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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versión impresa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.11 no.1 Coimbra mar. 2017

 

ARTIGO DE OPINIÃO/OPINION ARTICLE

O parto naturalista na perspectiva do Direito: o conflito grávida/feto

The naturalistic delivery from a law perspective: the pregnant/fetus conflict

Jorge Rosas de Castro*

Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos

*Licenciatura em Direito; ­Mestrado em Ciências Jurídico-Criminais; Pós-graduação em Direitos Humanos e Democracia; ­Curso Breve de Pós-Graduação em Responsabilidade Médica; ­Curso Breve de Pós-Graduação em Consentimento Informado

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

There is a growing number of pregnant women who want a decrease of medical intervention in childbirth. This article highlights some of the ethical and legal problems that this posture can pose to the medical team, especially in cases where the decision of the pregnant woman may jeopardize the health or life of the fetus.

Keywords: Conflito grávida-feto; Parto naturalista.


 

1. Têm surgido, em Portugal e no estrangeiro, associações de inspiração diversa, futuros pais e mesmo algumas vozes dentro da comunidade médica que propugnam uma redução da intervenção clínica no trabalho de parto, apontando para uma ideia de parto humanizado, a viver em ambiente despido do protocolo assistencialista habitual. Diversos hospitais têm revelado alguma abertura a esta realidade, admitindo valências ou práticas naturalistas, em que a equipa médica apenas intervém na eventualidade de surgir uma complicação séria. Mais comum é a organização do chamado plano de parto ou plano de nascimento, em que são especificados os desejos da grávida e identificado o que esta pretende venha a ser a atitude da equipa médica em cada situação.

Este novo conceito que se vem impondo suscita dificuldades de vária ordem, designadamente nos casos em que da recusa de uma dada intervenção derive um sério risco de lesão ou morte, para a grávida, para o feto ou para ambos. Ocorre então perguntar se tem a grávida adulta e capaz o direito de recusar a intervenção; ou, pelo contrário, se esta lhe pode ser imposta e em que termos. E justifica-se ainda que nos questionemos sobre o papel do profissional de saúde e nomeadamente se pode e/ou deve, e em que circunstâncias, actuar.

2. Constitui hoje um indiscutível princípio bioético a ideia de que, ressalvadas algumas situações excepcionais de que aqui não tratamos, não pode ter lugar uma intervenção médica sobre o corpo de um paciente adulto e capaz sem que este dê o seu consentimento. Se, depois de devidamente esclarecido da natureza, do objectivo, da importância e dos riscos de um determinado procedimento preventivo, diagnóstico ou terapêutico, das eventuais alternativas ao mesmo, e das consequências previsíveis de o não seguir, o paciente manifesta a sua oposição, lavrando pois o seu dissentimento, a equipa médica não pode realizar o dito procedimento, ainda que dessa opção do paciente resultem para este consequências danosas e até mesmo a sua própria morte1. Não terá contudo este direito ao dissentimento especificidades relevantes no caso da gravidez, por força das repercussões que a decisão da parturiente poderá ter para o feto? Não terá este último um papel determinante na equação2?

3. É virtualmente impossível encontrar um total consenso quanto ao exacto estatuto ético, moral e até jurídico do feto, com projecções directas e imediatas na relação clínica. De todo o modo, é patente que o feto é um ser humano em formação ou até, nos últimos momentos da gravidez, já formado, o que nos impele para que lhe reconheçamos desde logo uma enorme valia biológica, ética e moral, a que a lei, a jurisprudência e a doutrina vão conferindo aliás perfil jurídico: pense-se por exemplo na protecção da vida intra-uterina que resulta do nosso Código Penal3; na orientação, que vai fazendo o seu caminho, no sentido de considerar-se que a protecção da vida, e não já apenas da vida intra-uterina, começa com o início do trabalho de parto4; e ainda na jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que apontou ao feto um pólo agregador de «direitos e liberdades»5.

Pelo exposto, afigura-se-me incontornável a ideia de que o feto é um paciente, concitando pois em si, com as devidas adaptações, todas as exigências ético-jurídicas do profissional médico, a saber e desde logo, dois princípios que estão no âmago da boa prática clínica - o da beneficência e o da não maleficência; a especificidade da situação é que é a grávida quem, apresentando-se à equipa médica, acaba por outorgar ao feto um tal estatuto6, o que significa, por força do direito de autodeterminação de que goza a grávida, que é com o concurso desta que terá de ser encontrado o se e o como actuar. Ora, considerando que a relação médico-paciente deve assentar em princípios de informação, de esclarecimento, de diálogo, de respeito mútuo e de gestão partilhada do risco7, tudo aconselha a que o parto seja a seu tempo preparado, de forma a ir-se ao encontro dos desejos da grávida, sim, mas sem comprometer o standard of care mínimo que a equipa médica tem por exigível, numa idealmente máxima optimização concordante dos valores da autodeterminação e da beneficência/não maleficência da grávida, decerto, mas também e desde logo da beneficência/não maleficência do feto. Se, mau grado o diálogo estabelecido e todos os esforços de esclarecimento e mesmo persuasão desenvolvidos pela equipa médica, exista uma divergência insanável entre esta e a grávida quanto à definição concreta do que seja esse tal standard of care mínimo, parece-me que a equipa médica, na lógica operatividade do princípio bioético da autodeterminação da grávida, não pode impor-lhe o seu standard of care, sob pena até de poder estar a cometer um crime de intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos arbitrários8. Todavia, entendo também que a grávida não pode exigir que o parto seja feito nas suas condições: não pode a equipa médica ser obrigada a violentar a consciência profissional dos seus elementos, omitindo procedimentos que têm por necessários ou fazendo outros que consideram inúteis ou prejudiciais, seja à grávida, ao feto ou a ambos. É que a obrigação de diligência que o médico assume para com os pacientes tem sempre por pressuposto que a possa cumprir de acordo com a sua boa consciência médica9.

