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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versión impresa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.10 no.2 Coimbra jun. 2016

 

ARTIGO DE OPINIÃO/OPINION ARTICLE

Vírus Zika e gravidez

Zika virus and pregnancy

Mariana Pimenta*, Sara Pereira*, Nuno Clode**, Luís Mendes da Graça***

*Interna Complementar de Ginecologia e Obstetrícia, Centro Hospitalar Lisboa Norte - Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte

**Director de Serviço de Obstetrícia, Centro Hospitalar Lisboa Norte - Hospital de Santa Maria, Centro Hospitalar Lisboa Norte

***Professor Catedrático, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Ao longo das décadas, a comunidade científica tem vindo a deparar-se com desafios decorrentes da emergência de novas estirpes de agentes infecciosos com impacto na Saúde Pública. A infecção pelo vírus Zika é um bom exemplo, pelas incertezas na abordagem e na conduta em mulheres grávidas ou que pretendem engravidar.

O vírus Zika, um Arbovírus membro da família Flaviviridae, foi identificado pela primeira vez em 1947 em macacos Rhesus no Uganda e em 1950 surgiram as primeiras evidências de infecção em humanos. Desde então, têm sido registados surtos da doença em diferentes áreas geográficas (Oceania em 2007, Polinésia francesa em 2013-2014) e identificação de múltiplos casos em África e América do Sul1,2. Em Maio de 2015 foi identificado o primeiro caso de infecção por vírus Zika no Brasil e, com o crescente número de casos e a evidência emergente da associação entre a infecção na grávida e a microcefalia, foi declarado Estado de Emergência pela OMS a 1 de Fevereiro de 20162. De facto, existe evidência actual da associação causal entre a infecção pelo vírus Zika durante a gravidez e malformações fetais a nível do sistema nervoso central (SNC), nomeadamente microcefalia2,5. O surto de microcefalia verificado no Brasil, coincidente com o elevado número de grávidas com sintomatologia sugestiva de infeção por este vírus, levantou a hipótese da associação entre a infecção fetal e anomalias do SNC. Estudos conduzidos para corroborar esta hipótese demonstraram a presença do vírus no líquido amniótico, soro, tecido cerebral e LCR de recém-nascidos com microcefalia e, recentemente, a World Health Organization (WHO) e o United States Centers for Disease Control and Prevention (CDC) concluíram existir associação efectiva entre microcefalia e infecção perinatal pelo vírus Zika2-5.

O principal vector do vírus Zika é o mosquito Aedes aegypti. No entanto, foram reconhecidas também outras vias de transmissão, como a transmissão materno-fetal (por via transplacentária ou durante o parto), a transmissão por via sexual (pela presença do vírus no sémen) ou por transfusão de sangue e hemoderivados6. Apesar de o vírus ter sido detectado na urina, leite materno e saliva, não há evidência actual da transmissão por estas vias6,7.

Com um período de incubação de 3 a 14 dias, a infecção pelo vírus Zika é benigna e auto-limitada (duração de 2 a 7 dias), sendo similar a outras infecções por arbovírus8,9. Os critérios clínicos, epidemiológicos e laboratoriais para definição de caso estão patentes no Quadro I 7. A infecção é caracterizada pela existência de um exantema maculo-papular pruriginoso com ou sem febre, associado a sinais e sintomas como conjuntivite não purulenta, poliartralgias, edema periarticular, mialgias, dor retro-ocular, vómitos e adenomegalias. De realçar que cerca de 80% das infecções são assintomáticas o que dificulta a prevenção e o controlo da doença2,8. Na gravidez, as manifestações clínicas são idênticas às da população geral, apesar de existir evidência de que a virémia persista por mais tempo9.

 

 

O diagnóstico pode ser realizado em fase aguda (mesmo 10 dias após o início dos sintomas) pela deteção de RNA viral em amostras biológicas (sangue ou urina) utilizando técnicas de RT-PCR. Podem também ser realizados testes serológicos com detecção de IgM e IgG no soro dos doentes, sendo o diagnóstico dificultado neste caso, pelo elevado número de falsos-positivos por reacção cruzada com outras infecções por flavivírus, como o vírus do Dengue (endémico nas mesmas regiões)7-9. Não existe um tratamento eficaz para a infecção. O tratamento preconizado é sintomático, sendo o repouso, hidratação e paracetamol as únicas medidas recomendadas8,9.

