em uma técnica corporal social aprendida, como a necessária à fala, ao canto ou à execução de um instrumento musical. Doğantan-Dack (2006), ao discutir o envolvimento do corpo na expressividade musical, aponta que “a expressividade na performance de uma unidade rítmica está associada a um perfil prototípico de intensidade-tempo que tem origem nas experiências dos movimentos corporais (inclusive as experiências cinestésicas envolvidas na respiração)” (tradução livre). Na performance, tanto instrumentistas como cantores são chamados a trabalhar sobre o fraseado musical, pois a frase musical é a unidade fundamental para a expressividade. É essa unidade que invoca o canto e, por extensão, os movimentos respiratórios voluntários a ele associados, que está presente em várias metáforas usadas para orientar a execução, por exemplo ‘fazer o instrumento cantar’.

Assim, quando o professor pede ao aluno que cante ou que estabeleça uma unidade rítmica para regular o movimento respiratório ao estudar, como relatado acima, ele acrescenta uma ‘camada’ extra, seja a percepção mais precisa da frase musical, seja um maior grau de dificuldade, como se entrasse em jogo um ‘quinto membro’ cujo efeito paradoxal é permitir que aquilo que antes era considerado difícil se torne mais simples depois do exercício. O instrumentista irá ‘estudar’ o movimento respiratório sob óticas diferentes - como sinalizador de dificuldade, ferramenta para atingir um estado meditativo ou mesmo para interferir com os processos envolvidos na origem do movimento - a ferramenta que ‘abre’ o “espaço mental fechado nesses 4 membros” (braços e pernas).

A arte da música está intimamente ligada ao corpo e ao movimento. Ouvintes, experimentamos mudanças no nosso estado fisiológico ou psicológico quando expostos a ela e a maioria de nós tem o impulso de realizar pequenos (ou não tão pequenos) movimentos oscilatórios em sincronia com ela. O instrumentista trabalha para desenvolver uma habilidade que se inicia no corpo mas dele se afasta conforme atinge níveis mais elevados de realização - é isso que poderia explicar a expressão do baterista ao explicar que se ele pensar em movimentos se afastará da música. Também é isto que transparece no relato sobre aquilo que o baterista quer dizer ao interpretar uma peça no instrumento - esse aprendizado transformador permitiu que este baterista adquirisse uma “consciência a mais".

De fato, como aponta (Doğantan-Dack. 2011), “do ponto de vista do performer, entregar [ao ouvinte] informações estruturais independentemente da intenção expressiva não é significativo, porque as duas são concebidas como funções unificadas da maneira como desejam que a peça realmente soe e estão indissoluvelmente ligadas aos seus gestos” (p. 251, tradução livre). A singularidade que caracteriza a criação musical - tão poderosa que toda uma peça pode ser evocada por um ouvinte a partir de um único compasso - tem para o performer uma qualidade diferente, ligada à gestualidade que a acompanha, ao conhecimento de quem faz. Assim, a peça musical adquire uma "qualidade de forma” (Gestalt) unificada (Doğantan-Dack, 2006) que integra o som e a expressividade afetiva que o performer deseja imprimir à estrutura formal e à gestualidade necessária para produzi-la: “o intérprete não conhece as formas rítmico-melódicas que se expressam em som separadamente dos gestos e movimentos físicos necessários para realizá-las. Qualquer gesto feito para entregar uma unidade de música irá inevitavelmente unificar a estrutura e a expressão, assim como os componentes biomecânicos e afetivos” (Doğantan-Dack. 2011, p. 251-252, tradução livre). Será que é uma qualidade de forma ‘errônea’ que provoca o bloqueio mencionado acima, cuja superação exige que o músico crie “maneiras de enganar o próprio cérebro”?

