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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.14 no.1 Coimbra mar. 2020

 

ARTIGO DE OPINIÃO/OPINION ARTICLE

Ainda a propósito da taxa de mortalidade materna de 2018

Still the 2018 maternal mortality rate in Portugal

Nuno Clode1

1Serviço de Obstetricia - Hospital de Santa Maria/Centro Hospitalar de Lisboa Norte

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

ABSTRACT

The 2018 portuguese maternal mortality rate raised concern between obstetric caregivers and pregnant women. A fast answer to the multiple questions aroused by the unexpected high maternal mortality rate could have reassured all. Probably the solution is on informatic programs that can fast and efficiently generate detailed and actualized data

Keywords: Maternal mortality; Obstetric records.


 

Uma tira de quadradinhos publicada num jornal de distribuição nacional mostrava dois personagens, um barman e uma cliente que lia um periódico, a falar entre si. A cliente comentava uma notícia “segundo dados avançados pelo Ministério da Saúde as listas de espera para consultas nos hospitais portugueses tiveram uma redução de 40% em 2019” e o barman interrogava-se “os doentes desistiram de esperar e foram para o privado? Ou morreram?” (in Publico 8 Fevereiro 2020). Sem mais informações, sobre uma noticia deste teor o comentário - sarcástico, irónico, corrosivo, desagradável, injusto quiçá... - é expectável; todas as apreciações são possíveis e, no que concerne à notícia referida, aquelas são algumas. Num mundo em que há tanta informação e em que se colhem dados sobre tudo, causa estranheza afirmações que não sejam consubstanciadas em números concretos, mensuráveis e passiveis de confirmação. E, quando tal acontece, a desconfiança instala-se...

Algo de similar se passou no final de 2019 no que respeita à Obstetrícia que se pratica em Portugal. Terminava Novembro e todos ficamos incrédulos com a informação de que a mortalidade materna em 2018 tinha duplicado em relação ao ano anterior. De 10,4 casos por 100 mil partos registados em 2017, saltamos para 19,5 por 100 mil. Esta noticia, veiculada até à exaustão em toda a comunicação social, levou a múltiplas reações que exprimiam a incredulidade de quem trabalha na área e que se agravou com a comunicação pelas entidades responsáveis de que os números iniciais eram imprecisos tendo-se revisto em baixa 2018, em que de 17 mortes maternas previamente anunciadas se confirmavam 15, e em alta 2017 (de 9 passava-se para 11) e 2016 (de 7 para 11). Já agora, seria interessante verificar os números dos anos anteriores…

A imprecisão dos números aflige, pois traduz amadorismo ou incompetência de quem tem obrigação de informar e faz duvidar dos resultados apregoados. Mas o não esclarecimento rápido das causas da mortalidade materna registada trouxe imensas interrogações não só aos clínicos como às grávidas. Nos dias iniciais a dúvida centrou-se onde teriam ocorrido os óbitos - se nos hospitais do SNS, no domicílio ou nos hospitais fora do SNS. Mais tarde, a Direção-Geral da Saúde afirmou que ao analisar as mortes maternas ocorridas em 2017 e 2018 tinha encontrado dois grupos etários onde a prevalência seria maior: mulheres que engravidaram depois dos 35 anos e mulheres jovens portadoras de doenças graves. E o assunto ficou encerrado.

Quase um trimestre passado e continuamos a nada saber sobre o aumento da mortalidade materna registado. Os casos ocorreram quando? No anteparto? E em que trimestre e quais as causas? No intraparto? No pós-parto? E no pós-parto até aos 42 dias ou até ao ano? Quais os casos associados a hemorragia pós-parto? E a pré-eclâmpsia/eclâmpsia? E a fenómenos tromboembólicos? E houve mortes acidentais? E quantos casos associados a violência doméstica ou a doença psiquiátrica? E onde ocorreram? Sobre um assunto, que pode ter um impacto real muito diminuto mas que tem um impacto social tremendo, o último relatório da DGS data de 2009 e reporta-se ao período de 2001-20071. Ou seja, além de números muito grosseiros (a taxa de mortalidade materna) nada mais conhecemos.

