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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versión impresa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.12 no.2 Coimbra jun. 2018

 

EDITORIAL

Internos, Histerectomias e Formação Médica

Residents, Hysterectomies and Medical Education

Alexandra Henriques*

*Assistente hospitalar - Unidade de Uroginecologia, Departamento de Obstetrícia, Ginecologia e Medicina da Reprodução, Hospital de Santa Maria - Centro Hospitalar Lisboa Norte

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

Nesta edição da AOGP vão encontrar um artigo sobre a mudança de paradigma nas histerectomias1 num centro hospitalar terciário do nosso país. A sua leitura levou-me a refletir sobre a evolução tecnológica nos últimos anos em Portugal, sobre os cuidados que são prestados às nossas doentes e sobre a formação dos internos da formação específica de ginecologia/obstetrícia.

Há pouco mais de 10 anos atrás, recordo-me que o grande volume de histerectomias executadas no meu Departamento eram por via abdominal, seguidas da via vaginal. O número crescente de histerectomias vaginais assistidas por laparoscopia contribuíram para a curva de aprendizagem das histerectomias totalmente laparoscópicas. A aquisição de melhores e mais sofisticados equipamentos, a par do empenho dos médicos na sua formação continuada permitiu uma viragem. Hoje, assistimos a uma inversão da via de abordagem: a maior parte são laparoscópicas, seguidas da via vaginal e por último a via abdominal. No Serviço Nacional de Saúde não há para já, que seja do meu conhecimento, cirurgia robótica nesta área. A haver no futuro, a histerectomia abdominal terá os seus dias contados? Esta mudança no sentido da cirurgia minimamente invasiva era expectável com o avanço tecnológico e está de acordo com as recomendações de uma revisão da Cochrane2 tendo, claramente, vantagens indiscutíveis para as nossas doentes: menor tempo de internamento, menor perda de sangue, mais rápida recuperação, melhor resultado estético.

Assolam-me, porém, várias questões. Será que estamos a formar, adequadamente, os internos em atos técnicos básicos? Será que um recém-especialista se sentirá tão confiante para realizar uma histerectomia abdominal com autonomia (sem supervisão de um sénior) como há 10 anos atrás? E os casos difíceis? Úteros gigantes, aderências extensas no contexto de doença inflamatória pélvica ou endometriose, vão continuar a existir - quem estará à altura de os tratar? Será que que no caso de necessidade de conversão de laparoscopia para laparotomia, os recém-especialistas vão estar confortáveis para terminar o procedimento por via aberta? Levado ao extremo das situações graves e, felizmente, raras, será que temos médicos devidamente preparados para histerectomias de emergência (hemorragia pós-parto, acretismo placentar, rotura uterina)? Não falei, propositadamente, nas histerectomias por doença oncológica uma vez que estão previstas no programa da subespecialidade de Ginecologia Oncológica, não constituindo uma preocupação durante o internato.

No programa de formação do internato médico da área profissional de especialização de ginecologia/obstetrícia em vigor3 está expressa a quantificação dos atos médicos mínimos que os médicos internos devem executar, embora não obrigatórios, são fortemente recomendados. No que diz respeito às histerectomias, os números mínimos são 25 por via abdominal e 15 por via vaginal. O número mínimo de cirurgias laparoscópicas é 40 não sendo especificado o tipo de cirurgia. Até podem ser todas laqueações tubárias.

Existe uma recomendação europeia do European Board and College of Obstetrics and Gynecology (EBCOG) e Union Européenne des Médecins Spécialistes (UEMS)4, em que Portugal participou, que aconselha o uso do ‘Log Book' para registo dos progressos ao longo da formação. Os números mínimos recomendados são: 40 histerectomias (15 abdominais, 10 laparoscópicas e 15 vaginais).

Não é a primeira vez que vejo internos angustiados com o tempo de formação a esgotar e os números de cirurgias a cumprir. Obviamente há inúmeros fatores a concorrer para esta angústia. Alguns decorrentes da evolução técnica e novas alternativas no tratamento médico da patologia benigna, outros consequência da reorganização dos serviços por falta de tempos cirúrgicos devido à não contratação de médicos. Destes não vou falar, só dos primeiros.