O aprendizado de um instrumento musical - e de qualquer outra habilidade - se concretiza pela constituição de representações neurais que integram os diferentes elementos necessários a seu domínio. As memórias assim formadas são o resultado da plasticidade do sistema nervoso, sua capacidade de armazenar modificações estruturais e funcionais provocadas por aquilo que fazemos. No caso da música, muitos estudos de mapeamento do funcionamento cerebral (Zatorre et al., 2007; Baumann et al., 2007) indicam que ocorre um acoplamento auditivo-motor: entre os músicos, a área auditiva funciona de forma muito mais integrada com as áreas que planejam o movimento do que entre pessoas que não aprenderam um instrumento musical. A constatação da importância deste acoplamento é expressa pelo professor que diz que “o mais difícil é o [som] que não está na sua cabeça”. O músico que não ouve - a si próprio, aos outros com quem toca, às músicas de que gosta, que o inspiram e àquelas que tocam apenas em sua mente - toca com mais dificuldade, com menos beleza, e terá talvez dificuldades em se integrar à um conjunto musical.

As questões levantadas pelas referências a pensar e tocar, por seu lado, remetem a questões de ordem diversa e complexa que devem ser mais aprofundadas por aqueles que se interessam em contribuir para o ensino saudável. Pensar sobre o movimento não tem a ver com a música, e sim com o estudo. A prática de estudo, voltada à aprendizagem, memorização e progressiva automatização da gestualidade que concretiza a expertise, a habilidade corporal que fundamenta o ato técnico (Cunha et al, 2022) necessário à produção do objeto ‘música’ (ou, ao menos, o protótipo dele) deve ser racionalizada. Sua estruturação está ligada à compreensão que o professor ou o estudante têm do corpo, do aprendizado e memorização, da fadiga e seus efeitos sobre a performance motora. O estudo é um trabalho artesanal sobre o corpo como objeto para que ele se torne capaz de produzir - se torne um corpo-instrumento. Esta seria a primeira produção - a manufatura do gesto, do ato técnico, para cuja eficiência e qualidade o planejamento e ajustes, a ação racional, são fundamentais.

Após a fabricação do corpo instrumento pode-se, na performance, fabricar a música, num processo que sustenta a produção do objeto síntese, unidade indivisível que integra corpo, cognição e expressão artística na obra musical que será entregue ao ouvinte. Durante esta produção é comum encontrar referências a um estado de concentração profunda como aquele descrito acima: o flow (ou “ficar in the zone”) descreve um estado mental de conexão entre aspectos cognitivos, fisiológicos e afetivos cuja experiência é um estado psicofísico ótimo que surge na performance ou é por ela induzido e a favorece (Biasuti, 2017). Entre os dois extremos, o músico faria um movimento de ir e vir que permite aprimorar as duas produções, agir sobre o corpo e suas reações de conjunto, reduzir expectativas, reprogramar a mente, “enganar o próprio cérebro” ou “deixar de tentar” como forma de conseguir.

As entrevistas indicaram também como um ponto de reflexão necessário o pensamento ligado ao discurso interno do sujeito quando mede e avalia seu potencial e desempenho, a qualidade da ‘manufatura’ musical de que é capaz (“tudo eu me guilhotinava”), bem como as relações entre a personalidade e a reação aos constrangimentos da atividade musical, por exemplo a grande competitividade nas situações ligadas a oportunidades profissionais no caso dos músicos eruditos. De fato, audições, concursos e apresentações em grandes eventos marcam importantes oportunidades de trabalho em um campo no qual a maioria dos profissionais não tem rendimentos fixos.

Finalmente, a visão que os professores bateristas têm das causas dos problemas de saúde é a outra face da moeda dos saberes de prudência. Ao relacionar estas causas a vários aspetos da realidade dos músicos, muitos dos quais ligados às condições de exercício profissional, ao tipo de vínculos profissionais, remuneração e configuração dos marcos da carreira, eles vinculam a resolução à ação sobre características do métier tanto quanto sobre o desenvolvimento individual de alunos e professores nos ofícios de tocar e de ensinar. Assim, o estímulo à prática saudável comporta dois níveis de atuação, o individual e o coletivo, em ações sobre as condições de estudo, trabalho e profissionalização.

No nível individual e de ensino é necessário refletir sobre os mecanismos do aprendizado, da memorização e da performance e desenvolver mecanismos para aprimorar esses processos, inclusive a capacidade de verbalização, de explicitação dos fenômenos ligados ao desenvolvimento desta cognição corporificada. No nível coletivo, as ações passam pela reflexão sobre currículos, estruturas escolares, a organização social do ensino e da prática profissional, campos nos quais a eficácia da ação individual não é suficiente.