Face ao quadro benigno da doença, a infecção congénita constitui a grande preocupação e o real problema de Saúde Pública. As consequências fetais são traduzidas por microcefalia, bem como outras anomalias do SNC (ventriculomegalia, atenuação das circunvoluções cerebrais e hidranencefalia), danos oculares, hidropsia fetal, restrição do crescimento fetal e morte fetal9. A associação entre a infecção pelo vírus Zika e anomalias fetais está descrita para os três trimestres da gravidez, pelo que deve presumir-se que existe risco de infecção congénita em qualquer idade gestacional2,9. No entanto, permanece desconhecida a proporção de casos em que há transmissão vertical e qual a percentagem de fetos infectados que irão apresentar anomalias9,10. Apesar da evidência actual, persistem ainda muitas dúvidas acerca do comportamento do vírus. Na realidade, é desconhecida a forma como o vírus irá afectar a grávida e o feto, desconhece-se qual a probabilidade de infecção congénita, se há diferentes susceptibilidades consoante a idade gestacional e se a via de transmissão se relaciona com riscos diferentes de infecção congénita9,10. O que parece certo é que uma infecção passada não acarreta risco acrescido de anomalias fetais para uma gravidez futura; a infecção primária pelo vírus Zika confere imunidade futura7,9.

O risco acrescido de anomalias fetais em caso de infecção durante a gravidez leva a que os clínicos sejam confrontados com dúvidas acerca do diagnóstico e da melhor forma de prevenção da doença, uma vez que não existe vacina disponível. Foi desta necessidade emergente de delinear uma estratégia preventiva para a população de grávidas ou mulheres que pretendem engravidar que surgiram normas de orientação por parte de organizações internacionais nas quais se desaconselha a viagem (em qualquer idade gestacional) para regiões onde o vírus é endémico e, no caso de a viagem ocorrer, a utilizar medidas de protecção pessoal (vestuário adequado, uso de repelentes, mosquiteiros entre outros). Pelo risco de transmissão sexual, preconiza-se o uso de preservativo (ou abstinência sexual) durante toda a gestação, caso o parceiro da grávida regresse de uma zona endémica, independentemente do aparecimento de sintomas sugestivos de infecção7,9,11. Perante uma mulher que pretenda engravidar, é aconselhado adiar a concepção por um período de 4 semanas após o regresso de uma região endémica; e, quando sintomática, adiar a concepção por um período mínimo de 8 semanas. Quando o parceiro regressa de uma área endémica e teve infecção confirmada pelo vírus Zika, deve adiar-se a concepção por um período de 6 meses após o regresso e, mesmo sem sintomatologia compatível com infecção, é prudente adiar-se a concepção por um período de 4 semanas após o regresso7,12.

Pela evolução rápida de acontecimentos e a associação muito recente da infecção com as anomalias fetais, é ainda controversa a abordagem ideal e as linhas de orientação a adoptar para a população de grávidas e mulheres em idade fértil. Está preconizada a realização de ecografia a cada 4 semanas nas grávidas que regressaram de regiões endémicas, independentemente de apresentarem sintomatologia compatível com infecção ou não7. E, havendo alguma alteração ecográfica, nomeadamente microcefalia, calcificações intracranianas ou outras anomalias do SNC, deverá ser realizada pesquisa do RNA viral (ou pesquisa do vírus) no líquido amniótico. Um resultado positivo é apenas indicativo de exposição fetal ao vírus, não sendo preditivo do desfecho fetal, motivo pelo qual não se justifica a realização deste procedimento invasivo na ausência de anomalias ecográficas7,9.