Um artigo sobre a realidade Portuguesa, no que diz respeito às histerectomias realizadas nos hospitais públicos de 2000 a 20145, foi publicado pela mesma autora do trabalho que citei no início. Este trabalho é de extrema importância dado não ter precedente no nosso país. Os dados vêm demonstrar que a nossa percepção empírica estava certa. A taxa global de histerectomias diminuiu 19,3%. A taxa de histerectomias abdominais diminuiu 16,4% (passou de 85,5% para 69,1%). A taxa de complicações aumentou muito discretamente de 3,3% para 3,6%. O que vem demonstrar que a mudança de via de abordagem não teve grande impacto na taxa de complicações.

É nossa missão formar os internos nas três vias de abordagem, sabendo que a curva de aprendizagem da histerectomia laparoscópica é mais demorada que a da histerectomia abdominal. No que diz respeito à via abdominal (dada a tendência decrescente) devemos fazer um esforço para que estas cirurgias sejam executadas pelos internos. No que diz respeito à via vaginal, devemos atuar da mesma forma, em particular se a histerectomia não for feita em contexto de prolapso de órgãos pélvicos. A meu ver, é de extrema importância ensinar aos internos técnicas de morcelação uterina, uma vez que também numa cirurgia laparoscópica podem necessitar deste ‘skill' para remoção do útero. No que diz respeito à cirurgia laparoscópica devemos incentivar e ajudar os internos na realização de cirurgias de complexidade crescente. Pondo de parte a formação em centros fora de Portugal (a que apenas alguns internos se podem candidatar e suportar os custos), será que nos nossos hospitais estamos a utilizar a melhor metodologia para atingir este objetivo? Há formação na área da laparoscopia acessível a todos os internos a nível nacional? Parece-me que ainda não. A oferta que existe é dispendiosa e, na sua maioria, organizada por hospitais privados. Interrogo-me se, à semelhança de outros programas de formação de outras áreas médicas, não deveria ser obrigatória (e gratuita) uma formação em laparoscopia (por módulos básico, intermédio e avançado) suportada pela instituição onde decorre o internato. Por exemplo, no regulamento da formação específica em anestesiologia6 está prevista formação obrigatória em curso de suporte avançado de vida, curso de trauma e curso de via aérea difícil onde se pode ler: «Tratando-se de atividades formativas obrigató́rias, complementares dos está́gios obrigatórios do Internato, os custos inerentes à̀ sua frequência são suportados pela instituição de colocação oficial do Interno».

Outras medidas que cada instituição devia disponibilizar passam pela criação de locais de treino em simuladores (‘endotrainers') ou em modelo animal (laparoscopia no porco), com atividades devidamente orientadas por médicos séniores.

Resta-me apelar para a criação de bases de dados nacionais que permitam a realização de estudos com valor científico que traduzam a nossa realidade com rigor. Esses dados devem servir para aferirmos a nossa qualidade de trabalho e para melhorarmos os cuidados que prestamos às doentes. Idealmente que estes estudos possam vir a ter impacto em medidas políticas/gestão hospitalar e, em especial, na área da formação médica.

Termino com uma frase de Nelson Mandela: “Education is the most powerful weapon which you can use to change the world.”

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Gante I, Coutinho I, Vale D, Medeiros R, et al. Mudança de paradigma nas histerectomias - estudo retrospetivo comparativo. Acta Obstet Ginecol Port 2018;128-133.

2. Aarts JW, Nieboer TE, Johnson N, et al. Surgical approach to hysterectomy for benign gynaecological disease. Cochrane Database Syst Rev 2015. Cd003677.

3. Programa de formação do internato médico da área profissional de especialização de Ginecologia/Obstetrícia. Portaria nº 613/2010 de 3 de Agosto. Diário da República, 1ª série - Nº 149 - 3 de Agosto de 2010.

4. EBCOG Recommendations for postgraduate training and assessment in obsterics and gynaecology. June 2005. Acedido em: http://gks.fi/wp-content/uploads/2016/06/EBCOG-basic_training_programme.pdf        [ Links ]

5. Gante I, Medeiros-Borges C, Águas F. Hysterectomies in Portugal (2000-2014): What has changed? Eur J Obstet Gynecol Reprod Biol. 2017 Jan;208:97-102

6. Programa de formação do internato médico da área profissional de especialização de Anestesiologia. Portaria nº 92-A/2016 de 15 de Abril. Diário da República, 1ª série - Nº 74 - 15 de Abril de 2016.

 

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Alexandra Henriques

E-mail: alexandra.henriques@chln.min-saude.pt

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