Em resumo, trata-se de um lado de criar representações úteis para o avanço no ensino que contribuam para a estruturação do processo de desenvolvimento e transmissão da técnica corporal, resultando em um desempenho melhor e mais saudável. De outro, de amplificar o debate sobre a atuação do músico como profissional inserido socialmente em processos que podem favorecer ou, ao contrário, prejudicar sua saúde, resultando em um esforço coletivo de melhoria desta inserção.

5. Considerações finais

Os resultados do diálogo com os bateristas professores apresentados aqui expressam a grande complexidade dos temas que surgem do estudo da atividade humana. O método de entrevista permitiu o acesso a formulações que indicam a existência de questões de pesquisa bastante amplas, situadas na intersecção de diferentes áreas de conhecimento. Assim, seu desenvolvimento merece o debate interdisciplinar dos músicos e professores com estudiosos do corpo e da mente, da filosofia e da arte.

A atividade dos músicos é muito pouco estudada pela ergonomia, que não organizou ainda os conhecimentos esparsos que tem para conseguir contribuir de forma significativa na melhoria seja das condições de estudo e trabalho da categoria dos músicos, seja dos instrumentos e ambientes. É certo que a performance musical tem muito a ensinar aos ergonomistas, pelas características da produção que o músico faz: a música não é apenas dependente do gesto, ela é o próprio gesto, efêmero e profundamente afetivo, o retrato da mente em ação, como vimos aqui. As relações entre corpo e mente na manufatura do gesto, do corpo instrumento, devem estar envolvidas na análise da atividade e na proposição de melhorias de condições de trabalho e de formações para a saúde e segurança.

Além destes, há muitos outros temas que precisam de aprofundamento: os instrumentos musicais e sua adequação aos indivíduos, por exemplo o tamanho do instrumento e do estudante, especialmente se for uma criança; os pontos de pega e sustentação; os acessórios e materiais de apoio; as partituras e as condições de visualização; mobiliários e disposição dos músicos nos conjuntos musicais; níveis de intensidade sonora e riscos auditivos; turnês, fadiga e sono... A lista é longa.

Especificamente com relação aos saberes de prudência, uma questão que pode ser aprofundada refere-se às diferenças entre instrumentos. Este estudo mostrou que há similaridades entre a bateria e as cordas orquestrais estudadas anteriormente no que diz respeito ao tipo de uso do corpo necessário para tocar bem e com menor risco de lesões: trata-se da “leveza”, da ‘mínima força necessária’ - um movimento que favorece a produção do som e que deixa espaço para que o instrumentista dê conta dos outros requisitos ligados a fazer música, como a expressividade, a capacidade de sincronia com outros músicos e de conectar-se com seus ouvintes. Será que isso se aplica a outros tipos de trabalho? Como? E na música, quais são os saberes de ofício e de prudência comuns a todos os músicos e quais os relacionados às características específicas de um determinado instrumento?

Caberá aos ergonomistas avançar no estudo destes fenômenos para aprimorar sua capacidade de compreensão e sugestão de melhorias das condições de aprendizado e performance. Já aos músicos cabe talvez ampliar o foco de seu olhar inquisidor para incluir aspectos situados fora do corpo, contribuindo desta maneira para enriquecer o processo social no qual atuam e preservar sua saúde na produção deste bem fundamental para o bem-estar e a saúde da sociedade.

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1 Indústria Criativa Cultural: esta classificação foi proposta em 2006 para avaliar a contribuição econômica do setor da cultura à economia da União Europeia (ver European Commission 2006). A denominaçãoinclui o setor cultural e suas empresas não-industriais (que produzem bens não reprodutíveis e serviços que serão consumidos imediatamente) e industriais (que produzem produtos culturais de reprodução e disseminação em massa e exportação) e o setor criativo, no qual a cultura entra como input criativo na produção de bens não-culturais.

Recebido: 28 de Setembro de 2023; Aceito: 16 de Novembro de 2023

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