A mortalidade materna é apenas um dos aspectos da clínica Obstétrica que desconhecemos em Portugal. Podemos passar para prematuridade, para a patologia malformativa fetal, para as cesarianas, para as patologias especificas da gravidez e o que temos ou é nada ou advém da contribuição voluntária (e dedicada!) de grupos ou Serviços. Com estas características, e na área do diagnóstico pré-natal, existe o Registo Nacional de Anomalias Congénitas (RENAC), coordenado pelo Instituto Ricardo Jorge, e que conta com a “colaboração voluntária dos serviços de obstetrícia e de pediatria/neonatologia do país, tanto públicos como privados”2. Na perinatalogia, o Registo Nacional de Recém-Nascidos de Muito Baixo Peso, lançado em 1994 pela Sociedade Portuguesa de Neonatalogia, encontra-se nas mesmas circunstâncias dependendo do esforço dos que aceitam colaborar na colheita dos dados que se pretendem analisar.

Não encontro outra resposta que justifique a ausência de explicações sobre os indicadores Obstétricos em Portugal que a ausência de registos sistematizados e actualizados. Se existissem, de certeza que rapidamente teríamos respostas para as múltiplas questões que se levantam quando nos deparamos como noticias como a de Dezembro! E não é, na certa, por falta de vontade de quem nos governa pois foi em 2016 que foi publicada uma portaria (310/2016) que deixou bem claro que “As unidades privadas e os estabelecimentos hospitalares do SNS que tenham por objeto a prestação de serviços médicos e de enfermagem em obstetrícia e neonatologia devem elaborar relatórios de avaliação dos cuidados prestados na unidade”3. É expressa a vontade de que se devem registar os eventos surgidos durante o período pré e pós-natal muito provavelmente pela consciência (que pecava por tardia!) de que apenas a “análise epidemiológica dos eventos poderia fornecer a informação necessária para orientar o planeamento dos programas de saúde sexual e reprodutiva, a nível nacional e regional, e para monitorizar e incentivar os serviços no sentido da melhoria contínua da qualidade dos cuidados prestados à mulher e ao recém-nascido”1.

Para que haja registos adequados ou há pessoas dedicadas a registar eventos ou há programas que possibilitem que o cuidador facilmente registe o que observou. Destas bases de dados retiram-se os estudos retrospectivos com séries imensas, que só são possíveis por existirem registos sistemáticos e bases organizadas, e que motivam a inveja de quem se dedica à investigação clínica. Em Portugal, estamos quase como em 1987, ano em que iniciei o internato de Obstetricia/Ginecologia. Nessa altura, muita da investigação clínica que fazíamos passava por horas infindas a rever processos, decifrar caligrafias, registar dados, fazer cálculos utilizando a calculadora. Com o evento dos computadores, das bases de dados, dos programas de estatística houve a esperança de que algo mudaria... Mas, entre nós, pouco ou nada mudou pois, em 2018, tive de contar manualmente os casos sobre os quais teria de reportar à tutela. Mas nem em todo o país é assim…

No Norte de Portugal, desde 2010 já é possível obter dados de qualidade sobre os indicadores obstétricos que se quer analisar. O programa informático foi implementado pela ARS Norte nos hospitais do SNS que tutela e permite uma informação actualizada e atempada sobre os eventos obstétricos e os dados que a Portaria 310/2016 quer reportados. É por demais evidente a importância da expansão de um programa com estas características a todo o país! Acabaria de vez o clima de insegurança criado com notícias em que apenas é transmitido o número cru, mas que precisa de mais informação para ser correctamente entendido.

 

REFERENCES

1. Ventura MT, Gomes MC. Mortes Maternas em Portugal, 2001-2007. Direcção-Geral da Saúde, 2009

2. Braz P, Machado A, Dias CM. Registo Nacional de Anomalias Congénitas, Relatório 2014-2015. INSA 2017

3. Portaria 310/2016. Diário da República, 1.ª série - N.º 236 - 12 de dezembro de 2016        [ Links ]

 

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Nuno Clode

E-mail: nclode@netcabo.pt

 

Recebido em: 05/03/2020

Aceite para publicação: 06/03/2020

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