4. Perdoando-se-me o paralelismo em que incorremos a benefício da clareza de exposição, diríamos que da mesma forma que o dono da obra não pode esperar do empreiteiro que construa a casa com três pilares a menos em relação aos preconizados como essenciais pelo engenheiro civil, também a grávida não pode demandar à equipa médica que avance com a assistência impondo-lhe positivamente em quê que essa assistência deva traduzir-se. Afigura-se-me pois que nessas circunstâncias assiste ao profissional médico o direito de recusar o acompanhamento, posição que entendo ter cobertura na deontologia10. Como limites a esse direito de recusa parece-se-me dever considerar-se dois tipos de casos: por um lado, as situações de perigo iminente para a vida da grávida e/ou do feto ou de lesão grave para a integridade física de qualquer deles, circunstâncias em que o profissional médico, estando-lhe vedada a intervenção de que a grávida adulta e capaz dissente, não pode recusar a assistência possível dentro da margem consentida, sob pena de poder incorrer na prática de um crime de recusa de médico11; por outro lado, quando haja elementos que apontem com segurança no sentido de que a grávida ficará na prática impossibilitada de recorrer a outra equipa médica, caso em que uma total recusa de assistência redundaria numa negação de acesso aos cuidados básicos de saúde, de contornos ético-deontológicos extremamente problemáticos, com potencial responsabilidade associada12.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Algumas referências normativas: o art. 5º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina; o art. 3º/2 a) da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; o art. 8º/1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos; e o art. 6º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos; e os arts. 19, 20º, 23º e 24º/2 do Código Deontológico da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Regulamento nº 707/2016, Diário da República, II Série, nº 139, de 21/07/2016 (CDOM).

2. Para uma primeira abordagem a esta temática do “conflito grávida-feto”, vide: Scott, Rosamund, Rights, Duties and the Body Law and Ethics of the Maternal-Fetal Conflict, Hart Publishing (2002), Flagler, Elizabeth/Baylis, Françoise/Rodgers, Sanda, “Ethical dilemmas that arise in the care of pregnant women: rethinking «maternal-fetal conflicts»”, Canadian Medical Association, 15-Junho-1997, pgs. 1729-32; Casey, Gerard, “Pregnant Woman and Unborn Child: Legal Adversaries?”, Medico-Legal Journal of Ireland, 8 (2), pgs. 75-81; Smith, Holly M., “Fetal-maternal conflicts”, In Harm’s Way: Essays in Honor of Joel Feinberg, Cambridge University Press (1994), pgs. 324-43; Post, Linda Farber, “Bioethical Consideration of Maternal-Fetal Issues”, Fordham Urban Law Journal, volume 24, nº 4 (1996), pgs. 757-75; Broaddus, Brain M./Chandrasekhar Shobana, “Informed Consent in Obstetric Anesthesia”, Anesthesia Analgesia, Abril de 2011, volume 112, nº 4, pgs. 912-5.

3. Arts. 140º e seguintes do Código Penal.

4. Albuquerque, Paulo Pinto de, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª edição actualizada (2010), pgs. 393-4.         [ Links ] 

5. Acórdão A, B e C c/ Irlanda, de 16/12/2010 (§ 213).

6. Briozzo, Leonel/Nozar, Fernanda/Coppola, Francisco/Fiol, Verónica, “Abordaje clínico del conflicto de interés materno fetal y su relación com el estatus del feto como paciente”, Revista Médica del Uruguay, 2013, 29 (3), pgs. 187-194.         [ Links ]

7. Vide o que se deixou já dito em “Consentimento Informado e Medicina Defensiva”, Julgar, Número Especial sobre Consentimento Informado, Coimbra Editora (2014), pgs. 207-23.

8. Art. 156º do Código Penal.

9. Arts. 6º, 7º, 10º, 12º e 13º do CDOM.

10. Arts. 16º e 24º CDOM.

11. Art. 284º do Código Penal.

12. Art. 16º/2 a) do CDOM.

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Jorge Rosas de Castro

Palácio da Justiça, Rua Augusto Gomes

Matosinhos, Portugal

E-mail: jorge.rosas.castro@gmail.com

 

O autor redigiu o texto de acordo com a antiga ortografia.

 

Recebido em: 1/2/2017

Aceite para publicação: 20/2/2017