Em Portugal continental não existe o vector Aedes aegypti pelo que os casos registados serão sempre importados, facto que pode não se verificar na Madeira, uma vez que o vector é autóctone. No entanto, não há registo, até à data, de transmissão local, tendo os casos notificados na Madeira uma ligação epidemiológica ao Brasil7. Em Portugal continental foram reportados mais de uma dezena de casos importados provenientes do Brasil, Cabo Verde e Colômbia7.

Assim, perante a evidência actual, as grávidas devem ser informadas e alertadas acerca dos riscos inerentes à permanência em áreas endémicas e aquelas que pretendem engravidar ser aconselhadas a evitar a estadia nestas regiões no período pré-concepcional. Pelas incertezas acerca da idade gestacional crítica deverão recomendar-se medidas de protecção durante toda a gestação. É importante salientar que apesar da evidente associação entre a infecção pelo vírus Zika e a microcefalia, permanece desconhecida a capacidade do vírus promover alterações neurológicas menos evidentes ao diagnóstico2. Com o avançar das pesquisas é expectável (à semelhança do que ocorreu na infecção congénita por rubéola) que o espectro reconhecido de anomalias decorrente da infecção congénita seja alargado e o fenótipo subsequente melhor compreendido.

*Os autores redigiram o texto de acordo com a antiga ortografia

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Owen Dyer; Zika virus spreads across Americas as concerns mount over birth defects; BMJ 2015;351:h6983 doi: 10.1136/bmj.h6983; 2015        [ Links ]

2. Newton S. De Carvalho, Beatriz F. De Carvalho, Cyllian A. F., Bruna Dóris, Evellyn S. Biscaia; Zika virus infection during pregnancy and microcephaly occurrence: a review of literature and Brazilian data; The Brazilian Journal of Infectious diseases; Fev 2016; Elsevier (http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1413867016300496)        [ Links ]

3. Centers for Disease Control and Prevention. About Zika virus disease; May 5 2016 (http://www.cdc.gov/zika/about/)         [ Links ]

4. J. Mlakar, M. Korva, N. Tul, M. Popović, M. Poljšak‑Prijatelj, J. Mraz, M. Kolenc, K. Resman Rus, T. V. Vipotnik, V. F. Vodušek, A. Vizjak, J. Pižem, M. Petrovec, T. Avšič Županc. Zika Virus Associated with Microcephaly - case report. NEJM 374;10; Março 2016

5. Sonja A. Rasmussen, Denise J. Jamieson, Margaret A. Honein, Lyle R. Petersen. Zika Virus and Birth Defects - Reviewing the Evidence for Causality. NEJM; 2016  (http://www.nejm.org/doi/pdf/10.1056/NEJMsr1604338

6. Centers for Disease Control and Prevention. Zika virus: transmission and risks. April 26, 2016  (http://www.cdc.gov/zika/transmission/)        [ Links ]

7. Direcção Geral de Saúde; Doença por vírus Zika; Procedimentos Gerais Orientação da DGS nº 001/2016 de 15/01/2016 actualizada a 18/04/2016        [ Links ]

8. Centers for Disease Control and Prevention. Zika Virus: Symptoms, Diagnosis, & Treatment; (2016). (http://www.cdc.gov.scihub.bz/zika/symptoms/index.html)         [ Links ]

9. Edward RB McCabe; Zika virus infection: Evaluation of pregnant women and infants; UpToDate; 2016; last updated: May 13, 2016        [ Links ]

10. Centers for Disease Control and Prevention. Zika and Pregnancy. April 19, 2016. (http://www.cdc.gov/zika/pregnancy/)        [ Links ]

11. Centers for Disease Control and Prevention. Zika virus: Prevention. April 28, 2016. (http://www.cdc.gov/zika/prevention/)        [ Links ]

12. Centers for Disease Control and Prevention; Preconception counseling: for women and men living in areas with ongoing spread of Zika virus who are interested in conceiving. Atlanta (GA): CDC; 2016. (https://www.cdc.gov/zika/pdfs/preconception-counseling.pdf)        [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Mariana Pimenta

E-mail: marianamgpimenta@gmail.com

 

Recebido em: 20-05-2016

Aceite para publicação: 23-05-2016